Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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Curtas do Metro – Lapsus Linguae

Lapsus Linguae

8:4o da manhã. Esperamos o Metro para o Cais do Sodré. Chega. Ao entrarmos, o baralho de gente que esperava entra e distribui-se. Como estamos todos à procura de um espaço onde possamos seguir de pé, nem olhamos uns para os outros. Só quando estamos lá dentro é que olhamos uns para os outros. Desta vez calhou-me um 13 no totobola, um poker de mão. Entro na carruagem, dirijo-me à porta oposta que está fechada, sou apertado pela multidão, levanto a cabeça e vejo quem está em volta. À minha direita uma moça muito interessante, formas muito bem definidas, pernas altas e redondas e peito muito generoso. Tem meias de vidro, calções brancos curtos, um casaco de cabedal lilás e o cabelo castanho encaracolado e com madeixas loiras. Pintou as unhas de azul. À minha esquerda uma moça um pouco mais magra mas cujas formas são igualmente perfeitas. Calças de sarja pretas, blusa com decote em vê às listas horizontais verdes clarinhas e brancas, sapatos lisos, cabelo preto liso e compriso, óculos rectangulares muito sensuais e um olhar castanho e doce. À minha frente a mais velha e generosa das três. Túnica branca colada aos seios redondos e generosos, calças de malha pretas coladas ao corpo, cabelo escuro e olhos muito bem definidos por um lápis firme. Era a mais velha, mas não era a menos interessante. E ali fico eu, entalado entre a visão do paraíso e a tentação do inferno. Tento desviar o olhar, mas não é fácil. Para onde quer que olhe há uma mulher atraente. A curta viagem chega ao fim. As portas abrem-se. Todos saímos. Ao sairmos, um homem pequenino, anafadinho, enfiado numas calças de ganga, numa camisa às riscas azuis e brancas fininhas e num casaco de cabedal coçado pelo tempo e pelo uso, vira-se para mim e diz:

– Ó chefe, hã, você ia bem tóreado!
– Toureado? Quer dizer torneado, rodeado…
– Ó isso!

jpv


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"Com Amor," – Documento 13

Rui,

Tu revoltas-me e enterneces-me. Prefiro acreditar na ternura, mas não consigo esconder a revolta.

Vamos à revolta. O teu mail tem como título “Deus e Desculpas.” Onde estão as desculpas. Esqueceste-te? Quero ler-tas! E palavrões, Rui? Até percebo que possas aborrecer-te com uma atitude minha, mas achas que passas a ter razão se escreveres “merda”? Isso é uma infantilidade! Quanto ao amor e ao sexo, precisamos conversar, mas, cá para mim, andas a contradizer-te um pouco. Ou bem que o sexo faz parte do amor, ou bem que, mesmo havendo sexo e amor, seja lícito desejar uma terceira pessoa… neste departamento, andas a precisar de fazer umas arrumações!

Vamos a Deus e sejamos breves e directos. O teu raciocínio faz sentido, mas só serve como historieta de ir deitar criancinhas. Deus e os passarinhos, blá, blá, blá… não insultes a minha inteligência. Os meus filhos são meus filhos. Fui eu que os fiz, os pari, os criei e sofri para que fossem meus. O resto explica-se cientificamente, até os passarinhos! A única coisa que não se explica cientificamente é Deus e a razão é simples, Rui. Deus é uma fraude!

Verónica.

PS: eu falo contigo. Escrevo-te. Leio-te. Isso não faz de mim tua amiga. Sendo o inverso verdade!


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"Com Amor," – Documento 12

Olá Verónica,

Começo a ficar um bocado farto dessa conversa do desancar, do dizer das boas, do fazer e acontecer. Queres desancar, desança, mas fá-lo logo de uma vez. É importante saber-se com o que se conta. O que já não tem piada nenhuma é viver constantemente sob essa ameaça velada sem nunca saber quando é que se vai ser desancado. Verónica, não há nada que possas dizer-me que eu não tenha ouvido já, nem há nada que a vida possa reservar-me que me traga mais sofrimento do que sofri já. Por isso, deixa-te de merdas, se vais desancar, desanca. Se não vais desancar, pára com essa conversa.

Quanto ao dois Ruis que vês em mim, garanto-te que são inseparáveis. Fazem parte do mesmo pacote. Nem vejo como poderia haver um Rui sensível e capaz de perceber o que se passa à sua volta, se não houvesse esse Rui directo e aberto e franco nas palavras e nas relações. Pois é, minha amiga, ou tudo, ou nada. E, nesta fase, estou mais inclinado para o nada. É difícil conversar com uma pessoa que tem sempre razão.

Lamento desapontar-te, mas o sexo e amor não são separáveis. É uma ilusão pensar que são. O sexo faz parte da essência do amor. Sim, há momentos em que se pratica o sexo pelo sexo. Não é a isso que me refiro. É a uma relação entre duas pessoas. O sexo é fundamental para a saúde dessa relação e quando não o houver, haverá pouco amor também. Esse amor pleno de que falavas, imagina-lo sem sexo? Ora, quando um homem ou uma mulher tem uma relação estável e deseja sexualmente uma terceira pessoa, haverá forçosamente nesse desejo algum amor. Podes negar isto, mas negá-lo é uma hipocrisia.

Eu disse que tinhas de fazer as pazes com Deus. E acho que tenho razão. Para mim, Deus não é um velho de barbas brancas e longas. Ele manifesta-se em todo o seu esplendor nas coisas mais inesperadas. Na forma como nos conhecemos, nos nossos filhos, no mar, no céu, no verde imenso das árvores, nos pássaros, naquilo a que chamamos coincidências e mais não são do que a Sua ordem. Deus é vida e é amor. É fácil culpá-lo, mas é também para suportar essas culpas que ele existe. Tu podes andar de costas voltadas com Deus, mas Ele é constante e ampara as tuas costas com as Dele, é o nosso último reduto de esperança e fé. Quando tirares a fé aos homens, deixam de ser homens e nem para bestas servem. Deus é um porto seguro, um amparo, é a visão e a compreensão de todas as coisas, é deixarmo-nos maravilhar com o Universo e as pessoas nele. A Igreja é outra conversa. Eu não faço a crítica fácil da Igreja, mas critico-a, claro, quando entendo que devo. Mas não podemos confundir a Igreja com a transversalidade cultural e espiritual de Deus. Dizes que olhas o mar. Olha-o. Sente-o. Deixa-te encher de esperança e nesse momento suspenso em que, olhando o mar, acreditas que todas as coisas boas são possíveis, Deus está em ti. Contigo.

Beijo
Rui

PS1: Nota de atrevimento: Tu não poderias ser amiga do segundo Rui. Tu já és minha amiga! A quem abres tu a alma como ma abriste a mim? Sendo o inverso verdade! A nossa relação não precisa ser cordata para ser de amizade!

PS2: Escrevi mal striptease. Fiquei na dúvida, fui ver e assim é que está bem.

Mais Beijo.