Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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Estórias ao Acaso: Noite Fria (I)


Noite Fria (I)

Noite fria. Ombros encolhidos e o bafo a desenhar figuras brancas à frente das mãos juntas. Ele sai do trabalho no fim de um dia que promete pouco. O piscar irritante das luzes do carro anuncia portas destrancadas. Casaco atirado com desprezo para o banco de trás. Chave na ignição e o telefone toca…

Em momentos destes, hesitava sempre se atenderia ou não. Se é certo que o dia prometia pouco e o que quer que fosse que respirasse vida do outro lado pudesse ainda fazer brilhar uma qualquer centelha de calor humano, não é menos certo que a vida, nestas alturas em que as noites têm pouco para dar e já perderam a aura idílica e romântica da juventude arfada entre seios generosos e beijos ávidos e desencontrados, tinha uma certa estabilidade. E saber com o que se conta, mesmo que seja nada, é uma conquista dos anos que aprendemos a apreciar.
Há, contudo, essa humana curiosidade que dita, não raro, as nossas atitudes e a inscrição “número desconhecido” no painel do telemóvel espicaçava tanto como incomodava. Há homens e mulheres que resistem a isto. Ignoram. Desligam. E seguem a sua vidinha como se nada tivesse acontecido. São poucos. E há outros que não se perdoariam, nunca, não ter sabido o que estava ao dobrar da esquina. Que grande cometimento ou que coisa nenhuma se escondia por detrás do enigma anunciado. Ele era desses.
Deixou tocar mais umas vezes. O tempo suficiente para meter a primeira, acelerar, segunda, pisca à esquerda e com o telémovel entalado entre a orelha e o ombro articulou em tom expectante de quem, sem estar perguntado, perguntava: “Estou?”


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O acordar de Domingo

Olá mana,
hoje, quando acordei, já éramos três na cama. Vindo da penumbra do seu território, o miúdo enfiou-se no nosso ninho.

E dei comigo a recordar os momentos em que fazíamos exactamente o mesmo. Ao longo da semana afirmávamos a nossa independência juvenil, íamos às lutas todas, desafiávamos a figuras paternas e, depois, assim que desconfiávamos que estivessem acordados, como que descansando das guerras e das máscaras, havia um diamante bruto, um sentir insubstituível, uma pulsão de carinho e ternura que nos fazia trepar pela cama dos pais acima até ao centro e ali ficávamos entre o seu calor e o seu amor contando as aventuras, as estórias, rindo, usufruindo do correr aconchegante do tempo. Era como o sono depois de um dia de trabalho: o momento de aprender, de tirar partido, de amar.

Fundiam-se os territórios, esbatiam-se as fronteiras e as barreiras, não havia conflito de gerações nem qualquer outro porque o momento era de magia. A minha mulher tem uma imagem terna do assunto: diz que gosta de imaginar que vamos os três voando juntos, isolados do resto do universo e que a nossa cama seria assim uma jangada de percorrer os mundos todos…

Às vezes penso que a magia do acordar ao Domingo de manhã na comunhão dos espaços, dos risos, das aventuras e das desventuras podia bem ser uma forma de refundar a nossa sociedade.

Beijo,
mano.


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Grão a grão…

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Devagarinho, “Mails para a minha Irmã” vai fazendo o seu percurso, contando as suas estórias e construindo a sua história. Hoje completámos 2000 visitas! Bonito número. Grato a todos os que por aqui passam alguns dos seus minutos.

João Paulo Videira


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Da entrevista a Isabel Alçada.

É possível ter uma visão poética sobre todas as coisas? O impulso é dizer que sim. Tudo tem poesia. Mas há obstáculos. Sei lá, assim de repente, onde está a poesia daquele pedacinho de plástico que colocam nas pontas dos atacadores para que se não desfiem? Onde está a poesia do motor de ignição de um carro? Onde está a poesia do composto químico do conteúdo das pilhas? Onde está a poesia de uma entrevista à nova Ministra da Educação?

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Trazias um sorriso inseguro e uma voz trémula, a espaços entrecortada pela força da determinação. Sabias o que querias mas não como querias e por isso o discurso saíu-te confuso. Mas as hostes, excepção feita aos cépticos de sempre, gostaram de ouvir-te. Fizesses o que fizesses, mostrasses as incertezas todas, e todas as dúvidas. Hesitasses, errasses, mesmo, e estaria tudo perdoado por via de um gesto só: colocaste-te ao lado dos injuriados, foste uma de nós. Sem soberba, com simplicidade e até alguma poesia. Atacaste as perguntas e os desafios pela perspectiva abandonada no passado. E veio-te daí a fraqueza e a força também. E olhaste o futuro com brilho nos olhos e um sorriso. Um sorriso. Há quanto tempo não víamos um sorriso.

Sabes, eu estou céptico. Não por ti. Pelos contornos que conheço ao problema. Pelos agentes. Pelas circunstâncias em que vieste a ser quem és. Pelas pedrinhas todas que vão colocar-te na engrenagem. Pelas forças que não controlas, algumas até desconheces. Tão acima de ti! Podem sufocar-te como já me fizeram. Sabes, há moinhos atrás dos moinhos de Quixote e há monstros escondidos na sombra do Adamastor. E há, haverá sempre, a cortina da dúvida pairando entre a tua vontade e a tua autonomia, entre a sinceridade com que te colocaste ao nosso lado e a possibilidade de não ter sido sinceridade nenhuma. Esta mediação não é da tua responsabilidade. É uma herança. Uma herança de desentendimento. Sabes, eu não quero dar-te conselhos. Não sou ninguém nem tenho nada comigo que me autorize a tal. Mas tenho o atrevimento. Simplifica. Não fujas para a frente, não vás atrás da enxurrada da complexificação do que não ganha nada com a complexidade porque tem uma matriz de simplicidade. Ser professor é dar. Dá! Ser professor é dedicar. Dedica! Ser professor é conquistar. Conquista! Ser professor é ceder. Cede! Ser professor é trabalhar. Trabalha! Ser professor é amar. Ama! Concentra-te no cerne, concentra-te no essencial e corta a facadas pujantes e decididas as excrescências, os excessos. Sabes, eu vivo um paradoxo desde que me conheci. Acho que é um paradoxo português. É que sou céptico mas gosto de acreditar. Hoje acreditei.


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Efeméride

Não há já o fulgor e há quem diga que é normal. Que o fogo esvanece. Que a energia fenece. Que a entrega enfraquece e se encosta à rotina, com a idade. Mas eu quero ainda o o fogo, a energia, a entrega e o pueril vigor que me dizem não ser da minha idade ainda cá mora. Dancei nas curvas do teu corpo agarrado a ele projectando sombras no chão, silhuetas da aventura de sermos um só na mesma loucura. E, entretanto, entrou aqui algures, por entre os espaços que os corpos sempre abrem entre si essa ideia da idade. A idade do corpo. Então e a outra? E pergunto-me, será que alguém sabe a idade de alguém? Conhece alguém a sua própria idade? Ou a idade é o que fazemos com o tempo e a vida. São as virtudes e os pecados. Só não consta da nossa idade o que não vivemos. E isso não se deixa, só, de contar: desconta-se! E o teu corpo, outrora visita constante é hoje mais um irmão do que um amante. Está presente mas não me invade. Sinto-lhe o calor mas não o fogo. Eu sou mais uma presença a que te habituaste do que a África quente, harmoniosa e sensual que exploraste. Deixámos há muito de pecar! E faz falta à pureza de um amor inflamado, o sabor picante e vivo do pecado.


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A canção do pastor

De mãos unidas
e ungidas de Deus
e joelhos colados
ao chão,
o silêncio é o lugar
onde o pastor
ouve
a sua própria canção.
Os verdes campos
são uma porta fechada
pelo lado de dentro
e a liberdade
é um grito
que emudece
quando o pastor adormece
nas mulheres
com que se deita…

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Hoje estou com veia divulgadora.
Este texto veio daqui: http://arcadehistorias.blogspot.com/


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De pequenino…

Olá mana,
por estes dias, finalmente tristes, de Inverno, um sol houve que brilhou na seara da minha esperança: os miúdos fizeram um blogue.

Ao que parece a zona é complexa, mas, como sempre, os miúdos encaram a vida com alegria e galhardia e aquilo que entre os adultos poderiam ser problemas complexos, discussões, litígios, para eles são só o dia-a-dia.

E depois, há no meio disto tudo um professor, o Manuel, que acredita, efectivamente, no que faz e faz bem.

Estão por isso reunidas as condições para que a vida aconteça. E no espaço de um apoio, criam-se blogues, visitam-se blogues, pesquisa-se, intervem-se, aprende-se!

Como sabes, tenho sido um defensor prudente das novas tecnologias nos ambientes educativos. Defendo-as, sim, mas com critério, com acompanhamento para que o crescimento seja sustentado. Acontece, contudo, que a vida acontece e irrompe para além das nossas ânsias e mesmo para além das nossas capacidades de controlo. E mesmo com o acompanhamento do Manuel, os miúdos inscreveram-se na esfera cibernética e agora a vida é deles e acontecerá como tiver de acontecer. Resta-nos estar atentos.

Não farei o texto muito longo porque eles não gostam, mas queria usar este espaço que é, por norma, teu para divulgar o trabalho e o orgulho destes miúdos que de resto me lembram a tua fibra e o brilho do teu olhar quando tinhas feito alguma…

Sejam muito bem-vindos, amigos, a este mundo paralelo do outro e que ele vos traga as alegrias todas.

Aos leitores de “Mails para a minha Irmã” sugiro uma visitinha a:

Beijo,
mano.


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Parabéns mana!

Doce mana,

já em tempos escrevi um texto sobre o dia em que nasceste daí que tentarei felicitar-te sem repetir o caminho de magia que foi, para mim, o dia em que nasceste.

O texto será breve porque no que respeita à tua chegada, à tua existência, à tua vida, ao teu nascimento e ao teu aniversário, as coisas que sinto são de tal forma avassaladoras que me compactam os sentidos e tolhem as palavras. Todas me parecem de menos, pequenas, limitadas e aquém do turbilhão com que lido desde o dia 4 de Novembro de 1972.
É como se não fosses “só” minha irmã, mas o milagre de toda uma vida. É como se a minha existência se tivesse iluminado a partir do dia em que te vi, rosada, pela primeira vez.

O engraçado é que eu acho que tu sempre pensaste que eu era um exemplo a seguir e em surdina, num silêncio respeitoso de quem deixa passar a vida, eu seguia o teu exemplo. A bravura, o brilho malandro no olhar dedicado, o dente cerrado aquando da defesa das tuas posições e o carinho…

Não sei, não saberei nunca se fui um bom irmão. Não me interessa isso muito. Não é o tipo de mensurabilidade que eu ache que possa alguma vez ser justa. Sei, contudo, que devo ter sido um irmão aquém de ti porque tu mereces sempre mais. Sei, também, numa avaliação muito subjectiva mas que considero que é pertinente porque é a minha, que foste a melhor irmã que alguém poderia ter tido. Foste tudo o que sonhei no dia em que desejei um mano. E foste muito mais do que isso tudo.

Já uma vez to disse e agora repito: a palavra “irmã” faz sentido porque tu existes.

Parabéns, mana. Do fundo mais honesto e genuíno que o teu irmão encontra em si emana este voto, assim, cristalizado nesta palavra “parabéns”.

Gosto muito de ti e quero ver-te viver até que a Parca corte a corda. E peço à Parca que corte a minha primeiro!

Beijo, mano.


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Dia de Todos os Santos

Querida mana,

por mais complexos que possamos parecer ou queiramos assumir, a verdade é que, nós, os humanos, somos seres de síntese. Senão vejamos, há dias para este santo, para aquele santo, para algumas santas e há, depois, o dia de todos os santos. E, em síntese, colocamos os santos todos num mesmo saco que é o saco para onde vão os que se não destacaram por nada a não ser terem tido a coragem de atravessar o tenebroso rio.

Estava aqui a pensar nisto, donde se infere que sou um tipo esquisito, quando me lembrei que o pai, o avô Velez, a avó Ana, o avô Francisco, a avó Lectícia, a Mimi e mais uns quantos humanos que nos preencheram as vidas da juventude já são santos. O que não deixa de ser curioso porque entre estes admiráveis santos havia alguns que celebravam o dia com particular interesse.

Para nós tudo se resumia a um ritual que começava numa visita ao cemitério e terminava entre febras grelhadas na brasa e castanhas assadas nos pinhais de Santa Quitéria com fumos intensos de café de borra aquecido no lume perfumado das carumas.

Só hoje, à distância inultrapassável de umas quantas partidas definitivas, eu percebo o sentido dos rituais porque lhes sinto a falta. A verdade, mana, é que nada pode ser vivido antes do tempo. E é por isso que o dia de todos os santos teve uma altura em que era uma festa e tem, agora, um tempo em que é uma celebração. A celebração dos meus santinhos.

A celebração da dedicação com que o nosso pai nos conduzia até ao local perfeito, a celebração da sua voz moderadamente entusiasmada falando da feira e observando os seus pormenores de vida, a celebração da agitação genuína da Mimi, a celebração da insubstituível falta que me fazem os humanos, que, por serem os meus eleitos, são os meus santinhos, por mim beatificados e canonizados no altar da gratidão, do reconhecimento, do amor nascido de uma vida partilhada.

Se outras razões não houvesse, se outros santos o não justificassem, todos os meus santos de amar justificaram a noite de festa e febras e castanhas e água pé e vozes iluminadas pela companhia e pelo sentir que estamos vivos entre os vivos e, por isso, em condições de celebrar os vivos entre os mortos.

E foi assim que celebrei os meus santinhos, entre amigos, com todos os ingredientes, excepto o frio que muita falta fez por ser catalizador de conversas e por permitir aquele gesto que é uma pessoa agarrar numa chávena de café quente, encolher os ombros dentro da roupa e soprar o bafo à medida que vai comentado “está frio, não está?”…

Beijo,
mano.