Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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Um homem mais perto de Deus

[Luís Marques Mendes é eleito presidente do PSD no XXVII Congresso Nacional do partido. O Vaticano nega os rumores sobre a morte do Papa João Paulo II. Autoridades espanholas prendem 13 suspeitos de participação dos atentados de 11/03/2004. Morte do Papa João Paulo II (Karol Wojtyla). O tenista suíço Roger Federer vence o espanhol Rafael Nadal e conquista o Masters Series de Miami.

[Data da primeira publicação: 15 de Abril de 2005]

Um homem mais perto de Deus

Querida mana,

Não te dizia eu, ainda há pouco, que as palavras nos fogem? Não te dizia eu que ando para escrever-te acerca do dia em que nasceste? Ainda não é desta que a vida me abre uma brecha para além das intenções. Foi para mim um dia extraordinário que muitas vezes recordo devagarinho como que a querer demorar-me nos pormenores. Desta vez, contudo, preciso falar-te desse homem que nos deixa e, se conseguir, falar-te um pouquinho do que nos deixa. Como sabes, todas as pessoas e, por conseguinte, todas as famílias, têm, por entre a narrativa do quotidiano, emprego, viagens, férias, trabalhos que se aceitam, trabalhos que se deixam, opções, riscos, dissabores, conquistas, têm, dizia eu, uma história religiosa. Uma história de opções espirituais. Há as famílias mais crentes, as menos crentes, as mais participativas, as menos participativas, as mais normativas e as mais rebeldes. Independentemente das opções individuais e familiares, independentemente, mesmo, do credo de cada um, João Paulo II marcou uma geração de pessoas que se habituou a olhar a Igreja Católica e até o Cristianismo pelos olhos do Santo Padre. Não há pessoas indiferentes a este Papa. Pode ser uma velhinha aqui da Zibreira, católica como lhe ensinaram e depois ensinou também, pode ser um chefe de estado muçulmano, pode ser um jovem indu professo, mas, se for humano, há-de reconhecer com a naturalidade com que se reconhece que a água é água, que o pão é pão, que o ar é ar, que as montanhas são as montanhas, e os pássaros, e as flores, e o amor, e o verde, e a vida, há-de reconhecer com a naturalidade de aceitar sem discutir que este homem foi tão homem que ficou mais perto de Deus. João Paulo II conseguiu o mais difícil. Não se refugiou no silêncio. Não se escondeu nos extremismos injustificados. Assumiu todos os assuntos do Homem como assuntos da sua Igreja, enfrentou todos os problemas e conseguiu fazê-lo sem ofender, sem magoar, sem impor. Foi um homem francamente arrojado, arrojadamente moderno. E percebo-lhe, agora que os anos passaram, a estratégia. Uma estratégia de humildade e serenidade. Uma estratégia que consistiu em ouvir os que sofriam, em escutar os que se lhe dirigiam, em dirigir-se aos que pediam a sua presença, uma estratégia de clara aproximação ao Homem. Uma negação, quase até ao incompreensível, da indiferença que corrói e corrompe as relações entre os homens. Este foi o Papa que reconheceu a verdade de Galileu, este foi o Papa que se deslocou ao berço de Cristo e pediu perdão pelas perseguições. Este foi o Papa que fechou os ouvidos às palavras dos conselheiros e se deslocou aos locais mais adversos para ouvir, para amparar e, claro, para levar a Palavra. João Paulo II, mana, esteve tão perto do seu semelhante que conseguiu ver-lhe a face sulcada pelo sofrimento, as mãos cansadas do trabalho, os olhos iluminados pela alegria. Esteve tão perto do seu semelhante que fez disso a sua própria ascese sem que reparasse nisso. Este Papa, este nosso Papa, fazia parte de nós, das nossas famílias. Agiu sempre como todos os homens deveriam: com serenidade, compreensão e capacidade de estar no lugar dos outros. Julgo, mana, que te escrevo hoje sobre o Papa por que há nele algo que me deixa profundamente esperançado em relação a nós, mortais comuns e humanos: é que residiu a sua ascese, residiu a sua reconhecida e unanimemente aclamada santidade numa inequívoca e profunda aposta na humanidade. Foi por assumir-se homem e próximo, sempre muito próximo do Homem, que este Papa se distinguiu dos outros homens. Sem querer cair em raciocínios de carácter teológico arriscado, eu diria que este Papa nos elevou a todos como humanos. Eu diria que, com a sua vida e as suas opções, João Paulo II fez de nós todos pessoas um pouco melhores. Esteve acima dos critérios, das discussões, das indignidades, esteve acima de tudo isto porque se baixou para olhar o seu semelhante nos olhos e dizer-lhe “Não tenhas medo!”

Beijo,
Mano.


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Não há não tenho tempo

[Luís Marques Mendes é eleito presidente do PSD no XXVII Congresso Nacional do partido. O Vaticano nega os rumores sobre a morte do Papa João Paulo II. Autoridades espanholas prendem 13 suspeitos de participação dos atentados de 11/03/2004. Morte do Papa João Paulo II (Karol Wojtyla). O tenista suíço Roger Federer vence o espanhol Rafael Nadal e conquista o Masters Series de Miami.

[Data da primeira publicação: 1 de Abril de 2005]

Não há não tenho tempo
Querida mana,

Muitas vezes te tenho escrito e muitas vezes as palavras me fogem ao controlo de autor e acabam expressando o que pensam sobre o Tempo. Autoritário, apago os parágrafos, silencio as palavras e as ideias delas em impulsos de autoridade autoral e lhes digo que não é aquele o caminho, que não são minhas aquelas ideias mas sim delas, palavras libertinas e insubmissas. Retomo a escrita e o carreiro das ideias nasce na minha poltrona de autor para depressa se rebelar, tomar vida própria e seguir um caudal que há-de levar qualquer coisa de mim mas que não sou eu em exclusivo. É por isso que muitas vezes te quero escrever sobre o pai, sobre a mãe, sobre coisas inúmeras da nossa infância e acabo, perdido, de volta do Tempo. Não sei já, mana, quantas foram as vezes que comecei escrevendo sobre o dia em que nasceste, sei só que foram as mesmas que terminei por não fazê-lo. São incómodas e incomodativas, as palavras, quando se rebelam e insurgem contra a vontade tão pouco soberana de quem julga comandá-las. Hoje fiz este exercício de raciocínio: conversei com as minhas palavras que começaram por dizer-me que não eram minhas. Não chegámos a acordo. Somente a breves cedências mútuas. E perguntei-lhes de que queriam falar-te. Que coisas queriam dizer-te. Que mas dissessem já e evitaríamos tempos perdidos em batalhas inúteis que as ditas sempre levam de vencida.

E sussurraram-me coisas do Tempo. O tempo de fazer. O tempo de ir. O tempo de voltar. O tempo de recordar. Ter tempo. Não ter tempo. Arranjar tempo para. Inventar tempo. Precisar de tempo num tempo único e breve que se não tem e se não gasta porque se não tem. Um tempo frágil para quem quer fazer o mundo e tê-lo na mão. E disseram-me, estas palavras insubmissas, que não há tempo senão o de estar. Que se não rouba nem cria nem desperdiça nem dá nem tira o que não está na nossa mão senão para estar.

Fiquei-me a dar razão às palavras e a pensar quantas vezes, vezes demais, já disse de mim para comigo “não tenho tempo”. Um dia destes visitaste-me e estivemos por aqui entretidos vendo cassetes de quando o meu filho mal se tinha nos pés, de quando estendia os braços ainda para amparar-se, de quando os meus compromissos se resumiam a pouco mais do que olhar por ele, de quando lhe nunca dizia “não tenho tempo”. A simplicidade dos dias de então emergiu grandiosa nas pequenas coisas que me contentavam e reparei que me contentava com olhá-lo como se estivesse sorvendo e cristalizando o Tempo, me contentava com atirar-lhe a bola ao ar para ficarmos os dois, lado a lado, vendo-a cair. E pensei: “houve um dia em que tive tempo para ver cair uma bola dos céus com a mesma ânsia e expectativa que o meu pequeno companheiro de entretém.”
Não há “não tenho tempo”, mana. Há só estarmos. Há só o que fazemos com Ele. E criei uma brecha nos compromissos. Criei uma falha nos assuntos inadiáveis. Criei um buraco negro na ausência e fiz tempo e fiz vida e fiz partilha e tive na mão o que pensava me havia escapado: o Tempo. Um destes dias, mana, cortei os cordões com o inadiável e adiei-o. Um destes dias, dei importância ao importante e corri por um pinhal adentro com uma bola na mão que chutei para os céus com quanta força tinha. Depois, sentei-me junto do meu filho e fiquei vendo-a cair…

Beijo,
Mano