Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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Operação Ilegal: putos de hoje, aulas de ontem!

Olá mana,
há já uns anos que escrevi um estudo que continha esta rábula que agora te envio. Sempre me pediram que a divulgasse e nunca aconteceu. Hoje, lembrei-me dela e cá vai. Só a rábula, o estudo envio a quem o solicitar.
Beijo,
mano
OPERAÇÃO ILEGAL
[putos d’hoje, aulas d’ontem]
08:29:00 – vinte e quatro jovens educados e compostos, calças vincadas, cabelos alinhados em silêncio respeitoso, de um respeito muito feito de temor aguardam, pacientes, o mestre.
08:29:30 – ao fundo do corredor surge o senhor professor. Alguns endireitam um pouco mais as costas, colocam expressões ainda mais respeitosas e o silêncio agora é total. Alguém importante vai passar.
08:30:00 – a aula, começa. O mestre usa um fato riscado de fazenda. Uma camisa branca e um gravata sóbria completam o ambiente de plena sobriedade que envolve o espaço. O mestre tem uma mala preta de cabedal. Todos os seus haveres estão metodicamente organizados e são só os suficientes, nem demais, nem de menos. O mestre expõe. O silêncio entrou na sala com os demais e veio para ficar. Ninguém tem dúvidas, ninguém ousa.
08:50:00 – paremos, por magia ou facilidade da escrita, a aula neste momento. Das cinco filas de seis carteiras vamos pousar o olhar sobre a terceira carteira da fila do meio. Ao lado de um figurante anónimo para esta história está o João (perdoem-me a originalidade no nome!). Que vê o João?

– De onde está, o João vê a nuca do colega da frente erguer-se alva e ligeiramente inclinada sobre o escuro da fazenda do fato e, quando este se baixa, vê também a nuca do primeiro colega (primeiro em tudo, a localização geográfica no espaço da sala é sintomática, o que faz do nosso-joão-olhos-do-passado-com-funções-de-máquina-do-tempo um aluno mediano!). À sua direita vê, em visão periférica porque levantar muitos olhos, mostrar curiosidade, pode ser mal interpretado, as sombras das costas dos fatos escuros dos colegas. À sua esquerda mantém-se a monotonia simétrica do panorama. Ao fundo, em boca de cena, sobre o estrado, mais alto do que realmente é, está o mestre. Junto à secretária, não encostado a ela. Sóbrio. A secretária tem um aspecto sólido e por detrás um cadeirão. Na parede um Cristo ainda na cruz. Para a direita abre-se a imensidão negra do quadro. Chegar ali só por razões muito boas ou muito más. Mais à direita, ainda ao fundo, chegando ao canto oposto ao do professor um armário médio que guarda paralelepípedos entre outras coisas abafadas pelo pó e, menos poeirenta, a menina de cinco olhos. Por cima deste, uma foto em tons de cinzento e negro do Senhor Presidente do Conselho a quem Portugal está agradecido.
O João não vê mais nada além disto a não ser o seu material geometricamente disposto e organizado sobre o tampo impecável da mesa. Para ele, isto não é bom nem mau. É assim!

Meio século depois: sejamos francos, não mudámos tanto assim!
Adicionamos umas cores e uns sons à paisagem, somamos uma atitude mais ligeira aos intervenientes, trocamos alguns adereços e a essência mantém-se. As nucas e as costas dos da frente, carteira à esquerda, armário à direita, professor sóbrio pela frente, quadro negro, por vezes irritantemente verde, ainda muitos estrados e o professor expõe. Se tivéssemos mantido o João adormecido na sua sala e o acordássemos agora, estranharia pouco! MAS… mantenhamo-lo adormecido e vejamos como é este João de hoje que ocupa aquele mesmo lugar sem suspeitas da anterior presença de um homónimo.
No pulso, um Casio electrónico com lcd luminoso e não sei quantas teclas com quantas funções. Na sala de jantar tem uma mesinha com um suporte onde estão seis comandos a distância: tv, vídeo, vídeo para gravações, dvd, aparelhagem e ar condicionado. Depois dos Pokemons vai à net e tudo é colorido, tem movimento, cintila, é chamativo e responde.
– O trabalho de História? Fiz uma busca no Alta Vista e já ‘tá!
– Aquela coisa complicada para filosofia? Fui à diciopédia!
Regressa à sala e vai-se aos vídeos sobre vida animal. Hoje não teve tempo para a consola.
Na mesa-de-cabeceira um rádio despertador a despertar a horas diferentes em dias diferentes de acordo com as actividades e horários. Um painel lcd para dominar no micro-ondas antes do leite matinal. Entretanto, antes de sair vai imprimir um teste à mãe, faz dois resets e reinstala a impressora. Demora 15 minutos. Tem sucesso. Vê o pai digitar o número do alarme antes de saírem para o carro que o pai abre com um comando incorporado na chave. O computador de bordo avisa: CUIDADO CARBURANTE. Enquanto o pai conduz rapa do telemóvel, joga dois joguinhos da serpente e vê as mensagens visuais porno-obscenas que o pai importou à socapa da net na noite anterior. Muda-lhe o toque para chatear e quando chega à aula vai ocupar o lugar sombra do João que lá deixámos há cinquenta anos:
OPERAÇÃO ILEGAL!
Puto d’hoje, aula d’ontem!


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Corre louco

a85ed-passada

Corre louco

Corre louco e fugidio
Por ruas estreitas,
Fintando o casario
E levantando as saias às mulheres descuidadas.

Deixa para trás,
Em rodopio,
A cabeça dos homens
E o sussurrar do mulherio.
E foge, louco, às perseguições,
Sem querer saber de amizades,
Amores ou paixões.

Há no seu passar
Um pressentir de vertigem,
Uma alegria, Um medo,
Um arrepio!

Corre e passa e há quem o veja,
ou jure que o viu,
Mas não se avista nunca de onde partiu.

E segue indeferente
À vida e à morte,
Às mães e aos pais,
Aos filhos e às filhas,
percorre as terras todas,
As montanhas, os vales
E as ilhas!

E não há notícia da sua captura,
Nem em frasco, nem em saco,
Nem em câmara escura.

Quem o vir,
Deixe-o passar.
Deixe-o ir.
E recolha a lição
Que a missão
Do Tempo
É fugir!

jpv


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E quem liga o acordo ortográfico ao "productor"?

Querida mana,

quando uma manhã de sábado acorda brilhante e quente não há como resistir: sair de casa é a única solução. Um destes sábados, a manhã levantou-me da cama a ameaçar que se aí ficasse perdria um excelente dia.
Entre a pasta dos dentes, o pequeno-almoço e o entrar para o carro a coisa foi breve e lá partimos os três à descoberta dos recantos deste país que ainda são portugueses. Algures numa curva à esquerda, em plano inclinado, dou de caras com um letreiro todo janota, com uns cachos de uva pintados e cuja inscrição assim rezava: VINHO DO PRODUCTOR.
Aquele intrometido C atrás do T fez-me parar o carro e tirar uma foto, primeiro, depois começou a estorvar-me a tranquilidade da alma.
Não sei se te lembras, mas acredito que sim, aos sábados, a nossa mãe, antes de sair de casa para o trabalho, deixava sempre uma imensa lista de tarefas para cumprirmos quando acordássemos. Sempre achei, de resto, que era um contra-senso deixar-nos a dormir porque, se o fizéssemos, não tínhamos tempo para as tarefas todas e era o cabo dos trabalhos, ou não, consoante o humor. Nesses bilhetes, relembro com carinho alguns pormenores de escrita sendo que um sempre me ficou mais vivo na memória e me levou mesmo a interrogar alguns professores: “Ó setôr, como é que se escreve coêlho? É com acento não é?” E andei procurando pela juventude fora um professor que me dissesse que a mãe tinha razão, que ela é que escrevia bem. A razão desta procura é simples. A mãe era tão perfeita em tudo que eu não queria que ela falhasse na palavra coelho!? Nunca consegui essa tranquilidade até ao dia em que encontrei o PRODUCTOR.

Eu percebo o que se pretende com o acordo ortográfico. Unir povos. Unificar culturas. homogeneizar a grande diáspora portuguesa. Tudo isso está muito certo mas penso, por vezes, se não será inglório tentar homogeneizar o que não é homogeneizável. Eu vejo a Língua como um organismo vivo e percebo, por isso, que tem de evoluir mas não acredito que essa evolução deva ou possa ser artificial. Uma tal evolução deve seguir e respeitar o uso que os falantes fazem da Língua. E a verdade é que se os nossos irmãos brasileiros dizem fato em vez de facto ou diretor em vez de director e assim o escrevem, então devem ter liberdade para o fazer. Tal liberdade contudo não deve fazer tábua rasa de uma maior proximidade que nós, falantes do português de Portugal, temos em relação à origem desta nossa maravilhosa Língua: a cultura greco-romana.

Uma proximidade assim aduz um argumento que parecendo frágil pode revelar-se determinante: os nossos falantes quando dizem facto ou director sentem o C. É verdade mana, há sons que se sentem e outros que só se pressentem mas estão lá. Talvez não seja por isso que a mãe escrevia coêlho mas é de certo por isso que o produtor escreveu PRODUCTOR!

Sem querer aborrecer-te, ainda avanço um esclarecimento: produtor emana do verbo latino produco que tem o supino productum onde está o tal C. Quem escreveu o letreiro não conhecia estas minudências da etimologia mas sentiu o C! E isso é que é importante!

Eu penso, mana, que este acordo vai descaracterizar a Língua Portuguesa continental, penso que vai desbaratar uma importante herança cultural e penso, também, que causará o caos entre os aprendentes mais jovens. E é por isso que não concordo com ele.

Depois e não menos importante, se a mãe até há pouco tempo ainda escrevia coêlho e o senhor das vinhas ainda escreve PRODUCTOR, porque é que eu tenho de tirar o C ao facto?

A Língua há-de evoluir, como sempre aconteceu, mas essa evolução tem de ser determinada pelos falantes, os falantes é que são os soberanos da Língua! O que está a contecer é, a meu ver, a introdução espúria de alterações à regra que não respeitam a norma, é um processo artificial e o que é artificial, a humana mente costuma rejeitar. Já para não falar de outras motivações e complicações como, por exemplo, perceber critérios comerciais a antecipar os culturais.
E pergunto, se o acordo ortográfico é para ligar, unir, unificar, como é que se liga o productor ao acordo ortográfico?
Lembrei-me, a propósito disto, de um arrozinho de coêlho que a mãe costumava fazer…

Beijo,
mano.


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Refazer

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Refazer

Do tempo que escorre,
Húmido e frio,
Pela minha vidraça,
Nasce-me uma memória
de feitos antigos e ancestrais.

É uma força que me ultrapassa
Ou são gotas de chuva e nada mais?

Há rumores que dizem
Que o que somos já vem inscrito
Numa matriz de gestos imprevisíveis
Num pensamento,
Num olhar,
Num grito.

E é, assim, num dia destes,
Que quero
a lareira, o fogo, a chama,
Quero as castanhas a estalar,
Quero o conforto da alma.

Fica para trás a pujança do sol,
Fica para trás a areia fina e o mar,
Que estes são tempos de refazer
Enquanto a chuva está a escorregar.

jpv


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Por muitos a zero!

Querida mana,

Lembro, por vezes, a eternidade das tardes domingueiras passadas a quatro, ou cinco, quando estava a Mimi, e lembro a sua simplicidade tanto como a fruição do tempo. Sermos uma família era mais, muito mais, do que termos laços de sangue. Era estarmos juntos.
O pai sentava-se na sua mesa, fazia contas, lia o jornal, escrevinhava papéis ou abatia-se sobre os braços e adormecia profundamente donde só acordava para comentar o que se estava a passar na tv como que anunciando “eu estou aqui, não estou a dormir”. Mas estava e isso não tinha importância nenhuma. A mãe sentava-se costurando uma coisa qualquer, fazia um bolo, conversava ou escapava-se para o quarto, ali mesmo ao lado, donde emergia sonolenta para fazer algumas das coisas que ainda agora referi. Nós andávamos pela sala, no chão, debaixo das mesa, como se esse território nos pertencesse em exclusivo. Espreitávamos a televisão e sobretudo, brincávamos.
Havia uma actividade que me entretinha imenso. Eu copiava um totobola para uma folha quadriculada e deixava um espaço grande entre o nomes da equipas para registar os golos. E no curso dessses dias distantes várias coisas não tinham acontecido ainda. Não havia transmissões televisivas do futebol e a riqueza do jogo dependia da arte dos senhores que gritavam “Gooooolo!”. Da forma como narravam o jogo, das suas opiniões, dos juízos de valor sobre a partida, do colorido que emprestavam às minhas tardes de Domingo. É curioso que, sem tv, havia menos casos de jogo. As faltas eram faltas, os golos aconteciam quando a bola entrava na baliza e, mais do que tudo isto, valia a festa. A festa fazia-se, também, dessa singularidade que era os jogos serem todos ao mesmo tempo, nas imensas tardes de Domingo. Por vezes, o senhor gritava “Goooooolo”, eu estava já aos pulos, radiante e festivo, quando ouvia “o árbitro anulou o golo”. Era um descer à terra, uma desilusão e retomavam-se as expectativas. E lá ia, Domingo a dentro, registando os golos na minha folha quadriculada.
Nessa altura, havia o hábito salutar de se investir muito no jogo e menos nas coisas à volta dele e, fosse por isso ou por outra qualquer e desconhecida razão, havia sempre quem ganhasse por muitos a zero!
Lembro-me, por esses estranhos e alienígenas tempos, de haver um treinador do Benfica que fazia gala em não fazer substituições e orgulhava-se de sofrer muitos golos porque, dizia, marcava sempre mais.
Os casos nunca se resolviam na tv, não se ganhavam os jogos antes de começarem nem depois de acabarem, e havia sempre muitos golos. Ser do Benfica era, na altura, o mesmo que ganhar por muitos a zero. E, na segunda-feira, todos discutíamos as jogadas que não víramos como se as tivessemos visto. E todos tínhamos certezas. Era o inefável poder da imaginação despertado pela rádio. Havia mesmo alguns de nós que conseguiam dizer “eu vi bem que foi falta!”.

Entretanto, a vida roubou-nos as tardes de Domingo, a rádio perdeu espaço, a televisão ocupou demasiado, os jogos passaram também a ser jogados antes e depois de começarem, o futebol esterilizou-se em tácticas suicidas, e deixou de se ganhar por muitos a zero! Passou a interessar mais o resultado do que o seu volume, deixou de haver vitórias morais, morreu o “fair play”, 1-0 é um resultado comum e uma goleada é uma excepção, um motivo de festa. Tudo é esquadrinhado por câmaras, os árbitros são quase tantos como os jogadores e tudo isto estava sem graça nenhuma até ter chegado Jesus!

O que eu gosto no Benfica de hoje, ou no de ontem à noite, é o despudor com que defende mal, até porque defender não interessa para nada, é a ingenuidade de estar a ganhar por 4 a 0 e os jogadores continuarem a correr como se não houvesse amanhã, loucos, esses loucos, que jogam à bola como cachopos entusiasmados mesmo quando o resultado já está feito. O que eu gosto no Benfica de ontem à noite é que joga dentro do campo para quem cá está fora. O que eu gosto é do renascer da ideia de espectáculo e do que eu gosto mesmo, acima de tudo, em nome da minha infância distante, é que me devolveu a alegria de ganhar por muitos a zero.

Querida manucha, este mail era para ser sobre política, sobre a apresentação do novo governo do senhor engenheiro que nos vai conduzir nos próximos anos. Mas quem é que quer saber disso quando o Benfica está a ganhar por muitos a zero?!

O nosso avô e o nosso pai, lá onde estão, seja isso onde for, estão a gozar à brava. À uma, porque eram Benfiquistas à moda antiga, sem “ses” nem “mas”. À duas, porque têm lugar cativo e não pagam tv. Será que no Céu há cervejinha e tremoços?

Beijo divertido,
mano.


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O que é a felicidade?

Olá mana,

um dia destes, recente, fomos os três ao cinema como tantas vezes vamos. Também desta vez, mais pela distracção do que pela promessa do filme. Era um daqueles romances previsíveis em que eu e o Iago adivinhamos as falas das personagens. Homem conhece mulher. Mulher conhece homem. Detestam-se. Apaixonam-se. Zangam-se, reatam, toca uma balada e… The End!

Contudo, por entre o ziguezaguear de um argumento estafado, uma personagem, confrontada com as escolhas que tem pela frente, pergunta: “O que é a felicidade?”

Perdi-me na resposta e quando voltei ao filme já vários eventos se tinham sucedido. É essa resposta que quero ver se te alinhavo.

Para além da verdade óbvia que é a impossibilidade de definir-se a felicidade em termos absolutos, eu vivi sempre esta sensação esquisita e perturbante de que a felicidade não estaria forçosamente ligada a coisas boas do quotidiano. A nossa infância e a nossa juventude foram atravessadas por momentos dificílimos, terríveis de viver, de perceber, de digerir. Traumáticos, mesmo. As crianças não deviam ter de viver a violência das guerras, das separações, dos desencontros… Nós vivemos esses momentos de ódio e sangue ultramarino. Os jovens não deviam ter de conviver com a decadência prematura da saúde dos pais. Nós convivemos com isso. E, no entanto, não posso deixar de pensar que fomos imensamente felizes!

A meu ver, a ideia de consquistar a felicidade gera a impossibilidade de a viver. A felicidade não se conquista, não se possui, não se compra, não se tem. Vive-se em cada gesto, em cada pensamento. Ser feliz tem muito mais a ver com abdicar do que com conquistar. Tem a ver com a partilha, com a dádiva, com a grandeza de nos percebermos pequenos, com a consciência do pouco que é Ter e, mesmo assim, estar disposto a partilhar. Tem muito mais a ver com a valorização dos momentos, das trocas e daquilo que se tem do que com aquilo que se pode vir a ter.

Para mim, a felicidade é olhar para o meu filho. É ver a minha mulher sorrir. É dar um passeio só para sentir o sol na pele, cheirar o mar profundo. É correr debaixo da chuva e senti-la fresca na face. É fazer uma festa num cão. É convidar a família e os amigos para um almoço onde a mais séria das conversas seja uma banalidade. É escrever-te um mail. É ir vivendo tudo isto intercalado com dor, com perda, com lágrimas, com sacrifícios. Porque são estes que emprestam significado àqueles!

Não entram nesta equação as questões da conquista e da posse. Sabes, mana, uma vez uma pessoa amiga disse-me que “As coisas mais extraordinárias da vida são de graça!” E, hoje, dou-lhe razão.

Ser feliz é crescer na tranquilidade de não precisar de Ter. É crescer nos outros e com os outros. É criar laços. É tentar escapar à infelicidade da solidão, à escravatura da posse.

Recentemente abdiquei de ter uma coisa importante e grandiosa para viver coisas mais pequeninas e singelas que se não têm mas vivem. Recentemente, pouco antes do cinema com filme previsível em tela, pus de lado um grande cometimento em troca de gestos pequenos e ternos.

Recentemente abdiquei. Já não era tão feliz há muito tempo!

De ti, mana, não abdicarei nunca.

Beijo,
mano.


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Números redondos

Caros leitores e amigos, querida mana,

esta tarde, “Mails para a minha Irmã” atingiu, por coincidência, números redondos quer no âmbito das visitas, quer das visualizações.

Superámos o marco das 1500 (mil e quinhentas) visitas e o das 4000 (quatro mil) visualizações.

Este, talvez seja um sinal de que podemos continuar.

Fica o agradecimento a quem vai visitando o catinho da mana e do mano.


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O trilema do mano da outra Teresa

Querida mana,

afinal, parece que há mais irmandade na terra para além da nossa!
Um dia destes, alguém comentou um dos textos que aqui publiquei tendo semi-assinado, semi-quebrado o anonimato. Anunciava-se o comentador como o “mano da outra Teresa”. Pressuponho quem seja a outra Teeresa e, por consequência, calculo que o signatário seja seu irmão.
Pedia-me, na altura, ajuda para explicar à sua mana o que é ser homem, marido e pai: o seu trilema. Está tudo aqui: http://mailsparaaminhairma.blogspot.com/2009/07/o-convite.html

Ora, para lhe facultar tal explicação necessitava de um referente. Não me considerando tal resolvi pensar no nosso pai e explicar-te a ti, porque contigo entendo-me bem, a explicação que talvez sirva para o nosso leitor e, eventualmente, para a sua irmã.
Ser homem, marido e pai é, efectivamente muito difícil e quase todos nós, homens, maridos e pais, acabamos por falhar nalguma delas. Ou, pelo menos, a pagar o preço de não falhar que é elevadíssimo na medida em que significa aniquilarmos uma destas figuras dentro de nós sendo, tendencialmente, a de homem a mais “apagável”, depois a de marido e só por fim a de pai que é a mais “segura”.
O homem em nós é livre e libertino por natureza. Tem ritmos próprios, rotinas traçadas, hábitos, rituais e está pouco disposto a abdicar deles. É dominador e pensa com frequência que é sua obrigação cuidar do mundo, ser responsável por ele, traçar-lhe os destinos. Procura uma fêmea de cada vez e acasala tantas quantas pode na medida em que tem a ancestral e imperceptível marca de que é necessário garantir a continuidade da espécie. Isto, ou é assim, ou é um imenso e universal pretexto para andarmos sempre à procura de fêmeas!
O marido escolheu outro caminho. Percebeu que isso da continuidade da espécie é uma treta, e livremente aprisionou-se numa relação monógama de dedicação exclusiva à sua mulher: a eleita. Normalmente o marido não repara, mas a verdade é que a eleita é que o elegeu a ele! Há um senhor que explica isto muito bem no National Geographic para os leões e eu acho que assenta perfeitamente nos maridos. O marido vive feliz, dedica-se, esforça-se por manter a relação até ao dia tramado em que a sua natureza de homem chama por ele. Aí tem duas saídas. Ou arma-se em parvo e vai por África adentro à procura duma leoa mais jovem e promissora (estas leoas normalmente têm um ar mais desplicente, as nádegas firmes e usam fio dental) e embarca numa relação duradoura de três semanas. Ou reflecte, pensa nos seus compromissos, na qualidade da sua relação, e vai ao cinema, organiza um jantar a dois com velas pelo meio, arranja uma ocupação, por exemplo, colecciona uma coisa qualquer e mantém-se firme. Qualquer que seja a opção, a decisão não é fácil e, caso tenha tido o bom senso de continuar marido, irá sentir que o homem fez cedências. O marido considera as cedências naturais, o homem não.
O pai, curiosamente, sendo, por norma, o último a surgir dos três, está acima dos outros dois. Permanece firme no inabalável propósito de ser um bom pai que é a sua formulação para cuidar bem das crias porque são a imagem de si, mais ainda, são a sua continuidade, a sua imortalidade! Com facilidade um homem abdica de ser homem para ser marido. Ou, com menos facilidade, mas, ainda assim, com assinalável frequência, abdica de ser marido para ser homem. Já é raro que abdique de ser pai por qualquer um dos outros. Atenção que eu nunca escrevi “ser bom pai”. Não há bons nem maus pais porque antes e acima de isso tudo está ser-se pai, só. Como se sabe. Como se pode. Como se pensa que está bem. Não são os pais, nem mesmo os outros adultos que nos observam a ser pais, que podem dizer o que é ser bom ou mau pai. Para essa avaliação só os filhos têm competência ou, pelo menos, só a eles lha reconhecemos. E muito bem.
Ora, o nosso pai, fazia o impossível. É que, como reparaste, tudo isto está eivado de fracturas, de fronteiras e barreiras, e é de difícil articulação. Perdem-se as coerências e com facilidade se cai em contradição. Quer nas palavras, quer na acção. O impossível que ele fazia era ser tudo isto ao mesmo tempo em harmonia, com naturalidade. Com uma orientação que diria empírica e imediatista mas a resultar melhor que as estratégias todas e todas as pedagogias. Nunca foi um homem, um marido, um pai de fundo. Foi sempre um homem, um marido, um pai do momento, daquele problema específico, daquele sorriso, daquela mão na hora certa, do olhar severo e do terno na hora da severidade e da ternura. Só quando morreu, nós conseguimos ver o quadro por completo. Só nessa altura vimos que o nosso pai tinha sido, efectivamente, um homem, um marido e um pai de fundo. Fê-lo, paradoxalmente, negando essa condição em prol do contínuo imprevisível da vida.
Ao longo da sua vida, não só depois da morte, as pessoas que gravitaram à volta do nosso pai-estrela-de-luz, reconheceram-no como um bom homem, um bom marido e um bom pai. Uma trave. Uma segurança. A dedicação em pessoa. E contudo estou convicto de que nunca planeou sê-lo, nunca traçou uma estratégia. Limitou-se a ir sendo, a ir esgrimindo com a vida o jogo dos equilíbrios, a ir gerindo expectativas e tensões, dando exemplos, defendendo princípios.
Às vezes, quando olho para o meu percurso de homem, marido e pai, e me reconheço os erros, as falhas e os desacertos e sinto que estou tão longe dos padrões que o nosso pai estabeleceu, penso que foi tudo porque planeei, projectei, programei Ser em vez de ir sendo.
Acho que o mano da outra Teresa ainda ficou mais confuso. Acho que a Teresa não teve grande ajuda para entender o trilema do seu mano mas tenho a certeza de que ser homem, marido e pai vive da busca contínua e constante do equilíbrio. Vive da dádiva, de pensar nos outros antes de nós, vive da gestão sábia, da procura de consensos, do amor, do carinho, da protecção. Vive de Estar, mais do que de Ser. Mas isto eu não sei fazer e já me dou por muito feliz por ter visto fazer.
Às vezes perguntam-me qual foi o meu melhor professor e quase sempre estão à espera de um nome de um senhor professor doutor dos muitos por que passei na faculdade, mas a minha resposta, em nome da justiça tem de ser: “O meu melhor professor tinha a 4ª classe, foi o meu pai!
Beijo,
mano.


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Saramago não está senil. Não o desculpem dessa forma.


Querida mana,
como ficar indiferente às palavras de José Saramago sobre a Bíblia? Como ficar indiferente às múltiplas reacções? Como passar ao lado desta discussão? Não há como. Só fingindo que não aconteceu mas o facto é que, lamentavelmente, aconteceu.

Ainda hoje lembro momentos da nossa infância que chocam com a função corrosiva das palavras daquele escritor. A forma como fizeste a tua primeira comunhão, a entrega da Mimi nesse processo, a fé da velinha acesa todas as noites, o facto de o avô nunca entrar numa igreja, senão para casamentos e funerais, mas acompanhar a avó aos Domingos de Páscoa, a nossa avó, todas noites, com a Fé toda do universo, de joelhos, rezando junto à sua cama, invocando os nomes do netos, nada disto eram maus costumes, nem crueldade nem nada do que Saramago julga saber… Era só uma força boa, uma Fé genuína, actos de devoção impelidos pelo que de melhor há na Natureza Humana ao contrário do que defende José, o ignorante Saramago.

As suas palavras foram as seguintes: “a Bíblia é um manual de maus costumes, um catálogo de crueldade e do pior da natureza humana”.

Importa reflectirmos em que contexto foram pronunciadas: no contexto do lançamento de um livro chamado “Caim”. Ora, vai sendo do senso comum que a qualidade da escrita de Saramago tem decaído na últimas publicações. Há mesmo quem defenda que o último bom livro de Saramago foi há três ou quatro atrás e que o escritor está ficando senil.

Por favor, mana, não o desculpem com a senilidade. Na minha opinião, modesta mas firme, o escritor ensaiou um golpe de marketing e vendas. Provavelmente nem nunca leu a Bíblia, mas afirmações deste teor atraiem atenções e compradores e, gostemos ou não, Saramago vive de vender livros! Este pensamento veio-me à mente porque no dia em que as afirmações foram proferidas cruzei-me com um colega de trabalho que tinha acabado de ouvir as declarações e… de comprar o livro. Até acrescentou “Onde eu o comprei, estava-se a vender bem!”

Saramago não sabe nada da Bíblia. Ou sabe muito pouco. Nem se interessa por ela. Mas sabe e interessa-se pelo seu livro e, claro, quer vendê-lo!

O pobre não desrespeitou só a avó Ana e a Mimi, desrespeitou, porque não percebe, o maior movimento universal de Fé e, naturalmente, o Livro que o suporta. O que Saramago não conseguirá vencer, nunca, é o facto de o livro mais divulgado do mundo, o mais lido, o mais traduzido ser aquele que agora despoletou a sua verborreia infeliz.

Não é fácil perceber a Fé, por inerência, torna-se difícil aceitá-la, logo, o mais fácil é rejeitá-la…

Há aqui um perigo. Por ter alcançado uma projecção literária universalmente reconhecida, Saramago é ouvido e pode haver quem, por isso, tenda a levá-lo a sério ou mesmo a acreditar nele. Temos a tarefa de o desconstruir.

Vejamos: se a Bíblia fosse um manual de maus costumes e um catálogo do pior da natureza humana, como poderia estar na base das práticas mais nobres, das causas mais justas, da entrega, da dádiva, da redenção humanas? Este paradoxo, o escritor não resolveu. Das duas uma, ou não percebeu, ainda, a Bíblia, ou isso não lhe interessa para nada desde que vá vendendo uns “Cains”

Alguém dizia que o escritor devia renunciar a ser português. Outros disseram que são palavras para esquecer. Eu não concordo com uma coisa nem com outra. Entendo que devemos sempre lembrar que um dia um português ofendeu o Livro dos livros. E devemos usar essa memória para educar as gerações futuras. Ensiná-las o que não é um português e como se não deve ser português. Ensiná-las como, a coberto da liberdade de expressão, um português pode desrespeitar séculos de devoção, desrespeitar a Fé de milhões, por uns trocos!

Como sabes, o teu mano nem sequer é um crente dos mais devotos mas impressiona-me a leviandade com que, nos dias de hoje, nos referimos aos assuntos mais sérios, a facilidade com que desrespeitamos, a irresponsabilidade com que passamos mensagens, só porque pensamos que podemos, só porque sim.

Saramago diz que a Bíblia nos enganou. Eu, se comprasse o livro dele sentir-me-ia enganado. Gosto do que escreve. Li toda a sua prosa. Comprei-a toda. Mas este vou dispensar. A Bíblia talvez me conseguisse enganar, Saramago não!

Beijo em jeito de desabafo,
mano.


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Um singela sondagem

Querida mana,
terminou a sondagem que coloquei no nosso blogue há quatro dias atrás. Só catorze bravos e destemidos das muitas dezenas de leitores que por aqui passaram resolveram contribuir. A amostra é, portanto, pouco significativa.
E daí não retirarei conclusões para não cair no mesmo pecadilho das empresas de sondagens: estar sempre a passar ao lado!
Mesmo assim, arrisco uma ideia. A sondagem deu-me que pensar na medida em que 13 dos 14, ou seja, a esmagadora maioria, entende que as crianças passam demasiado tempo na escola. Até aqui, concordemos, ou não, a conclusão é lícita. Ela levanta, contudo, outras reflexões, mais inquietantes, talvez.

Deixo algumas, assim ao jeito de quem lança achas para a fogueira:

a) Entendemos que as crianças passam demasiado tempo na escola e que fazemos para que a situação mude? Por exemplo, que fazemos para estarmos mais tempo com elas?

b) A Escola é um lugar para aprender ou para estar?

c) Estamos convertidos em pais que “arrumam” as crianças na escola? Quem nos força a isso?

Eu não sei se tu ou as pessoas que lêem este blogue (devem ser umas três!) querem comentar estas apreensões mas, por acaso, gostava de “ouvir-vos”. Como já repararam não tenho paciência para tratar o assunto com meias palavras. Penso, até, que as meias palavras ajudam pouco. Assumamos que existe um problema e tratemo-lo com frontalidade.

Eu cá vou recordar para sempre o tempo em que ia à escola feliz e dela feliz vinha para ir ainda mais feliz às minhas aventuras e conquistas pela eternidade das tardes adentro. Havia um tempo miraculoso em que eu podia pecar, cruzar a linha das permissões porque a guarda da vigilância estava baixada. Talvez os nossos pais fizessem mais com menos. Talvez um telemóvel a tocar de 5 em 5 minutos a perguntar, na preocupaçao legítima, de quem educa “Onde estás?”, “Como estás?”, talvez sabermos sempre tudo dos nossos educandos não seja o melhor caminho. Sabes mana, eu acredito que é preciso comunicar muito com os jovens mas também considero que isso anda a ser confundido com estar em permanente contacto vigilante com eles. Uma boa conversa de quando em vez pode substituir, com competência, milhares de chamadas. De resto, quem quer saber tudo? Eu penso mesmo, à medida que vejo o meu filho crescer, que há coisas que nós, pais, não queremos saber!!!

Beijo,
mano.