Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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O feliz dia cinzento!

[Realizou-se o VIII Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais – A Questão Social no Novo Milénio. Rebeldes tomam escola em Beslan – Rússia e fazem 350 reféns. Presidente Bush encerra a convenção republicana prometendo um mundo ‘mais seguro’. Estados Unidos vetam proposta de países árabes p/ o fim de ações israelenses na Faixa de Gaza. Augusto Pinochet é interrogado pelo juiz Juan Guzmán Tapia sobre a Operação Condor. Secretário Colin Powell afirma que capturar Osama bin Laden continua a ser a prioridade dos EUA. A Rússia aprova adesão ao Protocolo de Kyoto.
[Data da primeira publicação: 24 de Setembro de 2004]
O feliz dia cinzento!
Olá mana!
Esfuma-se-me nos horizontes da memória o dia em que, pela primeira vez, fui ao cinema. Era uma tarde de Domingo na minha infância. Duma infância a que tu ainda não pertencias. Os cartazes, de nomenclatura ainda não ofendida pelo anacronismo que hoje são, eram mesmo de cartão e ostentavam num colorido preto e branco o nome que a pequenada queria ouvir: Trinitá. Não interessava se os actores eram bons ou maus, de facto, os actores não interessavam para nada. Aliás, se bem me lembro, à altura, não havia actores! Nem passava pela cabeça de ninguém perguntar se o filme era bom. Trinitá, o nome, bastava. Era, por si só, garantia de emoções fortes, aventuras inigualáveis, tarde bem passada, semente de brincadeiras emocionantes e ruidosas. Os adultos não podiam entrar e a pequenada enchia a sala de gritos de incentivo: “dá-lhe, dá-lhe, Trinitá!” ou, voluntariosa, prestava ajuda ao herói. Aquela ajuda que mais tarde se reconheceria fundamental: “Cuidado, Trinitá, ele está atrás de ti!”. O filme desenrolava-se na tela e para cá dela, saltos nos assentos irrequietos, correrias abaixo e acima ao longo das filas de cadeiras, tiros de indicador em riste e polegar dobrado a disparar. No final perguntaram-me cá fora quantos tinham morrido e a resposta surgiu esclarecedora: “Deles, muitos. De nós, nenhum!”. Por essa altura todas as coisas me surpreendiam e a minha vida não tinha personagens-tipo mesmo que o fossem. O meu quotidiano era marcado pela singularidade de cada gesto, cada palavra e tudo o que presenciava era um milagre original da vida. Talvez tivesse nascido comigo uma crença natural no mundo que me rodeia, um optimismo inquebrantável de português que olha o mar e acredita que África é já ali, a América um pouco mais adiante e a distante e inalcançável Índia dos outros logo ao virar de uma esquina, de um cabo, de uma nau, de uma vontade. Contudo, tal como a Índia aos olhos dos portugueses, também o meu sonho de mundo viria a crescer, a amadurecer, a moldar-se por outros olhos que, entretanto, nasceram em mim. E veio a faculdade, a descoberta de coisas maravilhosas, caminhos inexplorados do pensamento. Ideias fenomenais de homens e mulheres mais fenomenais ainda. Pensar tornou-se concreto, palpável como a terra, moldável como o barro e, por vezes, esguio como a areia por entre os dedos. E deixei-me perder por entre milhares de páginas de descoberta, milhares de horas de aventura no papel original ou fotocópia, milhares de olhares no vazio à procura das respostas e das perguntas para elas e das respostas para as perguntas delas… pouco depois na vida julguei ter muito na mão. E tinha. Tinha um homem em vez de uma criança. Tinha as reflexões acerca dos ambientes, das personagens, dos tempos, das acções, dos autores se os houvesse porque entretanto morreram e viveram de novo. Tinha, na mão aberta, uma rede de pensamentos e magia a que chamam conhecimento. Parei um instante e perguntei-me: “a que preço?”. O preço fora a morte do meu Trinitá genuíno. O preço fora o reconhecimento de uma personagem-tipo, sem vida própria, com nome de actor por trás. E tive de viver com estes estereótipos como tive de viver com outros que o estudo foi consagrando. O encarnado prenunciando desgraça, a noite anunciando morte, e o dia cinzento anunciando infelicidade peripatética.
E foi aqui que quis chegar. O dia está cinzento. Uma cinza que não permite o brilho do astro que nos anima o espírito. Abafado, como se sufocássemos mesmo antes de tentarmos respirar. Nas páginas de um romance este seria o dia ideal para a infelicidade. Este seria o dia das más notícias e das desgraças anunciadas. Mas o meu Trinitá antigo, o genuíno “cobói” que chega em cima da hora rebrilhando metais nas botas chegou no sorriso da médica que estava lá dentro com a nossa mãe e veio trazer-nos um feliz dia cinzento: “a senhora pode deitar um foguete”, disse. E eu sorri contigo e com ela e fomos almoçar sob o alegre cinzento daquela manhã de Junho.

Beijo.
Mano.


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Educar

[Realizou-se o VIII Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais – A Questão Social no Novo Milénio. Rebeldes tomam escola em Beslan – Rússia e fazem 350 reféns. Presidente Bush encerra a convenção republicana prometendo um mundo ‘mais seguro’. Estados Unidos vetam proposta de países árabes p/ o fim de ações israelenses na Faixa de Gaza. Augusto Pinochet é interrogado pelo juiz Juan Guzmán Tapia sobre a Operação Condor. Secretário Colin Powell afirma que capturar Osama bin Laden continua a ser a prioridade dos EUA. A Rússia aprova adesão ao Protocolo de Kyoto.

[Data da primeira publicação: 10 de Setembro de 2004]

Educar

Querida mana,

De todas as coisas que a vida me tem dado e das coisas todas que me tem exigido, uma se ergue em lugar de destaque como o desafio maior, a maior nau na tormenta mais difícil: Educar!
Admiro, hoje, à distância de quem pode olhar para o tempo que passou com calma e traçar-lhe os contornos do percurso feito, a forma admiravelmente simples como os nossos pais assumiam os gestos mais complexos, os mais difíceis. Para eles, penso, educar era toda uma intuição, todo um fruir de instintos, uma fé.

Olhando para os dias em que fomos meninos e relembrando o que ficou marcado na mente e no peito, quase diria que para eles foi fácil.

Só agora, todos estes anos volvidos, com um filho que me quer ultrapassar e que já calça numero maior do que o meu, sei como foi difícil. Como sofreram nas noites em que voltámos mais tarde, como ficaram expectantes pelas nossas prestações num teste, num exame, como se preocuparam quando adoecíamos, como sofreram quando julgaram não nos ter dado o melhor, como riram com as nossas vitórias, como ficaram felizes com o nosso crescer.

Por vezes penso que gostaria de perceber como fui educado para usar a mesma receita, a mesma estratégia. Mas não há receitas nem estratégias. Os seres são singulares e quem vem a ser pai ou mãe tem traçado um inexorável caminho de sorrisos e lágrimas que não pode controlar. Ainda assim, tento aprender pela memória processos, gestos ou palavras que tenham resultado comigo. E sabes que concluo? Que educar não é como dar aulas. Penso que nós, professores, por defeito de profissão tendemos a confundir um pouco as duas coisas. Mas não podes planificar uma educação e colocar um filho num plano de apoio para o reduzir a uma estatística. Penso, sobretudo, que educar se faz muito menos pelas palavras que pelos actos. As palavras perdem-se na imensidão do tempo e no poço da memória. As palavras da certeza, hoje, esfumam-se na neblina de ontem.

Aposto nos actos que perduram. Não falo de actos pensados e programados para as crianças verem como quem assiste a uma peça de teatro. Falo dos actos que repetimos quotidianamente, daqueles que nos saem com naturalidade, daqueles que nos estão sob a pele e vão construindo a nossa conduta, o nosso carácter. Por pequenos que sejam, são esses os actos que hão-de perdurar, são esses os actos que hão-de educar para além das teorias todas e de todos os livros que os homens pensaram mas não agiram.
Ser honesto é educar honesto. Amar é educar no amor. Ser tolerante é educar para a tolerância. Respeitar é educar no respeito. Resistir é educar para a resistência. Educar é ensinar a educar numa linha contínua de transmissão de condutas, sentimentos e actos que se transmite dos pais para os filhos e dos filhos para os filhos dos filhos até que o tempo o deixe de ser.

É por isso, mana, que não me preocupo muito com a lembrança das frases que os nossos pais usaram e, contudo, jamais esquecerei os actos com que nos fizeram crescer. É por isso, mana, que tenho este pensamento interessante: educar deve basear-se na exigência. Numa exigência que os educadores devem ter, antes de mais, para consigo próprios.

Beijo
Mano


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Mãe

[Violenta explosão de um carro-bomba em Mosul, Iraque. Prisão de 2 líderes da Al-Qaeda em Punjab – Paquistão. Prisão de 13 supostos terroristas na Inglaterra. O Banco Riggs (Estados Unidos) inicia auditoria interna nas contas de Augusto Pinochet. Polícia de Inglaterra prende mais de 50 pessoas acusadas de pirataria. O piloto alemão Michael Schumacher conquista o seu 7º título mundial de F1.

[Data da primeira publicação: 27 de Agosto de 2004]

Mãe

Olá mana!
Nem todas as mulheres que têm filhos são mães!

O tempo, a ascese social e polida dos comportamentos humanos têm vindo a aniquilar os instintos primeiros, primários e primordiais do Homem. O instinto maternal não soube escapar a esta malha de embrutecimento educado, envernizado e profundamente estéril.
Já não caçamos. Vamos ao supermercado. O mais parecido que temos com caçar é um ritual de amontoar papéis burocráticos que entopem os canos das armas. Os tiros, quando surgem, já vêm desfalecidos do poder de caçar. Já vem morto o respeito pela presa.
Já não procriamos. Fazemos amor. Como se estas duas coisas pudessem ser uma só!
Já não comemos nem devoramos. Trinchamos, limpamos a comida e quando chegamos a dar a dentada já não sabemos o que estamos a morder! Os alimentos não são o que são. Não cheiram ao que são.
As mães já não amamentam, já não cuidam, já não acompanham. Forçadas a uma igualdade hipócrita e desumana já não parem, dão à luz! Como se parir tivesse algo que ver com luz. Parir é dor e sangue e medo e o milagre de trazer ao mundo mais um de nós. Forçadas ao trabalho quotidiano, despejam as crias numa gaiola de regras e artifícios com todas as coisas naturais e boas para o crescimento excepto as que fazem bem a quem cresce!

Hoje, quando uma criança diz mamã, não fala da mulher quente e fofa, como foi a nossa, que lhe dá a mama, o sorriso, a palmada, o amparo, aquela que cheira ao mundo que a rodeia. A mamã, hoje, é uma senhora que aparece com a noite à porta do jardim-de-infância, conduz o carro até casa e volta na manhã seguinte ao mesmo local.

Ora, mana, hoje venho cantar a nossa mãe. Venho lembrar-te as pequenas coisas que a fizeram grande. O tom calmo e pausado que punha na voz com propriedades verdadeiramente anestésicas para o medo que lhe acabáramos de revelar. O tom despreocupado com que dizia “isso não foi nada” depois de um sopro no local da ferida. A firmeza com que nos defendia dos outros quer tivéssemos razão, quer não… as contas ajustavam-se portas dentro. A zanga no desrespeito, a exigência de fazer crescer, a palmada no momento certo… às malvas a pedagogia. Crescer é sofrer para aprender a resistir. O ir connosco no primeiro dia de escola, o leite quente de manhã, o preparo do piquenique de casa às costas até com um saquinho de detergente e outro de sal. As batatas fritas, o “até amanhã se Deus quiser” e o riso…

Por vezes, quando quero explicar a alguém o que é o sentir materno, a tarefa complica-se por via dessa natural evidência que é eu ser homem e, preconceitos à parte, nunca ter sentido o que é olhar para um ser humano e saber que fui que o pari. Ainda assim, avanço sempre com este exemplo que é o de ter eu quase quarenta anos e, ainda hoje, a minha mãe julgar que só ela me sabe pentear. Esteja o cabelo curto, comprido ou assim-assim ela pergunta: “ó filho, quem te fez isso ao cabelo?”, põe os dedos em garfo e deixa-o na perfeição que só os seus olhos vêem porque mais ninguém me vê assim.

É a essa irrepetível singularidade do ser, do sentir, do pensar, do dizer e do calor das mãos que chamo mãe. É esse o calor a preservar e a reinventar para as gerações futuras.

Beijo.
Mano.


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O Futuro do Passado

[Por Razões de ordem familiar e profissional, a crónica autobiográfica “Mails a minha Irmã” esteve sem ser publicada durante meio ano entre Janeiro e Julho de 2004. No dia 16 de Julho desse ano foi retomada a publicação com o texto que aqui se re-apresenta.

[Data da primeira publicação: 16 de Julho de 2004]

O Futuro do Passado

Olá mana!

Quase todos nós, e o quase, neste caso, serve só para salvaguardar surpresas, pensamos na vida como um percurso, sobretudo, um percurso de trás para a frente, porque temos a tendência para contabilizar o que já somámos e não o que podemos somar ainda. Este hábito, tão naturalmente humano, tem vindo a servir para aprendermos com as acções passadas mas também nos tem limitado o levantar de cabeça para olhar mais longe, mais fundo e profundo à procura e perscruta do pode fazer-se. Resumindo o arrazoado, queria dizer-te que a humana tentação de olhar o passado tem prejudicado, por vezes, a arquitectura do futuro. Que fazer então? Inaugurar as memórias do futuro? Desprezar as do passado?

Não!

Prefiro pensar na vida sem passado nem futuro. Como uma súmula de intermináveis presentes que vamos construindo apaixonadamente, devotos do ser, hoje. Aliás, bem vistas as coisas, não estou sozinho neste intento. Já reparaste como os falantes da Língua que nos viu nascer usam cada vez mais e só o presente como reduto último da expressão das suas vivências? Já reparaste que, mesmo quando as formas verbais que bailam nos lábios dos portugueses surgem em pretéritos ou futuros, elas estão, de facto, no presente? Será que estamos a perder a capacidade de recuperar o que já foi para sonhar com o que há-de ser? Será que o medo de perdermos a vida que inexoravelmente perderemos nos torna hedonistas ao ponto de desperdiçar as construções que o tempo foi urdindo?

Espero que não! Espero que haja, ainda, algum futuro no passado de todos nós. Espero reinventar no presente a raça que fomos no tecer da que havemos de ser…
É por isso que te escrevo de novo.

É um reatar de presentes que ficaram para trás, é um construir do presente que viveremos amanhã. É este sentir partilhado na cumplicidade e no tempo de sermos irmãos hoje, hoje e hoje.
É um bater-te à porta para te acordar as memórias do que falta viver! É um sussurrar-te que a vida caminha pressurosa e diligente pelo tempo que desperdiçamos, pelas coisas que não dizemos nem fazemos. É um tocar-te no ombro com a suavidade das palavras irmãs, impressas nas linhas que te deixo. É um esperar que algures em todo o mundo e em todas as famílias haja um toque assim. Um olá. Um estou aqui. Um como estás. Um abraço.

Um Beijo.
Mano.


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Quanto vale um par de cornos?

[Esta é a primeira publicação deste texto: 3 de Julho de 2009]

Olá Mana,

O título, hoje, pode parecer-te estranho. E é!

A sua estranheza vem-lhe do estranhamento que sinto na evolução do mundo que nos circunda e da inversão de valores que, paulatina e gravemente, se vai operando. Estive para titulá-lo com um mais digno e ilustre “A inversão” mas depois decidi não fugir a este apelo ribatejano e intrínseco de ruralidade e realidade confrontadora!
Eu lembro-me, como tu te lembrarás, de que não tivemos uma infância marcada pela punição física. Nem o pai nem a mãe iam por esses caminhos com facilidade. E lembro-me também de que, quando optaram por essa solução, ela teve sempre duas características, resultou de algo desproporcionalmente grave que pudessemos ter feito ou dito, que é fazer com palavras, e a falha foi-nos explicada. Valha a verdade, nenhum de nós ficou traumatizado ou deixou de fazer o seu percurso por causa de umas palmadas! Enfim…

Ora, estive aqui a tentar lembrar-me que razões poderiam levar os nossos pais a darem-nos umas palmadas pedagógicas ou, com menos pruridos de linguagem, uma tareia à moda antiga. E a primeira, a razão central, é a mentira! A mãe e o pai suportavam-nos as falhas quase todas mas a mentira vinha à cabeça das inadmissíveis. Por exemplo, se um de nós, na malandrice da infância que leva aos primeiros desafios do status representado e mantido pelos adultos se lembrasse de fazer um par de cornos a alguém, levaria, por certo uma repreensão, uns olhos muito abertos, umas palavras mais severas mas nunca uma tareia, umas palmadas… pura e simplesmente não era falta para tanto. Era uma parvoíce e uma falta de respeito mas nada que se comparasse a uma mentira.

Repara como as coisas mudaram. o Primeiro-Ministro mentiu ao parlamento e à nação quando disse que não conhecia o que se passava no negócio PT/TVI que depois, afinal, já conhecia. O ministro Manuel Pinho fez um par de cornos na Assembleia da República. o Primeiro-Ministro continua em funções. O ministro Manuel Pinho demitiu-se! E a demissão foi aceite por quem? Pelo Primeiro-Ministro!

Ambos tiveram um comportamento reprovável na Assembleia mas repara na inversão. Um gesto, reprovável, é certo, mas superficialmente desrespeitoso, uma parvoíce, uma criancice, teve a reconhecida gravidade de uma demissão enquanto que um gesto profundamente desrespeitoso, um dolo, uma fraude de carácter, passa em branco e incólume.

O que me preocupa é que há pessoas adultas e crianças a ver, a assistir, a comentar e há uma mensagem que, subtilmente, passa: mentir já não é tão grave como dantes. Mentir são só palavras ditas ao contrário da verdade. Aquilo que era a essência passa para a periferia dos valores, bons e maus, e aquilo que era a periferia está a tornar-se essência. E porquê? Porque é visível, porque as câmaras mostram! Ou seja, eu não sei, mana, ao certo, quanto vale um par de cornos mas fico apreensivo quando um par de cornos começa a valer mais do que uma mentira!

Beijo,

Mano.


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Impunidade

[Apesar de muito divulgado na comunicação social, o caso “CAsa Pia” não sofre evoluções significativas.Sinal dos tempos: As marcas TMN e Vodafone posicionaram-se no topo do ranking do investimento em publicidade. Nos EUA, diversos jornais influentes – alguns dos quais apoiantes da guerra no Iraque – têm vindo a questionar a Casa Branca e os serviços secretos norte-americanos, perante a conclusão, que se vai generalizando, de que não existiam armas de destruição maciça no Iraque. Portugal assina o acordo internacional anti-tabagismo (Framework Convention on Tobacco Control). Início da missão do 3º Batalhão de Infantaria Páraquedista na Bósnia-Herzegovina.
[Data da primeira publicação: 23 de Janeiro de 2004]

Impunidade

Olá mana,

A impunidade arrepia-me.
Do que me lembro da nossa infância, nas conversas que os adultos trocavam com as vozes enervadas ou em frases sentenciosas de quem conclui e dá ou tira razão, o responsável encontrava-se sempre. Punia-se. O raciocínio lógico e primitivo de causalidade boçal com laivos e conotações de conotação rural funcionava bem. Havia um crime. Procurava-se um culpado. Encontrava-se. Punia-se. O processo era claro, lógico e não podia ser menos eficaz. Entretanto, o ser humano evoluiu, tornou-se mais democrático, menos bárbaro e passou a poder contar com a justiça… e que aconteceu? As palavras culpa e castigo riscaram-se do nosso quotidiano. Para não traumatizar ninguém, muito menos, quem assassina, desfaz lares felizes, ou viola impunemente crianças passou a articular-se um conjunto de termos obscuros, que ninguém percebe e que permitem o exercício público e descarado da impunidade. Hoje diz-se irresponsabilidade, diz-se culpa, diz-se arguido, diz-se suspeito, diz-se muito coisas como talvez, hipoteticamente, eventual e nunca mas nunca ninguém assume de cara lavada a coragem de chamar as coisas pelos nomes. O fenómeno é tal que, mesmo os comentadores desportivos, aderiram à praga da incerteza e, com as imagens claras e lentas das repetições ficam-se por um “poderá ter sido, eventualmente, no caso de haver contacto, um “penalty”. Quando toda a gente viu a falta, sem incertezas.

Com o malfadado e demasiadamente alongado caso de pedofilia em Portugal está acontecendo o mesmo. Não me interessam os nomes das pessoas. Interessa-me só que se não pode arrastar a gravidade de um caso assim por tantos meses de impunidade. Aquelas crianças maltratadas, sem direito a uma infância de inocência estarão loucas? Estaremos loucos todos nós? Tudo isto foi fumo? Só um sector do mundo político é que está envolvido? Não! Mil vezes não! As crianças estão lá, em sofrimento a serem ajudadas por que sabe e pode. O tempo arrasta-se porque há que possa contra os relógios de todos nós. Porque há quem pague. Não me interessa mais ver as notícias, não me interessa mais o nojo das patranhas argumentativas e contra-argumentativas. Interessa-me só a certeza de duas conclusões: uma: os crimes ocorreram. Duas: alguém os praticou. Tudo o mais é demagogia pura de fazer perder tempo num país adiado de decisões tomadas por pressão dos meios de comunicação. Tudo o mais são jogos inúteis de tentar disfarçar o indisfarçável: a nossa sociedade está podre e corrupta. E quanto mais depressa o assumirmos e começarmos a limpeza tanto melhor.

Muito se tem criticado a América (U.S.A.) e os americanos ultimamente mas uma coisa é verdade. Desde que um cantor, feito figura pública, se tornou suspeito, até ao seu julgamento dois meses bastaram. Só em Portugal podemos brincar com a Constituição, com as leis, com a desacreditação dos tribunais por tempos infindos. É triste e é pena porque vivemos num país cheio de pessoas e coisas bonitas. Falta-nos somente a força e a coragem dos nossos defeitos. A força e a coragem dos nossos erros. Pois que venha tal força e tal coragem, venha como lixívia e limpe as impurezas, arrase o pus que por aí anda! Que seja rápido. Sem misericórdia. Uma vez! Para sempre! já chega de fingir. Já chega de sessões e de homens que tentam, com argumentos retorcidos, estar acima da lei. Já chega de mau cheiro a processos inacabados. Queremos um ponto final. Queremos esperança de novo em Portugal. Queremos, como no tempo do pai, as certezas do que está certo, as certezas dói que está errado, os crimes, os castigos e, acima de tudo, queremos os culpados. Não culpados velados ou semi-culpados. Queremos tão só os culpados para os podermos enterrar e sermos Portugal outra vez!

Do sempre amigo
Mano.