Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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Mãe

[Violenta explosão de um carro-bomba em Mosul, Iraque. Prisão de 2 líderes da Al-Qaeda em Punjab – Paquistão. Prisão de 13 supostos terroristas na Inglaterra. O Banco Riggs (Estados Unidos) inicia auditoria interna nas contas de Augusto Pinochet. Polícia de Inglaterra prende mais de 50 pessoas acusadas de pirataria. O piloto alemão Michael Schumacher conquista o seu 7º título mundial de F1.

[Data da primeira publicação: 27 de Agosto de 2004]

Mãe

Olá mana!
Nem todas as mulheres que têm filhos são mães!

O tempo, a ascese social e polida dos comportamentos humanos têm vindo a aniquilar os instintos primeiros, primários e primordiais do Homem. O instinto maternal não soube escapar a esta malha de embrutecimento educado, envernizado e profundamente estéril.
Já não caçamos. Vamos ao supermercado. O mais parecido que temos com caçar é um ritual de amontoar papéis burocráticos que entopem os canos das armas. Os tiros, quando surgem, já vêm desfalecidos do poder de caçar. Já vem morto o respeito pela presa.
Já não procriamos. Fazemos amor. Como se estas duas coisas pudessem ser uma só!
Já não comemos nem devoramos. Trinchamos, limpamos a comida e quando chegamos a dar a dentada já não sabemos o que estamos a morder! Os alimentos não são o que são. Não cheiram ao que são.
As mães já não amamentam, já não cuidam, já não acompanham. Forçadas a uma igualdade hipócrita e desumana já não parem, dão à luz! Como se parir tivesse algo que ver com luz. Parir é dor e sangue e medo e o milagre de trazer ao mundo mais um de nós. Forçadas ao trabalho quotidiano, despejam as crias numa gaiola de regras e artifícios com todas as coisas naturais e boas para o crescimento excepto as que fazem bem a quem cresce!

Hoje, quando uma criança diz mamã, não fala da mulher quente e fofa, como foi a nossa, que lhe dá a mama, o sorriso, a palmada, o amparo, aquela que cheira ao mundo que a rodeia. A mamã, hoje, é uma senhora que aparece com a noite à porta do jardim-de-infância, conduz o carro até casa e volta na manhã seguinte ao mesmo local.

Ora, mana, hoje venho cantar a nossa mãe. Venho lembrar-te as pequenas coisas que a fizeram grande. O tom calmo e pausado que punha na voz com propriedades verdadeiramente anestésicas para o medo que lhe acabáramos de revelar. O tom despreocupado com que dizia “isso não foi nada” depois de um sopro no local da ferida. A firmeza com que nos defendia dos outros quer tivéssemos razão, quer não… as contas ajustavam-se portas dentro. A zanga no desrespeito, a exigência de fazer crescer, a palmada no momento certo… às malvas a pedagogia. Crescer é sofrer para aprender a resistir. O ir connosco no primeiro dia de escola, o leite quente de manhã, o preparo do piquenique de casa às costas até com um saquinho de detergente e outro de sal. As batatas fritas, o “até amanhã se Deus quiser” e o riso…

Por vezes, quando quero explicar a alguém o que é o sentir materno, a tarefa complica-se por via dessa natural evidência que é eu ser homem e, preconceitos à parte, nunca ter sentido o que é olhar para um ser humano e saber que fui que o pari. Ainda assim, avanço sempre com este exemplo que é o de ter eu quase quarenta anos e, ainda hoje, a minha mãe julgar que só ela me sabe pentear. Esteja o cabelo curto, comprido ou assim-assim ela pergunta: “ó filho, quem te fez isso ao cabelo?”, põe os dedos em garfo e deixa-o na perfeição que só os seus olhos vêem porque mais ninguém me vê assim.

É a essa irrepetível singularidade do ser, do sentir, do pensar, do dizer e do calor das mãos que chamo mãe. É esse o calor a preservar e a reinventar para as gerações futuras.

Beijo.
Mano.


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O Futuro do Passado

[Por Razões de ordem familiar e profissional, a crónica autobiográfica “Mails a minha Irmã” esteve sem ser publicada durante meio ano entre Janeiro e Julho de 2004. No dia 16 de Julho desse ano foi retomada a publicação com o texto que aqui se re-apresenta.

[Data da primeira publicação: 16 de Julho de 2004]

O Futuro do Passado

Olá mana!

Quase todos nós, e o quase, neste caso, serve só para salvaguardar surpresas, pensamos na vida como um percurso, sobretudo, um percurso de trás para a frente, porque temos a tendência para contabilizar o que já somámos e não o que podemos somar ainda. Este hábito, tão naturalmente humano, tem vindo a servir para aprendermos com as acções passadas mas também nos tem limitado o levantar de cabeça para olhar mais longe, mais fundo e profundo à procura e perscruta do pode fazer-se. Resumindo o arrazoado, queria dizer-te que a humana tentação de olhar o passado tem prejudicado, por vezes, a arquitectura do futuro. Que fazer então? Inaugurar as memórias do futuro? Desprezar as do passado?

Não!

Prefiro pensar na vida sem passado nem futuro. Como uma súmula de intermináveis presentes que vamos construindo apaixonadamente, devotos do ser, hoje. Aliás, bem vistas as coisas, não estou sozinho neste intento. Já reparaste como os falantes da Língua que nos viu nascer usam cada vez mais e só o presente como reduto último da expressão das suas vivências? Já reparaste que, mesmo quando as formas verbais que bailam nos lábios dos portugueses surgem em pretéritos ou futuros, elas estão, de facto, no presente? Será que estamos a perder a capacidade de recuperar o que já foi para sonhar com o que há-de ser? Será que o medo de perdermos a vida que inexoravelmente perderemos nos torna hedonistas ao ponto de desperdiçar as construções que o tempo foi urdindo?

Espero que não! Espero que haja, ainda, algum futuro no passado de todos nós. Espero reinventar no presente a raça que fomos no tecer da que havemos de ser…
É por isso que te escrevo de novo.

É um reatar de presentes que ficaram para trás, é um construir do presente que viveremos amanhã. É este sentir partilhado na cumplicidade e no tempo de sermos irmãos hoje, hoje e hoje.
É um bater-te à porta para te acordar as memórias do que falta viver! É um sussurrar-te que a vida caminha pressurosa e diligente pelo tempo que desperdiçamos, pelas coisas que não dizemos nem fazemos. É um tocar-te no ombro com a suavidade das palavras irmãs, impressas nas linhas que te deixo. É um esperar que algures em todo o mundo e em todas as famílias haja um toque assim. Um olá. Um estou aqui. Um como estás. Um abraço.

Um Beijo.
Mano.