Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


2 comentários

As Chamas da Impunidade

[Continua, em Portugal, uma das mais violentas vagas de incêndios. Para além da suspeita de fogo criminoso, vêm a lume, na imprensa, notícias que envolvem interesses paralelos como seja o comércio de aluguer de helicópteros para o combate às chamas.

[Data da primeira publicação: 5 de Setembro de 2003]

As Chamas da Impunidade
Olá Mana,
As linhas que te escrevo hoje são de tristeza e apreensão.

Invertendo um pouco o que é habitual, não fui ao baú poeirento e nublado da memória arrancar uma qualquer lembrança preciosa e adormecida para depois a rememorar contigo até ao presente e reflectir sobre ele. Desta vez, a força e a pujança dos acontecimentos que marcaram o Verão português fez-me começar por este mesmo presente e as memórias vieram depois a tropel e, também elas, violentas.
Já não posso dizer como tanto se disse e escreveu que “Portugal está a arder”. Neste momento, o destino limita-me as palavras a um odor a cinza e a morte, a uma cor negra e desgraçada e a expressão que me atormenta a alma é tão só “já ardeu!” Como quase todos, sinto uma impotência e uma revolta viscerais que me saem das entranhas pela lágrima, pelo grito surdo, pela contemplação absurda de uma imagem inverosímil há um mês atrás e real de arrepiar, hoje. No regresso de férias vi o inferno, os meus olhos não queriam ver o que o cérebro me estava dizendo que viam. Entre Portalegre e Abrantes numa extensão só mensurável pela expressão “até onde a vista alcança” tudo está queimado, seco, negro, morto. E contudo, este horror era só uma parcela do verdadeiro desastre, da tragédia inteira que ceifou flora, fauna, habitações e vidas humanas. Ainda que muito nos custe admitir a verdade é que o Portugal verdejante de pinhais de beira da estrada a festejar piqueniques está a agonizar em cinzas.

Como é costume, como é natural e como é humanamente desejável multiplicaram-se os esforços e as ajudas e as tentativas de atenuar a miséria que o fogo semeou. Nisto, portugueses, somos bons. No remediar humanitário, no estender de mão. Sem dúvida. Não é isto que me preocupa. O que realmente me preocupa é a impunidade. Pelo que leio nos jornais e vejo na televisão, toda a gente sabe que há “esquemas” que envolvem uns e outros, proprietários de aviões, madeireiros, investidores em terra, construtores de grandes complexos turísticos. Só nunca vejo nem os uns nem os outros. A Culpa, em Portugal, raramente tem rosto embora se saiba que tem mão criminosa! Os suspeitos entram e saem das cadeias mais depressa do que os doentes das filas de espera nos hospitais. Começam por ser grandes criminosos e afinal nunca o eram. Se reparares bem, mana, o fogo que devorou o nosso país este Verão em proporções inimagináveis foi todo acidental, obra do acaso, e, mais abstracto ainda, função do azar.
Faço este parágrafo propositadamente para te escrever a minha tese que, de resto, é curta e linear: o que consumiu Portugal foram as Chamas da Impunidade. O saber antecipado do funcionamento entorpecido do sistema de prevenção, do sistema de vigilância, do sistema policial, judicial e punitivo. Já disse. E chega-me. Claro que podia alongar-me com teses do género: o dinheiro que se gastou em estádios de futebol… mas não vamos por aí que essa conversa é fácil, facilmente polémica, não leva a lado nenhum e distrai-nos do assunto central.
Vamos às memórias.
Se bem te lembras, durante muitos anos, quando chegava sábado depois da hora do almoço, acomodávamo-nos na 4L do pai e fazíamos uma pequena grande viagem entre Coimbra e São Pedro de Alva. Na altura aquilo era coisa para quarenta quilómetros e cerca de uma hora e quinze minutos de espectáculo. Percorríamos o Mondego “ao contrário” sem percebermos bem se era ele que acompanhava a estrada ou a estrada que o acompanhava a ele. Quase invariavelmente parávamos na fonte mais para saborear a paisagem do que a água. A montanha estendia-se esplendorosa do rio até ao céu e o fim-de-semana começava da melhor forma possível. Em tons de verde e azul, odores formidáveis, e uma banda sonora de marulhar de águas e conversas vadias da passarada. Torres do Mondego, Rebordosa, Penacova, Miro, Friúmes, Porto da Raiva, Silveirinho e por fim São Pedro. Era um caminho de comunhão com a natureza, de cortar a respiração. Nunca cheguei a perceber se demorávamos tanto a percorrer tão pouco por causa da estrada ser mazinha ou se era o pai que, em vez de conduzir o carro, saboreava a paisagem… foi observando esta paisagem que o pai contou uma história que se passara numa terra ali da região. Um homem havia pegado fogo à mata. Apanharam-no. Foi preso. Saiu rapidamente. Apanhou o autocarro para casa. O povo esperou-o. Tal como o fogo que consumiu a nossa floresta este ano, a sua vida fora consumida. Tal como a Culpa dos culpados que estão a assassinar o nosso país, a Culpa da sua morte nunca teve rosto. Todos lá estavam mas ninguém viu nada. O pai contou a história uma única vez e fê-lo com tom sério e grave. O suficiente para eu perceber que os seus contornos morais não eram de perfil fácil. Aquilo não estava certo, na altura, como o não estaria hoje. Mas também não estava errado!

Beijo, mano.


7 comentários

"Mails para a minha Irmã" continua a correr mundo.

Há uns dias partilhei com os leitores uma sequência interessante de visitas internacionais deste blogue. Como uma surpresa nunca vem só, hoje tivemos novo surto, também ele, bastante interessante. 8 países de 4 continentes diferentes na mesma sequência de visitas e em pouco tempo… O que será que leva um egípcio a abrir “Mails para a minha Irmã”? Ou um cambodjano?Fica a imagem do contador a provar a curiosidade.

Um abraço,

João Paulo Videira


Deixe um comentário

Férias para Sempre, outra vez.

[Políticos franceses entram em reality show. As notícias relativas ao processo Casa Pia mostram que o mesmo está longe de resolvido. Apagão eléctrico em Nova York: inquietante a fragilidade de um empório tecnológico; admirável a tranquilidade e bonomia nas ruas novaiorquinas; recorrente o medo de uma nova tragédia accionada pelo terrorismo. Vaga de incêndios assola Portugal.

[Data da primeira publicação: 22 de Agosto de 2003]

Férias para Sempre, outra vez.
Olá manita,
Não sei que me deu, que avaria foi esta na cabeça ou no teclado do computador, mas o certo é que neste mês de Agosto só me apetece escrever-te sobre férias. Uma noite destas sentei-me à secretária e tentei obrigar-me a escrever sobre outra coisa qualquer. Mas os dedos fugiam-me, as palavras desobedeciam-me à formulação e tudo acabava em férias. Tanto mais esquisito isto se torna, quanto é verdade que não tivemos assim tantas nem tão prolongadas férias. Talvez, por isso, as que tivemos se imponham tanto à memória e forcem a saída para o papel.
Um dia destes, em reflexão vagabunda e desenfreada, concluí que há um verbo privilegiado quando se trata de falar de férias: IR. Ora, IR acorda-me as caravelas da memória, a lembrança de dias que não vivi mas quero contar, recontar, atirar para os mares de gerações não nascidas ainda. Há uma relação íntima entre este ser português que nasceu connosco e a ideia de IR, de viajar, de partir, de regressar. Por vezes, ainda não partimos e já sentimos saudades, já planeamos o regresso. Provavelmente porque nos agrada tanto regressar quanto partir. Por outro lado, partir tem a força de soltar amarras, de virar costas aos velhos do Restelo que nos assustam a alma. O que se me afigurou, de repente, e de forma muito portuguesa, foi que a viagem, propriamente dita, não é, afinal, o mais importante. O fundamental são a coragem de partir e o prazer de regressar. Há Ulisses e há Eneias e há Gamas à solta nisto que acabámos por vir a ser neste canto da península. Imagina uma viagem como uma corda. Quem quer saber do meio da corda? Quem lhe pega pelo meio? Ninguém! Queremos, sôfregos, uma das pontas para poder puxá-la, atá-la, talvez, para poder vivê-la! Talvez só queiramos as pontas porque sabemos o que fazer com elas; é como as viagens: sabemos sempre o que PARTIR e REGRESSAR querem de nós. O que não sabemos é o que fazer com a imensidão de opções que o meio da corda nos oferece. Vem isto a propósito de dizer que os portugueses são valentes “iniciáticos”, extraordinários “conclusores” mas atrapalham-se um pouco com o processo. O processo é que é o diabo.
Já não sei se foram as divagações que me despertaram a memória ou se a memória que divagou e se perdeu nas linhas que acabei de deixar-te. Sei, somente, que tudo isto surgiu quando me lembrei de ter viajado sozinho pela primeira vez. Fui (perfeito do verbo IR) ao Algarve! Tinha terminado o nono ano (quantos séculos!), e os pais ofereceram-me a oportunidade. Como quase sempre na minha vida, agarrei-a. Mochila azul até não poder mais, roupa, alimentos e a alma aparelhada para a aventura. Duas semanas inteiras de liberdade absoluta pela frente e, curiosamente, pouco mais me lembro do que da partida e do regresso! Lembro-me de firmar as pernas e subir para o autocarro, um aceno, um adeus, a mãe para trás, uma coragem de partir. Lembro-me, mais tarde, do fresco da minha Ítaca de primeiro andar em Coimbra e dos despojos de viagem pelo chão à mistura com narrativas empolgadas do que quer que seja que ficou no meio da corda.

Por que te escrevo disto hoje? Por que relembro uma viagem em que não participaste? Para dizer-te que foste comigo naquela altura como estás comigo hoje. Para dizer-te que faltaste tu na minha bagagem, para dizer-te que vinte e muitos anos passados e ainda hoje penso que tudo teria sido mais extraordinário se te tivesse levado comigo mais do que na alma. Para dizer-te que ser irmão é assim: ser o mesmo noutro corpo.

Beijo
mano


Deixe um comentário

Férias para Sempre

[Políticos franceses entram em reality show. As notícias relativas ao processo Casa Pia mostram que o mesmo está longe de resolvido. Apagão eléctrico em Nova York: inquietante a fragilidade de um empório tecnológico; admirável a tranquilidade e bonomia nas ruas novaiorquinas; recorrente o medo de uma nova tragédia accionada pelo terrorismo. Vaga de incêndios assola Portugal.

[Data da primeira publicação: 8 de Agosto de 2003]

Férias para Sempre

Olá mana,
Porque se aproximam as do presente, lembrei-me de rememorar para nós as férias do tempo em que ainda as não organizávamos, as não pagávamos. As férias do tempo em que ir de férias era só isso mesmo: ir de férias. Para ti a festa começava em Julho. Deixavas-nos a caminho da Figueira onde partilhavas emoções e sol quente com a generosidade da Mimi. Por essa altura, usavas o cabelito curto, os olhos despertos e as vontades aguçadas pelo génio de menina-senhora-do-seu-nariz. Eras um poço de força. Durante esse mês rumávamos à Figueira todos os fins-de-semana mais para ver-te do que por causa da praia. “Praieira” eras tu, escutando o vento, horas a fio na água a despeito das vozes adultas cá de fora: “Ó Ângela, já chega! Aquela miúda passa o dia de molho!”
Sempre te ficou bem o mar a enfeitar-te o espírito.
Depois vinha Agosto e a festa era diferente, mais familiar, mais nossa. Lembro-me bem das tardes intermináveis de sábados construídos de emoções carregando sacos, embrulhos, embrulhinhos e tudo o que coubesse e a mãe se lembrasse. Praticamente acartávamos a casa do primeiro andar para dentro do carro. Os colchões, as tendas, os pratos, os talheres, as almofadas, os baldes, as vassouras e quando já parecia estar tudo e o carro não podia com mais nada a mãe inventava mais uns embrulhinhos que acabavam, inevitavelmente, num saquinho com um frasco de vidro com um bocadinho de detergente, outro com sal e, claro, a cafeteira do café. A mãe providenciava, nós transportávamos escada abaixo e o pai, de paciência extrema, arrumava o inarrumável, inventava espaço para os sonhos de partir. Seguia-se o folclore da viagem. O espaço contado, ao milímetro, para cada um, a esperança de aventuras inigualáveis em cima de quatro rodas. Comentávamos os mesmos buracos na estrada, as mesmas curvas, aquela janela, esta casa, um telhado engraçado, e viajávamos em sonhos livres do que deixáramos para trás. Cantavam-se irrepreensivelmente as mesmas desafinações e parávamos mais ou menos nos mesmos locais para oficiar os mesmos rituais. Hoje sei que eram só quarenta quilómetros. Na altura diria que tinham sido dias intermináveis de viagem (a)venturosa. Na altura diria que tinham sido férias para sempre. Hoje sei que foram só alguns fins-de-semana em família. E volta-me sempre esta palavra como marca na pele, como responsabilidade de fazer de novo, de não deixar morrer: família!
Claro que nos instalávamos com alarido, perdíamos os ferros da tenda, falávamos alto, deixávamos de ver-te, aventureira de procurar outros espaços. Mas, como relógio interior da nossa aventura, concluíamos as tarefas essenciais à medida que o dia fenecia. E tudo terminava numa refeição ligeira adoçada com um café. E parece que vejo o pai de perna traçada, muita alva de não ver sol o ano todo. Calções cinzentos e camisa branca de manga curta e dobrada. A mãe envergava um vestido-bata, quase sempre em tons de verde, e movimentava-se afanosa em torno de nos fazer confortáveis. Nessa noite, depois de esticarmos as pernas e encostarmos os pés contra o pano fresco da tenda, adormecíamos felizes!
Nada disto era sofisticado. Tudo isto era verdadeiro.
Nada disto era grandioso. Tudo era à medida do que se podia e nunca acima do que se podia. E essa foi uma lição importante. Uma lição de Liberdade e Responsabilidade. É que, ao contrário do vou vendo e lendo à minha volta, as nossas férias não eram à medida do que se não podia gastar, não eram à medida do que estava para além de nós: eram à nossa medida. À medida da partilha em família, dos momentos em que nos olhámos, dos momentos em que conversávamos, ríamos juntos! As nossas férias não eram marcadas por bilhetes de avião, não tinham o selo de hotéis de luxo e o milagre é que hoje conheço isso tudo mas consigo lembrar-me de ser feliz sem ter necessitado disso. É como se o segredo da vida estivesse em aproveitar muito bem o que se tem e não em ansiar o que se não pode ter. Depois, quem tem uma família, de que precisa mais?

Beijo
mano


Deixe um comentário

A palavra dada

[Em Itália, o Ministro da Justiça, Roberto Castelli, tenta impedir as investigações judiciais a alegadas fraudes fiscais no grupo mediático Mediaset, do primeiro ministro, Silvio Berlusconi, argumentando que o caso caía sob a alçada da lei de imunidade, recentemente aprovada (de certo modo “ad casum”). Não só a oposição, mas inclusivamente parceiros da coligação, como os democratas cristãos, reagiram duramente contra esta pretensão. O Vaticano anuncia que pretende fazer do acto de beatificação de Madre Teresa de Calcutá, em 19 de Outubro próximo, um “acontecimento televisivo de repercussão mundial”. A TVE – Televisão Espanhola – é condenada por ter violado os direitos fundamentais da greve e da liberdade sindical. Esta situação surgiu na sequência da denúncia do sindicato Comisiones Obreras ter denunciado a TVE de manipulação informativa nos “Telediários” do dia 20 de Junho de 2002, dia de greve geral em Espanha. A Direcção do PS diz existir contra este partido uma cabala.

[Data da primeira publicação: 11 de Julho de 2003]

A Palavra Dada
Lembras-te, mana, dos natais em casa do avô Velez em Odivelas?
Lembras-te do alarido dos primos em correrias e risos de celebração de estarmos juntos?
Por essa altura, a avó fazia bolo-rei, torta de chocolate e moldava os seus cozinhados com a dedicação de quem ama, o carinho de quem dá e só quer em troca o sorriso de um neto. A sua figura pequena e a voz macia enchiam a cozinha e quando vinha à sala era para presenciar, com glória, a sua vitória. A vitória de ter as filhas à sua volta, os genros com elas e os netos a desarrumarem-lhe a casa de felicidade.
O avô, esse, como é seu timbre, falava alto, gesticulava, contava histórias de Áfricas antigas e trazia para a conversa todos os que o rodeavam. Era o exercício da memória; era o afanoso relembrar de sermos um clã em torno de si, para si.
Por vezes, as conversas ganhavam o entusiasmo dos argumentos esgrimidos com palavras. O avô, o pai, os tios, até a pequenada, todos opinavam e quem ganhava as batalhas aquecidas pelos petiscos e pelos vinhos da alegria era sempre a palavra dada!
Por alguma razão, as grandes questões eram sempre resolvidas em nome da honra, eram sempre assacadas as responsabilidades à palavra dada.
Lembro-me de pensar, um dia, que falar era como agir: uma palavra, um acto, uma consequência.
Entretanto, crescemos, cresceu o mundo à nossa volta, cresceram as explicações pedidas, multiplicaram-se os pedidos de provas. Apareceram no nosso quotidiano televisivo os tribunais, as testemunhas, as contratestemunhas e Dizer já não vale nada.
Que saudades tenho do eco das vozes numa mesa de família, da segurança de poder confiar numa afirmação só porque foi proferida.
É pena, mana, que a honra que brotava das palavras do avô e do pai não se veja já, nem escrita, nos papéis assinados e reconhecidos no notário.
Um beijo.
Mano


Deixe um comentário

Bons Malandros

[Pacheco Pereira publica no Público, a crónica “O Iraque É Também Nossa Responsabilidade”. Realiza-se, em Lisboa, a segunda “Marcha do Orgulho Gay” que, segundo o Diário de Notícias, tentou desfazer a associação ao escândalo Casa Pia. A AOL Time Warner Foundation anuncia, após realização de um inquérito que para além de ler, escrever e contar, a alfabetização do século XXI deveria possibilitar aos jovens aprender novas competências que há 20 anos não eram tidas como essencias. O CDS-PP desiste do projecto v-chip para controlar a violência e a pornografia na televisão. Fátima Felgueiras dá uima polémica conferência de imprensa no Rio de Janeiro. O Porto vence (1 – 0) a União de Leiria e conquista a Taça de Portugal.

Data da primeira publicação: 27 de Junho de 2003]

Bons Malandros
Querida Mana,

Lembras-te de como te li a “Crónica dos Bons Malandros”?
No quarto em que partilhávamos o quotidiano, no mesmo quarto em que adoecíamos e recuperávamos juntos, naqueles nove metros quadrados de partilha em que trocávamos segredos e brincadeiras. Foi lá que abri, desconfiado, a crónica que se seguiria e que, sem saber, viria a mudar a minha vida. A cama tinha um dos lados encostado à parede coberta de papel de fantasia de fundo azul muito claro sobre o qual vadiavam umas florzinhas de um azul mais escuro e outras de cor-de-rosa como que a sugerir, esta combinação cromática, que o quarto não era teu nem meu mas dos dois. De muito grossa, a parede tornava-se fresca e eu oferecia-lhe as costas deixando o resto do corpo atravessar a cama até que os pés ficassem suspensos. E lembro-me de rirmos de satisfação com as venturas e desventuras das suas personagens. Lembro-me de voltar atrás em alguns parágrafos para os saborearmos de novo. O entusiasmo era de levar a mãe a chamar para mesa uma vez, duas e três e a refeição era apressada para voltarmos à aventura. O que eu realmente gostava e queria partilhar com todos à minha volta era a boa disposição, o imprevisto, o caricato e por vezes, porque não, o arrojo da linguagem que assumia traços de vernáculo. O fenomenal, para mim, era o contraste! Eu só não sabia defini-lo e traçar-lhe os contornos exactos mas apercebia-me claramente de que havia ali um contraste. Hoje percebo que residia, fundamentalmente, na antítese entre o formalismo e a seriedade como me apresentavam a Literatura na escola, sempre tão longe da vida, e a fluência de viver que aquele pequeno livro me escancarava à frente dos olhos, às portas da alma. Cheguei a estranhar alguma linguagem. Como era possível um livro ter a palavra “preservativo”, como era possível as personagens serem tão parecidas com as pessoas que se cruzavam comigo no caminho para a escola, tão humanas, tão cheias de defeitos? … Cheguei a duvidar ser Literatura aquele arrazoado de maravilhas surpreendentes que me faziam rir e comover e me impeliam a ler-te o livro.
Porquê estas recordações tantos anos depois? Por que me puxa a memória para um livro? A resposta é simples. A “Crónica dos Bons Malandros” foi, para mim, uma tomada de consciência. Foi o perceber e o apreender da Literatura como manifestação de vida, de toda a vida. Mais do que isso, a Literatura, para mim, deixou de ser uma manifestação de vida, passou a ser a própria vida. Os livros deixaram de ser textos muito bem escritos, sem erros, que senhores muito inteligentes e estudiosos, a que chamávamos autores, escreviam para que o resto da Humanidade pudesse aprender. Os livros e a leitura deixaram de ser, para mim, paradigmas do que é bom, perfeitamente dissociáveis de mim, do meu quotidiano, da minha família. A “Crónica dos Bons Malandros” integrou a leitura, a escrita, a minha vivência e colocou-os a todos no mesmo plano: o da vida. Afinal, havia pessoas boas que faziam coisas más, pessoas más que faziam coisas boas, havia mau cheiro e sujidade na Literatura, as personagens, surpreendentemente, falavam como se fala nas ruas, diziam palavrões, tinham sotaques, vestiam mal e o milagre, para mim, foi a perfeição residir no facto de a imperfeição estar por todo o lado. A Língua servia a sua configuração mais extraordinária: a Literatura. E esta, por seu lado, jamais poderia existir e continuar a maravilhar-me sem o serviço da primeira. Eu encontrara o casamento perfeito, vislumbrara uma união que jamais alguém conseguiria desfazer. O corpo e a alma, a palavra e a ideia, a mão e o gesto, a Língua e a Literatura! Por isso me arrepio, hoje, e, mais do que isso, me entristeço, quando oiço as defesas das mais modernas teorias pedagógicas que em nome da alfabetização e da competência linguística propõem ensinar aos jovens a Língua e a Literatura separadamente. Preocupo-me quando oiço pessoas preocupadas com a incompetência linguística e pensam estar a solução em dar mais atenção à Língua em detrimento da Literatura. Será que não vêem que este detrimento não existe? Onde aprender uma carta melhor do que em Pessoa ou Saramago? Onde compreender a estatística melhor do que em Gedeão? Onde aprender o manuseio da Língua melhor do que naqueles que o fizeram com a excelência da vida? Onde encontrar os segredos de uma pontuação extraordinariamente correcta e de uma frase maravilhosamente bem organizada melhor do que em Vergílio Ferreira.
O que eu percebi, mana, naquele dia em que me encostei à parede do nosso quarto e te li a “Crónica dos Bons Malandros” foi que há coisas que o Homem não pode separar porque estão unidas na sua natureza intrínseca, porque são elementos de uma mesma força. Alma e Corpo num só ser.
Aliás, que ofereceremos nós aos alunos que só aprenderem a Língua? Deixamos-lhes a ferramenta mas negamos-lhes o golpe de asa de que falava o poeta. E aos outros? Àqueles a que só ensinarmos a Literatura? Que lhes ofereceremos nós? Oferecemos-lhes o golpe de asa, o milagre da vida, mas vedamos-lhes o caminho para lá chegar…
Se isto chega acontecer, mana, começo a acreditar que os malandros são menos bons do que pensava!
Beijito,
Mano.


3 comentários

"Mails para a minha Irmã" corre mundo

Caros amigos e leitores,

a vida tem sempre momentos curiosos e surpreendentes. Anteontem, 3 de Maio, no espaço de 1 hora, “Mails para a minha Irmã” foi visitado por pessoas de oito (!) países e quatro (!!)continentes diferentes. Deixo-vos um pormenor das estatísticas onde se observa tão interessante sequência:


4 comentários

A mercearia do senhor Luís!

[Pacheco Pereira publica no Público, a crónica “O Iraque É Também Nossa Responsabilidade”. Realiza-se, em Lisboa, a segunda “Marcha do Orgulho Gay” que, segundo o Diário de Notícias, tentou desfazer a associação ao escândalo Casa Pia. A AOL Time Warner Foundation anuncia, após realização de um inquérito que para além de ler, escrever e contar, a alfabetização do século XXI deveria possibilitar aos jovens aprender novas competências que há 20 anos não eram tidas como essencias. O CDS-PP desiste do projecto v-chip para controlar a violência e a pornografia na televisão. Fátima Felgueiras dá uima polémica conferência de imprensa no Rio de Janeiro. O Porto vence (1 – 0) a União de Leiria e conquista a Taça de Portugal.

Data da primeira publicação: 13 de Junho de 2003]

A mercearia do senhor Luís!

Querida mana,

Hoje trago-te memórias de imagens e odores dificilmente igualáveis. Há vinte e muitos anos atrás (anos do relógio, porque se se tratasse dos anos da cabeça eu diria que tinha sido há muitos séculos, noutras vidas), empoleirado na janela, eu via-te, pequenina, com uns calções amarelos de algodão e correspondente camisolinha de alças atravessar a rua de passo seguro após o prudente olhar para a esquerda e para a direita. O olhar para a esquerda era impelido pela força do ensinamento paterno, coadjuvada pelo hábito, mas perfeitamente inútil porque, como vim a concluir, consciente, anos mais tarde, a rua era de sentido único! Dirigias-te para a mercearia do senhor Luís. Lá dentro encontravas um balcão enorme de madeira já muito tratada pelo tempo, pelos avios, as satisfações e as arrelias de proprietários e clientes. Por trás do balcão erguia-se a figura enorme e cinzenta do senhor Luís, de bata pelo joelho, cabelos a reflectir o peso da idade na coloração de imitar a bata. A voz era pausada, a simpatia quanto baste, como convém nos negócios, as coisas faziam-se bem, não se faziam depressa. Mais ao fundo uma enorme estante a acompanhar toda uma enorme parede. Mercearias mais à mão, drogarias mais a fugir para o fundo do estabelecimento. Da altura da cintura para baixo não havia estantes mas uma fila infindável de depósitos para produtos avulso, cada depósito com sua tampa a fechar na diagonal. Dentro de cada uma destas arcas de madeira pousava uma medida ou instrumento de aviar e era raro que não chegasse à balança o peso já certo, pré-medido pela mão do tempo, pela prática da vida. Cá fora, pelo chão, havia sacas de batatas, cebolas, garrafões de vinho, vassouras encostadas à parede e todo o local parecia a recriação de um mercado inteiro incluindo o “comes e bebes” lá ao fundo a que se acedia por uma portinha e onde costumavam estar sempre os mesmos homens com os mesmos copos à frente que nós pressentíamos mas que, por um qualquer pudor não compreendido à altura nos eram vedados ao contacto da vista. O odor das especiarias e do açúcar amarelo misturava-se com o dos restos de Omo que caía, inevitavelmente, pelo fundo da embalagem de cartão, misturava-se com o aroma do café em grão, das cebolas, do vinho lá de dentro e entrar ali era despertar o olfacto com uma sinfonia complexa de ocidente e oriente, de passado e presente. A vista deixava-se enfeitiçar pelas cores das embalagens nas prateleiras, metodicamente arrumadas. E regressavas satisfeita com mais uma história para contar. Trazias o troco numa mão e, na outra, um embrulho que demorava mais tempo a fazer do que hoje uma operadora de caixa a despachar cinco clientes com dois carrinhos de compras cada um!

Ias e vinhas e parte do percurso não se via pela janela mas acreditávamos todos que tudo ia correr bem, havia esperança nos nossos corações. Nos dos pais pairava a confiança numa vida melhor, nos dos filhos a esperança de fazer coisas, de ser gente, de ser grande. Queríamos, todos, ser heróis de feitos inolvidáveis mesmo que começassem numa singela aventura até à mercearia do senhor Luís. Acontecia, mesmo, excedermos o que julgávamos inexcedível: íamos para a escola sozinhos e a pé! Atravessámos a cidade inteira para lá e para cá e era vida o que acontecia, e era Liberdade o que se realizava. O medo do Salazar, a suspeição, a dúvida e os olhares por cima dos ombros estavam, definitivamente, mortos. Levantavam-se as cabeças das pessoas para olhar em frente e percorrer um caminho melhor. Os adultos contavam histórias diferentes da mesma revolução que desembocavam todas numa palavra: Liberdade.
Hoje ligo a televisão e as palavras que dominam o quotidiano do meu filho são “arguido”, “pedofilia”, “peculato”, “suspeito”, “crime”, “prisão preventiva”. E vou buscá-lo à escola e já não há a mercearia do senhor Luís mas, mesmo que houvesse, não ousaria deixá-lo percorrer sozinho aquele troço do percurso que se não via da janela! Paira no ar um clima de suspeição, dúvida e desconfiança como no tempo de Salazar só que agora já não há Salazar! Que percurso traçámos nós a ponto de herdarmos o que não era para herdar? Que fizemos da Liberdade se o meu filho não pode, com a tua inocência de outros tempos, fazer o que fazias, de cabeça erguida e sorriso nos lábios, sem que eu tema: estará bem?
Um beijo amigo do mano


5 comentários

Três à mesa

[A razão principal da guerra no Iraque não foi a questão das armas de destruição maciça, mas o afastamento de Saddam, a fim de permitir a Washington “retirar as suas tropas da Arábia Saudita e abrir caminho ao controlo global do conflito no Próximo Oriente”. A afirmação é de Paul Wolfowitz, braço direito de Donald Rumsfeld e número dois do Pentágono. Herman José é constituído arguido no caso da pedofilia. Paulo Pedroso é detido no âmbito da investigação do mesmo caso. O F.C. Porto vence a Taça Uefa na final contra o Celtic de Glasgow treinado pelo incontornável José Mourinho.

Data da primeira publicação: 30 de Maio de 2003]

Três à Mesa
Olá mana,
Lembro-me de quando ainda éramos quatro à mesa.
O pai no topo, cotovelos assentes e mãos entregues uma à outra como que encimando uma pirâmide. Olhava-nos com a alegria de quem vê crescer uma obra de arte. A sua obra de arte. E o seu sentir era um misto paradoxal do altruísmo de quem deixa crescer, de quem sabe deixar viver, e do narcisismo de quem se regozija na contemplação de si na sua obra. Nós ladeávamo-lo. A mãe e tu de um lado, eu do outro, bem de frente para ti, à distância de uma malandrice, de um risinho, de um segredo por desvendar. A mãe chegava-se bem para cima até conseguir cruzar um braço seu com os do pai. Às vezes penso que fazia isto só para sentir a força. Era a nossa mestra da mesa no preparo dos alimentos, no cruzar artista dos temperos. Lembro-me de a ver olhar o pai e servi-lo com o carinho e o desvelo de quem guarda um tesouro. E nós, cachopos de pontapés por baixo da mesa a retomar uma qualquer escaramuça de antes da refeição, nem reparávamos no milagre que ali tínhamos. E com o passar do tempo aquele ritual de quatro à mesa instaurou-se nos hábitos, no estar, no ser e ajudou a construir as pessoas que somos hoje. Era muito mais do que estarmos juntos. Tratava-se de um momento íntimo daquele núcleo de força, daquela família. O mundo lá fora podia estar a desabar de desgraça, a inchar de riso, a política podia mudar, a finança podia colapsar, podíamos até estar zangados, tristes uns com os outros ou só com o rumo da vida mas… àquela mesa não se faltava. Aquele era um momento em que estávamos os quatro em um só. Era a reunião do clã. Tudo ficava para trás e o mundo era nosso por uns momentos. Por esse tempo, de vez em quando, um de nós caía à cama com as maleitas próprias do tempo ou dos descuidos que marcavam a idade em que os casacos estorvavam e os chapéus-de-chuva eram para os velhos. Depois do tempo necessário para a recuperação ter passado, assinalavam-se as melhoras do paciente com o retorno ao convívio à mesa dos quatro. Ainda me lembro de pensar, ingénuo, no dia em que regressou à mesa após o primeiro enfarte que o pai estava curado, até já tinha jantado connosco!
Sabes, assaltaram-me estas lembranças quando um destes dias fui a Lisboa com a Paula participar num congresso. Numa das pausas para almoço dirigimo-nos a um restaurante da Universidade e, por via da falta de lugares, partilhámos a mesa com uma pessoa desconhecida. Foram minutos dolorosos de silêncio, dolorosos de indiferença, de nada para dizer. Três à mesa e ninguém parecia estar ali ou querer ali estar. Só então percebi o quão íntima é uma refeição. Tudo o que de nós revelamos nos pequenos gestos, nas opções mais insignificantes. Só então percebi que a impessoalidade cresce entre nós por mais que sejamos. Ali estava eu numa urbe de milhões, cercado de semelhantes aos milhares e completamente só numa mesa com três pessoas. Ali se cometera um crime. Ali se assassinara o milagre da refeição. Em nome de quê? Em nome de quê a indiferença? Em nome de quê a impessoalidade? Em nome de quê a solidão? Em nome de que crescimento este definhar das relações humanas? Ainda esbocei um gesto que salvasse o momento:
– Vou buscar cafés, a senhora aceita um café?
– Eu pré-comprei o meu. Obrigada.

E pronto. A tecnologia dos almoços em pé, dos pré-adquiridos, dos pré-comprados, dos pré-pagamentos, aniquilou o meu estender de mão e hoje guardo, para contar aos netos, a história triste do dia em que almocei com uma desconhecida, em que violei a sua intimidade e vi a minha devassada sem saber porquê. É essa a parte que me assusta : três à mesa sem saber porquê!

Beijo,

Mano.