Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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Oh Toneca, viste o topázio?

[Uma enigmática campanha anti-terrorista promovida por uma organização desconhecida está a percorrer vários países europeus, incluindo Portugal, através de anúncios publicados em jornais e revistas de grande circulação, mas ninguém sabe quem a financia. O Exército americano prevê manter cerca de cem mil soldados americanos no Iraque até 2006. Jornalistas portugueses ficaram autorizados a acompanhar o Sub-Agrupamento Alfa da GNR para Nasiriyah, Iraque. Carlos Raleiras, repórter da TSF, continua desaparecido e sobre ele pesa um pedido de resgate de 50 mil dólares. O jornalista foi raptado perto da localidade de Marditz, no Sul do Iraque, quando seguia com mais oito enviados para Bassorá. No mesmo ataque foi ferida a tiro a jornalista da SIC Maria João Ruela, que teve que ser operada a uma coxa. Entre 24 de Outubro de 2002 e 24 de Outubro de 2003, os canais generalistas portugueses emitiram 5612 notícias (correspondentes a mais de 219 horas) sobre o “escândalo da Casa Pia”, as quais foram vistas por uma audiência média de 8,5% (798 mil indivíduos). Os dados constam do Telenews da MediaMonitor divulgados na mais recente edição da newsletter da Marktest.

[Data da primeira publicação: 14 de Novembro de 2003]

Oh Toneca, viste o topázio?

Querida mana,

Estava aqui a pensar na nossa família como quem passa as tropas em revista. De repente, apareceram-me todos à frente, os mortos e os vivos, encheram o peito de ar e perfilaram-se numa longa fila. Que heterogeneidade! Os mais simples, os mais complexos, os mais generosos, os mais extrovertidos, os mais preocupados, os mais tímidos, os mais baixos, os mais altos, os mais magros, os mais gordos e todos, sem excepção, com a marca indelével do amor que lhes tenho. Do amor que lhes temos. Enquanto os percorria, um a um, na minha mente, demorava-me um pouco em cada um e atirava-lhe um sorriso como que a dizer “conheço-te bem!”. Decidi, por razões que agora não vêm ao caso, parar junto de um tio nosso e conversar com ele. Sabes, há pessoas que nascem simpáticas, vivem simpáticas, e não sabem estar de outra maneira senão simpaticamente. Há mesmo pessoas em quem a simpatia não provem da educação. É um factor endógeno, determinante, não determinado e qualquer que fosse a educação que alguma vez tivessem recebido a simpatia precedê-los-ia, sempre! Nasceram assim como quem nasce com um sinal no braço, como quem nasce com esta ou aquela cor de olhos, como quem nasce com o dedo mindinho do pé esquerdo sem unha. Não é um defeito nem um feito, é uma forma de estar enraizada desde antes do ser. Eu acho que o nosso pai nasceu assim mas hoje não é sobre ele que reflicto, não é sobre ele que te escrevo.
Não quis Deus que este nosso tio viesse grande nos tamanhos físicos, mas quis que trouxesse consigo um coração que quase lhe não cabe no peito. É uma pessoa a aproximar-se e ele a dizer de braços abertos e olhos brilhantes “então, rapaz?!”. E aquela expressão vem sempre marcada de uma comunhão inexcedível, de um querer saber para fazer bem, de um sentir grande do tamanho do mundo como se dele fossemos filhos também. Tem pela vida um respeito extremo mas não a teme. Encara-a sempre com aquela disposição natural de quem quer seguir em frente, de quem sabe que se não pode parar, de quem quer tirar dela o melhor que ela tiver para dar.

Nos dias que vivemos, de tão soturnos e cinzentos contornos, e em que os seres humanos parecem estar a enveredar pelas opções complexas e complicadas da vida, venho admirar contigo a simplicidade com que o tio Toneca a doma. É quase como quem a orienta, amparando-a, mas a não agarra à força na ânsia de a dominar e controlar e, no entanto, controla-a. É um saber invejável este. É o saber viver deixando viver, é o saber respeitar ganhando assim o direito ao respeito. Quase parece simples, quase parece fácil. E depois, surpreende-me, por entre as dificuldades e as partidas que o destino lhe tinha reservadas, a alegria, o peito feito para mais uma história, para mais um sorriso. A simpatia. Parece-me mesmo que se um dia o tio Toneca quisesse ser antipático ou indelicado não o conseguiria. Há nele uma força que lhe sobrevém a todas as outras e essa impele-o a uma delicadeza, a um gesto cortês, a uma atitude conciliadora, a optar pelas coisas simples e bonitas do quotidiano. No outro dia, estivemos com ele e, terminada a visita, fiquei orgulhoso por ter um tio assim. Pensei nas semelhanças com o pai. Não nas mais evidentes, claro, essas saltam à vista: as mãos, a careca, a face… mas nas outras. Na força que se impõe pela serenidade, no coração grande de querer ver todos bem, no procurar uma solução que a todos agrade. E fico-me a pensar se não será ele o que temos de vivo e pulsante mais próximo do que seria o pai? Por vezes ainda me lembro das brincadeiras que tinham juntos. Tudo se resumia a jogos de palavras que resultavam de um passeio, de um piquenique, de um dia de farnel às costas, pinheiros verdes, dedos entalados nas portas e outras histórias que ficavam para contar. Tudo prometia um sorriso, tudo evocava um pensamento malandreco e divertiam-se assim, os irmãos, a brincar com as palavras. Fosse porque uma certa terra se chamava Mesão Frio, fosse porque num certo cruzamento e perante um sinal de STOP a tia Hilda advertira “Oh Toneca, viste o topázio?”.

Tiravam da vida tudo o que ela permitia e não pediam mais estes sábios de saber viver com o que se tem, sem pensar no que se não tem, sem saber nem querer saber como seria se se tivesse mais… só viver-se assim, simples, fácil e descomprometidamente com o que os rodeia, com os braços abertos, os olhos brilhantes e com simpatia… uma desconcertante e acolhedora simpatia: “então, rapaz?!”

Beijo
Mano


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Prémio Lemniscata




Há uns dias atrás, “Mails para a minha Irmã” foi simpaticamente agraciado com o prémio Lemniscata. A responsabilidade obriga-me a reproduzir o texto que se segue bem como a atribuir o galardão a sete blogues. Fica o agradecimento à Ana Lee do blogue “A paisagem que vi” e ficam os meus premiados.

“O selo deste prémio foi criado a pensar nos blogs que demonstram talento, seja nas artes, nas letras, nas ciências, na poesia ou em qualquer outra área e que, com isso, enriquecem a blogosfera e a vida dos seus leitores.Resta-me, mais uma vez, a difícil tarefa de repassar este selo a 7 blogues considerados merecedores de receber este prémio”, devendo eles proceder de igual modo.Eis os “sacrificados”…


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A Espera

[Christian Science Monitor, em prefácio ao novo livro de Todd Oppenheimer, ‘The Flickering Mind- The False Promise of Technology in the Classroom’, reflectindo sobre o impacto da tecnologia dos computadores nas escolas norte-americanas, afirma que “putting computers in classrooms has been almost entirely wasteful, and the rush to keep schools up-to-date with the latest technology has been largely pointless”. Os novos programas de Português para o Ensino Secundário continuam a ser alvo de contestação: desta vez é a referência ao programa televisivo “Big Brother” num manual. A Alta Autoridade para a Comunicação Social (AACS) considerou uma prática ilícita “a intercepção de conversas telefónicas por iniciativa de jornalistas, seja em que circunstâncias for”.

[Data da primeira publicação: 31 de Outubro de 2003]

A Espera

Olá mana,

Aproxima-se o dia 1 de Novembro, dia de todos os santos, dia que me acorda na memória rituais populares de recorte religioso e pagão. Pelo que me lembro, o frio mostrava-se forte mas quase sempre a chuva se encolhia e os dias abriam-se luminosos aos nossos desejos de uma jornada diferente. Pela manhãzinha, bem cedo, levantava-se a mãe e preparava o farnel da diversão. Pratos, talheres, copos, guardanapos, uma toalha estampada de frutos e algumas coisas menos comuns como um frasquinho com um pouco de detergente e uma cafeteira de café, um saquinho com um punhado de sal e duas folhas de louro. Juntava os embrulhos e os sacos e colocava-os ao cimo das escadas. Pouco depois juntava-se-lhe a Mimi e os gestos de preparação multiplicavam-se por dois. Por fim, eu, tu e o pai acordávamos para o dia com os corações à espera de coisas diferentes, de risos mais abertos, de momentos que sabíamos iam acontecer mas surgiam sempre renovados. São assim os rituais. Oferecem-nos a certeza das coisas que se repetem sem surpresas e a surpresa de se repetirem sempre diferentes. Todos no carro, lá íamos pelas curvas da conversa, pelo timbre entusiasmado das vozes a caminho de um dia diferente. Olhávamos o rio, as árvores e tudo transpirava harmonia. Comentávamos as mesmas filas de trânsito, discutíamos sempre onde teríamos assentado arraiais no ano anterior e acabávamos por ficar no mesmo local ainda que alguns de nós afirmassem que não havia sido bem ali. Chegados à Feira de Santa Quitéria iniciava-se o jogo de visita aos vendedores. O melhor pão aqui, a melhor carne ali, as morcelas, o chouriço e, claro, umas quantas castanhas para assar. Parávamos com frequência para cumprimentar outras famílias que, assim, fora da azáfama do quotidiano, pareciam mais felizes e bonitas.
Iniciava-se, depois, um ritual interessante. Era o acender do lume, o temperar das carnes, o retalhar das castanhas e outros pequenos gestos que acompanhavam a felicidade de estarmos a preparar uma refeição ao ar livre. O pai fumava um cigarro de contemplação, a Mimi desvendava os segredos de uma culinária empírica e, sem dúvida, extraordinária e a mãe garantia o sucesso da operação com a sua eficiência e a sua capacidade de trabalho mesmo quando já todos estávamos cansados. Nós corríamos monte acima e monte abaixo em aventuras de imaginosos contornos ou, se o frio apertasse muito, embrulhávamo-nos numa manta e ficávamos a ver como era bom estar quentinho com o frio à nossa volta. As conversas impunham-se, depois, com o cheirinho do café a dominar os ares e repetiam-se nos temas e nos assuntos. Os olhos de todos nós brilhavam mais, as vozes eram mais tranquilas e o coração dos homens abria-se mais para dar do que para receber.

E, nisto tudo, onde fica a espera? Porque venho falar-te de uma espera e ainda nada disse sobre ela? Por tradição e até por questões semânticas, a espera movimenta-se nos anéis da paciência e esperar é, de alguma forma, ter paciência, quiçá, capacidade de sofrer. Esperar é dar duas vezes. É dar a presença e dar o tempo de aguardar outra presença, uma que nos complete. Muitos dizem que não gostam de esperar nem de fazer esperar. Pobres! Duplamente pobres! Se não gostam de esperar é porque nada há que valha a pena a sua dádiva pessoal da paciência, do aguardar pelos que nos completam. Se não gostam de fazer esperar é porque não acreditam que possa haver quem queira sentir a sua falta por momentos para, pouco depois, a sentirem completada com a presença. Por vezes, penso mesmo que, se não houvesse espera, a presença não faria o mesmo sentido… tornava-se um petisco insosso, um dia sem sol, uma noite sem lua. E por que esperávamos nós nesses dias de todos os santos que foram levados na enxurrada do tempo e de que resta agora só o escolho da memória? Se bem te lembras, assim que saíamos de casa, o pai passava pelo cemitério. A Mimi comprava umas flores, entrava no recinto e nós esperávamos. Sentados, em silêncio, sem muito o que dizer uns aos outros, sentíamos um pequeno adiar das alegrias que estavam para seguir-se mas esperávamos sempre. Nunca contrariávamos aquele ritual de espera e de respeito. Era como se o silêncio dos silenciados falasse mais alto. Era como se se impusesse um respeito secular que não sabíamos bem de onde vinha mas que nos não atrevíamos, sequer, a questionar. É interessante pensar que passamos uma vida a tentar que nos oiçam, a tentar encontrar um lugar para estarmos e a tentar encontrar alguém que espere por nós, sempre! E é curiosamente quando superamos a fronteira fina e frágil da morte que o silêncio dos outros permite que fale a voz do que fomos, que conquistamos todos os espaços que ansiávamos e, mais do que isso, é quando partimos para não voltar que os outros encontram tempo para esperar! “Mísera sorte, estranha condição”.

No próximo dia um de Novembro estaremos juntos e subiremos, de novo, Santa Quitéria e eu venho propor-te que esperemos um pouco por duas das personagens que ocuparam estas linhas e que já tiveram a coragem de atravessar a fronteira. Um porque sabia fazer-se esperar no ofício de respeitar os que partiram. O outro porque esperava com a paciência e o respeito de quem abre o coração ao mundo para dar de si o que melhor de si encontrar!

Beijo
Mano.