[Continua, em Portugal, uma das mais violentas vagas de incêndios. Para além da suspeita de fogo criminoso, vêm a lume, na imprensa, notícias que envolvem interesses paralelos como seja o comércio de aluguer de helicópteros para o combate às chamas. A saga de Harry Potter conquista o estatuto de livro mais vendido do mundo. A sua divulgação não é pacífica.
[Data da primeira publicação: 19 de Setembro de 2003]
O Mundo Depois de Harry Potter
Querida mana,
entei fixar a memória no seu ponto mais remoto: a minha primeira lembrança. Quase sempre fazemos isto levados pelo humano e natural impulso de querer saber onde começámos. A experiência não é de fácil resolução uma vez que o nublado do tempo adensa-se à medida que recuamos e esfumam-se as certezas para ficarem as impressões. Ainda assim, tentei mexer na memória como faziam algumas pessoas antigamente com a água quando esta se bebia dos lagos e nos não chegava a casa pela comodidade e higiene dos canos públicos. Juntei as mãos abertas e depois em movimentos lentos e cuidadosos ia-as separando para as juntar outra vez. A ideia era separar a lembrança pura e potável dos lixos que o tempo lhe havia juntado. Sosseguei, pouco depois, quando isolei a minha primeira memória, como se de algo precioso se tratasse, embrulhei-a em veludo e guardei-a numa caixinha de prata e prometo falar-te dela um dia destes. Por agora venho falar-te de aventuras que nós dois protagonizávamos a expensas da minha malandrice e do teu tácito e cúmplice acordo. A verdade é que não podias fazer nada senão estar de acordo porque eras um bebezinho pequenino que dormia a maior parte do tempo um sono inocente e só despertavas dele para o mais urgente. Na altura davam-me a missão de tomar conta de ti. Colocavam-te num carrinho de bebé enorme, com umas enormes rodas com molas e um travão e eu tinha-te a ti e à rua inteira para desbravar. Sem que nenhum livro ainda me tivesse educado o pensamento, sem que nenhum jogo didáctico me tivesse ensinado a ser melhor, a ser gente, sem que nenhum plano de apoio pedagógico me tivesse sido aplicado, a minha imaginação funcionava e cavalgava à solta até onde lhe apetecia. Empurrava lento e a muito custo a minha carroça de cow-boy rua acima, escondia-me de índios ferozes e ululantes, protegia deles e dos animais ferozes do velho Oeste o tesouro precioso que transportava comigo e uma vez chegado ao cimo da rua, perdão, ao cume da ravina, havia que descê-la ágil e veloz por entre as gentes que ali passavam onde via hordas de inimigos em perseguição. Preparava a carroça o melhor que podia, verificava os travões, olhava em desafio a descida e a correria iniciava-se, excitante e divertida, e só acabava quando a rua que lhe servia de palco não permitia continuá-la. Voltava a subir a rua e, enquanto o fazia, mudava o cenário, inventava uma aventura nova que justificasse a nossa correria por ali abaixo e depois era mais uma volta na montanha russa da minha imaginação. Nunca precisei que me dessem uma receita, nunca senti necessidade de comprar um imaginário!
Ao terminar a primeira classe, quando ainda se chamava assim, ofereceram-me um livro da Anita. Fiquei maravilhado com os desenhos, com as cores, com as expressões do cão, com olhos muito abertos da Anita e li-o com avidez mas, depois dessa experiência maravilhosa de descoberta o meu mundo continuou intacto e à minha espera. O livro era mais limpo e mais perfeitinho do que as coisas que me rodeavam mas era, fundamentalmente, sobre as coisas que me rodeavam e que eu dominava. Fora uma magia, mas uma magia que ocupara só o seu espaço, só o espaço que uma magia deve ocupar.Mano
13/06/2009 às 01:15
O meu pai, quando fomos para a escola e como era hábito na época, abriu conta na papelaria Moderna em Santarém e disse-nos: “Agora podem comprar os livros que quiserem mas a televisão só vem quando as galinhas tiverem dentes”. Pois é claro, todos os sábados lá íamos nós comprar um livro para devorarmos nos fins-de-semana. Os Cinco, Os Westerns, O Major Alvega, O Tio Patinhas e outros faziam parte das nossas compras. Mas os meus livros de infância e de juventude estiveram sempre um pouco divorciados das minhas intenções primeiras, pois as actividades lúdicas ao ar livre eram bem mais aliciantes. Mas eis senão quando, ouve-se a notícia de que um galo no Porto, tinha aparecido com um dente e nós de dentes confiantemente afiados de imediato comunicámos a notícia ao meu pai e ele respondeu: “Eu disse quando as galinhas tiverem dentes e não um galo. Mas vocês não precisam de televisão, têm a papelaria Moderna para se entreterem”. O desânimo foi momentâneo porque logo resolvemos fazer a nossa televisão de garagem e de rua onde fazíamos entrevistas com os nossos ídolos, jogos, teatro, dança, subíamos árvores, andávamos aos pássaros com fisgas feitas por nós, construíamos e andávamos de carrinhos de rolamentos (os rolamentos eram roubados ao meu pai), preparávamos auxiliares de memória para os testes, brincávamos às casinhas, andávamos de bicicleta, aos girinos, brigávamos e sei lá o que mais. Sei que éramos alegres e felizes independentemente das vezes que subíamos a rua.
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