Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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O pecado do António Banderas

[Este texto foi escrito após a saída em dvd do filme “Original Sin”. Muito desse filme acordou-me memórias de um passado marcante e de retorno impossível. Já a revisitação não é tão difícil. Ainda bem!

O Iraque tarde em responder ao ultimato dado pela ONU. Manoel de Oliveira com 94 anos estreia “Filme Falado”. O JN publicou uma investigação que divulga falta de apoio clínico nas maternidades o que torna o processo penoso e doloroso. Um estudo refere que a funcao publica está envelhecida, situando-se a idade média dos trabalhadores entre os 40 e os 45 anos. E, devido as alterações no sistema de aposentação que obriga os funcionários a trabalhar até aos 60 anos, nao se prevê uma melhoria para esta situação
Data da primeira publicação: 29 de Novembro de 2002]
O pecado do António Banderas
Querida mana,
Ontem vi um filme. Depois de horas consecutivas com os olhos pregados em leituras teóricas para a minha tese quis ver cor. Quis ouvir som. Quis uma história. Fui requisitar um filme e trouxe um com o António Banderas. De um argumento intrincado e um tanto decadente emerge a figura do actor latino com o cabelo ondulado, puxado para trás, o cigarro no canto da boca, o olhar envolvente, o sorriso malandro a despertar todas as libidos femininas. Emerge, ainda, a tenacidade e a certeza de quem quer agarrar a vida, de quem quer ser feliz, “no mather what”! Essa ânsia da felicidade absoluta, do entendimento perfeito entre dois seres de sexos diferentes mas em simbiose psicossomática é alcançada depois de muitas provações. Ora aí está a grande diferença entre os filmes e a realidade. É que atrás da tela é sempre possível o pecado da felicidade absoluta, do entendimento perfeito, o pecado do prazer que se estende para além da carne e toma as almas dos pecadores! A personagem do António, ontem, fez-me lembrar outras personagens, em tudo idênticas, que percorreram as vidas dos nossos pais trazidos à luz dos projectores pelo Bogart. Foi algures nesse nó do pensamento, entre o Bogart, o António e os nossos pais que parei numa interrogação: “que faltou na realidade à mãe e ao pai de tudo o que os outros tiveram atrás da tela?” nada! Conheceram-se durante aventuras africanas de contornos complexos mas os seus caminhos cruzaram-se uma vez para nunca mais se perderem de vista. O seu amor, espontâneo e avassalador, passou as provações e os testes que a honra e os costumes exigiam. Uniram-se em beijos infindáveis e noites de prazer tropical e o seu castigo fomos nós! Dois filhos a quem se dedicaram como se fossem a sua obra de arte. Ainda me lembro do pai, poucos meses antes de morrer, com lágrimas de alegria nos olhos dizer como quem fecha um capítulo, como quem encerra um livro: “o que é que os outros têm? terrenos, casas e carros. Mas eu tenho dois doutores!” acredita mana, não era vaidade no grau académico, era a singela contemplação da obra da sua vida! uma vida de harmonia, de entendimentos, de dar, de receber, de cedências carinhosas, de protecção mútua. A mãe costumava dizer, ainda em África, que desconfiava de tanta felicidade. Por vezes, já depois do regresso atribulado, dizia que a forma como tinham sido despojados da sua vida, do seu paraíso na terra, fora um castigo por terem sido tão felizes. Mas como explicar, então, que de tamanha adversidade tenham de novo tido forças para reconstruir o seu paraíso na terra, como explicar a ausência de uma discussão nos momentos mais difíceis, nos dias mais pobres?

Sabes, durante muito tempo julguei que os nossos pais não eram normais porque estava sempre tudo bem, tudo em harmonia, por vezes busquei essa normalidade numa discussão, numa briga mas nunca a encontrei! Por vezes, recordo em gargalhadas, uma noite em que eu, ainda mergulhado na doce escuridão da ingenuidade, ouvi a mãe chorar! De imediato pensei e conjecturei noites atribuladas de grandes discussões e planos infindáveis para que no dia seguinte tudo corresse bem. E foi no dia seguinte que perguntei, armado em defensor da mãe e da normalidade:”mamã, porque é que tu choraste hoje de noite?” e as conjecturas ruíram, os meus planos e a minha noite em branco tinham sido em vão: “a mamã não chorou, deves ter sonhado, filho! sabes, por vezes sonhamos com tanta força que até parece realidade.” E andei ali desenganado com aquele choro na mente uns dez anos. Mais tarde, já a ingenuidade tinha levantado o seu manto, já eram as saias das raparigas que me toldavam a visão, e tornei a ouvir aquele choro. Era bonita, jovem e o seu corpo de sereia oferecia-se ao meu quase tão desajeitado como eu. Trocávamos o que tínhamos para trocar que, ainda que não fosse muito, para nós era tudo! E à medida que a minha mente recuava no tempo empurrada pelos sons do presente, o choro da mãe ia ficando menos choro, mais sensual e eu não tinha agora ninguém para proteger, e agora já não era choro, era um gemido de prazer de um corpo que se entrega, de uma alma que se funde. A moça, assustada com as lágrimas que lhe beijavam os seios perguntou: “Que tens? Magoaste-te?” Não sei o que respondi na altura mas se fosse hoje diria: “Não tenho nada, foram só os meus pais que cometeram o pecado do António Banderas!”


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As cores do galo negro

[Este texto foi escrito pouco depois da captura e morte de Jonas Savimbi, em Fevereiro de 2002, mas só viria a ser publicado em Novembro desse ano. Nesse Novembro, O presidente angolano, José Eduardo dos Santos, defende a entrega ao seu povo de um Prémio Nobel da Paz; em sessão extraordinária, o parlamento iraquiano reune para discutir a resolução da ONU para o desarmamento do Iraque; divulga-se que a rede Al-Qaeda, de Osama bin Laden, planeou, em 1999, assassinar o Papa Joao Paulo II, aquando da sua visita às Filipinas. O presumível atentado não foi consumado, dado que a viagem foi cancelada devido a problemas de saúde do Papa. Em Portugal, realizou-se um encontro de autarcas portugueses para discutir o Orçamento de Estado para 2003. A Associação Nacional de Munícipios criticou já o Orçamento, considerando que este penaliza o poder local.
Data da primeira publicação: 15 de Novembro de 2002]

As cores do galo negro

Olá mana.

O título deste mail é o que parece mas não é o que parece.

É evidente que este meu pensamento não está imune à recente morte de Jonas Savimbi mas as memórias que tudo isto me despertou são bem menos ditadas pela política e pela invasão mediática do que pela ternura das crianças que já não somos. Sabes, não gostei de ver, em tudo quanto é televisão, o corpo de um homem como se fosse o de um animal capturado, ao jeito de um prémio de caça. Sobretudo porque esse homem fez parte da construção de um colorido que povoou os nossos dias de meninos e que eu relembro egoistamente para nós. Sabes, o galo negro, naqueles dias, não era negro. Tinha a pujança do encarnado e a beleza natural do verde e em cada autocolante, em cada bandeira, eu juraria ter visto um galo de muitas cores; as cores da felicidade ingénua de uma criança que acredita que tudo está bem e vai continuar bem. Não estava e não continuou. Mas isso não importa, agora! Sei que as cores do galo negro não estavam sozinhas, havia outros partidos, com outras cores e outras letras de que eu ignorava o significado. Para ser sincero eu julgava que as pessoas escolhiam as letras mais bonitas para pôr nas bandeiras e gritar pelas ruas e ouvia emepélá! emepélá! fénélá! fénélá! unita! unita! Como se fossem canções de um novo arraial a invadir os meus dias. E lembro-me do nosso avô num carro, pelas ruas, gritando e cantando e ele era tão bom e amigo que, se estava fazendo aquilo, então é porque se tratava de uma festa! Temi, depois, as conversas muito sérias em torno da mesa do jantar. Conversas que falavam de perigos e mudanças, de partidas e chegadas, conversas com nomes impronunciáveis de homens que queriam o que outros não queriam, de homens que faziam o que outros deveriam ter feito e lembro-me de palavras que surgiam novas como pedradas assustadoras na calma água dos meus dias: boato! Colono! indepen… esta era impossível para mim. E lembro-me de um senhor que era careca! De dia voltávamos à festa das ruas e às montras das lojas pintadas com grandes palavras que os donos lavavam a pano. E passavam carros em cantorias e gritarias e o galo sempre presente com suas cores de arco-íris. Só mais tarde, já a ingenuidade de menino tinha partido há muito, já a gaivota que voava com muito mais graça na tua boca – sempre sussurrado não fosse alguém ouvir e levar a mal – tinha quebrado a asa na desilusão de um mundo desfeito, já as longas mesas redondas de senhores a preto e branco tinham deixado de nos ocupar o serão, eu encontrei um velho autocolante, de brilho perdido, e pensei: “este tem o galo preto?” e remexi a papelada toda em vão até que algures numa página perdida de um manual cossado pelo uso eu constatei atónito: “então não é que o galo é mesmo preto?!”

E os dias da minha vida andaram repentinamente para trás como quem rebobina uma cassete e cheguei às ruas da Gabela, e aos carros em cantoria e às pessoas bradando, na mão de um, uma bandeira amarela, na de outro, uma encarnada e, na estrada, junto ao passeio, vi um autocolante, e a minha alma disse-me o que durante tanto tempo me ocultara: o galo era mesmo preto! Fiquei sem saber se queria voltar a viver aqueles dias como tantas vezes desejara em sonhos acordados, de olhos no tecto, à espera do sono! Mas queria, nem que fosse pelos odores, nem que fosse pela voz do pai dizendo, calma, que acreditava, nem que fosse pelos olhos da mãe duvidosos de tanta felicidade, ela que não via que as pessoas dos filmes fossem mais felizes do que ela! Nem que fosse por ver-te baixar, menina-bébé de ano e picos, firmares-te nas pernas, acocorares-te, num equilíbrio periclitante e apontares segura para um autocolante que estava no chão: “dá! dá!”. Mas o galo era negro!

Não quero saber das políticas dos outros. Não me interessam os nomes que chamam à Paz. Interessa-me só que fui feliz, que te vi ser feliz, que tinha um pai forte e corajoso que me havia de proteger de tudo e uma mãe quente e fofinha que me tinha prometido que eu não precisava de ir à tropa. E não fui! Interessa-me só que a imagem de Jonas Savimbi baleado, desarranjado, indignamente estirado numa prancha de madeira, improvisada, fez morrer em mim o que restava do colorido desse arco-íris dos tempos da nossa meninice. Eu que até juraria que aquele galo tinha cantado!
Beijo.
Mano.