Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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Citação do Tempo


[Clique na imagem para aceder ao sítio do filme]

“And in the end I think I’ve learned the final lesson from my travels in time; and I’ve even gone one step further than my father did: The truth is I now don’t travel back at all, not even for the day, I just try to live every day as if I’ve deliberately come back to this one day, to enjoy it, as if it was the full final day of my extraordinary, ordinary life.”

Tim, personagem principal em “About Time”

[E por fim, penso que aprendi a lição com as minhas viagens no tempo; e fui mesmo mais longe do que o meu pai: a verdade é que não volto mais atrás no tempo, nem mesmo por um dia, tento viver cada dia como se tivesse voltado para este dia em particular para o desfrutar como se fosse o último dia da minha extraordinária e simples vida.]


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Conversas Vadias – Vida Fácil

Conversas Vadias – Vida Fácil

A – A vida aqui não está fácil.
B – E quem é que quer uma dessas?

jpv
(Conversa real cujos intervenientes
se omitem por prudência)


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A Paixão de Madalena – Capítulo 12

A Paixão de Madalena

Livro II – O Cordeiro de Deus

12. É preciso conhecermos as pessoas para as percebermos. É, sobretudo, preciso conhecê-las antes de as julgarmos. A história que agora se contará não justifica o futuro, mas derrama luz sobre ele.

Já estiveram os três à mesa. Agora está só o pai, perna cruzada, jornal aberto, e o filho olhando o que resta da refeição, girando o garfo sobre a comida, um braço estendido ao longo da mesa e a cabeça sobre ele. Carne de jardineira não lhe agrada. Sobretudo não percebe o que veem os adultos no feijão verde e, como não está autorizado a sair da mesa antes de terminar, vai espalhando a comida no prato e, de quando em vez, pergunta:
-Já posso?
-Come o que tens no prato!
E aquela frase, assim contundente, caiu-lhe em cima como uma espada de cortar esperança. Não lhe resta mais do que continuar a remexer a comida fria à espera que o pai se canse. Numa reviravolta que dava a um pedaço de feijão verde cortado aos quadradinhos, o vegetal saiu-lhe disparado do garfo, bateu-lhe no peito, tabelou no joelho e anichou-se no chão, mesmo por baixo dos seus pés. A primeira reação foi olhar para o pai. Felizmente tinha a cara por trás do jornal e não tinha visto. Enganou-se no juízo. Saiu da cadeira e foi abaixo da mesa buscar o pedaço de feijão verde e era lá que estava quando tudo recomeçou. Lembra-se do sabor a sangue logo após o primeiro pontapé a encher-lhe a cara e a cortar-lhe os lábios, lembra-se de bater com a parte de trás da cabeça na perna da mesa e depois não se lembra de mais nada. Erguido pelos cabelos, esbofeteado e esmurrado ao som de uma letra que variava pouco, Julgas que ando a matar-me a trabalhar para te pôr a comida na mesa e tu depois a atirares para o chão? Hã? Hã? Responde-me! Não! Não quem? Não, papá! E achava que tinha respondido bem e por isso não percebeu a sequência de bofetadas e murros após a resposta. A voz da mãe ao longe gritando, depois pegando nele, serenando-o, os cuidados e a humilhação numa próxima refeição em família:
-Aquele ainda esta semana levou uma tareia à moda antiga. A deitar-me a comida para baixo da mesa, o sacanita… depois lá veio a mãe com falinhas mansas e paninhos quentes. Não me importa. O pai dá a educação, a mãe dá os mimos. Sempre assim foi, sempre assim será.
Quando entrou na escola, Mário Só não pôde evitar a pergunta da professora:
-O que te aconteceu Marinho?
-O meu pai bateu-me, disse o miúdo com inocência e verdade.
Bernandino Só foi chamado à escola e quando lá chegou ralhou com a professora, reclamou para si a função de educador, ela que se limitasse às tabuadas e às cópias que o pai era ele, sabia muito bem o que estava a fazer, filho seu nunca lhe haveria de faltar ao respeito. À noite, chegou a casa, fechou-se num quarto com o miúdo, gritando-lhe que o que se passava em casa não se contava na rua porque só à família dizia respeito, tirou o cinto e descarregou na criança a humilhação de ter sido chamado à escola. No dia seguinte a professora percebeu que a cavalaria da besta Bernardino Só havia de novo carregado sobre a pobre criança e já não lhe perguntou nada. De tempos a tempos aparecia com marcas visíveis do calvário que era o seu quotidiano e a professora aprendeu a rezar e a pedir que não se repetisse muitas mais vezes. Mário Só não tinha irmãos, razão porque colhia todas as atenções do pai que jurara fazer dele um homem. E o seu conceito de fazer dele um homem era ensinar-lhe palavrões, comprar-lhe cadernetas com os cromos da bola e verificar se ele já tinha decorado os nomes dos jogadores do Varzim e do Farense e perguntar-lhe, em público, Olha lá, pá, já apalpastes o cu a alguma gaija lá da tua escola? O coitado não respondia e, quando chegava a casa, a mãe apressava-se a fechar-se com ele no quarto a dizer-lhe que aquilo eram brincadeiras do papá, para não levar a sério, nem repetir aquele palavreado.

Certo dia, estavam os três à mesa, a mãe acabara de sentar-se. Como habitualmente, fizera tudo sozinha, o jantar, a cozinha arrumada que Bernardino não queria ninguém à mesa com a casa de pantanas, a mesa posta, as sobremesas prontas, a sua comida quase fria, o marido e o filho quase comidos e bebidos. E assim que se sentou, Bernardino atacou:
-Traz-me os palitos!
Num momento de cansaço e inusitada ousadia, Maria das Dores respondeu-lhe, educada, mas declinando o pedido:
-Ai, Bernardino, vai lá tu que ainda agora me sentei.
As costas da mão dele voaram e assentaram-lhe com violência tal que a senhora caiu desamparada. Bernardino percebeu o ar perplexo do filho e disse-lhe como quem ralha:
-E tu vê lá se aprendes a ser homem. Homem que é homem não admite certas coisas.
E quando Mário Só faz menção de levantar-se para ajudar a mãe, foi impedido por verbal e inequívoco comando:
-Deixa-te estar no teu lugar! A tua mãe sabe levantar-se sozinha.
Mais tarde, Bernardino abordou o miúdo:
-Mário, ouve o pai, o pai gosta muito da mamã, mas a vida é difícil, tem de haver rigor e respeito e o que hoje te pode parecer mal, amanhã vais perceber e valorizar, o pai não faz nada que não seja para bem da mamã e de ti, percebeste?
-Sim, papá.
-Então vá, vai lá dormir.
E Mário Só foi deitar-se e adormeceu nessa noite anestesiado pela violência dos gestos do pai. De manhã percebeu que a mãe estava marcada na face e deu-lhe um abraço mais demorado. Maria das Dores percebeu e recuperou a vontade de viver.

Enquanto andou na escola, Mário Só foi um miúdo submisso e cumpridor, mas sem qualquer ponta de imaginação. O medo, por vezes, tolhe as almas e elas, por defesa, encolhem-se e podem nunca chegar a nascer para o mundo. Mário Só era um jovem profundamente respeitador, mas nunca soube o que era o respeito. Encolhia-se por medo e foi por via desse mesmo medo e desse encolhimento que nunca foi aluno para além do sofrível. Aos dezasseis anos, assim que pôde, saiu da escola e foi trabalhar de servente para as obras. E foi aí que aprendeu a fumar um cigarro, a beber meia dúzia de minis numa tarde, a puxar pelo cabedal, a erguer a espinha e a trabalhar a vida. Sempre submisso, quase sempre discreto, a evitar os palavrões que usava de quando em vez e com parcimónia só para que ficasse claro que era tão homem como os outros. E começou a sair à noite, sobretudo ao fim de semana e uma dessas noites trouxe-lhe o primeiro corpo de mulher. Pago, bem entendido, mas, ainda assim, a melhor oferta que o Universo e a vida lhe haviam feito em quase vinte anos de existência. Cedo se apercebeu que transportar era com ele. O carro de mão, o empilhador do armazém de construção, a moto do Joaquim, mais tarde, uma carrinha de caixa aberta, muito velha, que o empreiteiro usava para materiais de menor porte. Era rápido e eficaz nas suas escapadelas ao armazém para ir buscar vinte e cinco quilos de cimento cola, uma caixa de azulejo que tinha faltado nas contas, são tramados, os cortes, geram muito desperdício, duas pontas de ferro de doze, meia palete de blocos. Um dia, a polícia mandou-o parar e ele parou e respondeu a tudo com verdade e submissão e o patrão viu-se e desejou-se para se safar da enrascada de ficar com a carrinha apreendida e uma multa monumental. Propôs pagar-lhe a carta e ir descontando no vencimento, mês a mês, em pequenas parcelas. Mário Só sorriu e aceitou. Não falhou o código e menos ainda a condução. Depois, quem o queria ver, era montado na carrinha velha a acartar materiais de um lado para o outro. O próximo passo que lhe pareceu lógico foi tirar a carta de pesados e, no mesmo dia em que a conseguiu, teve uma oferta de emprego. Pediu um avanço para pagar uma dívida. Deram-lho e ele foi ter com o empreiteiro e acabou de pagar o que lhe devia. Puseram-lhe um carro pesado nas mãos, um mapa, uma listagem de fornecedores e clientes e a sua tarefa era ir buscar e distribuir caixas de bacalhau. Não tinha horário. Tinha fretes por dia. Se os acabasse cedo, saía cedo. Se os acabasse tarde, saía tarde. Descansava um dia por semana e recebia dez vezes mais do que a acartar baldes de massa e carros de mão de areia nas obras. Alugou uma casa velha e pequena onde ia dormir e via televisão nas folgas. Passava algum tempo em bares frequentados por camionistas e os seus afetos entregava-os às prostitutas de beira de estrada. Um dia estranhou porque uma delas segurou-lhe a cabeça entre as mãos e disse:
-És só um menino cheio de medo.
Ele estremeceu:
-Que dizes?
-Esquece. Não é nada. Eu tenho a mania que conheço os homens pela maneira como…
-Bebeste?
-Sim, bebi! Que parvoíce a minha, estar para aqui a dar conversa a clientes. Estou paga, estás servido, até à próxima, se a houver.
Passou a procurá-la. Encontrou-a umas poucas de vezes. Gostava da forma como ela lhe acariciava a nuca enquanto ele suava em cima dela e gostava, sobretudo, dela ter sempre uma palavra no fim. Uma provocação. Uma observação.
-Olha lá, já pensaste em ter uma namorada a sério?
-Já.
-E…
-Não sei o que dizer, não sei o que fazer… e esta vida de um lado para o outro com o camião também não ajuda…
-Tens medo das mulheres?
-Não. Tenho medo de mim ao pé das mulheres.
-Tu é que sabes, mas isto não é vida.
-A tua?
-Não. A minha faz todo o sentido. Escolhi-a. A tua! A tua é que está uma baralhada. Não te percebo, miúdo, não te percebo.
-Não há nada para perceber. Sou um tipo burro que gosta de conduzir e teve a sorte de conseguir ganhar dinheiro com aquilo que gosta de fazer.
-Não sei… há qualquer coisa baço no teu olhar…

Nunca mais o viu. Nem poderia. Ele emigrou. Um dia, a mãe, com quem falava de tempos a tempos, a quem mimava às escondidas do pai que decidira não rever desde que fora trabalhar, disse-lhe com esperança na voz:
-Tenho uma novidade.
-Ai sim? Conta.
-O tio António perguntou por ti.
-O da Suíça?
-Sim. Queria saber como estavas e eu disse que bem, que estavas um homem, tinhas trabalho, eras independente, e ele perguntou o que fazias e eu contei um pouquinho da tua história, mas isto já foi há tempos…
-E só agora me contas?
-Na altura não dei importância, mas esta semana ele voltou a ligar, diz que tem lá trabalho para ti, que apareceu lá um emprego de motorista, acho que é para andares com um senhor que é advogado, carro bom, alojamento e alimentação e o ordenado é muito melhor do que aqui… querem um português. Dizem que somos de confiança e tio conhece-o e falou em ti…
-Isso é a sério?
-É. Achas que a mãe gosta de dar-te esta notícia? Vais para lá e nunca mais te vejo, mas o teu bem é o meu bem e se tu fores para melhor, eu fico feliz…
-Dá cá um beijinho.
Mário Só abraçou a mãe, beijou-lhe as faces e poucas emanas depois desembarcou em Genebra.

O salão está escurecido. É banhado por ecos de luz emanada da mesa central sobre a qual pende uma lâmpada longitudinal que ilumina o pano verde. As bolas está já muito distribuídas. Por cima de um sussurrar abafado, ouve-se o silêncio que invade a sala. Madalena está debruçada sobre a mesa de snooker, o taco na mão direita assente sobre os dedos da esquerda que ela apoia na mesa. É preciso que a bola branca vá ao fundo da mesa tabelar com efeito e volte para trás a empurrar a bola preta para dentro do buraco no mesmo topo onde se encontra agora a bola branca, mas no canto oposto. Estão separadas por uma bola inoportuna e será preciso arriscar esta longa viagem. A branca já lá vai, Madalena ergue-se, , respira fundo e reza para dentro. Se falhar é o seu fim. Se ganhar, são quatro mil francos. Uns meses a respirar melhor o quotidiano, alguns bens fundamentais para as crianças. E a bola rola serena, quase lenta, a sala está suspensa da sua trajetória, o adversário e a assistência esperam quase impacientes. Nunca uma mulher havia participado no torneio de Genebra, quanto mais ganhá-lo. A bola já encontrou a tabela lá ao fundo, faz a viagem de regresso descrevendo um vê. Falta saber se é um vê perfeito. Ela aí vem…

A vida tem sido difícil. Não lhe tem dado tréguas. Madalena decidiu procurar todas as saídas, experimentar todos os caminhos. Enfim, quase todos. Pediu autorização para ficar meia hora a treinar numa das mesas de snooker depois de fechado e limpo o pub. Só pelo facto de ser tão pouco habitual ver uma mulher jogar, foi-lhe concedida permissão. E ela ficava, no fim de um dia de trabalho, espreitando tabelas, traçando percursos, ensaiando efeitos. Um dia pediu dinheiro emprestado ao patrão para se inscrever num torneio, era ao sábado, ao final da tarde, sem conflituar com o seu horário de trabalho. Ele não lhe emprestou o dinheiro, pagou-lhe a inscrição:
-Pago para ver até onde vais.
O prémio contemplavam os primeiros quatro classificados. Madalena terminou essa longa jornada em quarto lugar, fez questão de devolver o dinheiro da inscrição e guardou o resto. Era pouco. Para os outros. Para ela e os seus meninos representou imenso. Mais três competições deste tipo nos primeiros quatro lugares e poderia inscrever-se no torneio de Genebra. Jogou cinco para conseguir a qualificação. Sempre pedindo e devolvendo a verba da inscrição. Da única vez que não chegou ao prémio, pagou com horas extra. Via um pouco menos as crianças, mas o torneio de Genebra rendia quatro mil francos. Treinou mais intensamente nos últimos tempos. Um dos frequentadores do pub, que ainda conhecera e confraternizara com Kyle, ofereceu-lhe um estojo com um taco desmontável:
-Tome, nunca fui bom nisto. Ganhe o torneio por nós, pela malta aqui do bairro.
Sabia que teria de estar ao seu melhor nível para chegar à final e, chegando, tudo poderia acontecer. O seu fraco… o seu fraco era ter pena do adversário e, por isso, falhar em momentos cruciais. O patrão ralhava sem cessar:
-Tens de manter o nível até ao fim, a precisão na tacada, o instinto de vitória, não podes amaciar, desfaz os tipos, imagina que são teus inimigos, pensa nos teus filhos, faz o que quiseres, mas não tenhas pena dos gajos!

À medida que se aproxima da bola preta, a branca perde velocidade, vai acariciá-la, terá de ter ainda a força suficiente para empurrar a outra que está a meia dúzia de centímetros do buraco… toca-lhe de mansinho, a preta desliza suavemente, a direção é perfeita, chega junto do buraco e parece parar, hesita, suspende-se como a respiração da sala e… tomba! Está lá dentro! A sala explode em aplausos, o patrão vem abraçá-la, Albertina corre para ela, segura-lhe a cabeça entre as mãos enquanto grita, Conseguiste! Conseguiste! Até o homem que emprestou o nome a Jacob a veio felicitar. Sessão de fotos e entrega do prémio, garrafas a salpicar champanhe, as felicitações do adversário. Madalena espera que os ânimos acalmem um pouco e vai arrumar o taco no estojo. Estava de costas para a multidão em festa quando sentiu uma mão no seu ombro. Era Mário Só.
-Parabéns, Madalena.
-Obrigado, Mário.
E não foram precisas outras palavras, pendurou-se no pescoço dele e beijou-o apaixonadamente com o coração a bater forte como não julgara até esse dia que pudesse voltar a acontecer. Daí a seis meses estariam casados e daí a outros seis divorciados. Foi simples e fulminante a história.

Foi quando fazia uma jogada de precisão. Baixou-se sobre o tapete verde da mesa. Tinha a bola branca alinhada com a preta. Era uma tacada distante mas limpa. Só necessitava de uma pancada forte, seca e precisa. Olhou a bola branca, aqui perto, moveu o taco para a frente e para trás com vigor em movimentos de aproximação à bola, levantou os olhos sem levantar a cabeça e procurou a preta ao fundo da mesa para traçar a linha imaginária que as haveria de unir e, por cima dela, ao fundo da sala, em visão enevoada e periférica, a zona pélvica dele, do adversário que assistia suspenso aos seus movimentos. Num relance, lembrou-se de que Kyle chamava àquilo, na intimidade, o “pack” ou ainda “um rei e dois súbditos”, levantou um pouco mais o olhar e encontrou o tórax definido e os braços musculados encimados por um olhar verde e cristalino cheio de promessas. Ainda não havia reparado nele. Aquele olhar continha promessas de risco e a vida tem sido tão dura e tão repetitiva que um pouco de risco só poderia ser o sal que lhe vinha faltando. E desceu-lhe um calor de desejo que depois lhe aflorou à cara, era inacreditável, tanto tempo depois de ter feito amor pela última vez, emerge-lhe na mente um pensamento erótico que lhe rebenta na face no meio de uma jogada que valia cem francos. Foda-se!, pensou. Puxou o taco atrás, bateu a bola. Falhou. Ele concluiu o jogo com serenidade e no fim, quando os presentes faziam conversas e desenhavam teorias acerca do que poderia ter acontecido, ele veio felicitá-la:
-Parabéns. Jogou muito bem.
-Mas perdi.
-Pois… essa foi a parte que não percebi.
-Claro que percebeu. Você colocou-se à frente do meu campo de visão para me distrair.
-Não sabia que constituía distração para si.
-Na altura constituiu.
-E agora?
-Agora, depende do que disser…
-A única coisa que me ocorre dizer é que não ganhou o melhor jogador, você joga muito melhor do que eu, talvez lhe falte certo instinto assassino.
-Pois, mas eu sou mãe de duas crianças.
-Pense que o que está a fazer salvaria a vida delas.
-E salvaria…
-Ah… joga pelo dinheiro.
-Entre outras coisas.
-Levante o prémio. Você mereceu-o.
-Jamais! Nunca aceitei uma esmola, nunca recebi nada que não tivesse conquistado.
-Compreendo, mas posso pagar-lhe o jantar?
-Se não tiver melhor companhia…
-Tenha ou não tenha, neste momento, não quero outra coisa que a honra da sua companhia.
-Disse as palavras corretas, senhor…
-Mário Só.
-Mário. Tratei-o por senhor porque não o conheço, nunca fomos apresentados.
Mário Só soltou uma gargalhada e acrescentou:
-Pode e deve tratar-me só por Mário, mas não foi isso que eu quis dizer quando revelei o meu nome. Eu chamo-me Só de apelido.
-Ah! Mário Só!
-Exato! E a senhora…
-Só Madalena.
-Mau…
-No meu caso, o só era para não usar a senhora…
Jantaram. Madalena revelou-lhe que estes pequenos torneios no pub eram uma simpatia do patrão para ela ter com quem treinar uma vez que estava para inscrever-se no torneio de Genebra. Mário Só confessou-se admirador da sua forma de jogar e custasse o que custasse, estaria no torneio para apoiá-la. Levou-a a casa. Despediram-se educadamente e com algum pudor e passaram a conversar com regularidade no pub, sobretudo, porque ele esperava pela hora dela sair e levava-a a casa. E foram partilhando o que pensavam da vida, algumas coisas sobre os seus percursos até chegarem ali. Ficaram amigos de conversa com o desejo latente não consumado por prudência de ambos e particular contenção dele. As suas vidas haviam sido demasiado complexas para acreditarem, assim, de repente, no amor e uma cabana. Andaram neste bailado das palavras e das conversas cúmplices cerca de seis meses até que um dia Mário Só se encheu de coragem e lhe disse:
-Madalena, tu tiveste a tua vida, eu tive a minha, já percebemos que nos entendemos, que gostamos da presença um do outro, não quero desconcentrar-te do torneio de Genebra, mas não achas que merecemos um pouco mais do que conversar à noite depois do teu trabalho?
-As conversas são boas…
-Por isso mesmo, porque são maravilhosas, porque és quem és, porque sou quem sou… pensa!
-Já pensei.
-Já pensaste?!
Mário Só não conhecia a Madalena determinada, decidida e até impetuosa que o leitor vem conhecendo e não sabia, também, que esta mulher estava ansiando mudança e risco. Por isso se surpreendeu com ela:
-Estás a pedir-me em casamento?
-Talvez não tenha usado as melhores palavras, mas queria ir para aí.
-Faltam três semanas para o torneio. Se eu ganhar, beijo-te e casamos.
Mário Só ficou perplexo. Será que tudo não passava de um jogo?
-E se não ganhares?
-Beijas-me tu e a seguir casamos.
O homem respirou de alívio. Abraçaram-se. E foram para suas casas sonhando acordados.

Mil novecentos e noventa e oito. De Portugal chegam ecos de uma exposição internacional de grande impacto. Em Genebra, Madalena ganha um torneio de snooker , beija um homem e casa-se recatadamente. Só alguns amigos e familiares de ambos a presenciarem o momento. A mãe de Mário Só chora de alegria, Albertina vive numa intrigante e saudável desconfiança em relação ao rapaz das falas mansas, Jacob e Mariana parecem conviver bem com a presença do novo homem da casa. O quotidiano é desafogado e feliz sem ser apaixonado, mas, honestos sejamos, nunca se confessaram paixões entre estes dois. Ele trabalha. Ela trabalha, deixou de novo o pub, fica com mais tempo para os miúdos e à noite pode continuar, agora no conforto do lar, todas as conversas que havia iniciado com Mário Só quando ele a vinha pôr a casa após o turno nu pub. Aos fins de semana passeiam e dedicam-se a dar algumas alegrias aos miúdos. Ao domingo, Madalena entra na cozinha e prepara uma refeição esmerada. Foi num desses domingos, durante uma dessas refeições especiais. Madalena andava numa roda viva a preparar tudo, estava impaciente, as coisas na cozinha não correram como esperara. Mariana, normalmente uma ajuda preciosa, estava impaciente e até um pouco rabugenta, Jacob agia fazendo justiça à condição de criança, batia com os talheres nos pratos e gritava que queria comida, não era de birra, mas enervava. Madalena conseguira servir a refeição, mas a sobremesa complicara-se  e ela andava para cá e para lá, Mário Só estava irritado com aquela inusitada barulheira à mesa de uma refeição que costumava ser tranquila e não comera descansado. Junto ao final da refeição, por entre o barulho e a movimentação atarefada de Madalena, disse:
-Trazes-me os palitos?
-Não posso, levanta-te e vai buscá-los.
Ele franziu o sobrolho, levantou-se contrariado e foi. Poderia não ter-se cruzado com ela e tudo teria sido diferente, mas cruzou-se com ela na cozinha:
-Podias ter levado a merda dos palitos à mesa.
-Podias ter levantado o cu da mesa para ajudar.
Ele já tinha passado por ela quando ouviu a resposta. Uma coisa antiga e má, uma semente ruim de gestos impróprios, acordou em si, cresceu, fez-se gigante no seu peito:
-Vê lá como é que falas comigo…
-Como tu mereces.
As costas da mão dele rebentaram-lhe os lábios, o tabuleiro de vidro que tinha nas mãos caiu ao chão, ela deu dois passos desamparada, ele cresceu para ela e esbofeteou-a quantas vezes lhe apeteceu. As crianças fugiram para o quarto, ele levantou a mão de novo mas apercebeu-se de que ela já não estava consciente. Saiu de casa. Só voltou à noite. Já não encontrou ninguém. Madalena acordou. Olhou em volta e tudo lhe parecia irreal. A vida voltara a testá-la, a surpreendê-la. Havia entre ela e as forças da natureza humana este constante medir de resistência. Estava cansada. Sangrando dos lábios. Colocou-se de frente para o espelho do guarda fatos toda nua e fotografou-se. Telefonou a Albertina. Colocou as coisas mais essenciais em dois táxis e enquanto a avó levou as crianças para sua casa, Madalena foi à polícia e apresentou queixa. Mário Só não negou nem rebateu as acusações. Foi condenado a serviço comunitário, não aproximar-se menos de quinhentos metros da residência de Madalena e a pagar-lhe uma indemnização imediata. Ou o faria com meios próprios ou o Estado o faria por si e Mário Só ficaria devedor do Estado com juros. Pagou com dinheiro próprio. Madalena abriu uma conta separada da sua conta à ordem e considerou aquele dinheiro um findo para a educação das crianças e a sua própria. Pressentiu que estas coisas aconteciam por deformação de caráter, mas também por falta de formação e não quis, nunca mais, viver dificuldades por via da falta de formação. Voltaram os dias difíceis, as refeições parcas, os recursos escassos, mas, agora, Madalena sabia que tudo isso tinha um fim à vista. O tempo de concluir o curso técnico de contabilidade e administração em que acabar de matricular-se. Era um curso de cinco anos, mas o sistema suíço permitia que pudesse fazer-se em menos caso os estudantes se auto-propusessem para exames. Madalena traçou um plano para concluir o curso em três anos. Era arrojado. Exigia um duplo sacrifício. Ter de estudar mais horas e não poder trabalhar no pub. Era para isso, para suprir a falta da verba que daí advinha, que o dinheiro da indemnização de Mário Só serviria. O seu coração ficaria marcado para sempre pela desilusão, mas a sua dignidade mantinha-se intacta. A sua batalha com a vida continuava. A primeira vez que casara, a doença levara-lhe o príncipe e deixara-lhe um filho como resgate desse amor. A segunda vez que casara, a violência trouxera-lhe uma desilusão mas trouxera-lhe uma lição. Dependeria sempre e só de si. Seria, enquanto vivesse, absolutamente livre. Nada valia a hipoteca do mais precioso bem da Humanidade. Estava aberta a amar, sim, agora mais do que nunca, mas sem preconceitos, sem papéis, sem formalidades, só com as pessoas que quisessem amar tanto e tão livremente como ela. Qualquer homem que a quisesse, que desejasse o seu amor, teria de respeitar a sua liberdade. O homem que não compreendesse isto, não poderia amá-la.

Madalena não voltará a casar. Amará de novo. Sempre com a mesma entrega que Kyle lhe ensinara e sempre com a liberdade que Mário Só a levara a compreender como imprescindível e intocável. É sinuosa, a vida, os caminhos que percorremos pelas nossas próprias passadas levam-nos, por vezes, a lugares e pessoas surpreendentes. O pensamento de Madalena em relação ao amor e a quem pudesse merecê-lo havia-se centrado, naturalmente, em homens e, contudo, seria uma mulher, a primeira pessoa a merecer esse amor. Marcelle Deschamps.

Foi na faculdade. Madalena matriculou-se no regime noturno para poder trabalhar de dia e, não obstante o cansaço de um dia de trabalho, tirava apontamentos que nem uma louca. Tentava captar tudo o que era dito, registar todas as demonstrações, pedia aos professores para colocarem os cálculos no quadro. Um dia, uma mulher alta e bem constituída, longe de magra, mas não gorda, de cabelos loiros a derramarem oiro sobre os ombros, tentou ajudar:
-Não precisas correr atrás dos apontamentos dos professores, está tudo disponível na reprografia.
-É gratuito?
-Não.
-Então tenho de correr atrás dos apontamentos dos professores.
Mais palavras não foram ditas porque não foram precisas. No dia seguinte, Marcelle aproximou-se dela, estendeu-lhe com discrição um saco escuro, e disse:
-Toma, são os deste semestre.
-Obrigada. És muito generosa, mas não aceito nada de ninguém. É uma questão de dignidade.
-Parece mais uma questão de orgulho.
-Admito que possa parecer, mas não é essa a razão.
-A vida tem-te tratado mal?
-Tem os seus momentos, mas quando me castiga, exagera sempre na força.
-Faz assim, guardas os apontamentos, estudas por eles e no próximo semestre oferece-los a alguém…
-É a mesma coisa.
-Não é não. A capacidade de dar dignifica o que se recebe.
-E porquê este gesto? O que queres de mim?
-Irra, a vida tem-te tratado mesmo mal!
-Como disse, teve os seus momentos…
-Olha à nossa volta. O que vês?
-Homens.
-Exato. Uns privilegiados. Nascem com uma coisa pendurada entre as pernas e estão automaticamente em vantagem em todos os campos…
-E…
-E eu pretendo equilibrar um pouco a balança. Considera que o meu motivo é solidariedade feminina. Devemos ser um caso de estudo, duas mulheres a estudar contabilidade na mesma faculdade…
-Com uma condição.
-Qual?
-No próximo semestre ajudas-me a escolher a beneficiária.
-Feito.
Foi o suficiente para começarem a conversar com frequência. Entre as aulas, nos trabalhos de grupo. Começaram por partilhar conhecimento e ideias e pistas de solução para problemas, primeiro, e depois, tudo o que havia para conversar entre duas mulheres, deve ter sido conversado por Madalena e Marcelle. Passaram a encontrar-se também ao fim de semana para estudarem e fazerem trabalhos. Marcelle conheceu as crianças e ajudava a cuidar delas nesses dois dias de descanso que dão sentido ao resto da semana e rápido se apercebeu que Madalena se deslocava de casa para a escola e da escola para casa caminhando um longo troço do percurso e fazendo o restante de autocarro. Era uma forma de poupar. Começou a levá-la, Conversamos no caminho, disse, e de qualquer forma não preciso desviar-me. Foram trocando histórias. Ambas trabalhavam, ambas adoravam a contabilidade e a gestão, ambas eram adeptas do rigor e acreditavam no controlo dos números. Constituíam, uma para a outra, uma interlocutora motivante e desafiante das suas próprias capacidades, uma interlocutora válida que obrigava a outra a estar atenta e a não falhar. Tiveram ambas excelentes notas no final do primeiro semestre. Numa noite fria, coberta pelo manto branco da neve, em que levou Madalena a casa, estavam já à porta, ainda dentro do carro, e Marcelle aconchegou-lhe as mãos entre as suas como que para aquecê-las:
-Tens as mãos frias.
-Em Portugal diz-se que é amor todos os dias, mas deve haver algum problema com esse provérbio…
-Ou não.
E puxou-a para si e beijou-a nos lábios. Madalena afastou-se num impulso:
-Eu não sou…
-Não és humana?
-Humana sou, só que nunca…
-Nem eu. E também não sou o que tu não és e também sou humana e será preciso outro requisito, uma palavra que te certifique, um rótulo, para beijares quem amas?
-Acho que não.
Aproximaram-se lentamente e encostaram os lábios rosados e sentiram o calor e a emoção que passava através deles. Não falaram do que acontecera. Permaneceram amigas verdadeiras e cúmplices mas não voltaram a beijar-se nem a trocar qualquer outra carícia do corpo. Era como se as suas almas se bastassem. Pelo menos, até encontrarem o homem que viria a pôr à prova todos os seus limites. Essa fantástica criatura que completaria o inseparável grupo dos três emes.

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Crónicas de África – Uma Semana em Maputo

Crónicas de África – Uma Semana em Maputo

Maputo, 19 de maio de 2013

Tenho-o dito e repito, sem preconceitos, a experiência de viver em Maputo tem tido as suas dificuldades, mas é absolutamente fantástica. Uma das muitas coisas a que temos de habituar-nos é o ritmo. Os dias acordam muito cedo, a partir das 4, 4:30 e também se escondem cedo, por volta das 20 é hora de começar a adormecer e às 22 é muito tarde. Não tem tanto a ver com as horas, mais com o ritmo dos dias.

Por outro lado, também a sequência de acontecimentos, a forma como a vida se encadeia, é muito diferente daquilo a que estamos habituados na Europa e, em particular, em Portugal. Não é pior, nem melhor. É, simplesmente, diferente. Vejamos como pode ser uma semana em Maputo. Este exemplo é diretamente retirado do filme da minha vida, logo, foi real e efetivamente vivido.

Segunda Feira
– Aulas.
– O carro começa a ter dificuldade em pegar.
– Falta a água à noite. Nada a fazer.

Terça Feira
– O diagnóstico da falta de água revela inequivocamente que a bomba que leva a água do depósito no r/c, que a recebe da companhia, e a bombeia para o depósito no terraço, no 4º andar, donde descerá para a casa, no 1º andar, queimou. Literalmente. Contacta-se o senhorio que faz o favor de contactar o eletricista/canalizador que, às 7:30, informa que chegará às 9:30.
– Almoço no Piri-piri. Frango de churrasco, o que havia de ser?

– Às 14:30 chega o canalizador/eletricista, um tudo-nada atrasado. Informa que a reparação demora 30 minutos.
– Levar o eletricista/canalizador a casa para trazer as chaves.
– Comprar uma bomba nova.
– Petisco ajantarado com o Nunes e uns amigos. Chouriço assado com vinho de Reguengos. Faz-se diagnóstico do carro. Precisa nova bateria.
– Às 21:30 o arranjo de 30 minutos da bomba que leva a água do r/c para o terraço a fim de baixar ao 1º andar é remetido para o dia seguinte.

Quarta Feira

– Comprar bateria nova. A pessoa que a vende substitui a bateria velha por uma nova.
– Em casa, arranjar o arranjo da bateria refazendo as ligações que estavam mal amanhadas.
– Aulas.
– À tarde falta a luz.

– O fornecimento de luz é retomado ao princípio da noite.
– Prossegue o arranjo da bomba de água. Banho com um balde e um púcaro.
– O Benfica perde com o Chelsea.

Quinta Feira
– 48 horas depois de ter sido diagnosticado um arranjo de 30 minutos recupera-se o fornecimento de água.
– A buzina do carro começa a apitar sozinha. Ao cabo de três vezes, dou-lhe um valente murro. Nunca mais se manifestou por vontade própria.
– Aulas.
– Preparação do Sarau das Línguas: audições.
– Falta o sinal de televisão. Depois de verificados os cabos, contacta-se a empresa que fornece o serviço de televisão. Vamos já!

Sexta Feira
– Pagar ao eletricista/canalizador.
– Aulas.
– Jantar da equipa que coordena os trabalhos de preparação do Sarau das Línguas.
– 24 horas depois de ter sido suspenso sem aviso, retoma-se o fornecimento de serviço de televisão.

Sábado
– Compras.
– Corrigir testes.
– Skype com a família.
– Dormir e sonhar com um domingo tranquilo que começará, sem dúvida, com um banho retemperador.

Domingo
– Falta a água. Pânico geral. Telefonemas diversos para o senhorio e eletricista/canalizador. Uma hora depois, assistido por telefone, descubro que ele tinha enchido o depósito do terraço, tinha ligado a bomba nova, mas… tinha-se esquecido da torneira de segurança fechada. Abre-se a torneira de segurança. O líquido precioso jorra avonde. Banhos. Finalmente.
– Pequeno almoço no Continental.
– Passeio de carro e a pé pela marginal. Paisagem belíssima.
– Testes.
– Intervalo dos testes para fazer esta publicação no MPMI.

Se eu podia viver sem ser em Maputo?
Poder, podia, mas não era a mesma coisa!

E, por fim, algumas imagens que acompanharam a loucura de uma semana normal na Capital moçambicana:


Poloni faz um amigo.
Se não fosse o vidro, brincávamos mais.


Marginal de Maputo.


Leitura matinal junto ao mar.


Marginal de Maputo.


Vista da praia da marginal de Maputo onde
Poloni costuma dar umas corridinhas.


Bóia conhecida por Árvore de Natal.


Passeio domingueiro, pela manhã, com Poloni.

jpv


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O Tecido da Vida


As Cores da Capulana

O Tecido da Vida

É um pano colorido,
Enrolado ao corpo,
Às formas cingido.
Tem a luz da manga
E a forma da papaia,
Pode ser teu lenço,
Mulher,
Pode ser tua saia.

Saíste na rua,
No Sábado,

E foste comprar
Tua capulana,
Na Guerra Popular.
E logo ali,
Na porta da loja,
Te fez a bainha,
Com dedo certeiro
E uma máquina antiga,
O hábil costureiro.

Cobres a tua vida,
E quando vens de parir,
Colas ao teu corpo
Um menino a dormir.
Enrolado com o mesmo colorido
Do tecido em que tinhas nascido.

Tua capulana é teu mundo,
Teu limite
E tua fronteira.
Enrolam-te nela
De pequenina,
E enrolada ficas
A vida inteira.

jpv
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Aceda à secção “As Cores da Capulana”


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Histórias a Preto e Branco – A Arte da Vida

Histórias a Preto e Branco

A Arte da Vida

É um homem robusto, tem o carvão na pele. Porque nasceu com África nas veias e porque trabalha nas minas. Vê pouco o céu. E quando o vê, normalmente é de noite. É um tipo atarracado, com uma estrutura óssea larga e rija como o ferro. Ganha pouco. Melhor que muitos. O problema não é esse. São os filhos. Ele tem vontades loucas no ventre. Sai da mina, cruza-se com as raparigas nas ruas e quando chega a casa, enterra o desespero em Recebida e faz-lhe filhos. Nem sabe bem quantos tem. Foram nascendo. Deus os trouxe e a alguns os levou. Agora mesmo, enquanto empurra um carro de mão carregado de material, sabe que ela deve estar-se aliviando de uma barriga do tamanho da lua. Os filhos saem de casa cedo. Aí pelos três anos já dançam nas ruas à espera que caia uma moeda de um passante que lhes ache gracinha. Não dá para compreender esses brancos. Lutam tanto pelo dinheiro e depois não o guardam. Jogam-no na rua a quem o pede. Ele não é assim, prefere gastá-lo em Manica fresquinha a escorregar pela goela abaixo e só não gasta mais porque Recebida precisa dele. A última vez foi para comprar uma esteira.
-Vou comprar uma esteira, Carvão.
-E para quê você quer mais uma esteira, Recebida?
-Ora, teu filho vem aí.
-Qual?
-Sozinho.
-Já temos um filho chamado Sozinho?
-Vamos ter…
-Ah… está falando dessa barriga aluada.
-Aluada?
-Sim… parece que engoliu uma lua.
-Mas não é uma lua que vai sair dessa barriga. É a sua semente crescida, Carvão.
-E porque lhe vai chamar Sozinho?
-Ora, porque vai nascer sozinho.
-Vai? Está a pedir-me que venha aqui ajudá-la?
-Xiiii, nessas alturas homem só estorva. Eu mesma faço tudo. Quando ele começar a me pedir para sair, eu aqueço uma água, coloco no alguidar, abro a esteira, me sento nela, me inclino para o lado e espero a sua chegada. Dessa vez serei só eu e ele. Os outros já vão andar nas ruas a semear vida e a colher o que Deus der…
-Recebida, você sabe mesmo ter um filho sozinha?
-Esse é o nono. Acho que já deu para aprender.
-Recebida, porque você compra sempre uma esteira nova para parir?
-Porque eu sei, Carvão, que essa é provavelmente a única coisa nova que vão ter na vida!

Recebida é mais alta do que Carvão. E sua estrutura é mais fina. Sua pele tem um tom mais suave. Mas ela não a pinta com o trabalho das minas. Planta couve, alface, tomate, pepino, arranja a terra, limpa as ervas, cuida da casa e quando amanhece vai vender no mercado de Ribáué. Hoje está sentada de lado numa esteira. E Sozinho está nascendo. Assim que o limpou, percebeu que era diferente dos outros. Atarracado como o pai, mas de traços elegantes como a mãe e, sobretudo, tranquilo. Nem chorou muito e logo se calou e se agarrou na mama. Com o passar do tempo se percebeu que tinha o olhar profundo como se quisesse ver as coisas para além delas próprias. E quando o tempo avançou, não saiu para as ruas, ficou ajudando a mãe com a horta. Gostava de mexer nas coisas, tocá-las, senti-las, perceber a textura, as formas, onde começavam e acabavam, e olhava, olhava, olhava como se quisesse engolir o mundo com os olhos. Às vezes ficava parado a olhar um tchova passando, outras vezes, a frente de uma casa, outras vezes, uma pessoa. E ia no mercado com a mãe vender e ficava olhando as roupas das pessoas, a forma como se movimentavam. Um dia, chegou um cliente para comprar pimentos e trazia pela mão uma criança que trazia pela trela um cão. Sozinho segredou no ouvido da mãe para que ninguém escutasse, não fosse ser pecado:
-Eu sei fazer aquilo.
-O qué?
-Eu sei fazer aquilo, minha mãe. Só não sei como. Eu sei aquelas formas e aquelas curvas.
-Tu estás maluco, menino?
-Não, mãe. Estou cheio de coisas na cabeça que querem sair.
Recebida quase desmaiou. Contou para a vizinha Problema que contou para seu marido, Pacífico, que pediu para ver o menino. E o analisou, e falou com ele e lhe perguntou de onde vinham aquelas ideias.
-Não sei. Nascem sozinhas na minha cabeça. Eu as tenho parido como minha mãe me pariu a mim. Sozinho. Sem ajuda.
Nos dias seguintes, Pacífico andou observando o comportamento do miúdo e uma noite bateu na porta de Carvão:
-Carvão, meu amigo, meu velho amigo, Recebida, minha vizinha, minha respeitável vizinha, eu tenho um diagnóstico. Esse filho de vocês não pode ir trabalhar nas minas como os irmãos. Não sei como você fez isso, Carvão, mas você semeou um artista e sua mulher o pariu.
-Um artista?!
-E dos bons. Assim como o Mestre Malangatana, como o Mestre Craveirinha, só não sei qual é a arte dele. Vocês sabem, os artistas são como os vulcões. Nós sabemos que estão lá, sabemos que vão explodir, só não sabemos quando nem como…
-E o que fazer?
-Posso aconselhar?
-Claro… tem cura?
-Naaa… a única cura é deixar brotar… mas pode-se procurar…
-Procurar o quê?
-O sentido da arte dentro dele..
-Fale claro, amigo Pacífico.
-Porque vocês não o levam para o Mestre Genuíno, o deixam por lá, a ver se alguma coisa daquilo o desperta, a ver se as ferramentas do Mestre lhe comunicam ideias e se as ideias dele querem sair com essas ferramentas…
-E não se paga?
-Genuíno é meu amigo de nascença, temos no corpo as mesmas marcas da guerra, é só pedir…
-Ficamos devendo-lhe esse favor…
-Devendo… eu que lhe devo por todas essas verduras e frutas que deixou no chão da minha porta todos esses anos. Estamos quase pagos.
-Quase?
-Sim, minha parte só estará paga se o diagnóstico estiver correto.

Genuíno tinha uma curva nas costas, como se toda a vida tivesse tido um peso forçando a cabeça a estar inclinada. E teve. O peso das ideias. Sentava-se num banco pequeno, colocava um pedaço de madeira entre os joelhos, pegava numa ferramenta e nascia uma zebra, um elefante, um crocodilo, um pássaro. Outras vezes, recebia encomendas mais utilitárias:
-Mestre Genuíno, dá para fazer uma cama, minha filha vai casar…
-Só se tiver arte nela.
-Pode ter.
E ele tirava as medidas, cortava o tabuado, e se dedicava a entalhar floreados e figuras na cabeceira e a tornear as pernas da cama. E eram mesas de cabeceira e cómodas e cadeiras e mesas de jantar e almoçar. Desde que pudesse levar arte… Genuíno olhou o miúdo Sozinho e gostou logo dele. Tinha a calma e a contemplação do artista. O miúdo, assim que entrou na oficina, sentiu o cheiro da madeira e da cera entrando-lhe pelas narinas, queria ver tudo e não conseguia, eram coisas demasiadas, mas uma coisa soube. Até esse dia tinha andado perdido. Meio nascido. E agora estava nascendo o que faltava, estava-se encontrando naquele cheiro de ideias paridas.
-Queres mexer nalguma coisa?
-Quero!
-Mexe.
Olhou as ferramentas, os pedaços de madeira, passou com a mão sentindo a textura da lenha, segurou num formão pequenino e num madeiro e iniciou de parir uma ideia. Era um homem com uma criança pela mão que tinha um cão pela trela. Mestre Genuíno sentenciou:
-Falta-lhe a técnica. Falta-lhe conhecer as ferramentas. Falta-lhe saber a arte do acabamento. Falta-lhe aprender muita coisa…
-Falta-me muita coisa. Quer dizer então que não sou artista…
-Pelo contrário. Tudo o que falta-lhe é muito pouco quando comparado com o que tem. Tem ideias que querem nascer. Pacífico diagnosticou bem. Como sempre. Devia ser médico de cabeças, esse lá.
O tempo passou. Passa sempre. Sozinho aprendeu as artes da madeira, as técnicas, o namoro das ideias, a forma mais apropriada de dar-lhes vida. Pagava ajudando nos trabalhos práticos de aprontar o tabuado de uma cama, as costas de um armário e quando era particularmente bem sucedido ou quando conseguia vender uma ideia em madeira, Mestre Genuíno oferecia-lhe uma ferramenta. Claro está que a porta do mestre passou a acordar os dias com pimentos, pepinos, tomates e verduras encostados. Não era um pagamento. Era uma troca. Ribáué foi encolhendo à medida que Sozinho foi crescendo. Ele queria mais e a terrinha tinha pouco para dar-lhe. Almejava o  mundo. Queria ver outras vidas, queria sentir o pulsar de outras gentes e precisava olhar o mar. Tudo junto numa palavra: Maputo! E foi. Dois anos juntando para a viagem. A mãe chorando duas perdas. A do filho que partia e a do sustento da casa desde que Carvão morrera trabalhando na mina. Sozinho confortou:
-E vou voltar para lhe levar comigo.
Foi uma viagem alucinada. Engavetado num chapa, entalado entre a generosidade das carnes de uma velha gorda e a janela da carrinha. Olhou tudo, viu tudo, comeu pouco, cheirou, sentiu. Quatro dias depois entraram em Maputo e Sozinho achou que estava noutro mundo. Que havia morrido como seu pai Carvão e tinha renascido nessa terra distante e louca. Tinha um saco consigo. E nele as ferramentas. Roupa, só a do corpo. E procurou onde dormir e procurou as oficinas da arte e não as havia. Só carpintarias de móveis. Ali, ao fundo da 24 de julho, junto à rotunda para a Matola. Começou por aí. Mas a arte corria no sangue e mesmo numa cama e numa mesa de cabeceira se mostrava ao mundo. Era outra perfeição, eram peças que contavam histórias. Passou a ser disputado e rápido conseguiu ter uma oficina pequenina só para si e um rapazinho, ajudante, trazendo as peças para a rua, pela manhã, chamando quando aparecia um cliente a enamorar-se do seu trabalho e a comprar-lhe uma peça, e a arrumar tudo de volta ao fim do dia. E expunha a arte na rua. E vendia. Um dia foi ver o mar. caminhou a avenida quase toda e depois apanhou uma chopela e disse para o condutor:
-Leva-me no mar.
Quando chegou à marginal e viu o sol rebrilhar na água desfazendo-se na areia, renasceu pela terceira vez na sua vida. Aquilo é que era arte. Era mais do que arte. Era um milagre do Universo. De novo as ideias lhe borbulhavam na cabeça e pediam para sair todas ao mesmo tempo. Sozinho concentrou-se numa imagem. Um pescador vinha saindo do mar, com água pela cintura, puxando a sua rede e na beira da praia dois meninos o esperavam de braços estendidos como que o chamando para o receber com a dádiva do pescado nas redes.

Chamava-se Estendido. Pescava desde que se conhecia. Assim que nascera, o mundo soubera-lhe a sal. Assim que ouvira, seu pai e seu avô lhe falaram do mar. Assim que andara, entrou pela água salgada dentro desafiando as ondas mansas da Macaneta. Nunca quis conhecer mundo. O mar bastava-lhe. Conversava com ele. Contava-lhe os pequenos truques que aprendia para o domar, confessava-lhe pormenores da sua vida doméstica e pedia-lhe que lhe trouxesse o peixe a tal parte à hora tal. E perguntavam-lhe:
-Estendido, como sabes sempre onde vai passar o peixe?
-Pergunto ao mar.
-E o mar diz-te? O mar fala contigo?
-Todos os dias.
-Tu emalucaste da cabeça, Estendido.
-Ah sim? Emaluquei? Então diz-me lá como sei sempre onde vai estar o peixe?
Nos dias em que não saía para o mar, Estendido sentava-se na areia, abria as pernas, colocava uma rede no meio e ia remendando, aperfeiçoando, e pensava no manuseio do barco e da vela e nos movimentos de puxar a rede. E quando cresceu e os amigos andavam espreitando as moças quando arredavam as capulanas para se aliviarem, ele continuava baloiçando no barco, ajudando o pai, conversando com ele e com o mar. E quando Deus quis levar o pai, ele continuou a entrar no barco, a desafiar sozinho o Índico azul, a pescar ao largo de Maputo, a desembarcar na praia da cidade para negociar o produto da pesca com os vendedores do mercado do peixe. Um dia, desses dias em que não saiu para o mar, Generosa veio ao seu encontro. Era pouco mais velha. Sabida, esperta e generosa na partilha da vida, mesmo a sua.
-Tu és bom.
-Não sei. Não sei o que é ser bom.
-Mas eu sei. O teu interesse é pelo mar, pelo peixe, pelos teus gestos. Devia haver mais como tu.
-E não há?
-Não sei. Eu só conheço-te…
Sentou-se ao lado dele. Colocou-lhe uma mão firme numa das coxas moldadas pelo trabalho no barco e continuou a frase suspensa…
-Podias fazer Estendidos e Estendidas em mim…
-Ora, eu não preciso de mulher. Eu não quero mulher.
-Mas o mundo precisa de ti, precisa de mais Estendidos…
-E porquê tu? Tu és generosa com todos…
-Porque eu te vi.
-Os outros também me veem.
-Naaa… os outros olham-te. Eu vejo-te a falar com o mar e acredito nessa conversa.
-Acreditas?
-Hum, hum…
-Mas eu não sei como fazer com mulher…
-É como um barco. Cada mulher tem ventos em si que lhe sopram a vontade e os gestos. Só tens de perceber essa ventania danada e orientar o barco da vida com ela. Sem contrariar de brusco para não partir, sem deixar correr desenfreada para não perder, e mantendo em forma, remendando a vela, cosendo a rede, tratando com o carinho de quem sabe que vai ser recompensado. Se falares comigo, como falas com o mar, eu vou-te responder como o mar.
-E os outros?
-Quais outros? Onde está Estendido e Generosa não cabe mais ninguém. Se me fizeres um filho aqui mesmo, na areia da praia, agora mesmo, neste instante, com o sal da tua pele no açúcar da minha, vais ver que ninguém vai vir aqui nesses momentos. Até os passarinhos vão voar longe.
Fez-se um silêncio. Estendido procurou os caranguejos na orla da rebentação. Nada. Nem umzinho desses todos que sempre andam por aí. Olhou nos olhos dela e os olhos dela conversaram com ele. E esse filho foi gerado ali mesmo. Chama-se Feito na Areia e já ajuda o pai na pescaria. Aprende rápido. Tem um irmão e uma irmã. Feito no Barco e Feita em Casa. Estendido nunca pensara que a vida poderia ser tão generosa com ele. Mas o advento de Generosa lhe trouxe milagres. A casa limpa, a roupa preparada, uma mulher para conversar nos dias em que não sai para o mar, umas coxas quentes e roliças a envolvê-lo quando o sangue aquece e a vida quer viver, um barco de vela enfunada para marear, uma rede para pescar e agora filhos para o ajudar. Estão crescendo fortes e saudáveis que dá gosto. Vai pescando ao largo de Maputo, lança rede, puxa rede, quando sai do mar, separa o pescado e dá as ordens:
-Feito na Areia leva esse no mercado e entrega para a peixeira Zubaida. O preço está feito. Traz o dinheiro. Feito no Barco, tenta vender esse aí na beira da estrada. Ata tudo com essa corda aí e pega pendurado pelo rabo. O preço é o de sempre.
E vende Peixe Papagaio, Vermelhão, Palmetas, Pargos e Chireuas. Quando aparece um Serra, leva para casa e entrega para Generosa.
-Para a mãe dos meus filhos!
-Quais?
-Como quais?
-Os Feitos ou os por fazer?
Mergulharam nos braços um do outro ali mesmo, na cozinha, o sal dele e o açúcar dela bailaram na tarde quente e húmida da Macaneta e quando a criança nasceu, o nome estava há muito escolhido. Por Fazer foi o quarto e último filho de Estendido e Generosa. Nada na vida dos outros lhe interessava, tão preenchido andava com a sua. Quase não os via. Mas no outro dia viu. Chegou à Macaneta mais cedo do que o costume e a cena era tão violenta que não pôde deixar de ver. Uma carrinha pick up branca deslocava-se na sua direção, vinda da praia, deslizava rápido e cuspia a areia do chão para o ar, lá dentro, um português gritando e gesticulando, dando murros no volante enquanto conduzia. A seu lado, uma mulher branca lavada em lágrimas, o horror espelhado na face, as mãos levantando-se tentando esconder a dor e chorava. Chorava tão alto que ele conseguia ouvi-la do lado de fora das janelas fechadas.  Quando acabou de ver,  sentiu-se feliz por ter a sua vida e não a dos outros. Nesse dia perdeu tempo olhando Generosa na cozinha, conversou com os filhos e deu-lhes conselhos para a vida. Deitou-se feliz e sereno e de manhã quando o seu barco saiu para o mar com dois jovens a manobrá-lo, o mundo não reparou que faltava Estendido nele. Só Generosa e os meninos sabiam. Ela perguntou-lhe:
-Não vais no mar, hoje, meu Estendido?
Ele não respondeu porque os falecidos não falam. Não pôde dizer-lhe que tinha vivido feliz, que tinha morrido feliz, que tinha morrido quando quisera e antes que alguém lhe pudesse estragar essa felicidade.  Não pôde dizer-lhe que não quereria, nunca, outra mulher, nem outros filhos, nem outra vida, não pôde dizer-lhe que morreu porque quis, para preservar a felicidade em vida. Não pôde dizer-lho, mas ela soube. Onde está Generosa e Estendido não cabe mais ninguém.

António Manuel Batista nasceu no Porto.  Ainda na barriga da mãe, anunciara ao que vinha. Cedo se sentiu a criança mexer e revoltava-se todos os dias e pontapeava a barriga redonda e empinada. Cresceu endiabrado. Participava em tudo o que era atividade, dava água pela barba aos professores, era dinâmico e irrequieto, impetuoso no gesto e vigoroso na vontade. Cedo se percebeu que não tinha pachorra para enamoramentos alongados e enfeitados com pormenores. Chegava ao pé das raparigas e dizia o que queria. Tinha a arte ludibriosa de ver vantagens em tudo, até numa negação, até numa derrota. Quis jogar à bola, mas cedo se percebeu que era indisciplinado. Andar à bofetada com colegas de equipa não era prática aconselhável ao sucesso no desporto. Cresceu entroncado, largo de costas e mãos amplas. Com facilidade lhe fugiam para a cara dos outros. E, contudo, tinha caráter. Sabia o que queria, quando queria, como queria e possuía a arte de descobrir como ter o que queria. Era de uma determinação férrea. Desconhecia por completo o que significava desistir. E explodia. Fosse em gestos de ternura, fosse em gritos autoritários e zangados. Quando percebeu que a escola iria ser um calvário, quis aprender algo prático, inscreveu-se num curso técnico-profissional de eletrotecnia e, assim que se apanhou com a habilitação na mão, começou a trabalhar que nem um louco. A carteira profissional chegou em pouco tempo e um emprego estável também. Não gostava de esperar que as coisas lhe acontecessem e assim que percebeu que a crise em Portugal o poderia prejudicar, assim que pressentiu a sombra do desemprego, tratou de se informar, de ver outras possibilidades. Um dia, estava a jantar com a sua doce Susana, e anunciou-lhe:
-Vamos para Moçambique!
-Hã? Estás-me a perguntar?
-Não. Estou-te a dizer.
-E já me perguntaste se eu queria?
-Se não quiseres, ficas.
Susana Vital era de Gaia. Vivia do outro lado do rio. Conheceu-o num torneio de futebol entre escolas. Quando lhe disseram que ela não era miúda para ele, António tomou-a para si em menos de um fósforo. Ela ainda resistiu. Percebeu aquela vertigem de inquietude e certa brusquidão no trato, mas admirou-lhe a coragem e a determinação. Apaixonou-se. Andaram namorando durante o tempo de escola até que ele decidiu casar e ter filhos. E teve. Dois. Um menino primeiro. Uma menina depois. Educava-os com veemência e um rigor exagerado que Susana atenuava com carinho e ternura. Amava-o a ponto de tudo. Tudo faria por ele como estava certa de que a dedicação que ele lhe demonstrava indicava que também António faria tudo por ela. E por isso aceitou ir para Moçambique. Três meses depois. António assim decidiu:
-Sei lá se aquilo é terra para ti. És flor de estufa como a tua mãe. Vou à frente. Arranjo casa. Preparo as coisas e depois segues para lá.
-Posso trabalhar… quero trabalhar…
-No início é melhor não. Temos de pensar nas crianças e é preciso alguém que cuide da casa. Quando assentarmos, trabalhas. Ganhas para as tuas coisas.
Quando Susana foi ter com ele, António tirou duas semanas de férias e mostrou-lhe Maputo, como é que a cidade funcionava, os costumes, as avenidas principais, onde ficavam as instituições. Tinha alugado uma vivenda na rua de França e contratara uma empregada e uma menina para a ajudar com os filhos. Na segunda semana levou-a Inhambane, mostrou-lhe a Praia da Barra, o Tofo, o Tofinho, a Praia dos Coqueiros. Na terceira semana divorciou-se dela. Por mais tempo que passe, por mais vida que viva, Susana não consegue esquecer-se desse dia. Já lá vão quatro anos. Tudo parece tão distante agora. Finalmente, olha para trás no tempo com alguma tranquilidade. A vida recomposta das coisas materiais e reequilibrada nos afetos. Os dos filhos e os desse homem tranquilo e pacífico que lhe entrou pela vida dentro da forma mais inesperada possível. Tudo parece tão distante… Lembra-se bem. António mostrara-lhe a cidade conduzindo frenético pelo trânsito de Maputo, levara-a ao Zambi, à Cristal, ao Mar na Brasa e depois foram a Inhambane. Ficaram na Casa do Capitão e ela queria um tempo para contemplar a baía dos flamingos e ele sempre inquieto a puxá-la para todo o lado. Dois dias depois de regressarem do passeio, levou-a à Macaneta. Atravessou a carrinha na jangada, conduziu pela areia e estacionou o carro junto à praia. Caminharam lado a lado com o mar a vir beijar-lhes os pés e quando ela se quis pendurar no pescoço dele para o beijar, ele segurou-lhe os braços e disse:
-Tu sabes que eu sou um tipo honesto. Não sou capaz de fingimentos. Tenho outra pessoa. Gosto dela. É irrequieta como eu. E gosta de mim. Eu sei que pode parecer-te repentino…
-Repentino? Tu achas que é o repente que me preocupa? Nós mudámos toda a nossa vida para esta terra! Os nossos filhos estão cá. Longe dos avós, estamos longe de tudo e de todos, eu mal me oriento na cidade, abdiquei de tudo por ti, por nós… e tu achas que me preocupa o repente… Antes fingisses, seu canalha! Antes fingisses e ao menos cuidasses da tua mulher e dos teus filhos!
Enfiaram-se na carrinha, ela ralhando com ele enquanto chorava convulsamente a sua desgraça, ele tentou acalmar-se, mas acabou exaltando-se com as acusações e breve começou a responder-lhes. Susana lembra-se com clareza da violência dessa discussão. Lembra-se das lágrimas lhe correrem pela face, lembra-se dos seus gritos, dos gritos dele, dos murros no volante e lembra-se do ar aterrorizado de um pescador, na beira da estrada, vendo-os passar com um peixe na mão. Na altura não soube o que era, nem isso interessava. Mais tarde, rememorando esses momentos de sofrimento e aprendizagem, iria jurar que era um peixe Serra. Quando a desgraça se abateu sobre si, procurou forças onde as não sabia ter. António tinha-lhe alugado um pequeno apartamento na Mao Tse Tung. Pagara três meses de renda para ela se recompor. Ela conseguiu trabalho, mas não com vencimento para sustentar aquela casa. Mudou-se para um apartamento mais pequenino nos prédios da Coop, dormiam em esteiras no chão cobertas com mantas e tapavam-se com lençóis. Deslocava-se a pé e no chapa. Mês a mês foi recuperando a força, reafirmando a dignidade e reconstruindo a vida. Primeiro, uma mesa para a cozinha, depois, pratos e talheres, depois, umas roupas de corpo. Não se importava de comprar nas calamidades. Mais tarde, já a vida lhe corria bem, e ainda lá ia. Ficara-lhe o hábito de caminhar por entre as pessoas na avenida da Guerra Popular. Depois, uns lençóis novos, depois, uma cama para as crianças, e material escolar, e uma visita ao médico num mês em que um problema de saúde lhe estragara as contas, e um frigorífico e um dia houve, dois anos depois, em que comprou uma televisão e fizeram uma festa.

A sua cama esperou quase três anos. E quando conseguiu dinheiro para ela, foi uma vitória. Como se oferecesse um presente de rainha a si mesma. Como se, erguendo o seu corpo da esteira para a cama, se levantasse do chão como no título do livro do escritor. Apanhou o chapa, levava um sorriso nos lábios, saiu na 24 de julho, mesmo ao pé dos vendedores de móveis junto à rotunda da Matola. Começou a ver camas e mesas de cabeceira e a avaliar o preço delas cotejando-o com o seu orçamento. Eram sólidas! E algumas com recorte interessante ainda que de acabamentos toscos. E deslocava-se tranquila, falando com os vendedores, tratando-os por tu. E encontrou uma que lhe pareceu diferente das outras. Era como se fosse mais do que uma cama. Era uma peça de madeira que queria contar uma história. Tinha arte. Divisavam-se figuras humanas por entre uma folhagem. Eram três casais. Um de jovens, um de adultos, um de idosos. Estava um miúdo junto à cama e ela perguntou:
-Quanto vale?
-Dez mil.
-É muito.
-Não tem desconto.
-Quem fez?
-Foi ele. Respondeu o miúdo apontando para o interior de uma pequena oficina.
Ela foi lá:
-Foste tu que fizeste?
-Fui.
-Está caro.
-Depende…
-De quê?
-De querer pagar só a cama ou a história com ela…
-É muito bonita, mas dez mil é muito.
-Quanto oferece?
-Sete e quinhentos.
-Está curto. Aumenta lá…
-Não tenho…
-Fazemos assim. Se adivinhar a história desses casais, pode levar por sete e quinhentos…
-Não são casais. É um casal partilhando a vida desde a juventude até à velhice. A Natureza é a harmonia dessa vida em conjunto…
-Xiii, não estou a lhe aguentar… pode levar…
-Toma. Estão aí oito mil.
-Eh, pensei que só tinha sete e quinhentos.
-Era margem de negócio para comprar uma cama, mas isso não é uma cama, é arte… entregas?
-Claro.

É um quarto pintado de branco. Tem uns cortinados em azul clarinho como o céu e, tratando-se de Moçambique, também como o mar. Tem pouca coisa. Uma cadeira, uma mesinha de cabeceira, uma cama com três casais envoltos em folhas a enleá-los, esculpidos na madeira sólida da cabeceira. Nessa cama está um colchão. Nesse colchão não tem lençóis. Não houve tempo. Tem só um corpo musculado e negro de um artista se entregando na carne branca de uma mulher renascida. Acaricia-lhe a pele como faz com a madeira quando lhe quer fazer nascer uma ideia. E ela mexe-se como se a ideia estivesse nascendo em si.
-Como te chamas. Sussurrou no ouvido dele.
-Sozinho. E sentiu-se nascer pela quarta vez na sua vida.

Ao fundo da cama tem uma mesinha pequenina e baixa. Em cima dela está uma escultura em madeira. Sozinho trouxe como presente para a mulher que sabe ler histórias nas imagens talhadas na lenha. É o mar rebentando devagarinho na areia, um pescador com ar feliz e realizado puxando sua rede com água pela cintura e dois meninos esperando por ele de braços estendidos.

jpv


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Diálogo

Diálogo

Um fio de vida.
Uma luz,
Breve,
Antes da morte.
Uma alma perdida,
Entregue, só,
À sua funesta sorte.

Uma carta fechada.
Uma surpresa guardada
Nas entrelinhas
De uma palavra em riste.
Duas pessoas sozinhas
Uma da outra.
Uma manhã alegre.
Um fim triste.

Uma distância
A percorrer
Por um caminho
Que já não existe.
Um mar a navegar
Em rota
Sem horizonte.
Um rio.
Duas margens.
E a dolorosa
Ausência de uma ponte!

Assim caminho,
Sem arte
Nem ciência,
Conversando sozinho
Na companhia
Desta pobre e atormentada
Consciência!

Adio.
Mais não posso.
Nem quero.
Não há aqui motivo,
Nem fogo,
Nem ferro,
Nem esperança,
Nem música,
Nem dança,
Nem emoção,
Nem o vislumbre de uma razão
Para algo mais do que aguardar.
Aguardo.

Essa derradeira
E definitiva estocada,
A lâmina ensanguentada
Da minha vida,
O grito da alma perdida,
O silêncio final,
E a morte, enfim,
Redentora
E inaugural!

jpv


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Instante

Instante

Passaste célere
E pediste pouco.
Olhaste em frente
E viste
O amor louco
Avançando como locomotiva,
Trepidando
Na tua paixão cativa
Da minha cativa paixão.
O teu sexo
Na minha mão.
O meu peito
Sobre o teu coração
Sulcando jeiras inexploradas,
Sementes nunca dantes semeadas,
Palavras por dizer. Indizíveis.
Os meus olhos
Nos teu olhos.
A minha língua
Nos teus seios apetecíveis.
Amores eternos.
Almas perenes.
Sentimentos tragicamente perecíveis.

Olhei em frente e não te vi.
Algures no caminho esqueci-me
De ti.
E fica-me esta lembrança
Grata e viva
Do teu olhar rompendo
O fumo branco da locomotiva
Agora em meu peito
Trepidante.
Viveu-se uma vida
Num singular e efémero instante.

Passaste
E eu fiquei,
Triste e só,
No lugar que te dei.

jpv


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Orvalhada

Orvalhada

Manhã fresca
E perfumada,
Roseira singela
Gotejando da orvalhada.
Vida transparente,
Verde fresco,
Folha vertente.
Sopra, a brisa,
Os odores
Em profusão.
Cheira a terra,
Brota essência,
O Chão.

E vivo.
E renasço.
E tenho saudades
De ter partido.
É esta terra húmida,
É este chão,
É esta chuva,
Que me dá sentido.

Caminho descalço
E sinto a água lavar-me
Os pecados.
É fresca e límpida.
Veio do Céu,
Gotejando milagres,
Fecundar os rasgos semeados.

E vejo nisto
Um renascer,
Um ciclo que recomeça,
A força de viver
Na luz que atravessa
Cada gota que brilha
E promete
O Sol que reflete.

Tenho no peito
A esperança renovada
Porque é fresca, a manhã,
E perfumada!

jpv


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Citação da Qualidade

“Ele há vidas piores, mas não prestam!”

I.