Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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O Clã do Comboio – Trim, triiim, triiiiiiiiiim…

Trim, triiim, triiiiiiiiiim…
Há dias que nascem agitados até mesmo no seio de um clã semi-adormecido e com os rituais muito incorporados.
Um dia destes, parecia que andava o diabo à solta no interregional das 7:18h. Mas não um diabo qualquer. Era o diabo dos ruídos incomodativos.
Já na estação me pareceu que havia certo alvoroço no ar, pouco costumeiro. Pensei, Assim que o comboio arrancar, começa tudo a dormir e é um descanso. É o começas. Vamos por partes.
Primeiro sentou-se um moço à minha frente com música nos ouvidos. Acontece que tinha um daqueles auriculares que, além de empurrarem a música para dentro, também a explodem para fora em forma de ruído impreciso. Acresce ainda que se tratava de um moço generoso que não queria a sua frenética batida só para si. Vai daí, coloca a coisa no máximo do volume e, que eu reparasse, nove pessoas deitaram-lhe olhares acusadores. E o moço nada! Até que alguém lhe tocou no ombro e disse:
– Olha, importas-te de baixar o som?
O tipo não ouviu. O outro falou mais alto e alterou ligeiramente a frase:
– Baixa o som!
Pensámos que a coisa ia tranquilizar. Não tranquilizou.
Duas filas mais atrás, toca um telefone. Triim, triiiim… Que eu contasse, tocou aí umas cinco vezes. A dona dele atendeu e falou baixinho. Nisto, o tipo que tinha mandado baixar o som ao outro começou a emitir um ruído polifónico do bolso do casaco:
– Estou?!
Falou baixinho mas não se livrou da vergonhaça. Ainda agora tinha mandado calar o outro e já não deixava ninguém dormir. Depois, tocaram mais três telemóveis e quando chegámos a Vila Franca de Xira, o ambiente acalmou e o pessoal pensou que embora só faltasse um terço da viagem, poderíamos finalmente descansar um pouco. E foi aí que se deu o episódio que acabou por motivar este texto. Ao fundo da carruagem viajava uma alma que dormia profundamente com música nos ouvidos e por essas duas razões não ouvia nada. Ora, por cima dela, tinha colocado uma mochila que, entre outras coisas, levava um telemóvel estridente no máximo do volume. O desgraçado tocou, tocou, tocou… E a senhora adormecida com a música nos ouvidos nem pestanejava. Quando alguém conseguiu perceber o esquema, ou seja, de onde vinha o som, de quem seria mochila, acordou a mulher que atendeu o telefone. Guardou-o no bolso do casaco e recolocou a mochila na prateleira por cima da cabeça. A malta das 7:18 pensou que ia descansar uns minutinhos. Enganou-se. Um som igualmente estridente mas diferente do anterior ecoou na carruagem e ninguém parecia querer atender aquele também. O pessoal olhava, olhava, o som parecia vir do mesmo sítio mas a senhora já tinha de lá tirado o telemóvel e ainda por cima aquele não era o toque dela. Quando já ninguém conseguia disfarçar a má disposição, ela olhou em volta, viu as caras zangadas dos companheiros de viagem, tirou a música dos ouvidos, apercebeu-se do som, foi à mochila, tirou de lá outro telemóvel, atendeu e foi a conversar até Lisboa numa voz audível em toda a carruagem. Deu instruções para o almoço, para o jantar, disse o que ia fazer a Lisboa, combinou quem ia buscar as crianças e falou muito do seu trabalho e do seu marido. Se bem me lembro, comentários pouco simpáticos.
Quando chegámos a Lisboa, as olheiras eram mais que muitas e os passageiros regulares do interregional das 7:18h. não sabiam bem se haviam de rir ou chorar. Para catarse colectiva, houve um que, ao sair, ainda exclamou:
– Este pessoal deixa os telemóveis ligados e não os atende. É uma falta de respeito.
Era o tipo que tinha mandado baixar o som ao outro quando julgávamos que esse era o maior dos nossos problemas.


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O Clã do Comboio – A Grande Família

A Grande Família.
Depois de um pequeno texto que escrevi e aqui coloquei sobre uma conversa que se passou no comboio e como tenho vindo a coligir informação sobre este extraordinário manancial de vida, venho hoje trazer-vos um texto que apresenta, na generalidade, este clã. Quem são, que hábitos têm, como se comportam. Faço-o como homenagem aos passageiros diários do comboio. Não o usam para férias, nem esporadicamente para ir ao médico ou ao teatro ou à bola. Usam-no todos os dias para ir trabalhar. Importa, desde já, esclarecer de que percurso se trata. O clã de que vou falar-vos viaja todos os dias entre Entroncamento e Lisboa, seja Oriente, seja Santa Apolónia. Mais para a frente mostrar-vos-ei algumas personagens individuais. Para já, fica uma fotografia de grupo da grande família.
Qual comboio?
Aqui começa a seriação. Quem precisa estar muito cedo na capital, apanha o das 6:18h, quem pode estar um pouco antes das 9h, usa o das 7:18h. A hora não é tão dura e continua a ser um interregional, ou seja, só faz duas paragens entre o Entroncamento e Lisboa. Também há o das 7:40h, mas esse é regional e ir no regional significa parar em todas as capelinhas e chegar muito tarde. Cheguei a experimentá-lo. Leva muita gente, é lento e chega tarde. Definitivamente, o meu clã, a minha família é a do interregional das 7:18h na linha 5.
Onde?
Onde se espera? Onde se entra? Onde se senta? Onde se sai?
É interessante, o homem é mesmo um animal de rituais. A maioria das pessoas deste clã espera todos os dias no mesmo sítio, entra todos os dias na mesma carruagem, senta-se todos os dias na mesma zona dela e sai todos os dias no mesmo local. O comboio é longo. São nove ou dez carruagens a entrar pela estação dentro e a parar mais ou menos no mesmo local. Ao metro! O mais engraçado é que há pessoas que vão esperá-lo lá à frente, outras ficam cá atrás, outras esperam-no frente ao bar, outras frente ao quiosque, outras junto ao relógio e até as há que se sentam todos os dias no mesmo banco de espera. Há pessoas que são amigas e conversam antes do comboio chegar, algumas trabalham juntas, mas quando a grande lagarta metálica chega, separam-se porque cada um vai para a “sua” carruagem. Por exemplo, ultimamente comecei a cumprimentar um senhor porque todos os dias esperamos o comboio exactamente no mesmo sítio, de frente um para o outro, em lados opostos da linha. Lá dentro, há quem fique junto às portas, ao centro da carruagem, há os que escolhem o fundo da mesma, há os que se sentam em bancos de dois lugares e os que se sentam em bancos de três. Tudo isto seria muito menos interessante não fosse o facto de serem quase sempre os mesmos a sentarem-se na mesma zona. É como sair. Os que escolhem as portas da frente da carruagem são, geralmente, os mesmos, tal como os que escolhem as portas mais recuadas. Do mesmo modo, há pessoas que se chegam às portas muito antes do comboio parar, como as há que ficam sentadas para serem as últimas a sair. E também estes não variam. São invariavelmente os mesmos.
Moda.
A moda do clã é, fundamentalmente, a moda do trabalho. A variedade aqui é determinada pela idade, pelo gosto pessoal, mas, sobretudo, pelo tipo de trabalho que se exerce. Nos homens, a coisa é mais formatada. Da calça de ganga ao fato e gravata, a moda varia pouco. Já a moda feminina entra e sai do comboio ao ritmo da mudança das estações, das cores que se usam, das peças que estão em voga. Curiosamente, tenho reparado que a maioria das mulheres, mesmo as que seguem a modinha, não brinca com o calçado. Vistam lá o que vestirem, em 90% dos casos optam pelo conforto, primeiro e pela estética, depois.
O meu grande destaque, em sede de moda, vai para o pessoal da bicicleta. Há passageiros que trazem uma bicicleta para o comboio e uma mochila. Quando chegam a Lisboa, não usam transportes, andam de duas rodas. A mochila leva a roupa de trabalho que vestem à chegada ao mesmo. Estes andam de fato de treino e até de calções de licra.
Grupos.
Esta malta junta-se, normalmente, em três grupos. Os espontâneos que se formam num dia e nele se desfazem. Os que se juntam informalmente porque se sentam mais ou menos no mesmo local do comboio e os que se juntam porque trabalham no mesmo local. Em todo o caso, seja qual for o grupo, quando chegam à estação para apanhar o comboio, ou quando se sentam e se procuram com o olhar é como se estivessem verificando se está tudo bem com o universo. A crise é má? Chove muito? Há problemas sociais? Há falta de emprego? O Benfica perdeu? Nada disto importa quando aquela pessoa que não conhecemos de lado nenhum entra na “nossa” carruagem e se senta. Isso quer dizer que, afinal, o fim do mundo não foi hoje!
Conversas.
Há dias em que não oiço música para ouvir as conversas e há uma coisa curiosíssima, ou melhor, duas. Uma é que o leque de assuntos é limitado. Outra é que ele evolui sempre da mesma forma ao longo da semana. Futebol e família são sempre no início da semana, sobretudo à segunda-feira. Depois, ao longo da semana fala-se de trabalho, de política e de saúde. De trabalho para contar pequenos episódios e dizer que vai bem ou mal. De política para dizer mal do Governo e apresentar todas as soluções para os males do país. Se eu fosse político e quisesse resolver os problemas da nação, passava a andar regularmente de comboio. De saúde para expor as maleitas próprias e, em muitos casos, as doenças esquisitas de que sofre a sogra ou um familiar distante.
Já assisti, em situações particulares, sobretudo no comboio de regresso, 17:18h ou 18.18h, a alguns grupos de homens olharem em volta, certificarem-se de que não há senhoras nas redondezas e falarem de miúdas. Nessas conversas costuma haver expressões como “avião”, “helicóptero”, “Ferrari” e “topo de gama”. Sim, estão a falar de miúdas!
Telemóvel.
Não nos livramos desta estridência. Há dois tipos de toque no comboio. O discreto e o polifónico com um sucesso musical da época que acorda meia carruagem. Mas, o mais giro é a forma como se fala ao telefone. Neste aspecto não há “normais”. Só há dois grupos. Os que colocam a mão à frente da boca e tentam manter a conversa privada e os que gritam para o telefone como se estivessem a falar para a pessoa que está na outra ponta da carruagem. É deliciosamente embaraçoso. Embaraçoso porque ficamos todos constrangidos por ouvir o que não queríamos ou, pelo menos, não é nada connosco. Delicioso porque a malta fica a saber o que vai ser o jantar, qual é o código do cartão multibanco, em quanto é que aumentou a prestação da casa e quem é que vai buscar o puto à escola. Tudo isto salpicado com beijinhos e olás e a frase mais repetida de sempre ao telefone no comboio: “Repete lá isso outra vez, é que eu vou no comboio!”
Leituras.
A malta lê e a malta é diversificada nas leituras. Há quem leia documentos do trabalho, há quem leia livros da mais reconhecida literatura, de Saramago a Tolstoi já vi de tudo, há quem leia revistas cor-de-rosa, estes são a maioria, há quem leia o jornal desportivo e depois há uns muito engraçados que trazem o livro, a revista ou o jornal mas nunca os lêem. É como se os trouxessem para um passeiozinho de comboio. Coisas!
Música.
Eu não sei que música se ouve no comboio, mas sei que se ouve muita. Alguns dizem que é porque gostam de música, outros dizem que é para não ouvir o matraquear do comboio nos carris. Há três tipos de pessoas. Os que não ouvem música. Os que ouvem tapando os dois ouvidos mergulhando no mundo das melodias e aqueles que têm um olho no burro e outro no cigano em versão ouvido que é como quem diz, num ouvido levam a música e com o outro vão à espreita do que se diz. A música também tem modas em relação às formas de reprodução. Há os que trazem um computador portátil e ouvem a partir dele com auricular, há os que têm leitores de MP3 e há os modernaços que trazem a música no telemóvel e ouvem a partir daí. Também os auriculares davam uma tese. Brancos, pretos, cinzentos, metálicos, de enfiar no ouvido ou de tapar a orelha. Isso não interessa nada. Interessa é ir a curtir um som.
Refeições.
Pois, se pensavam que a vida do clã do comboio é uma vida de barriga vazia, enganaram-se. Esta malta trata-se bem. As refeições têm, normalmente, três tipos e uma variação. Fruta, para a malta das dietas. Barras de cereais, para a malta das dietas a sério. E sandes de queijo com fiambre e alface para os alarves. A variação exige uma ginástica e um treino que não pode ser para principiantes. Vai um tipo muito bem, todo descansadinho, e há uma senhora, são sempre as senhoras, que abre a sua mala e de lá consegue tirar um iogurte, um pacote de açúcar, uma colher, um guardanapo e um saquinho de plástico. Eu sei, ela só tem duas mãos! Mas a verdade é que, com o comboio em movimento, abre o iogurte, desfaz-se da tampa, põe o açúcar, mistura, morfa-o, limpa-se ao guardanapo e coloca os despojos no saquinho de plástico. E, claro, volta tudo para a mala. Tudo, menos o conteúdo do iogurte!
Conclusão.
A palavra que emerge de toda esta vida e de todos estes rituais é democraticidade. Aqui somos todos abençoadamente iguais. Pessoas à procura de um banco para irem confortáveis até ao trabalho. Eu gosto desta gente porque é gente de trabalho, porque faz uma viagem cansativa para ir trabalhar e outra para poder regressar e porque incorpora nos seus hábitos o facto de ter de fazer a deslocação partilhando o espaço e o ar que se respira. Este texto foi escrito com o comboio em movimento ao lado de uma pessoa que é exemplo de um outro grupo, um grupo que deixei para o fim de propósito, são aqueles que continuam aqui o que estavam fazendo na cama. Dormem que nem uns justos e não acordariam nem que viesse o comboio. Ainda assim, chegada a sua estação, abrem um olho, confirmam que acordaram no sítio certo e lá vão eles à vidinha. Olha, este que estava aqui ao meu lado a ressonar, já lá vai. Bom trabalho, amigo!