Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


2 comentários

A Paixão de Madalena – Capítulo 8

A Paixão de Madalena

Livro I – A Paixão de Madalena

8. Teve o Criador suas próprias e indiscutíveis razões, seus intrínsecos e justificadíssimos motivos, para ter criado as coisas como as criou, para ter criado o Universo como o criou. Quem sabe se, em vez de seis dias, tivesse levado duas semanas ou três, não teria tido outro tempo para refletir na obra, para limar arestas e imperfeições que, reconhecidamente as tem, não obstante suas inegáveis maravilhas. Uma coisa é certa, contas não tinha de as prestar a ninguém porquanto foi operário, capataz, engenheiro e arquiteto de todo o projeto. E talvez por isso, por falta de entidade reguladora e fiscalizadora, ficou a obra com evitáveis falhas no acabamento geral. Excesso de montanhas nuns locais e falta delas noutros, excesso de frutos em certas zonas e falta deles noutros, muito sol, a queimar e a abrasar, em certas regiões e míngua dele noutras onde bem vindo seria e, mais grave, por de essencial elemento se tratar, abundância de águas em certas paisagens e confrangedora falta delas noutras. E é por isso que andam os homens e as mulheres em canseiras infinitas que por vezes resultam em querelas, lutas e guerras onde prolifera o pecado, tentando remediar a divina falha ou imperscrutável determinação. Dê-se o benefício da dúvida ao Criador, não só por ser quem é, mas ainda porque, em certas situações, têm estas dificuldades levado a que os homens e as mulheres revelem o que de melhor existe no seu âmago, as suas mais nobres virtudes, divinas também, porque emanadas do mesmo Deus. Assim nos parece que aconteceu, salvo grosseiro erro de avaliação, com Kyle e Madalena.

É uma torre de ferro a emergir de um camião e a procurar o céu. Os naturais dali fugiram para longe e sábia escolha foi essa porque daqui por momentos tudo jazerá pelo chão. Queixam-se daquele barulho que veio incomodar os espíritos e queixam-se daqueles golpes nas entranhas da terra. Acordarão quem adormecido deveria ficar e estão a rasgá-la onde deveria permanecer cicatrizada de feridas antigas. Ainda assim, do mal o menos, nas conversações com o chefe e o feiticeiro da tribo, com a promessa de que se encontraria água para mitigar a sede de animais humanos e não humanos, lá se conseguiu acordo para furar ali. É um camião antigo, da segunda guerra, foi adaptado e tem uma torre de ferros e correntes a subir e a descer empurrando as brocas gigantescas que martelam, que rodam e perfuram à procura de um líquido precioso. Se fosse petróleo o motivo desta busca, outros e melhores meios haveria, mas andam assim as prioridades das gentes e é com elas que temos de viver. Buscam água! Uma broca encravou, Kyle, que estava manobrando a máquina, teve a tentação de não forçar, mas o tempo estava-se esgotando, as pessoas desfaleciam desidratadas, os homens cada vez mais picavam o pescoço das vacas extraindo sangue para matar a sede e alimentar uns quantos, e ele forçou, a broca persistiu e rasgou a pedra, encontrou uma bolsa de gás, não deveria estar ali, mas, como já se disse, imperscrutáveis são os desígnios do Senhor, não era muito o gás, mas o suficiente para empurrar aquela secção da broca uns metros para trás e, sendo ela de ferro e rígida e obediente às leis da física, empurrou a secção atrás de si que empurrou a secção atrás de si e criou-se uma reação em cadeia que rebentou nas mãos de Kyle. Ele lembra-se de ver o ferro emergir, como se nascesse do chão, o que seria natural pois que lá fora plantado, e a coluna assente em cima do camião recebeu aquele metal e a aquela força incontrolável e despedaçou-se em migalhas de nada em menos de um átomo de tempo. Kyle foi projetado pelo estremecimento do ferro e pelo impacto do gás chegando à superfície. Caiu a uns metro dali, pedaços de ferro o acompanharam e houve mesmo um extenso segmento de uma broca que se deitou com estrondo a seu lado, uma nuvem de poeira, ao longe as gentes a levar as mãos à cabeça e a gritar como se de morte de homem se tratasse, mas, felizmente, não morreu ninguém. Chegaram socorros que o levaram, Madalena acorreu à tenda de campanha destinada à enfermaria e percebeu que tinha sido maior o susto que o estrago.
-Estás bem?
-Estou, mas perdemos umas semanas de trabalho…
-Merda… Que se pode fazer?
-Recomeçar.
-E tens forças para isso?
-Sabes, miúda, as grandes desgraças têm uma vantagem…
-E qual é ela?
-Qualquer solução serve para recomeçar!

Para que servem os amigos? A pergunta teve já infinitas respostas e explicações e só uma faltou aduzir. Os amigos servem para ser amigos. E foi através de um amigo que tinha um amigo que Kyle percebeu como poderia realizar o desígnio de ir para África. Integraria uma missão da Cruz Vermelha no Quénia. Na inóspita região de Wajir, junto à Somália, a terra secava estéril e as pessoas morriam com ela. A Cruz Vermelha construíra um acampamento de campanha e estava a fornecer cuidados médicos, a providenciar alimentos, a erigir um posto de saúde e uma escola. Acontece que a água naquela região não tinha meio termo. Faltava durante meses, anos a fio, e depois desabava em torrentes de levar tudo na frente, arrasar terras, construções e vidas, de deixar um rasto de destruição sem que houvesse tempo para se beber um gole dela. A terra sugava-a, sedenta que estava do líquido da vida. Era preciso gente para ajudar a abrir furos de água e o facto de Kyle saber manobrar as máquinas era habilitação suficiente. A ajuda de Madalena seria com os cuidados pessoais, gerir e administrar medicamentos, racionar e providenciar alimentos, organizar a distribuição das roupas que ali chegavam por doação. O único problema era Mariana. Os responsáveis pela instituição e pelas missões consideravam que o ambiente era demasiado agressivo e muito pouco adequado para uma criança tão pequena. Madalena e Kyle assinaram um termo de responsabilidade e deixaram um contacto local de alguém que resgataria a menina caso algo corresse mal. Albertina! Foram muito claros com eles. Explicaram-lhes toda a vacinação que teriam de fazer, a profilaxia da malária, as consequências de ambas, o facto de terem de estar conscientes que as condições de vida eram adversas e que eles estariam lá para ajudar e não para constituir um problema, que o fariam gratuitamente, a troco de alojamento no acampamento, uma verba mínima para as necessidades do quotidiano, alimentação e cuidados médicos básicos, caso necessitassem deles. Ao cabo de três reuniões, quando julgavam que Kyle e Madalena iriam agradecer a informação e declinar a participação no projeto, os olhos dos seus interlocutores abriram-se de espanto:
-Certo. Onde é que assinamos? É isso mesmo que queremos.

Decidiram levar pouca coisa. A mala mais volumosa transportava tudo o que seria necessário aos cuidados com Mariana. Para eles, somente algumas roupas, umas interiores e as outras escolhidas com um critério único: serem confortáveis e práticas. Por vezes, a vida prepara-nos a mente e o corpo para o que nos espera. E essa é uma preparação natural, mas fundamental à nossa perceção da realidade e ao nosso compromisso para com os projetos e situações em que nos metemos por mão e pé próprio. Vem isto a propósito da viagem. Se fosse fácil, rápido e cómodo chegar de Genebra a Wajir, talvez não fosse preciso ir de Genebra a Wajir e, se fosse, que valor dariam os viajantes à chegada tendo ela sido fácil e rápida? A viagem que fizeram, por nunca mais ter fim, fê-los perceber, de imediato, que, se alguém se dava ao trabalho de passar por aqueles trabalhos e canseiras até lá, onde esperavam por eles, então é porque deveriam ser mesmo muito necessários. E eram. O vôo de Genebra para Londres foi uma entrada, como dizem os franceses, um amuse bouche, nem deu para perceber que estavam em viagem. A ligação entre Londres e Nairobi exigiu um pouco mais de paciência, uma noite inteira num espaço reduzido, ainda assim, no ambiente confortável e controlado do avião onde sempre há essas meninas com um lenço ao pescoço oferecendo uma bebida. No aeroporto de Nairobi, e uma vez despachado o ritual de mostrar passaportes, confirmar vistos, fazer assinaturas, pagar sem saberem bem o quê, fintar um polícia teimoso com argumentos duvidosos, esperar pela mala que não vinha, foram recebidos por assinalável comitiva. Um homem alto e magro, de poucas palavras, enfiado em vestes brancas e um lenço dessa mesma cor enrolado à volta da cabeça. Nunca souberam como os reconheceu, souberam só que estavam em guerra aberta com as malas e os sacos, ele aproximou-se com três ou quatro miúdos à sua volta que pegaram nas malas e nos sacos e desapareceram com eles e quando Kyle se preparava para gritar a chamá-los, o homem alto disse:
-Bom dia. O meu nome é Munir e sou o vosso guia. Os senhores são o casal McKenzie, certo?
-Certo. Como soube?
-Soube. Acompanhem-me, por favor.
Não lhes perguntou que línguas falavam, não fez mais apresentações, não disse da parte de quem vinha, nem confirmou para onde se dirigiam, falou num inglês de pronúncia arrastada, mas perfeitamente percetível e limitou-se a dizer o seu nome e a pedir-lhes que o acompanhassem. Madalena e Kyle trocaram um olhar, sabiam que podiam estar a ser enganados, mas a verdade é que confiar nele não era uma opção, era uma obrigatoriedade. Confiaram. Conduziu-os até junto do carro onde iriam viajar, era uma carrinhapick-up branca de marca Toyota, suficientemente antiga para se antecipar uma viagem desconfortável. A generalidade das peças já deveria ter sido reformada, havia ferrugens, partes presas à carroçaria com arames e bancos de napa rasgados onde passava a linha que os cosia. Fazia um barulho como quem pede perdão e deitava mais fumo que algumas das fábricas nos arredores da Capital. As malas estavam na caixa e a lona que a cobre puxada para trás. À volta da carrinha, os miúdos vigiavam. Munir puxou a lona e atou-a. No fim, chamou um dos miúdos e deu-lhe umas quantas moedas, ele saiu a correr, olhando as moedas, com os outros saltando à sua volta. O carro tinha três lugares à frente. Munir conduzia, Kyle cedeu o lugar da janela a Madalena por ter um pouco mais de espaço e encolheu-se no banco do meio. Para engrenar as mudanças, a mão de Munir tinha de bailar entre as suas pernas. Deve ser por pouco tempo, pensou. Enganou-se. Seria um calvário. Munir conduzia com precaução. A estrada era composta sobretudo por retas infindáveis, mas o pavimento estava num estado lastimável. Semeado de buracos pequenos, médios e grandes por todo o lado, obrigava a um ritmo muito lento de progressão. Em muitos troços, o alcatrão simplesmente desaparecia engolido pelas águas, pela areia, pelo mato, pela falta de manutenção. Foram forçados a paragens diversas para comer, para se aliviarem das humanas necessidades, para cuidar de Mariana. Munir foi paciente e só mostrava alguma contrariedade quando era forçado a parar por causa da menina. Lia-se-lhe no olhar que considerava a vinda da bebé para aquelas paragens uma loucura rematada. Quando paravam para comer, Munir providenciava água potável e uma espécie de pão barrado com gordura. Madalena distribuía bolachas que trouxera na mala. Na primeira vez que puxou do pacote, ofereceu a Munir. Não, obrigado. Isso tem açúcar. Açúcar faz sede. Sede obriga a gastar água. Madalena resolveu não calar-se, Sim, mas o açúcar alimenta… Munir não respondeu. Sempre que lhe perguntava se ainda faltava muito, e perguntaram-lho diversas vezes, repetindo-se a pergunta em intervalos de tempo menores à medida que o dia avançava, Munir dava a mesma e invariável resposta, Está quase! O sol abrasou a estrada e o carro sem ar condicionado ao longo de todo o dia, as janelas iam abertas, mas o ar que circulava era quente, o horizonte ficava trémulo à vista como quando olhamos por cima de uma panela a ferver, de Nairobi a Garissa percorreram quase quatrocentos quilómetros e precisaram de oito horas para fazer um percurso que, em condições normais demoraria metade desse tempo. Já não havia como abastecer de combustível, estava tudo fechado, e Munir não quis gastar os vinte e cinco litros que levava num jerrican na parte de trás da carrinha. Ordenou que fechassem as janelas e foi assim que atravessou a cidade. Tinham-na deixado para trás há cerca de quinze minutos, quando Munir saiu da estrada, parou junto a uns arbustos e anunciou em tom seco, Pernoitamos aqui. Foi à caixa da carrinha, tirou de lá um volume grande e pesado e foi à frente da luz amarelecida dos faróis que armou uma tenda de campanha. Estendeu umas esteiras e umas mantas por cima delas e convidou-os a descansar. Ainda falta muito? Está quase!
O dia vinha lá longe, a noite ainda cobria a terra mas o seu negrume começava a alegrar-se lá muito ao fundo. Madalena sentiu restolhar, levantou-se e percebeu que o guia já tinha café ao lume. Sentou-se junto ao tripé de ferro. À sua volta, o som dos insetos, o crepitar das brasas, o odor do café, o silêncio escuro e fundo de África. Sentiu-se pequenina. Munir aproximou-se e disse-lhe em tom sereno, mas absolutamente convicto:
-Beba. Já está pronto e vai fazer-lhe bem. Reconheço-lhe a coragem, sabe, mas tenho de ser honesto consigo. Esta terra é exigente. Não tente mudar isto, antes de dar por ela, estará a senhora mudada. Adapte-se já que cá está, mas assim que puder tire essa criança daqui e vá com ela.
-Quase me assusta e olhe que eu não sou de assustar-me. Eu venho preparada para dificuldades, é por isso que cá estou, mas o seu discurso…
-É realista!
-Veremos.
-Veremos.
Estava um lusco-fusco raiado de laranja, mais parecia o pôr-do-sol, quando saíram. Voltaram a Garissa. Munir abasteceu de combustível, água e alguns mantimentos. Nunca lhes perguntou se queriam alguma coisa, mas nunca lhes faltou com o básico. Depois rumaram em direção a Dadaab. O trajeto foi muito menor do que o do dia anterior, cerca de cento e vinte quilómetros e três horas aos solavancos e a fintar buracos no alcatrão quando o havia. Cruzaram a cidade em ritmo lento e à sua saída, pela primeira vez, Madalena e Kyle perceberam que haveria ali muito trabalho a fazer. Ao abandonar a cidade, cruzaram o campo de refugiados de Ifo e uns quilómetros mais à frente o de Dagahaley. Eram filas intermináveis de tendas em pano branco arredondadas, levavam quatro pessoas, mas chegavam a ter vinte a pernoitar lá dentro, o lixo amontoava-se a cada esquina, as pessoas estavam famélicas, algumas desfaleciam, a água era escassa, os alimentos quase não existiam. Muitas mulheres prostituíam-se por um pouco de comida e as doenças de toda a espécie cresciam e galgavam terreno todos os dias. As ruas dos campos eram em terra batida e aqui e ali viam-se carros brancos com as letras azuis da ajuda humanitária da ONU. O primeiro estava à pinha, as mulheres e as crianças encostadas à rede estendendo as mãos e falando, gritando. Percebia-se que queriam algo, não se percebia o quê. O segundo pareceu mais desafogado de gentes. Quando viu uma ambulância da Cruz Vermelha, Madalena perguntou:
-São estas pessoas que vimos ajudar?
-Não. Vocês vêm ajudar quenianos.
-Estas pessoas não são quenianas?
-Claro que não! Os quenianos são livres. Têm outras prisões, mas não em rede e arame farpado. São refugiados da Somália. A guerra civil está a ficar cada vez mais acesa e eles fogem e vêm para aqui. O primeiro campo que viu já está funcional há um ano, daí estar completamente cheio. Este aqui, o de Dagahaley, tem meia dúzia de meses. Em breve estará como o outro. Todos os dias chegam milhares de pessoas. Estas pessoas não têm nada. Não têm pátria, não têm terra, não têm comida, não têm roupas decentes, não têm dignidade, até isso lhes roubaram…
-Também podíamos ajudar…
-Lembra-se do que lhe disse esta manhã? Um dos truques para resistir aqui é concentrar-se em objetivos muito concretos e muito pequeninos. Podem parecer-lhe insignificantes a si, mas garanto-lhe que fazem toda a diferença para quem recebe a ajuda. Deixei-se de grandes cometimentos e heroísmos descabidos. Isso só vai trazer-lhe frustração e desespero. Resolva as pequenas coisas do dia a dia.
-Seguirei esse conselho. Ainda falta muito?
-Está quase!
Entre Dadaab e Wajir rolaram mais de duzentos e cinquenta quilómetros, as condições da estrada agravaram-se, a paisagem verde do sul do país foi desaparecendo e dando lugar a um terreno árido e amarelo e cada vez mais arenoso. Isto que agora observavam era uma paisagem seca e estéril. Procurar água aqui fazia todo o sentido. Foram precisas quase sete horas para fazer esse troço. A certa altura, o insólito. A estrada tinha ficado estreita, o sol queimava, não se avistava vivalma em nenhuma direção ou distância que o olhar alcançasse, de repente, sem se saber donde, surge um rebanho de cabras magras atravessando a estrada. Munir abranda primeiro e depois para. Atrás das cabras, da nuvem de pó que faziam, emerge um pastor esguio, com o corpo pintado, colares pendendo no peito, roupas parcas confundindo-se com as pinturas na pele. Numa mão um cajado e na outra um rádior transistor gritando uma melodia fanhosa que cortava o ar. Passaram em cortejo. Primeiro as cabras, depois ele e a música. Madalena e Kyle sorriram e ela não se conteve, Que é, todos nós temos direito a um som! Kyle, que preferira quase sempre o silêncio naquela viagem, desafiou-a, Ainda consigo imaginar que ele arranjasse um rádio, o difícil é perceber quem é que está a emitir nesta terra inóspita. Wajir era aquilo que Madalena relembrará para sempre como o fim do mundo. Uma cidade. Enfim, tinha o estatuto de cidade. Era um casario pequeno e baixo de madeira e bairros de lata a conviver com algumas ruas largas e meia dúzia de casas grandes. Não se via ninguém nas ruas, as pessoas fugiam do calor intenso, Mariana queixou-se muito, Madalena embebia fraldas em água e colocava-lhas sobre a face e os bracinhos. Munir cruzou a cidade devagarinho. Parou à saída, junto a um casario baixo de terra. Conversou com um homem vestido como ele, apontou o horizonte e o relógio e regressou. Não disse nada. Kyle, sempre paciente, sofrera de dores nas últimas horas, tomara analgésicos às escondidas de Madalena para não a preocupar, mas ficou intrigado quando percebeu que Munir ia continuar a conduzir.
-Desculpe, senhor Munir, mas não chegámos já a Wajir? É aqui que vimos trabalhar, certo?
-Certo e errado. Vocês vêm trabalhar no distrito de Wajir, mas não na cidade. Agora é preciso levá-los até ao acampamento, mas essa não será a minha função. Eu fui contratado para trazê-los até aqui de carro e em segurança. Daqui em diante não é comigo é com outras pessoas. Já tratei de tudo.
-É com quem? Precisamos saber. Temos o direito de saber.
-Sim. Suponho que sim, mas de que lhe adianta saber? Porque querem vocês saber sempre tudo, controlar sempre tudo? Já lhe disse que está tudo tratado. Chegará em segurança ao acampamento da Cruz Vermelha. Pode-se ir com um 4×4, mas eu não tenho um e o esforço do carro seria muito maior do que o dos animais, além de que o trilho para veículos é muito maior e mais demorado…
-O quê? Animais? Que animais?
-Camelos. Amanhã de manhã.
-Nem pense nisso.
-Está bem!
-Hã?! Madalena, vou já resolver isto…
E saiu do carro e dirigiu-se ao casario onde estava o outro homem vestido como Munir e chamou e bateu às portas e fez barulho. Nada. Nem ninguém. Insistiu tanto que o tal homem apareceu. Foi uma tentativa inglória de conversação. Foi um desespero. Nem o outro percebia Kyle, nem Kyle percebia o outro. Só lhe percebeu uma palavra. É que ele, pelo meio do que dizia na língua em que sabia dizê-lo, acrescentava sempre mai freeendarticulado como ele sabia e um tanto diferente de como Kyle o diria, mas percetível, contudo. Kyle regressou ao carro e parecia um pouco mais resignado quando perguntou:
-Então e agora?
-Agora vou montar o acampamento, vão descansar, pela manhã faço café, aquele mesmo homem vai ter connosco onde estivermos acampados, segue convosco para o acampamento da Cruz Vermelha e eu regresso à minha vida.
-E o que é a sua vida?
Munir fez um ar sério, como se fosse um homem mau, franziu o sobrolho, e disse:
-Eu sou assassino profissional…
Kyle estremeceu, fez-se encarnado, Madalena percebeu e percebeu que ele não tinha percebido a brincadeira:
-Está a meter-se contigo!
Kyle olhou-o nos olhos, fez um silêncio e depois desabou a rir…
-Agora enganei-te, mai freeend!
E voltaram a rir. África era uma surpresa a cada minuto. Um esplendor e uma riqueza. Uma preocupação e uma miséria e estes antagonismos, por vezes, conviviam lado a lado. Estavam a andar de carro há dois dias e já parecia que viviam no grande continente vermelho há dois anos. E foram precisos dois dias para andar cerca de setecentos quilómetros. A Suíça não tinha aquela distância em toda a sua largura e era mais perto ir de Genebra a Paris do que de Nairobi a Wajir. Mais perto e mais fácil. Tudo em África se tornava relativo aos seus olhos. E ainda nem tinham chegado ao local que os esperava, ainda não tinham começado a trabalhar. Amanheceram com o ritual do café. A luz começou a despontar e depressa viram chegar uma caravana de camelos. Só dois montados. Havia mais uns cinco sem nada nem ninguém em cima. Não foi difícil perceber para o que seriam. O homem que vinha à frente tirou as coisas deles da carrinha e amarrou-as a dois camelos. Deram-lhes instruções sobre como montar, onde se agarrarem e como preservarem o equilíbrio. Ensinaram Madalena a transportar Mariana envolta num pano pendurado no seu pescoço. Caminharam por trilhos de rocha, de terra, e de areia, sempre com pouca vegetação. Não era uma areia solta e fina como a do deserto, era mais uma terra que se havia esboroado com o vento do tempo e agora impedia veículos motorizados de circular por ali. A viagem foi incómoda e cansativa. Madalena e Kyle ansiavam um banho, roupas lavadas e, mais do que qualquer outra coisa, uma cama. Ao cabo de duas horas naquilo, viram ao longe o que parecia um poste, ouvia-se um som metálico e um ruído de ar comprimido. Pouco depois, já dava para perceber que não era um poste era uma torre de suspender brocas de perfuração que estava assente num camião mais antigo do que o tempo. Kyle percebeu de imediato que, o que quer que fizessem ali, era muito rudimentar, quase inglório. Nos seus tempos de rancho e máquinas para homens de barba rija, quando passeava com Malte, o garanhão, pelas ruas e bebia cerveja a meias com ele, aprendera, por curiosidade, a manobrar uma máquina de perfuração, mas nenhuma que cuspisse vapor por cima e óleo por baixo. Isto vai ser lindo, pensou. A máquina martelava e empurrava a broca com esforço, três ou quatro homens corriam à volta dela em tarefas pequenas, mas urgentes, junto à torre e ao painel de comandos, quase desfeito, estava um tipo de estatura média, cabelo curto e ralo, barba cerrada e por fazer, vestia uns calções de safari, uma t-shirt branca e um colete na mesma cor e material que os calções. Dos bolsos do colete pendiam chaves de ferramentas de todas as espécies e feitios. Tinha um chapéu de aba na cabeça, tirou-o, segurou-o com a mão e acenou com ele na direção de Kyle:
-Eh lá! Bom dia! É você o tipo que percebe de máquinas?
-Quer dizer, mais ou menos, eu manobrei umas quantas e quando me inscrevi para a missão disseram-me que era só para isso mesmo… manobrar…
-Sim, mas isso foi antes do tipo que a trouxe ter abalado daqui para fora… desentendeu-se com o soba… e adoeceu.
-Desentendeu-se com quem? E é grave?
-Sei lá, o tipo estava bem e de repente ficou com sintomas parecidos com os da malária… o importante é que preciso de si. O soba… depois explico-lhe…
À medida que Kyle se aproximava, deixaram de gritar e foram falando em tom mais brando e quando chegaram a cumprimentar-se falavam já como dois cavalheiros:
-Bom dia, Kyle McKenzie.
-Bom dia, Mark Merrit.
-Aquelas são a Madalena e a Mariana…
-Que loucura trazer para aqui crianças…
-Uma delas é minha mulher. A outra…
Kyle hesitou um segundo e completou com firmeza e convicção na voz:
-A outra é a nossa filha.
-Em todo o caso é precisa muita coragem.
-Disso, nós temos.
Fez-se um breve silêncio enquanto Kyle olhava em volta e foi Madalena que, lá de cima do camelo, com uma mão atravessada a proteger a vista do sol, estranhou:
-Onde estão os outros?
-Quais outros?
-Nós viemos ajudar populações, no plural…
-Ah, esses outros! Não vivem aqui.
-Não vivem aqui? E vocês andam a procurar água longe de onde eles vivem?
-Longa história, Madalena, longa história.
-Não tem uma versão curta?
-Claro… nem vale a pena maçá-la com muito. Repare, o facto de virmos em missão gera em nós, por vezes, certa arrogância, não propositada, bem entendido, de acharmos que sabemos o que é melhor para as pessoas. Ora, ajudar, jovem Madalena, não é proporcionar às pessoas aquilo que nós pensamos que elas precisam, é dar-lhes aquilo que elas pensam que precisam…
-Mas toda a gente precisa de água!
-Correto. Toda a gente precisa de água, mas não a qualquer preço. E aquelas pessoas que vê ali atrás têm fé e têm crenças, tal como nós temos as nossas. Só não são as mesmas que as nossas… Aquelas pessoas desconfiam do que estamos fazendo porque estamos rasgando a terra, ou seja, fragilizando o suporte de nós e de toda a vida, aquelas pessoas desconfiam da nossa capacidade de conseguir água e até da legitimidade da água que conseguirmos porque acreditam que, se os deuses quisessem que a tivéssemos, tê-la-iam enviado sem custo…
-Mas se a encontrarmos consomem-na…
-Só lhe lha oferecermos. Assim, o pecado de a roubar à terra é nosso, a eles cabe a responsabilidade de aceitar uma oferta… só isso…
-E por isso quiseram ficar distantes do furo…
-Sim. Mas não só do furo. Eles não permitiram que o nosso acampamento ficasse próximo dos deles. Nós manipulamos a doença através do corpo e isso para eles é incompreensível e repudiável porque a manipulam através do espírito.
-Todas as doenças são do espírito?
-Todas.
-Até mesmo uma ferida num joelho causada por uma queda?
-Até mesmo essa. Se o corpo se feriu, foi porque se negou a colaborar… e isso é um problema que só o espírito pode resolver…
-Faz sentido…
-Pois faz… mas o nosso acampamento fica a cerca de dois quilómetros das povoações deles e isso dificulta o nosso acompanhamento, a nossa ajuda…
-E o furo?
-O furo fica a três… o acampamento é a mil metros daqui. Subindo ali aquela colina, já consegue avistá-lo… há outra coisa que os perturba. A agressividade dos ruídos que produzimos. Os nossos carros, as nossas máquinas, esta, então, como trabalha com pressão, é para eles muito agressiva, violenta, mesmo. Quando chegámos, tivemos um encontro com o chefe da tribo, o soba, e percebemos de imediato algumas regras. Só furamos em espaços autorizados por eles, só fazemos curativos ou administramos medicamentos a pessoas que eles autorizem e em casos de doenças que eles reconheçam, ou seja, na dúvida pergunte à responsável da missão, mas concentre-se em coisas…
-Pequenas, objetivas!
-Viajou com o Munir! E aprende depressa…
-Sim. E sim… e sei de uma máquina que apreciam!
-Hummm… isso existe?
-Existe, pois, o rádio…
-Ah sim… claro… gostam de música, sim, mas não é tanto por isso, é de novo por causa do espírito… intriga-os e atrai-os a presença das pessoas sem a necessidade do corpo. Estas pessoas, pense-se o que se pensar, aqui, longe da evolução e do desenvolvimento científico e tecnológico, estão mais desenvolvidas, estão mais à frente enquanto seres humanos..
-Interessante conversa, mas…
-Sim, claro, desculpe, ainda tem esses mil metros para fazer e precisa recompor-se da viagem.
-Precisamos.
-Precisa, aqui o especialista vai ter de ficar e ajudar-nos a furar…
Kyle percebeu o desafio. Estava exausto, mas entendeu de imediato que, o que interessava ali, não era o seu tempo, nem o seu cansaço. Eram outros tempos e outras necessidades. Decidiu ajudar, mas decidiu, também, fazê-lo em verdade. A única forma de progredirem, seria serem honestos com o que estavam a fazer. E por isso mesmo informou:
-Vocês não vão encontrar água nenhuma porque não estão a perfurar…
-Como?
-A máquina está a desperdiçar a pouca força que tem, perde óleo, está em esforço e tem mais folgas do que é admissível. Vale mais perdermos umas horas com uma revisão geral do que estarem para aí a fingir que furam e a única coisa que está a acontecer é moer rocha e broca.
-E como fazemos isso?
-No tempo em que eu bebia cerveja com um cavalo…
-Hã?! Amigo, acho melhor ir descansar, o sol fritou-lhe o cérebro…
-Engana-se… e fique sabendo que o Malte era melhor companhia do que muitos dos tipos que encontrei pela vida fora…
Armou-se de chaves diversas, martelos, alicates, pedaços de material velho que jaziam numa caixa, verificou fugas de óleo na tubagem da torre de perfuração, remendou a tubagem do ar comprimido, foi-se às correntes da torre e ajustou os engates e as caixas de rolamentos para que não tivessem fugas. Abriu o painel de comandos e fez uma revisão aos contactos e uma limpeza geral. No final, fez alguns ajustes ao próprio motor do camião. Enquanto trabalhou, foi dando pequenas ordens e tarefas aos ajudantes, pediu cerveja. Não havia. Pediu água… riram-se, Pensámos que você é que nos ia dar água! Mas apareceu um cantil que foi bebendo com parcimónia, cantarolou umas coisas impercetíveis com ritmo irlandês, falou do Malte e praguejou sempre que alguma coisa correu mal. Ao final da tarde tinha feito um trabalho absolutamente essencial, ordenou que não o testassem sem que ele estivesse por perto, voltariam ao trabalho na manhã seguinte, estava para lá de exausto. Não quis comer, nem tomar banho, caiu em cima do colchão e dormiu doze horas consecutivas. Quando acordou, tinha Madalena sentada a seu lado e um velho indígena balbuciando palavras ritmadas, quase como um choro, e um homem a seu lado traduzindo. Kyle assustou-se e foi ainda estremunhado que perguntou:
-O que se passa?
-É o curandeiro de uma das povoações que nos rodeiam. Diz que estás doente “onde passa a comida”, diz que tens comido mal por andares perdido no mundo, diz que há um rio na tua vida mas te afastaste dele e isso vai custar-te a morte do corpo, diz que vais encontrar água para regar a semente da vida que deixarás entre nós quando partires… sabes como é… crendices… não dês importância.
-Aparte a semente, está tudo certo…
-Porquê, vais encontrar água?
-Se a houver, encontro. Agora já temos condições para isso.
-Irlandês teimoso!

Ao longo de pouco mais de um ano, Kyle McKenzie e Mark Merrit fizeram seis furos, dois abateram sobre si mesmos, provocaram estragos, obrigaram a deslocações a Dadaab para adquirir materiais, quatro foram bem sucedidos. O líquido da vida jorrou. Não foi um jorrar impetuoso, mas ainda assim, eram furos de captação que rendiam dois mil litros de água por hora. Por precaução, Kyle cortou as linhas. Assim evitou contaminações ou aproveitamentos por outros furos feitos nas redondezas. As condições de vida das pessoas melhoraram significativamente, a própria paisagem parecia querer alterar-se, havia esperançosos apontamentos de verde aqui e ali. O curandeiro continuou a visitá-lo de quando em vez enquanto dormia. Batizou-o, Tu és “Mtu Kwana na Mimba Mito”. O Quer isto dizer? Perguntou Kyle ao tradutor. Quer dizer que tu és o “Homem que está Prenhe de um Rio”. Kyle silenciou. Lembrou-se dos rios da sua vida. A pujança e a determinação do Camowen que lhe corriam nas veias, a serenidade e a tranquilidade do Drumragh e a firmeza e a força caudalosa do Strule. E pensou que talvez o velho homem tivesse razão, talvez tivesse andado uma vida inteira a evitar os rios que corriam em si e agora, prenhe deles, tinha vindo ali pari-los. Esta água, que busca e encontra, brota em África, mas nasce na Irlanda. Achou interessante o nome que lhe pusera o velho e perguntou:
-Olha lá, e tem de ser um nome tão comprido?
-As coisas não são compridas nem curtas, são o que são e tu és Mtu Kwana na Mimba Mito.

A Madalena couberam outras tarefas. Quando chegou, o acampamento distribuía a ajuda de forma quase indiscriminada, praticamente sem registo e seguramente sem controlo. Começou por perceber como faziam, quando chegavam os carregamentos, como inscreviam as pessoas, como as alinhavam e o que lhes davam e com que frequência. Era um caos. O processo era mais ou menos a olho e poderia suceder que uma pessoa recebesse duas t-shirts no espaço de quinze dias e nenhuma coberta e outros houvessem com excesso de cobertas, mas sem t-shirts. O mesmo com os alimentos. A logística era arrasada pela necessidade de distribuir. Isto tinha uma consequência nefasta. Gerava-se um confuso jogo de comércio fora do acampamento onde emergia o favorecimento e a lei do mais forte. Madalena apercebeu-se disto e foi no seu caderninho de bolso que começou a escrevinhar um complexo sistema de organização e registo da ajuda. Separou, para efeitos logísticos, as quatro populações que circundavam o acampamento, recenseou todos os habitantes de cada população por faixa etária, ainda tentou por agregado familiar, mas rápido percebeu que seria impossível. Uma povoação correspondia, de facto, a um agregado familiar. Identificou as faixas etárias com cores, identificou a ajuda com cores e letras também. Os alimentos tinham uma cor, e dentro da categoria dos alimentos havia diversas letras, a roupa outra tinha outra cor, o calçado outra, o material escolar outra, os medicamentos outra, e assim sucessivamente. Tornou-se fácil abrir um dossiê, um separador de uma pessoa dentro dele e verificar as últimas atribuições, isso levou a que a ajuda fosse dada menos pelo que as pessoas pediam e mais pelo que ainda não tinham tido o que, previsivelmente, iria ao encontro das suas necessidades. As pessoas estranharam e começaram por reclamar. Madalena, com a ajuda da chefe de missão, foi inflexível e os resultados começaram a aparecer em pouco tempo. Os guardas das tendas de campanha onde estavam guaradadas as ajudas começaram a ter turnos que ela lhes atribuiu e rodavam pelas diferentes tendas. Dentro de cada tenda, pediu que lhe improvisassem umas prateleiras com tábuas e paus e os produtos deixaram de estar amontoados pelo chão e passaram a estar arrumados e identificados por cores. Isto obrigou a um registo de entrada que tinha de bater certo com o registo de saída. De dois em dois dias, ao final da tarde, reunia com os outros colaboradores e confrontavam registos. Em poucos meses, o caos deu lugar à organização e a ajuda passou a ser distribuída com paridade, enfim, com a paridade possível. Durante muito tempo, não percebeu porque é que o álcool se gastava a uma velocidade estonteante, sempre insuficiente, da mesma forma que não percebeu porque é que havia colaboradores que, depois da refeição, caíam a dormir como mortos e só ao fim da tarde davam acordo de si. Quando percebeu que lhe bebiam o álcool, já muitos litros se haviam desperdiçado. Passou a desenhar linhas de nível nas garrafas e a colocar algumas gotas de tintura de iodo no álcool. Eles nunca perceberam porque é que o álcool tinha desaparecido e dado lugar àquele líquido escuro e mal cheiroso e começaram a dormir sestas mais curtas. Quando o processo já corria sobre rodas e outros companheiros começavam a apropriar-se das suas metodologias, decidiu organizar a enfermaria. Entradas, saídas, tempos de permanência, controlo da medicação. Os companheiros de missão, sabendo de onde tinha vindo e observando o seu rigor organizativo, puseram-lhe a alcunha de “Relógio Suíço”. Kyle costumava dizer-lhe a brincar, A tua alcunha é menos poética do que a minha. Madalena respondia-lhe com superioridade, Mas é mais eficaz!E riam. E, não obstante as dificuldades por que passavam, sentiam-se felizes. Houve mesmo momentos em que Kyle se esqueceu de que estava doente. Muito doente. Doente dessa doença do corpo e do espírito que fora ter comido mal toda a vida e ter engolido três rios até vir pari-los aqui. Essa mesma doença que, pouco mais de um ano depois de terem chegado, o obrigou a voltar. Precisava de cuidados. O sofrimento era já muito e começava a haver dias em que constituía mais uma preocupação do que uma ajuda ou uma solução. Quando desfizeram o caminho que haviam feito para ali chegar, Kyle e Madalena eram um casal feliz, cúmplice e indestrutível. Nem mesmo pela morte. Haveriam de regressar para que Kyle pudesse semear uma semente e morrer em paz como já se viu que morreu. Pelo meio, tomaram chá com Mark Merrit.

Foi Mark quem lançou o desafio no final de um dia de trabalho. As coisas tinham corrido particularmente bem nessa tarde e ele arriscou:
-Bebemos um chá esta noite? Não há nada como um chá noturno à volta de uma fogueira em África…
-Tentador. Falarei com Madalena. Se não estiver muito cansada, lá estaremos… já agora, estaremos onde?
-Junto à minha tenda.
E assim foi. Madalena adorou a ideia. Era a vida social possível no fim do mundo! Uma roda de pedras no chão, a lenha lá dentro a crepitar, três cadeiras de pano enfiado numa estrutura metálica em tripé que se desmontava como quem fecha um guarda chuva, uma cafeteira com café em pó lá dentro a borbulhar, umas chávenas mal acabadas, cada qual de sua nação, Mark tinha um pau na mão com o qual riscava na terra desenhos geométricos à medida que ia falando, Kyle na sua eterna t-shirt que em tempos fora branca e Madalena enroscada numa manta porque as noites de África têm quase tanto frio como dias têm calor. As conversas desfiavam, fluentes e amistosas, pelos assuntos mais diversos que três seres humanos podem encontrar à roda duma fogueira com uma chávena de café na mão. O trabalho, os direitos humanos, o modo de vida nas diferentes partes do mundo que haviam conhecido, as suas juventudes, altura em que brincavam com Madalena dizendo-lhe que ainda estava vivendo essa fase, os estudos, a ocupação profissional regular, as motivações para estarem ali e como haviam chegado a Wajir, as peripécias de viagem e livros, livros e mais livros. Numa das conversas, Madalena quis saber pormenores:
-Afinal, o que faz um engenheiro mecânico?
-A pergunta mais acertada era o que faria um engenheiro mecânico. Eu não faço o que eles normalmente fazem. A vida tem atalhos. Desenho equipamentos.
-Que servem para…
-Humm… lá se vai a minha privacidade. Conheces o Indiana Jones?
-Quem não conhece?
-Pois bem, o George e o Steven estavam com um problema aquando da produção do segundo filme da série…
-O George? Queres dizer o George Lucas?
-Sim. E o Steven é esse mesmo que estás a pensar!
-Kyle, temos um amigo famoso!
-Não. Tu tens é um amigo que tem amigos famosos! Enfim durante a produção do…
-Templo Perdido! Indiana Jones e o Templo Perdido!
-Esse mesmo. Enfim, havia uma série de cenas de filmagem impossível, quer dizer, era possível filmar aquilo, mas não com os ângulos e os movimentos que eles queriam. As câmaras não acompanhavam. Eles expuseram o problema e eu tinha um amigo português…
-Português? Tu tinhas um amigo português!
-Sim. É aquele paísinho na Penínsu…
-Eu sou portuguesa!
-Uau…
-Sim, uau! As coincidências da vida. E depois?
-E depois, ele era genial e dedicou-se aos problemas de rotação enquanto eu resolvi as questões relacionadas com focagem, lentes, etc… foi uma pequena experiência, mas correu tão bem que há três anos atrás… sim, em 89, logo, há três anos atrás, quando lançaram a Última Cruzada, já todas as filmagens foram feitas com a nossa tecnologia. De lá para cá não temos tido mãos a medir, mas precisei de sair daquela movimentação toda. Estava farto de cosmopolitismo, manias e festas sem sentido e resolvi falar com a Cruz Vermelha e financiar um projeto. Calhou este.
-Tu estás a pagar o que se passa aqui?
-Quase tudo, mas sem vós e os outros colaboradores, nada disto seria possível. Aqui contam mais as pessoas do que o dinheiro. Felizmente, ainda há sítios no mundo onde se pode dizer esta frase.
-Posso fazer-te uma pergunta sobre o Indy?
-Claro.
-Achas que a Última Cruzada foi mesmo a última ou haverá mais?
-Acho que foi a última. Eles estão fartos daquilo. O Harry está a ficar velho para aquelas andanças, já quase não dá uma corrida sem um duplo, o filão está gasto. Agora só se pusessem o Indiana Jones a enfrentar extra terrestres e francamente não creio que isso vá acontecer… e tu, que fazes na vida.
-Sou a jovem esposa do teu amigo, temos a Mariana para cuidar, trabalho à noite num pub, tirei um curso profissional de contabilidade e acho que quero mais… um curso superior… adoro contas, gestão de stocks, gestão financeira, adoro tudo o que seja organizar e controlar…
-Ah, temos uma controladora!
-Sim! Moderada, mas controladora…
-Moderada? Mark, já viste o que ela está a fazer ao acampamento? Qualquer dia, precisamos de limpar o rabo e vamos ter de preencher um papel… para sujar outro!
-Já é assim, amorzinho, tu é que ainda não reparaste. Já está em curso um sistema para monitorização dos nossos gastos.
-Miúda! Isso faz-se?
-Claro, é para o bem de todos…
Embrenhavam-se nos pormenores das conversas, na sua utilidade e futilidade como se estivessem a construir o mundo. Um mundo de ideais. E foi assim que ficaram cúmplices os três. Amigos inseparáveis vivendo longe um dos outros. Madalena nunca mais perdeu o contacto com Mark que viria a ser ajuda fundamental para suportar a dor e as dificuldades que estavam para vir. Gostavam de conversar um com o outro. Sentiam uma sintonia intelectual ímpar e sentiam também que se motivavam e espicaçavam no raciocínio e no discurso. O relacionamento de Mark com Kyle era diferente. Era um entendimento mais assente na experiência e no conhecimento das agruras da vida. Um dia, no final de uma dessas conversas, Kyle deixou Madalena seguir à frente, demorou-se um pouco, e confiou-a a Mark:
-Amigo, deixemo-nos de rodeios e ilusões. Eu não vou viver muito mais. Foi uma felicidade encontrar-te aqui. Tu és um tipo bem formado, conheces a vida e sabes o queres dela… faz-me um favor… quando eu morrer…
-Vá lá, Kyle, as coisas não são assim…
-São, são, meu velho, são mesmo assim… isto já dura pouco. Vamos ter de partir. Eu não estou a aguentar o esforço e grande parte do que era preciso fazer está feito…
-O favor?
-Olha por ela. Ela é jovem e forte, mas teve um percurso sinuoso até chegar aqui. Se não tiver um referente por perto, pode perder-se…
-Eu estarei longe…
-Eu sei, mas podes olhar por ela… por favor.
-Fica descansado, rapaz, se não nos enterrares primeiro, eu olharei por ela.
Kyle suspirou de alívio e como o ambiente estava tenso e tristonho, quis fazer uma piada:
-Mas nada de te aproveitares dela, ouviste?
-Nem tal me passaria pela cabeça, rapaz. Eu jogo na outra equipa…
-Ah, ok… só virtudes, então…
-Hahaha… a bem da verdade, no tempo que aqui temos estado, ao longo destes meses, tu tens corrido mais riscos do que ela!
-Eh lá! Posso ir deitar-me descansado?
Riram ambos de satisfação e alívio. Apertaram a mão e abraçaram-se. Tem a vida estas sinuosidades, mas o facto é que, por circunstâncias diversas, não voltariam a fazer outro serão de café e fogueira, ver-se-iam poucas vezes mais. Kyle deixou a sua obra para trás. Alguns desses furos ainda lá estão hoje jorrando água, brotando vida. Foi preciso que regressasse a Genebra. Foi recuperar o possível. Foi amar Madalena até ao último minuto. Foi semear-lhe uma semente de vida que nunca veria nascer. Madalena guardou a morada de Mark e o número da sua casa nos Estados Unidos. Voltariam a ver-se daqui por uns tempos e estariam em contacto distante e intermitente até ao dia em que formariam o inseparável grupo dos três emes.

———————————- jpv ———————————-


1 Comentário

A Paixão de Madalena – Capítulo 7

A Paixão de Madalena

Livro I – A Paixão de Madalena

7. Foi em Belfast. Kyle pedia-lhe poucas coisas. E Madalena não lhe recusou esta. Percebia que Kyle quisesse reencontrar-se com a cidade e, casando com ela, queria fazê-lo num local do coração, que lhe dissesse muito. Foi a mais íntima das cerimónias. Madalena levou Albertina. Kyle levou as filhas, os amigos da tertúlia e dois ou três familiares. Ela tinha um vestidinho pérola de alças, apertado na cintura para depois se abrir numa roda de pregas e tules. Um coletezinho por cima, cobrindo os ombros, com as mangas justas aos braços e uma fiada de botões pequeninos, muito juntos, desde o punho até meio do braço. Kyle revelou nesse dia o que restava da sua rebeldia. Era uma camisa de seda cinzenta fechada no pescoço com uma gravata fininha de cabedal. Um colete no mesmo material da gravata e umas calças de ganga com um cinto de fivela em cinzento escovado. Entraram no registo civil com sorrisos tímidos e o coração nas mãos. Afinal de contas o noivo tinha quarenta e dois anos e a noiva dezassete. Ficavam bem lado a lado. Indisfarçável a diferença, tanto quanto a ansiedade e a vontade de seguirem em frente. E assinaram. E beijaram-se. Albertina sorriu. A sua menina voara, libertara-se. Imaginara este momento de muitas formas menos desta. Madalena está feliz e isso é o que verdadeiramente conta. Houve uns sorrisos, umas palavras de felicitações, algumas lágrimas, uma garrafa de champanhe e outro beijo, mais relaxado, mais longo. E saíram para a rua. Para a vida que os esperava. Almoçaram num restaurante de Belfast onde Kyle reservara mesas para todos. E o que se seguiu, não sendo uma festa, foi uma festa. As conversas correram com naturalidade, os olhares ficaram tolerantes e os sorrisos enfeitaram a mesa. Ao final da tarde, quando se despediram, o jovem casal deu as mãos e fez a lua de mel improvável. Passearam de mão dada pelas ruas de Belfast como fizeram no dia em que amaram pela primeira vez com os corpos. E tal como nesse dia, não fizeram amor. Deitaram-se enroscados um no outro, entregaram-se as almas, confiaram-se a existência e adormeceram nesse doce encantamento. O da Felicidade.

Pela manhã, fria e cinzenta, com as almas do mundo ainda adormecidas na sua maioria, Kyle deu-lhe uma lição. Encostou-se a ela e sussurrou-lhe ao ouvido:
-Aprende! O setôr vai ensinar-te.
-Hum, hum.
-Não há mal nenhum, certas ocasiões, em seres submissa e deixares o teu mestre cuidar de ti. Essa atitude excita-o porque te sente à sua mercê, um caminho para ele explorar, uma vulnerabilidade que o faz sentir-se o Senhor do Universo. Deixa-lo tratar dos teus cabelos.
E ajeitou-lhe os cabelos desalinhados do sono puxando-os para trás.
-Deixa-lo acariciar o teu pescoço.
E semeou-lhe beijos pequeninos na curva da nuca.
-Deixa-lo sentir os teus seios nas suas mãos.
E tomou-os nas mãos, enchendo-as e deslizando com elas muito suavemente ao longo da sua curva generosa.
-Deixa-lo percorrer o teu ventre.
E percorreu com a língua essa linha reta e tentadora que une os seios ao púbis.
-Deixa-lo refrescar-te.
E soprou-lhe os pelos revoltos e ela contraiu-se um pouco e sorriu.
-E deixa-lo possuir-te.
E beijou-lhe o sexo demoradamente e devorou-lho depois e tomou-a com vigor quando ela própria já não desejava outro destino que não fosse esse.
Madalena aprendeu a relaxar e a entregar-se. Julgava que tinha aprendido tudo e foi por saber que ela pensava isso que Kyle, quando estavam prostrados em silêncio a usufruir do sexo depois do sexo, a informou:
-Não penses que sabes tudo. Tens muito mais para dar. E tens de aprender a possuir. A tomar o teu homem para ti.
-Hum, hum.
-Vamos dar um mergulho gelado e repentino na piscina!
Estava frio, como já se disse, eles desceram em roupas interiores e envoltos nas tolhas de banho do hotel. Quando saltaram para a água, diversos hóspedes afloraram às janelas, alguns empregados espreitaram pelas portas envidraçadas. Com o entusiasmo da água fria no corpo e a sensação de liberdade, Kyle não reparou que tinha uma assistência considerável, viu Madalena no meio da piscina, encheu os pulmões de ar e gritou:
-Abre as pernas, miúda, o teu velhote vai passar!
Uns sorrisos, uma risada incontida, uns sobrolhos franzidos, uns ares de espanto, Madalena corada, Kyle sente o silêncio, percebe o que fez, olha em volta e acrescenta:
-Então? Para eu passar é preciso que ela abra as pernas, não?
As pessoas recolheram-se, viraram o olhar para onde o tinham antes ou fingiram desinteressar-se. Kyle aproximou-se de Madalena, abraçou-a muito apertadinha a si e disse-lhe:
-O mundo não é como to dão. Será como tu o fizeres.
Ao final da tarde, depois de uma refeição devorada, de uma sesta aconchegada, um pouco de leitura e um duche quente, Kyle ensinou-a a descobrir-se.
-Anda cá!
-Sim, meu adorado setôr e marido. Faz-me impressão chamar-te marido…
-Sabes o que é que tens de conhecer melhor para dares prazer ao teu companheiro?
-O meu companheiro!
-Não!
-Não?!
-O que tens de conhecer melhor, antes de mais, é o teu corpo, os teus limites, os teus desejos e aquilo de que mais gostas. Tudo isto é um jogo de dar e receber e é fundamental que conheças muito bem o corpo que vais usar para ambas as coisas. E ensinou-a, como quem encaminha, a acariciar-se, a descobrir-se no seu próprio corpo, a encontrar as zonas onde gostava de ser acariciada e estava já excitadíssima quando Kyle se despiu completamente, a chamou a si e disse:
-Toma! É teu! Faz dele o que quiseres.
-Dele?
-Do corpo todo. Descobre-me como te descobrimos ainda agora. Sacia a tua curiosidade…
-E posso fazer perguntas?
-Todas as que quiseres. E podes até fazer-me pedidos, dar-me ordens, indicações… o importante é que comuniques.
E ela descobriu-o. Com o olhar, com a ponta dos dedos, com as mãos ávidas, com a língua ardente, e vagueou pelo corpo dele enquanto entregava o seu. E fizeram todas estas coisas no dia seguinte ao do seu casamento e isso intrigou-a. Estavam já deitados, dormitando e olhando o teto e sentindo-se por perto e ela resolveu perguntar:
-Se sabias tudo isto, se tinhas tudo isto para ensinar-me, porquê só hoje? Porquê hoje?
-Porque hoje, Madalena, é o primeiro dia da nossa lua de mel e de hoje em diante não teremos segredos, só este receber feito dar, só este amar contínuo e doce enquanto existirmos um para o outro.
Madalena não respondeu. Pendurou-se no pescoço dele e beijou-o longamente.

Já aqui se defendeu a influência que uma cidade pode ter na formação de uma pessoa, nas suas opções, no seu modo de vida. Vem isto a suceder por via das relações afetuosas que as pessoas desenvolvem com as cidades. Belfast marcara Kyle e Madalena, o casal. E, por essa razão, por residirem aí memórias fortes e importantes, por se terem desenrolado nas suas ruas conversas íntimas e reveladoras, dividiram o seu tempo entre a terra das obrigações, Genebra, e a terra das paixões, Belfast. A situação financeira de Kyle, muitíssimo confortável, permitia-lhes fazer fins de semana prolongados, férias e, por vezes, até a loucura de uma fuga de dois dias para a cidade que os acolhera. Uma breve viagem de avião e o mundo mudava. Desvaneciam-se as preocupações, viviam-se as emoções. Era em Belfast que se sentiam inquebrantáveis e eternos.

Ora, é a eternidade, concordará o leitor, outro bom motivo de conversa e, em abono da verdade, esta condição de contador de histórias vai pouco além do que manter uma boa conversa. Eterno, Kyle não será. Estando nós em mil novecentos e noventa, tendo o leitor prestado atenção às primeiras linhas desta história, sabe que morrerá em breve, mais precisamente no Outono de mil novecentos e noventa e quatro. Ainda assim, muito lhe falta viver. Mais do que algumas pessoas que estarão entre nós muitos anos após a partida do irlandês. Contudo, o corpo de Kyle começou a revoltar-se cedo, como se sabe. Ao fim da noite, fora buscar Madalena ao trabalho. Ofereceram-lhe uma Guinessque recusou com simpatia. Umas dores de cabeça e umas náuseas traziam-no indisposto, incomodado, preocupado sem saber com quê. Quando Madalena saiu, beijou-a na testa. Recusou-lhe um beijo nos lábios como se evitasse, por instinto, que algo mau passasse para ela. Conduziu inquieto e ela apercebeu-se:
-Que tens, velhote?
-Estou mal disposto, só isso. Deve ter sido algo que eu comi.
-E o que comeste tu?
-Nada.
-Ora aí está um diagnóstico inteligente! Assim que chegarmos vou fazer-te um chá quentinho. Pode ser?
-Claro que sim! És uma santa!
-Talvez não…
-Talvez não…
Quando chegaram, saíram do carro, subiram as escadas do prédio, Madalena estendeu a sua chave à porta e sentiu um estrondo seco atrás de si. Kyle desfalecera. Ela acabou de abrir a porta, assustada, tentou puxá-lo para dentro, mas era um corpo demasiado pesado para si. Ficou atravessado, meio corpo dentro de casa e outro meio fora dela. Assim ficaria para sempre na vida de Madalena. Ocupando o seu espaço, deixando-lhe outro espaço livre para ocupar. Madalena grita agora, Ajudem-me, por favor, ajudem-me! Os vizinhos e as vizinhas acudiram, pouco depois havia uma ambulância e Kyle seguia para o hospital. Assim há de ser sempre a vida para Madalena. Estendendo-lhe uma mão de felicidade, estendendo-lhe uma mão de sofrimento. Talvez por isso se tenha feito uma mulher forte, segura de si e preparada para o pior. No dia seguinte visitou Kyle.
-Está aqui uma menina para o ver…
-É a minha mulher.
-Está ainda combalido, senhor Mckenzie…
-Mande entrar a menina e quando eu lhe apalpar o rabo venha depois dizer-me que estou combalido.
-Senhor Mckenzie!
Madalena entrou no quarto, aproximou-se dele e beijou-o nos lábios, ele estendeu uma mão e apalpou-lhe o rabo, a enfermeira saiu com um olhar de reprovação e sacudindo a cabeça, só não se percebe porque sorria.
-Estás melhor?
-Pronto para outra!
-Vá lá, a sério…
-Estabilizei. Exames hoje, amanhã nova medicação e volto para casa daqui a um par de dias… e tu?
-Escola na perfeição, trabalho a correr bem, a minha avó tem-me ido buscar. Eu podia ir de autocarro, mas ela insiste…
-Deves aceitar. Faz-lhe bem sentir que não te perdeu de todo. Se a deixares ajudar-te, estás a ajudá-la muito.
-Tens um bom íntimo!
-Sinto a tua falta.
-Eu sei. Também sinto a tua, meu querido.
-Mas…
-Mas o quê?
-Um dia destes pode ser de vez.
-Não digas isso, por favor. Não digas isso! Já chega de perdas na minha vida….
-Nunca me perderás. Estarei sempre contigo.
-Assim está melhor.
-Amanhã também vens ver-me?
-Claro! Que pergunta!
-Podias fazer-me um favor…
-Sim…
-Está um maço de cigarros…
-Kyle Mckenzie! Comporte-se! Ainda nem fez vinte e quatro horas que caíste redondo no chão, estás internado e queres conspurcar o hospital? Se eu não te conhecesse bem…
-Se tu não me conhecesses bem, o quê?
– Se eu não te conhecesse bem, não tinha os cigarros aqui comigo na mala!
-Malvada! Liiinda! Perfeiiiiita! Adoro-te! Põe ali na gaveta.
-Na, na… tudo tem um preço.
-E qual é o teu?
-Essa mão no meu rabo… por baixo da saia!

Kyle recuperou. Estabilizou. A vida passou a fazer-se mais por Genebra. Era necessária alguma prudência e alguns cuidados com a saúde de Kyle. Os fins de semana corriam tranquilos. Liam, conversavam, faziam tardes eternas de chá e biscoitos. Por vezes convidavam Albertina que aceitava e trazia sempre consigo um miminho doce.  E foi numa dessas tardes que a vida fintou a vida, que os afetos inexistentes encontraram chão desconhecido e fértil. A força de Kyle tem sido posta à prova. Chegará agora a vez de Madalena. E vai acontecer-lhe com naturalidade aquilo que acontece com tantos de nós. Da fraqueza surgirão forças, da impreparação surgirá engenho, na impossibilidade se abrirá caminho para a vida. Estão os dois a ler. Madalena mais concentrada. E é por isso que nem ouve o ding-dong melódico da campainha. Kyle sorri e vai à porta. Espreita. Abre. Madalena ouve um conversar em sussurro, como quem não quer incomodar que, ao mesmo tempo, lhe parece uma lamúria. Kyle reentra na sala com um ar preocupado e fala. Ao falar, fá-lo como se não soubesse o que está a fazer. Diz, mas não sabe o que está a dizer. Parece surpreendido e é por isso que as suas palavras são uma afirmação, mas soam como uma pergunta:
-Está ali a tua irmã?!
-Que raio de conversa é essa? Sabes que a minha irmã…
-Então é melhor ires ver porque a pessoa que ali está parece muito certa do que diz.
-Será que…
-Não sei o que será, Madalena, mas aquela pessoa é bem mais velha do que tu e isso não bate certo com o que eu sei.
-Liberta?
Madalena levantou-se num gesto brusco que vai amaciando à medida que se aproxima da porta, levava uma expressão de zanga que dispersou a custo naquelas passadas. E, de repente, enquanto andava, lembrou-se de que fosse quem fosse que estivesse à porta, mesmo que fosse efetivamente Liberta, ela não teria como reconhecê-la. Vira-a duas ou três vezes em visitas fugazes que Albertina fizera a Portugal. Nada mais do que isso e há tanto tempo que lhe resta somente uma imagem esfumada semeada na memória. Abriu a porta que Kyle deixara encostada e pasmou com o que viu. Era uma moça de cara arredondada como a sua, os lábios finos e bem desenhados como os seus, o olhar azul como o seu e os caracóis no cabelo como os seus. Está em total desalinho. Roxa de frio, mal vestida, as roupas velhas e desgastadas, os sapatos tinham andado muito mais do que aquilo para que foram concebidos e isso notava-se nas biqueiras desgastadas e nos tacões arranhados. Lá fora estava frio, talvez uns doze graus e ela vestia um vestidinho de algodão que fora branco e um casaquinho de malha. Aquela pessoa passara mal. Mas não foi isso, apesar de marcante, o que mais chamou a atenção de Madalena. Foi a criança nos braços da rapariga, envolta em panos que tinham sido mantas, e por já nenhum servir  sozinho para aquecer um bebé, todos foram ali juntos e embrulhados uns nos outros à volta da criança.
-Liberta?
-Sim, mana, sou eu. Não me reconheces?
Aquela palavra, mana, ali colocada no meio da frase soara-lhe a falso e normalmente tê-la-ia corrigido, mas o estado da rapariga e a curiosidade a palpitar-lhe no peito, Quem será o bebé? Como será o bebé?, levaram-na a saltar esses pormenores.
-Não te fazia aqui e eu não tenho como reconhecer-te porque não te conheço. Sabes que nos vimos duas ou três vezes por períodos breves quando eu era muito miúda. Eu reconheço-te os meus traços e os da nossa irmã, mas não te conheço.
-Mas sou eu, Madalena, sou eu, a Liberta. Eu vi-te nascer, a ti e à mana, eu estava com a nossa mãe naqueles dias difíceis e eu conheço-te e não tenho mais a quem recorrer. Por favor, deixa-me entrar, deixa-me ao menos dizer-te ao que venho.
-Sim, entra. Suponho que não haverá muitas Libertas neste mundo à procura de uma Madalena…
Liberta entrou. Madalena disse-lhe para aguardar um segundo na entrada, foi à sala, sussurrou ao ouvido de Kyle, Está tudo bem, confia em mim, já volto, foi buscar Liberta e levou-a para o quarto:
-Vais tomar um banho quente, vamos vestir-te e vamos agasalhar-te, vais comer e depois conversamos. Agora é preciso cuidar de ti e do bebé. Vá, despe-te.
-Da bebé. Corrigiu Liberta. E ficou parada, olhando em volta, procurando um sítio para poisar a criança, e os seus olhos pararam em Madalena. Estendeu-lhe a bebé e disse:
-Seguras?
-Não sei se sei…
-É fácil. É como uma bonequinha.
-Nunca tive bonecas.
-Olha, pões uma mão por trás da cabeça e outra por baixo do rabinho.
Madalena segurou a menina e sentiu-se pequenina e vulnerável como ela e, ao mesmo tempo, teve medo. Um medo terrível de a estragar! Estava ali uma vida preciosa a despontar, precisava de cuidados e ela não tinha a mínima ideia do que fazer. Por momentos pensou se não se teria precipitado ao casar-se com Kyle, mas afastou o pensamento e aconchegou a criança a si. E sentiu o seu calor, a sua vida, contemplou a pele rosada e os olhinhos fechados. A bebé acordou, olhou-a em silêncio, como se estivesse a examiná-la e esse olhar que trocaram foi a semente. Liberta tomou banho, vestiu-se e agasalhou-se com roupas de Madalena, bebeu um chá quente e devorou os biscoitos que estavam no pires. Madalena fez-lhe uma sandes que ela comeu também. Depois explicou que descobrira Madalena seguindo-a a partir de casa de Albertina. Esperara vários dias até que acabou por vê-la. E o que vinha pedir-lhe não se atrevia a pedir a Albertina. De resto, quase não falava com a avó. Sabia que estava zangada por causa de assuntos antigos e não ousava pedir-lhe nada.
-Sim, mas o que queres tu, Liberta?
-Ajuda.
-Que tipo de ajuda?
-Eu casei com um rapaz lá da terra, o Bernardino Silva. É bom moço, gosta de mim, é muito trabalhador, mas muito humilde. É pobre como nós. Viemos tentar a vida aqui, mas está a ser muito difícil. Mal temos para comer e é preciso pagar umas dívidas que fizemos por causa da viagem e dos papéis, a legalização. Sabes como tudo é caro aqui…
-Sim, o que precisas é de dinheiro…
-Não é que não desse jeito, mas não me atrevo a pedir para mim. Peço para a menina. Não sei como te diga…
-Sê direta!
-Ela é pequenina. Estou a tentar arranjar trabalho e quando me veem com ela recusam logo. Se me ficasses com ela uma semana
-O quê?!
-Se me ficasses…
-Eu percebi! Só não percebo como podes pedir-me isso. Eu não sei nada de bebés, nem sei a idade dela, nem o nome, Liberta!
-Chama-se Mariana. Mariana Silva e tem duas semanas. Já nasceu cá. Também temos essa despesa para pagar. Por favor, Madalena, só até eu arranjar trabalho. Depois logo encontro quem me fique com ela.
-Não sei que te diga. Estou apavorada. E se lhe acontece alguma coisa?
-Não há de acontecer nada, Madalena. Só uma semana. É tua sobrinha. Podes dar-lhe o que eu não posso. Por favor… eu venho buscá-la de hoje a oito dias.
-E o que é que é preciso fazer?
-Eu ensino-te. As coisas dela estão neste saquinho.
E passaram o resto da tarde conversando. Liberta ensinou os cuidados básicos, mostrou os documentos, falou de horas para comer, de como mudar uma fralda, limpar a criança quando bolsa, ensinou-lhe a preparar o leite em pó e ao fim do dia saiu com mil agradecimentos e despedidas, Até para a semana, disse. Mas nunca mais voltou.
Kyle, que presenciara tudo aos repelões, o suficiente para aperceber-se do que se passara, ironizou assim que Liberta saiu:
-A tua irmã esqueceu-se cá da filha!
-Kyle, por favor, são só oito dias… uma simples semana em que posso matar a fome a esta criança. Ela ensinou-me como fazer.
-E também te ensinou a amá-la?
-São só oito dias, Kyle.
-Tu tens uma vida, miúda. Tens escola, tens trabalho, tens um marido… sei lá, podias ter perguntado o que eu achava…
-Tu achas bem. Tu és o homem com o maior coração do mundo, um defensor dos direitos das pessoas…
-Uma semana?
-Uma semana!

Não fazemos juízos de valor. Julgar é fácil. O difícil é experimentar a pele do outro. Sabemos, mas não exploramos para já, as razões de Liberta. O facto é que passou uma semana e outra e outra e um mês e um ano e outro até que chegou um dia em que Madalena olhou Mariana e viu uma filha e Mariana olhou Madalena e viu uma mãe. E, tendo nós tempo e engenho, aqui relataremos algumas das provações que as esperam. Para já, anda Madalena procurando Liberta porque ainda não sabe que a não encontrará. A sua vida revolveu-se. Deixou o trabalho, procurou uma pessoa que cuidasse da criança enquanto ia à escola e apoiou-se em Kyle que estava habituado a ter mulherzinhas por perto e um dia lhe disse em tom de brincadeira, Se a tua irmã continua a demorar-se, temos de comprar uma casa maior. Madalena teve de adaptar-se à nova realidade e aos novos ritmos. Sofreu com as noites em branco e as idas ao hospital, quase sempre por causa de coisa nenhuma que lhe parecia tão grave e, sobretudo, cresceu. Aprendeu outra responsabilidade. A inigualável responsabilidade de ter ao seu cuidado uma vida humana completamente indefesa. E aprendeu outro amor. Uma dependência. Kyle dizia-lhe com frequência que estava a revelar-se uma boa mãe e daria uma excelente mãe para os filhos de ambos. E combinaram tê-los.

Foi por essa altura que Madalena conheceu Pablo Sentido. Era um eterno amigo de Kyle que havia fugido da Espanha franquista, se mantivera no exílio escrevendo sobre o projeto da Espanha libertada e quando ela finalmente se libertou, ele não regressou. Continuou a escrever e a publicar nos mesmos jornais da reação, desta vez sobre os defeitos da democracia, os abutres do poder, a subjugação do povo pela finança e ainda sobre… sexo! Era um psiquiatra especializado em sexologia que tinha o dom e o gosto da confrontação. Participava nas tertúlias de amigos que aconteciam quando Deus queria embora fossem todos ateus e alguns, até, agnósticos. Ora, Deus, que também tem as suas rotinas, queria sempre à sexta feira, mas não era todas as sextas, era lá de quando em vez. Madalena gostava de os ouvir a discorrer sobre o futuro do mundo pela noite dentro e, por vezes, também participava. Mais recentemente, porém, os cuidados com Mariana obrigavam-na a não ir ou a sair mais cedo. Ficava um bocadinho e depois Kyle ou um amigo ia pô-la a casa para a senhora que ficava com a bebé poder despegar e ir à sua vida. Foi numa dessas tertúlias de visita fugaz que calhou a vez a Pablo Sentido de levar Madalena a casa e iam lado a lado no carro, falando sobre aquelas reuniões de amigos, sobre Kyle, a Espanha, Franco, Portugal e a luta pela democracia alcançada mas instável,Cuidado com os barões, avisava, Cuidado com os barões, que Pablo surpreendeu Madalena:
-Olha lá, tu e o Kyle já fizeram sexo anal?
Madalena petrificou. Sentiu-se invadida e insegura e só conseguiu dizer:
-Para o carro! Eu faço o resto a pé.
-Não te incomodes, miúda, não te ofendas, a pergunta é meramente técnica.
-Nada que te diga respeito.
-Claro! A tua vida com Kyle não me diz respeito, muito menos na intimidade, mas a minha pergunta não era sobre vós, era sobre as práticas e os comportamentos de um casal com acentuada diferença de idades…
-Podias ter começado por aí…
-Rodeios! Para quê rodeios se podemos ser diretos?
-Para sermos educados!
-A educação é uma ficção, um artifício social, não existe.
-Já vi que para ti não.
E a conversa morreu por ali, mas a pergunta ficou plantada na mente de Madalena. Assim que kyle chegou a casa, tomou um duche, deitou-se e ouviu Madalena que ele julgava adormecida:
-Setôr…
-Sim, miúda…
-Porque é que nunca fizemos sexo anal?
-Estou a ver que foi o Pablo quem te trouxe hoje! Ele faz a mesma pergunta a toda a gente. Essa e outras.
-Sim, mas porquê?
-Porque nunca pediste.
-Tu não ofereceste.
-Se tivesse de acontecer, teria de ser pela tua curiosidade e não pela minha vontade.
-É bom?
-Acredito que seja melhor para os homens do que para as mulheres.
-Porquê?
-Acho que nem eles, nem elas, perceberam ainda como pode fazer-se.
-E como pode fazer-se?
-Ao contrário do que a maioria pensa, eu acho que deve ser a mulher a escolher quando isso deve acontecer e, escolhendo, acho que ela deve orientar todo o processo, os pequenos gestos, as carícias, a penetração, tudo isso deve ser ela quem escolhe, quem decide, quem faz…
-Porque pensas isso?
-Porque acho que o sexo só é bom se for bom para os dois, não pode constituir uma invasão e esse tipo de sexo pode ser invasivo.
-Todo o sexo é invasivo…
-Nem todo, mas sim, muito é. Mas este pode ser particularmente invasivo. Ora, se a mulher estiver no comando, isso só acontecerá quando ela estiver completamente preparada, relaxada, desejando que aconteça…
-E…
-E isso é metade do caminho para uma relação bem sucedida…
-E vocês, o que fazem?
-A nós, cabe-nos ser carinhosos, pacientes e… obedientes!
As luzes apagaram-se e quando Kyle adormeceu nessa noite agradeceu em silêncio e pela primeira vez as parvoíces de Pablo Sentido.

As tertúlias eram fantásticas. Eles e elas falavam de tudo, arte, cultura, política, literatura, ciência e discorriam, desenhavam as suas próprias teorias, liam textos, comentavam-nos e decidiam quem eram os verdadeiros artistas, os bons escritores, os políticos de mérito e decidiam também como resolver os problemas do mundo. Havia um momento de que Madalena gostava em particular. Era quando eles analisavam a vida de cada um e davam conselhos sobre o que cada um deveria fazer no futuro. Aquelas pessoas eram genuínas na sua amizade, importavam-se umas com as outras e criavam entre si laços duradouros. Madalena experimentará essa força daqui por uns anos. Para já, o casal Mckenzie é visto como um exemplo do amor puro, da resistência aos preconceitos, da liberdade de decisão da autodeterminação de cada um sobre o seu próprio destino. O gesto de Madalena, quando solicitou a sua emancipação, colheu aplauso e clamor na tertúlia e o seu casamento com Kyle foi um sinal de esperança num Universo moribundo de ideias e liberdade. Jimmy McCarthur, o arquiteto. Um irlandês de famílias abastadas e influentes, amigo de infância de Kyle, que se esperava viesse a assumir a firma de advogados da família, mas se entregou ao trabalho para pagar os seus próprios estudos. Edmond Chevalier, um francês de origens humildes que fizera os estudos com bolsas por via dos excelentes resultados que sempre apresentara até formar-se em Medicina. Exerceu pouco tempo. Refugiou-se na escrita e vive disso. Dominique Pritchard, uma professora belga que seguira a carreira diplomática e estava agora no consulado daquele país em Genebra. Chester Miller, nascido na suíça, descendente de britânicos, empresário na área dos produtos oftálmicos, era uma espécie de advogado do diabo do grupo. Divertia-se a contrariá-los, costumava dizer, Vocês são uns revolucionários de Porto na mão, especialistas do Xerês e do sofá! Eles zangavam-se e zurziam-no de argumentos e no fim brindavam todos. Eram estes alguns dos mais significativos elementos daquela dúzia de amigos que fazia emergir de um bom vinho francês ou de uma garrafa de Porto as mais fantásticas teorias. Tudo fazia sentido para eles e isso era o importante.

Estão juntos hoje. E erguem copos e tilintam uns nos outros e bebem e falam alto e cantam e festejam. Madalena terminou com assinalável sucesso o seu curso profissional e Kyle surpreendeu-a combinando com eles uma tertúlia-festa. Jorraram vivas ao saber, à valorização da mulher, ao poder do trabalho contra a tirania do colarinho branco e alguém disse, com ébrio propósito, Miúda, és finalmente uma mulher livre e armada para vida! E era. Só não o sabia ainda. E, no meio de todo aquele entusiasmo, uma voz se ouviu gritando, Viva a liberdade de expressão sexual da mulher! Um breve silêncio e uma dúzia de pessoas gritou em coro:
-Cala-te Pablo!

Nessa noite, quando chegaram a casa, Kyle mostrou-se inquieto.
-Que tens, velhote?
-Nada, nada…
Era falso. A meio da noite, sem lhe perguntar se ela estava acordada, explodiu:
-Que achas da malta da tertúlia?
-Hummm, vais acordar a Mariana…
-Não é o sono da Mariana que me preocupa, é o nosso. Estamos todos adormecidos. É fácil gritar princípios aos sete ventos numa tertúlia quando todos estão confortáveis e têm um copo de Porto na mão…
-Até pareces o Chester.
-O Chester às vezes tem razão.
-Oh diabo! Estás preocupado com alguma coisa não estás?
-Claro, Madalena. Não sei quanto tempo de vida tenho, não sei o que me resta fazer, mas queria ter uma palavra a dizer na forma como vou gastar esse tempo, queria tentar fazer a diferença, queria mais do que palavras, o ativismo de sofá é uma hipocrisia.
-E porque é que pressinto que já sabes o que queres? E, já agora, pressinto que vem aí coisa da grossa…
-Sim, já decidi…
-Podias ter-me consultado…
-Não precisas acompanhar-me.
-Irei contigo para todo o lado.
-Há a Mariana.
-Irá connosco.
-E sim, desta vez coube-me decidir unilateralmente, mas é mais forte do que eu, estou para morrer e quero ser verdadeiramente útil antes de partir.
-Cala-te com isso! Venha o plano.
-Vais odiar-me…
-Amo-te!
-Quero ir para África…
-Vamos!

———————————– jpv ———————————–


2 comentários

A Paixão de Madalena – Capítulo 6

A Paixão de Madalena

Livro I – A Paixão de Madalena

6. A liberdade é um conceito. Às vezes também é um facto. Uma realidade. Não acontece sempre. E as mais das vezes nem é porque seja cerceada por terceiros, é porque nós próprios a desconhecemos, ignoramos os seus limites, e navegamos pela vida sem percebermos que liberdade temos, que liberdade podemos ter, que liberdade queremos ter e, não menos importante, que liberdade é a dos outros. Madalena sabe. Não sabe porque tenha pensado nisso, refletido e consciencializado. Sabe, porque sente no seu íntimo o desenho dos limites da sua ação, do seu desejo e do bater do seu coração. E foi por isso que decidiu mudar. Não sabe ela porque decidiu naquele momento da sua vida, naquele dia, naquele serão, e, por certo, não o sabemos nós que imperscrutáveis são os desígnios das personagens, mormente, das que são dotadas de caráter e vontade própria, como é ocaso. Ainda assim, podemos deitar-nos a adivinhar. Uma teoria possível é a do irrompimento. Há ideias que irrompem como plantas. Certo será que tiveram seu tempo de gestação, contudo, concentramo-nos nós por força da evidência no momento em que rompem a terra e beijam a luz em sua fragilidade que é afinal a inteira pujança da vida.

Madalena estava sentada num cadeirão da sala. Era uma cadeira antiga com braços de madeira estofados por cima em tecido de flores envelhecidas rodeado por uma fileirinha de tachas de latão pregadas muito juntas. Assentava um cotovelo num desses braços da cadeira e havia dobrado as pernas para as guardar debaixo de si. Tinha um pijama vestido. Segurava um livro aberto com os dedos da mão em V. A luz em redor era suficiente mas amarelecida. Nem ela, nem Kyle gostavam da agressividade das iluminações jorrantes de watts. Tinham feito amor ao final da tarde, depois um duche quente, depois um chá com leite e biscoitos de manteiga e, por fim, abandonaram-se às leituras que tanto apreciavam e estavam devorando páginas quando Madalena começou a mudar de posição frequentes vezes. Ele levantou os olhos por cima do óculos de ler e percebeu que um incómodo a apoquentava. Não era físico. Era uma comichão na mente. Regressou ao livro sem lhe dizer nada nem voltar a olhar para ela. Conhecia-a a bem e sabia que, o que quer que fosse, rebentaria em breve em palavras atrapalhadas e mal organizadas, primeiro, e depois num discurso mais pensado e terno. Decidiu esperar, portanto. Assim foi. Ela estava pensando, desenhando hipóteses, organizando o pensamento e ele, mesmo sem saber, entrou nessas linhas de vida traçadas pelo coração dela. Entrou e interrompeu a sequência do pensamento dela. Havia ali uma informação que, por despiciente que fosse, era fundamental para a organização que ela estava a dar às ideias. Aborrecida pela quebra da fluência das ideias e, sobretudo, pela continuidade do seu raciocínio depender de terceiros, colocou um ar interrogativo e sério e perguntou como quem desafia:
-Tu queres casar comigo?
-Já pensaste na hipótese de abandonares o curso geral e fazeres um curso profissional de contabilidade e administração?
-Não desconverses. Eu fiz-te uma pergunta séria.
-Em primeiro lugar eu não posso desconversar porque não havia conversa nenhuma, em segundo lugar se tu podes fazer perguntas do nada que não têm nada a ver com nada, eu também reclamo para mim esse direito e, por fim, doce Madalena, dificilmente a tua pergunta é mais séria do que a minha.
-Estás mesmo a falar a sério?
-Claro. Muito a sério…
-Hummm, não me apanhas, primeiro a minha pergunta.
-Porquê a tua primeiro? Eu sou mais velho…
-Muito mais velho! Acontece que eu perguntei primeiro.
-Estás a pedir-me em casamento?
-Como?!
-Já vi que não… o que queres com essa pergunta?
-Pensei que era óbvia…
-Mas não é!
-Pois, preciso de saber, quer dizer, estava aqui com um pensamento e de repente pareceu-me importante saber se tinhas intenção de casar comigo um dia, se para ti isto é para continuar, se… enfim, eu tenho uma ideia, vamos dizer uma determinação, mas ela só faz sentido contigo na equação…
-Quase me assustas, mas… mesmo não sabendo se casaremos ou não, conheces as minhas reservas em relação ao casamento, sei que farei parte de todas as equações em que estiveres, enquanto quiseres…
-Queres com isso dizer…
-Quero dizer que seja lá o que for que essa cabecinha esteja a magicar, podes contar comigo para tudo!
-Uau!
-Uau?
-Sim, uau! Já viste que acabaste de fazer uma extraordinária declaração de amor?
-Não pensei nisso, mas tudo o que vai de mim para ti leva amor.
Madalena saiu do cadeirão, dirigiu-se à secretária, abriu uma gaveta, tirou um caderninho e começou a registar apontamentos e a escrever pedaços de texto e unia-os com traços e gráficos e datas. Kyle, em tom sereno, interrompeu-a:
-Não vais responder à minha pergunta?
-Está tudo aqui.
-Onde? Nos rabiscos?
-Não são rabiscos. É um plano.
-Um plano. E acaso posso saber do que se trata? É que muito dificilmente não estarei envolvido nele e tu tens a mania de ter esses ataques de determinação, assumes e fazes e mudas e não perguntas nada… tens de partilhar.
-Tens razão. Em todo o caso isto são coisas minhas… envolvem-te, sim, mas são determinações minhas.
-Não serão nossas?
-Minhas com a tua ajuda…
-Ok, como queiras, o que se passa?
-Quero seguir o teu conselho e mudar para o profissional de contabilidade, quero trabalhar e, sobretudo, quero tratar da minha emancipação.
-Sabes ao menos o que é uma emancipação?
-Vá lá Kyle, leva-me a sério… que sentido faz depender dos meus pais para tudo, para todas as assinaturas e autorizações, estar constantemente a depender dos contactos entre a minha avó e eles, se eu sei o que quero da vida, como quero, com quem quero… eu não preciso de ninguém para decidir por mim ou para me autorizar o que quero para mim. Eu decido a minha vida. Então que isso fique claro. Que se acabe de uma vez por todas com essa farsa que é a tutoria dos meus pais…
-Não forces. Não avances tu, não vás à frente. Fala com Albertina. Ela levantará o assunto, dirá que será mais prático, dirá que é para facilitar e depois entras tu e tratas da papelada…
-Por mim, falava com eles, explicava tudo e arrumava o assunto.
-Não arrumavas nada. Tens de ter sentido estratégico…

E teve. Avançou para o curso de contabilidade. Fez uns exames de equivalência que superou com facilidade e a roçar o brilhantismo. Conversou com Albertina e surpreendeu-se com a naturalidade com que a avó encarou a ideia e se dispôs de imediato a conversar com os pais. Fosse porque reconhecessem a independência de sua filha Madalena, fosse porque o destino os obrigara a confiar os passos da jovem ao critério de Albertina ou, mais seguramente, fosse por medo de acordarem fantasmas do passado e reabrirem feridas nunca verdadeiramente saradas, os pais de Madalena, mesmo discordando claramente da ideia, quase não se opuseram. Uma leve resistência que cedeu aos primeiros argumentos de Albertina. Os papéis foram tratados, assinado o que havia para ser assinado, autorizado o que havia para ser autorizado, renunciado o que havia para ser renunciado, assumido o que havia para ser assumido e uma mulher nasceu. Já nascera a menina, depois nasceu mulher para um homem e agora nasce mulher para si e para o mundo. Em abril de mil novecentos e oitenta e nove, no dia do seu décimo sexto aniversário, Madalena enverga um vestido lilás de roda larga e mangas apertadas no punho com um botãozinho pérola. A entrega do processo foi surpreendentemente fácil. O mais difícil seriam as sessões seguintes. Ora sozinha, ora com Albertina, ora com Kyle, Madalena viu a sua vida vasculhada, a sua intimidade devassada. Respondeu a tudo com serenidade. Três meses depois, numa manhã chuvosa e fria, sai do tribunal, corre para o carro, beija Kyle com sofreguidão e diz-lhe, Conseguimos, meu amor, conseguimos. Já não sou tua por empréstimo, sou uma mulher que decide o que fazer com a sua vida e eu entrego a minha nas tuas mãos, Kyle Mckenzie. Oh! Princesa! A tua vida a ti pertence e a mais ninguém. És uma alma livre, sempre serás. Tens a fragilidade das flores e a tenacidade dos seres mais fortes e resistentes… não serás minha, nunca. Serás sempre de ti e é isso que amo. Serei teu companheiro enquanto conseguir. Deixa-te de lamúrias, irlandês teimoso! Quero-te ao meu lado para sempre, prometes? Prometo. Kyle ainda não sabe, mas há de cumprir a promessa.

Não é que precisasse, mas decidiu trabalhar para sentir o sabor da autonomia. Com a ajuda de Kyle, conseguiu um trabalho à noite num pub onde se jogava snooker em mesas dispersas num enorme salão de mesas atapetadas de verde e longos candeeiros sobre elas projetando luzes fortes. Madalena servia as mesas, limpava-as, mantinha a sala limpa e enquanto se deslocava apaixonava-se pelo jogo. Tudo aquilo lhe parecia matemático e fácil. Calculável como uma equação. Kyle não a vigiava, mas ficava por ali muitas vezes. Agradava-lhe a ideia de a ter por perto enquanto bebia uma Guiness. O orçamento dele daria perfeitamente para viverem confortáveis como, de facto viviam, mas não podia cortar-lhe o sentido de independência e realização que só com o trabalho se conquista. Era preciso que crescesse e este sacrifício de estudar e trabalhar e viver com ele e para ele estava a fazer da menina cada vez mais mulher. De alguma forma, Kyle percebera que só a reteria junto a si se a soltasse. Qualquer atitude de posse, qualquer movimento de retê-la, seria perdê-la para sempre.

Um dia Madalena atrasou-se no trabalho. Era já tarde e Kyle adormecera. Acordou assustado, meteu-se no carro e encontrou o pub fechado com uma luz trémula lá dentro. Bateu à porta devagarinho, sentiu passos, um homem de barba por fazer e uma chama velha de cigarro ao canto da boca abriu-lhe a porta e disse-lhe:
-Entra, não vais acreditar nisto.
-O que se passa?
-A miúda…
-O que tem a miúda?
-Está a dar uma coça ao Liam!
-Ao Liam? Mas… espera, ao jogo?
-Ao jogo… ela tem muito jogo!
-Mas quando é que ela aprendeu a jogar?
-Uma noite destas, o próprio Liam ensinou-lhe as regras e deixou-a experimentar, foi já no fim da noite e, para um primeiro contacto, aquilo foi promissor… depois parece que treinou um bocadinho nas últimas noites depois de fechar o salão…
-Por isso estava a chegar mais tarde. E a dizer-me que era o trabalho…
-Sabes como são os jovens… mas olha que esta vai longe…
-Snooker?! Só me faltava esta!

É claro que jogaram juntos. Madalena ganhava-lhe quase invariavelmente e só quando via Kyle desesperar, errava umas bolas e perdia uns pontos e ele recuperava a sua dignidade masculina. Mil novecentos e oitenta e nove. Dezasseis anos. Uma menina feita mulher entregue a si própria. Uma estudante de sucesso. Uma trabalhadora dedicada. Uma jogadora de um jogo tradicionalmente masculino. Uma alma livre. Um coração indómito. A vida toda pela frente. Quando chegou o Outono e os primeiros frios, acendiam a lareira ao fim de semana e ficavam lendo enroscados um no outro, por vezes trocavam impressões sobre a leitura, outras vezes ficavam em silêncio encostados um ao outro a sentir o calor do fogo e dos seus corpos encostados. Foi num desses momentos que Kyle resolveu reinventar a pergunta:
-Tu queres casar comigo?
Ela não confundiu a pergunta com nenhuma outra e não hesitou na resposta. Já tudo havia sido dito sem palavras, agora que era preciso fazê-lo com elas, sabia bem como. Mais uma vez foi sucinta e direta. O brilho no olhar e o som a ecoar no coração dele:
-Quero!

———————————– jpv ———————————–


7 comentários

A Paixão de Madalena – Capítulo 4

A Paixão de Madalena

Livro I – A Paixão de Madalena

4.-Florence!
-Presente!
-Jacques!
-Presente!
-Louis!
-Presente!
-Madelaine!
-…
-Madelaine! Não há uma Madelaine aqui?
-Não.
-E tu, quem és?
-Eu sou a Madalena.
-A Madelaine, portanto!
-Não. A Madalena. Como saberá, os nomes não se traduzem.
-E tu és a engraçadinha, portanto.
-Não, eu sou a Madalena
-Madaléna?
-Não se pronuncia assim, mas terá de servir.
-E que livro é esse em cima da tua secretária?
-“Orgulho e Preconceito” é da…
-Eu sei bem de quem é! É uma das minhas autoras preferidas e esse é um dos meu livros favoritos.
-Quer então dizer que tem mais jeito para escolher livros do que para pronunciar nomes…
-Tu és atrevida!
-Só quando me provocam.
Quando disse isto, Madalena ruborizou completamente e, aquela que teria sido uma frase de vitória, foi um dar de flanco. Acontece que Kyle não tirou partido disso. Reconheceu-lhe a inusitada coragem, a maioria não teria ido tão longe, mas sabia que estava em posição de vantagem e não quis abusar disso. Ficou intrigado, contudo, com aquela mescla de pureza e atrevimento. Fizeram-se as apresentações, estabeleceram-se as regras de funcionamento da disciplina de Inglês e na hora da saída, Kyle fez um gesto a Madalena pedindo-lhe que ficasse.
-Estou intrigado…
-Com o quê?
-Diz aqui na tua identificação que és portuguesa.
-E sou! Genebra está repleta deles.
-Sim, mas o que faz uma portuguesa em Genebra a ler um livro inglês traduzido em francês… O natural seria estares a ler uma tradução em português…
-Eu quase não sei português. Só o básico, Bom dia, Boa Tarde, e frases curtas e utilitárias…
-E como veio isso a suceder?
-É a história da minha vida, mas acho que não lhe diz respeito. Digamos que vim para cá muito pequenina…
-De Portugal.
-Não. De Londres e antes disso do Quénia e antes disso de Macau, mas, sinceramente, não me apetece falar disso… quase não o conheço.
-Correto. Mas…
-Sim…
-Tens idade para ler esse livro?
-Ha ha ha ha…
-Porque te ris?
-Pela sua presunção! É para aí a quarta vez que leio este livro e só estou a relê-lo porque não consigo comprar mais…
-Tens a biblioteca.
-Estive lá ontem. Não há lá nada que valha a pena ser lido que eu não tenha devorado já!
-Exagero!
-Teste-me!
-Guerra e Paz?
-Fácil, Tolstoi.
-Crime e Castigo?
-Outra fácil, Dostoievski.
-O Senhor das Moscas?
-Mais rebuscado, Golding.
-Cem Anos de Solidão?
-Garcia Marquez… isso não vai ficar um bocadinho mais difícil?
-O Jardim das Quimeras?
-Sim, esse não é para qualquer um, mas adorei… Marguerite Yourcenar. Agora é a minha vez…
-Venha…
-Pavel Pavlovitch?
-Hummm… isso traz água no bico… como autor não conheço… como título também não… apanhaste-me… ou fizeste batota!
-É a personagem principal de “O Eterno Marido” do seu Dostoievski…
-Batoteira, mudaste as regras do jogo. Gosto desse livro… e do autor. Como sabias que eu gostava do Fiodor?
-Básico, a primeira obra que perguntou era dele…
-Poderia ser casual…
-O professor não é um homem de casualidades!
-Mas afinal quantos anos tens tu?
-Catorze.
-És tão novinha!
-Não sou nada. Novinhas são as minhas colegas de turma que só têm catorze anos! Enfim, aquela dos risinhos tem quinze e é ainda mais nova do que as outras!
-Hummm… isto vai ser giro…
-Senhor Mckenzie?
-Sim…
-Porque é que está triste?
-Não estou. Já chega, reunião terminada, podes ir embora Madalénade Portugal que não fala português e andou a correr mundo antes de me aterrar em cima!
-Madalena!

Não saberemos nunca, se no momento de expirar-se a última gota de água no nosso planeta, um ser humano estará no local para presenciar o evento, quem sabe, cheio de sede, sacudindo o fundo de um cantil e recebendo essa gota nos lábios saciando-lhes, pela última vez, um resquício dessa mesma sede. Provavelmente, quando vier a acontecer tal desgraça, já não haverá seres humanos. E, contudo, passamos os dias da nossa vida usando expressões como “até à última gota” sendo que, não saberemos o que será, nem como será essa gota. Vale a expressão, não pela última gota, mas pelo valor dado ao inestimável e indispensável líquido que nos sustenta a vida. Este encontro com Madalena reabriu o espírito de Kyle Mckenzie e, mesmo que o não saiba ainda, há de devolver-lhe a esperança e há de fazê-lo querer sorver a vida até à última gota.

Depois de um percurso intermitente e deambulante pelo mundo, que contaremos com pormenor chegada a altura de o fazer, que, também nós, escritores, temos os nossos caprichos, Madalena veio instalar-se em Genebra com Albertina, mãe de sua mãe, e sua mãe desde tenra idade. Dizemos por vezes que ser avó é ser mãe duas vezes, pois no caso de Albertina, ser avó de Madalena foi ser sua mãe pois que muito cedo lhe foi entregue e a seu cuidado ficou. Agradecida está Madalena por ter tido essa proteção e o Universo, em seus misteriosos desígnios, lhe há de pedir que devolva a generosidade o que ela fará com dedicação e amor. Por agora, importa saber que Madalena está há dois anos em Genebra, é fluente em inglês e em francês e está, desde que chegou à cidade das neves, pela primeira vez, numa escola pública. Tem tido excelentes resultados, mas quase não tem amigos. Chega à escola, vai às aulas, regressa a casa, e nos intervalos de tempo que possa ter, dedica-se à maior das suas paixões: lê. Albertina, a avó-mãe, não só nunca lhe cerceou o ímpeto e o gosto, como lho fomentou e lho alimentou sempre que pode. Aos oito anos já lia alguns dos clássicos da literatura mundial e sempre que lhe surgiam dúvidas, fossem vocabulares, fossem das intrincadas razões das pessoas para serem pessoas, Albertina explicava-lhe com simplicidade e com naturalidade as coisas tal como a vida lhas ensinara.

É curioso como por vezes se pensa que a atração entre duas pessoas é física. E como se pensa também que, não sendo física, é do foro das emoções, como o amor, por exemplo, tendo depois a sua concretização física. Em todo o caso, está a atração entre duas pessoas distanciada quase sempre, e na sua génese, das zonas racionais e inteletuais. Madalena e Kyle são prova de que este senso comum é falho de precisão. Para que duas pessoas se sintam atraídas, basta que se sintam atraídas. A causa da coisa pode bem ser do âmbito racional ou intelectual, como foi o caso. Madalena foi ficando mais vezes no final das aulas e depois mais vezes ainda e depois começaram a encontrar-se, ocasionalmente e sem qualquer arranjo, no refeitório e as suas conversas eram sobre literatura e livros e a interpretação das coisas escritas e do seu sentido na vida que nos é comum. E quando sucedia que, por qualquer razão alheia a ambos ou por propositada prudência de Kyle, não ficavam conversando uns minutos no fim da aula ou à hora do almoço, Madalena sentia-se como se algo lhe tivesse faltado naquele dia e Kyle sentia-se como se naquele dia algo lhe tivesse faltado. Discutiam questões de gosto, debatiam as intenções dos autores, analisavam estilos, esquadrinharam o romantismo de Lord Byron, Jane Austen e Victor Hugo, discutiram os realistas, os neo-realistas, os existencialistas, e aqueles que discutiram só porque quiseram discuti-los, só porque tinham gostado de um livro anónimo de um autor desconhecido. E o tempo e as conversas foram traçando caminhos de emoção no peito e na mente e, sabemos nós e saberá o leitor, em fazendo as contas que são de matemática simples, que havia entre a aluna e o professor vinte e cinco anos de diferença na idade que a cronologia dos dias marcou. E, no entanto, os seus corações não viam essa diferença, as suas mentes não sentiam essa assimetria de tão ocupados que estavam com o estímulo intelectual que cada um representava para o outro. E como sempre acontece quando as pessoas se revelam pelas palavras e pelo sentido que vai nelas, começaram a conhecer-se. Madalena percebeu que o professor de inglês, não era só um professor de inglês, havia um homem sensível e magoado e havia, não obstante o traço triste que sempre o acompanhava, um sonhador, um menino de olho azul que continuava a acreditar nas pessoas. Percebeu, também, que estava divorciado e percebeu que essa era uma ferida muito recente em que ele evitava tocar a todo o custo. Como quando levantamos um penso de uma ferida fresca e a pele vem agarrada. Este homem era, sobretudo, um espírito livre, um amante da vida e de viver, uma pessoa de mente aberta e mentalidade plural e, sendo muito mais velho, era charmoso. Um dia deu consigo a pensar na diferença entre bonito e charmoso. De facto, não podia dizer-se que o professor Kyle fosse bonito. Já o fora, por certo, mas demasiadas dores e algum tempo lhe haviam passado pelo corpo e pelo olhar. E gostava de mulheres, ai isso é que gostava, via-se bem na forma enlevada como falava da sua graciosidade e harmonia. E havia em si uma aura de magnética paz, de boa disposição e de entendimento que puxava. Apetecia estar com ele. A verdade é que Madalena se sentia atraída pelo professor de inglês e em pouco tempo, que estas coisas nunca levam muito, se apaixonou por ele. Só que não soube. Se soubesse talvez tivesse recuado por via de uma montanha de preconceitos que se avistava ao longe como as que cercam Genebra. Quando veio a saber, era já incapaz de recuar. Em abono da mesma verdade que ainda agora se invocou, as coisas não foram iguais na cabeça de Kyle. Foram conscientes, medidas, pesadas e calculadas desde o primeiro momento. Ele soube de imediato, logo naquela primeira chamada, que aquela miúda mexia consigo. Aquele misto de ingenuidade e atrevimento era condimento irresistível. Aquela miúda corava com uma facilidade inusitada e, ao mesmo tempo, debatia literatura e a vida com a maturidade de uma mulher crescida. Kyle sabia que se tratava somente de uma rapariga de catorze anos, mas sabia também que tinha na sua frente uma mulher com mais maturidade do que a maioria das mulheres que ele conhecera, de algumas das suas colegas de trabalho, por exemplo. Retraiu qualquer impulso afetivo que estivesse para além da comunhão das ideias que ambos procuravam e analisavam nos livros que liam, mas sabia que o impulso estava lá. Por vezes, sentia-se mal. Pensava na idade dela, Mas onde raio é que andas com a cabeça, irlandês casmurro, é só uma adolescente! Outras vezes pensava na maturidade dela e nas coisas que passara a vida a ensinar na faculdade e agora também a estes, que o amor não escolhe raça, género nem idade, acontece e pronto. E debatia-se entre aquilo que ensinava aos outros e a coragem de seguir o seu próprio impulso. Um dia marcaram-lhe um desses infindáveis e dolorosos exames. As coisas não correram como esperado e ficou duas semanas em casa acompanhado por uma enfermeira. Na escola disseram somente que o senhor McKenzie estava doente e seria substituído temporariamente por fulano de tal. Ele chorou na cama a sua sorte, quando o coração lhe pedia vida, o corpo negava-lha. E chorou a ausência de Madalena. A enfermeira, com aspeto muito frio e distante, surpreendeu-o, Por que chora, senhor Mckenkie? Está com dores? Não, não tenho dores! Calculei, um choro assim profundo e sentido não vem do corpo, vem da alma, o senhor está com dores de alma? Kyle olhou-a surpreendido e disse-lhe, Acho que sim, e contou-lhe tudo o que estava a passar. Senhor Kyle, estou habituada a ver corpos abertos, a sangrar, a deitar pus, homens de barba rija a gritarem como crianças, mas acho que nunca vi um coração assim dilacerado. A sua história é impressionante e ingénua e pura… Sabe, eu seguiria esse amor, se essa jovem soubesse no que se estava a meter, se a família soubesse no que ela se estava a meter, se o senhor não fosse mais professor dela… percebe… o problema, a meu ver, não é a idade, é o seu relacionamento profissional com a jovem.

-Está melhor?
-Eu não vou melhorar, mas por agora estou.
-Ainda bem. Gosto de saber isso. Não tinha mesmo como avisar?
-Avisar? Eu pedi que avisassem…
-Sim à turma em geral, disseram que estava doente, mas nós, quer dizer eu… pensei…
-Sim. Pensei em fazer-te chegar um recado só a ti a dizer que estava tudo bem, que eram só uns exames, mas… não sei… achei mais prudente não fazê-lo… porquê tratar de modo diferente uma aluna?
-Uma aluna?! É isso que sou para si?
-Que mais podes ser, Madaléna?
-Se não cabe mais nada na sua cabeça, então tem razão… que mais? Nada.
-Cabe na minha cabeça, cabe no meu coração, mas e os outros? Que dirão as pessoas? Tenho mais vinte e cinco anos do que tu e tu… por mais maturidade que tenhas, és só uma adolescente… não quero magoar-te, mas…
-Mas só ficou o preconceito. Já não há orgulho e amor talvez nunca tenha havido…
-Madaléna, imagina que assumíamos tudo o que houvesse para assumir, imagina que tudo era aceite, e não vai ser, imagina que tudo corria bem entre nós e à nossa volta, mesmo assim, eu tenho cancro Madaléna,isto vai matar-me em breve, não me resta muito tempo e o pouco que resta adivinha-se um tempo de sofrimento…
-E como tal, o melhor que encontra para fazer é negar a vida que lhe resta viver! É negar os sentimentos que nutre pelas pessoas que o rodeiam, é… enfim, é morrer antes de ter morrido! Eu estou a falar com o professor McKenzie ou com o cadáver dele?
-Cala-te miúda atrevida, não brinques com o que não conheces!
-Eu não estava a brincar…
-Cala-te!

Durante essa semana não voltaram a falar-se. Ele entrava na sala, chamava os alunos, corrigia os trabalhos de casa em os havendo, dava a aula, fazia perguntas, a ela também, ela mostrava-se atenta, respondia quando alguma pergunta lhe era dirigida e saía da sala sem olhar para ele sabendo que ele estava ocupado a apagar o quadro ou a arrumar os cadernos e não olharia para ela também. E andaram os dois remoendo aquela conversa azeda e relembrando todas as outras interessantes e estimulantes na partilha e na troca de ideias. E outras semanas se passaram até que se digerisse o muito que havia para digerir. Até que se pensasse e pesasse o muito que havia para pensar e pesar. Até que a distância ajudasse a medir a proximidade. E os seus corações serenaram e as suas cabeças discerniram. E um dia, no final da aula, ela deixou-se ficar para trás e quando se dirigia para a porta perguntou:
-Professor McKenzie?
-Sim…
-Todos os irlandeses são assim casmurros ou o senhor é um caso particular?
-Há dois requisitos para se ser irlandês, ser casmurro, beber Guiness e amar portuguesas francófonas que correram meio mundo, amadureceram prematuramente e nos revoltaram o coração no fim da vida!
-A vida não tem fim, Kyle McKenzie.
-Isso é o que veremos, Madaléna…
-Mas… disse dois requisitos e enumerou três…
-Naaa… o terceiro é uma consequência dos dois primeiros!
-Safado!
Madalena deu os dois passos que os separavam e abraçou-se a ele. Kyle retribuiu o abraço com força e ternura e ficaram ali sentindo o imenso amor que os unia até que ele conseguiu dizer:
-Precisamos conversar, miúda.
-Está bem, velhote…
-E preciso conhecer a tua avó.
-Ela já te conhece e sabe as tuas intenções.
-Quais intenções?
-Amares-me para todo o sempre!
-Mas eu nunca disse isso!
-Nem foi preciso, estava escrito na tua cara, no teu corpo e vinha com as tuas palavras mesmo que elas não o dissessem abertamente.
-Safada!
-Sabes quando tive a certeza de que éramos namorados?
-Ai somos?
-Claro que sim, sabes que sim… quando nos zangámos… Eu fui rezingona como a Elizabeth Bennet e tu foste altivo como o Mr. Darcy.
-A vida não é um romance, Madaléna!
-Passas as aulas a dizer o contrário.
-Ainda bem que o ano letivo está quase no fim.
-Porquê?
-Para me livrar de ti e das tuas respostas impertinentes…
-Para te livrares de mim?
-Sim, como aluna. Vamos lá conhecer a avó Albertina!
Não se beijaram. Não era preciso. E também não deram as mãos. Ele acompanhou-a até ao portão e ficou combinado que no sábado de manhã a visitaria para conhecer Albertina. Continuava a achar que tudo aquilo era uma rematada loucura, mas corria-lhe no peito um Camowen de emoções e excitação. Por momentos, pensou mesmo que um dia venceria o cancro. Fantásticos poderes tem o amor. Cura doenças, traz a imortalidade dos amantes e une as pessoas improváveis em improváveis casais. Brota súbito e poderoso e corre para a morte prenhe de vida como os salmões no Strule.

————————– jpv ————————–


2 comentários

Citação das Intrincadas Razões


“Aos oito anos já lia alguns dos clássicos da literatura mundial e sempre que lhe surgiam dúvidas, fossem vocabulares, fossem das intrincadas razões das pessoas para serem pessoas, Albertina explicava-lhe com simplicidade e com naturalidade as coisas tal como a vida lhas ensinara. “


João Paulo Videira 
in “A Paixão de Madalena”, Capítulo 4,
 a publicar em breve neste blogue. 
Foi só uma provocaçãozinha!


5 comentários

A Paixão de Madalena – Capítulo 3

A Paixão de Madalena

Livro I – A Paixão de Madalena

3. Dois princípios primordiais seguiu o Criador quando criou tudo e todos. Foi o primeiro ter tornado todas as coisas e seres distintos de todas as coisas e seres. De tal forma assim é que estando nós contemplando o mar não dizemos, Olha que belas montanhas o Senhor aqui pôs. E assim acontece com tudo o que a este mundo veio parar. Não se confundem os cães com os gatos, não se confundem as águas com as terras, nem as árvores com os ventos, nem o dia com a noite. Muito trabalho deu isto ao Criador pois que, para todas as coisas e seres, dos maiores aos mais ínfimos, teve de encontrar distintivo traço não Lhe cabendo a Ele qualquer responsabilidade pelo tempo que nós, pequenos humanos, possamos levar a encontrá-los e a identificá-los. Ora, sendo esta tarefa, só por si, justificativa dos seis dias que o Senhor levou a criar todas as coisas e seres, com universal reconhecimento para a sua eficácia e níveis de produção no labor, mais séria e difícil se tornou a tarefa quando o próprio Criador, porquanto mais nada existia à altura, ao mesmo tempo que diferenciava tudo, tudo decidiu interligar em abono da coerência do Universo criado. Só assim se percebe que, ao nomeá-lo, de Universo o tenha chamado.
É curioso, pois, que, desde o início dos tempos, andemos nós humanos identificando traços distintivos e buscando a teia de ligações com a qual se urde a coesão. Sendo certo que é mais seguro o método científico, muitos adeptos têm as conclusões empíricas, as mais das vezes por se dizerem fundeadas na experiência e no saber antigo. E é por esta ordem de razões que sabendo o Povo que os rios são uma coisa distinta e diversa do mar, deles veio a dizer que correm para este. Da mesma forma que sabendo as claras diferenças entre o deserto e a floresta, reconhece que as chuvas que caem nesta tornando-a fresca e frondosa se formam sobre aquele. E assim nasceram relacionamentos de empírica raiz e comprovação. O luar e as marés, os movimentos das entranhas da terra e o humor dos animais, a tela paisagística e o caráter dos homens. E será neste último que nos deteremos de forma breve por não nos esquecermos que temos uma personagem para apresentar e uma história para contar. Diz o Povo que os pescadores são bravios e persistentes como o mar e o vento que os moldou. E diz que os habitantes da montanha são firmes e fechados como a pedra que os esculpiu. E diz ainda que são os habitantes da planície tranquilos e de espírito aberto como a planura e a brisa que os soprou. Fossem todas as paisagens simples e definidas como as dos exemplos que acabámos de dar e todas as explicações seriam fáceis. Viveriam os escrevedores os estranho paradoxo de não serem precisos por estar tudo natural e intuitivamente percebido. Sem história. Felizmente, complicam-se os acidentes da geografia e entrelaçam-se os sentimentos e os comportamentos no caráter dos homens carecendo, por isso, de explicação, história contada.

O rio Camowen desce a montanha excitado e rápido, em torvelinhos, cavalgando rochas, precipitando-se e gerando escumas brancas de oxigénio donde saltam salmões em frenesim correndo apressados e ansiosos da morte que os espera. É revolto desde que nasce e quando chega a Omagh ainda traz o nervo no curso e a excitação no passar. As pessoas que habitam ao longo da sua caminhada parecem ter essa pressa, essa agitação e esse sobressalto na atitude. Como se mesmo estando tudo bem, esperassem sempre uma mudança súbita e para pior, mesmo estando tudo feito, algo estivesse constantemente à espera de surgir inacabado. Quando Kyle Mackenzie nasceu, no coração da Irlanda do Norte, em Omagh, corria o ano de 1948 e já nessa altura se contava a história de seu avô materno, Joseph Stewart, homem que, segundo as fiáveis narrativas de pub irlandês sensivelmente à décima Guiness entornada, nascera apressado, vivera apressado e morrera cheio de pressa para ir ao talho. Falara depressa, ao ano, falava depressa e diziam que só a mulher, a pobre Mary, o percebia na plenitude. Fora para a escola antes da idade e abandonara a escola à pressa sem concluir quaisquer estudos porque queria trabalhar no campo onde havia tanto para fazer e ninguém parecia querer fazer coisa nenhuma. Saíra de casa depressa para se casar à pressa com a pressa de honrar a mulher que engravidara numa cópula apressada entre dois negócios de reses no celeiro de um leilão de gado. Com a mesma urgência de ir a lado nenhum lhe fez mais sete filhos, oito ao todo, dos quais seis vingaram e uma viria a parir Kyle com tranquilidade oriunda de outras águas. Fez nascer, prosperar e falir, que é outra forma de morrer, pelo menos seis negócios, todos em torno do gado bovino. Com a mesma pressa que os fazia vingar, assim os perdia e substituía por outros. Contam que se levantava de manhã, ainda a luz do dia não tinha certeza de querer vingar, empurrava o ombro de Mary para a acordar com brusquidão e dizia, Vá lá, mulher, despacha-te, não tarda nada é hora de almoço! Vestia-se e calçava-se num abrir e fechar de olhos, engolia o café e o bacon, saía à rua e começava a dar ordens que podiam, ou não, ter algo a ver com os trabalhos do dia anterior. Tal como o Camowen, Joseph sempre soube para onde queria ir, só não sabia bem como, excetuando o ímpeto e a pressa. Um dia levantou-se, meteu-se no carro e apareceu no rancho a dar ordens e a dizer que se mexessem, que o trabalho não aparecia feito e ele tinha de ir a Omagh. No meio da agitação que era a sua presença, alguém lhe disse:
– Senhor Joseph, está com pressa?
– Que raio de pergunta é essa, rapaz? Eu estou sempre com pressa.
– Sim, mas mais do que nos outros dias?
– Deixa-te de parvoíces e diz lá o que queres que eu tenho mais o que fazer.
– É que o senhor Joseph está todo vestido mas as calças são do pijama.
Ele largou a rir umas gargalhadas muito abertas e semirroucas, tirou o chapéu destapando o fogo ruivo que lhe ardia na cabeça e disse:
– É no que dão as pressas! Já não volto a casa. Não são as calças que fazem o homem.
Era um irlandês determinado e engenhoso e era-lhe atribuída a autoria de diversas engenhocas e mecanismos de utilidade extrema no cuidar e no transportar do gado. Isso e o “Relógio 48”. Quando alguém em Omagh mostrava uma pressa extraordinária, podia ouvir a expressão, Estás a precisar de um “Relógio 48”. A frase nascera certa noite entre a oitava e a décima Guiness, num pub local, quando Joseph disse, O meu relógio não tem 24 horas, tem 48 meias horas!Alguém teve a ousadia de perguntar, E qual é a diferença? E Joseph rematou, As meias horas passam mais depressa. Um dia, já com os cabelos brancos e as rugas com a pressa de lhe marcarem a face, a filharada toda arrumada e entregue à vida e uma carrada de netos beijados à pressa ao fim-de-semana, Joseph saiu de casa, disse, Vou ao talho, e meteu-se no carro. Num cruzamento, olhou para a esquerda e, com a pressa, esqueceu-se de verificar a direita. Foi abalroado por um camião. No funeral, houve quem dissesse que o tinha ouvido mexer-se no caixão e ainda hoje se conta que, fosse por respeito, por medo ou porque o Camowen corria ali ao pé, o Pastor disse no final do serviço fúnebre, Foi o funeral mais apressado que alguma vez celebrei.

O rio Drumragh entra em Omagh não muito longe do Camowen a que há de unir-se. Mas é outra atitude. Sereno e tranquilo, o rio desliza discretamente e há mesmo quem defenda em Omagh que ele só corre por baixo porque as águas superficiais estão paradas. O Drumragh não tem os estreitos nem os acidentes do Camowen. É um rio de curso largo e leito generoso onde é possível pescar um dia inteiro num pequeno bote amarrado por uma corda de nó simples. Todo ele é discrição e serenidade o que não significa que seja um curso fraco, pelo contrário, é uma força de água corrente significativa, mas corre firme e tranquilo sem sobressaltos nem percalços. Sabe para onde vai e vai com graça e doçura. John Mackenzie, pai de John Mckenzie, avô de Kyle Mckenzie, nascera assim, tranquilo, vivera tranquilo e com a tranquilidade de quem parte em viagem se despediu desta vida. No dia em que o pariu, a mãe sentiu uma leve dor, pensou, Vou ter o bebé, dirigiu-se ao quarto, recostou-se na cama e teve-o. Ele cresceu olhando as planuras verdes do Tyrone bordejando a passagem sossegada do Drumragh. Teve uma infância sem sobressaltos, uma juventude sem sobressaltos e um dia chegou junto do pai e disse:
– Meu pai, enamorei-me de Elizabeth O’Leary e acho que vou casar com ela. O que pensa disto?
– Penso que é sensato, mas, meu filho, ela já sabe da tua determinação?
– Não, meu pai, não sabe. Acho mesmo que não tem a certeza de que eu exista, mas, com calma, tudo se faz.
E fez. E foi com ela que casou, foi dela que teve os quatro rapazes. Ao primeiro deu o seu nome por falta de imaginação e para não se aborrecer mais com o assunto. E foi esse primeiro que lhe deu o neto, primeiro também, a quem chamaram Kyle Mckenzie.

Conta-se de John Mckenzie, o pai, que acordava cedo, fazia as suas orações matinais agradecendo a noite descansada e o novo dia, fazia a sua higiene, vestia a roupa que Elizabeth lhe deixara nas costas da cadeira e tomava calmamente o seu pequeno-almoço num ritual de passar manteiga nas torradas, beber o chá com leite enquanto folheava o Tyrone Advertiser. Depois, saía à cozinha para fora, inspirava o ar da manhã e, de olhos fechados, erguidos ao céu, pressentia o dia. Quando abria os olhos podia exclamar, Hummm… isto hoje vai pôr-se bom. E, assim sendo, todas as tarefas lhe corriam com fluidez e normalidade. A ele e aos que o rodeavam, por mais complexas e arriscadas que fossem. Se, por outro lado, ao abrir os olhos, dissesse, Oh diabo, isto hoje é capaz de se complicar,alguma coisa haveria de lhe ensombrar o trabalho ou a vida de forma a exigir trabalheiras e canseiras extraordinárias. Tudo passava, suportava e vencia com o olhar azul e beneplácito, uma palavra de tranquilidade e uma serena palmada nas costas. Certa vez, por descuido, desprendeu-se a cilha da sela, caiu do cavalo e foi atropelado por dois bois que terminavam uma manada a acabar de encurralar. Com o osso da perna a rasgar-lhe o tecido das calças e um empregado a desfalecer lívido, disse para os que sobravam em pé. Tenham calma, o que tinha de ser, já foi, vão lá chamar o médico, digam-lhe que tenho aqui um arranhão. Ficou coxo para o resto dos seus dias e gostou. Costumava dizer que, se não fosse ser coxo, seria um homem como qualquer outro. Aquela era a sua marca de individualidade. Aos noventa e quatro anos, viúvo, órfão de dois filhos e um neto, após um pequeno almoço generoso e tranquilo, comunicou à enfermeira que tomava conta dele que iria recostar-se na cama porque lhe apetecia morrer.
– Não diga disparates, senhor Mckenzie! Para o que lhe havia de dar hoje.
Quando foi ver dele, daí por uma hora, ele lá estava, recostado na cama, com as mãos sobre o peito, as pernas de lado para não sujarem a coberta, os olhos tranquilamente fechados, dormindo o sono dos sonos.

E foi assim que nasceu Kyle Mckenzie, entre a corrente tumultuosa do Camowen e o sereno deslizar do Drumragh, com o sangue apaixonado, determinado e efervescente de Joseph e o olhar azul e a pose tranquila de John. Quando o Camowen e o Drumragh se unem em Omagh dão origem ao Strule, um curso firme e caudaloso, mas de deslizar sem sobressaltos. E pode bem dizer-se que o caráter de Kyle foi temperado por essas águas. A primeira vez que o viu, Joseph não se conteve, Tem o fogo na cabeça, é cá dos meus! E seria, mas não tanto quanto ele quereria. Por volta dos seis anos, começou a ser visto em passeios contemplativos ao longo do Drumragh atirando pedras ao rio, falando às árvores e aos pássaros. Outras vezes, parava, ficava a olhar a água e era como se toda a sua existência, exceto o corpo, tivessem mergulhado e desaparecido no leito do rio e, contudo, gostava de aprender. Nunca se negou a aprender. Aprendeu a selar e a montar um cavalo, os cuidados com a alimentação, aprendeu a negociar num leilão de gado, a transportar os animais, a diferenciar uma rês de cobrição e uma de carne, aprendeu as atribuições de cada funcionário do rancho e como geri-los e, por volta dos dezasseis anos, a família conhecia-o, mas não fazia a mínima ideia de qual seria o seu destino. Quem via nele o Camowen dizia que seria um rancheiro de mão cheia. Quem via nele o Drumragh dizia que ele seria uma alma pacata como o avô John, talvez um médico veterinário, e ninguém conseguia perceber o meio terreno em que o seu caráter crescera e se formara. Exceto a mãe que um dia a um jantar, quando todos se deitavam a adivinhar o futuro de Kyle e a discuti-lo, disse, a destoar das teorias todas, O coração do meu filho não cabe no Tyrone! Ninguém percebeu o que ela quis dizer até ao dia em que Kyle anunciou, sem pedir, Vou para Belfast estudar.E foi. Mas a essa parte da história iremos daqui a pouco. Por agora, importa falar das paixões de Kyle Mckenzie, neto de Joseph Stewart e John Mckenzie, filho de John Mckenzie, criador de gado, contemplador do rio, amador das mulheres.

Aos dezasseis anos, o fogo no cabelo era uma certeza rebelde, o que era justificadíssimo motivo de orgulho, mas não era atarracado, nem de ossatura larga, pelo contrário, saíra esguio e à procura do céu como a mãe, tinha o olhar azul e profundo, sardas na face e nas costas, as mãos grandes e um andar cambaleado. A voz grave e forte com um traço de rouquidão que o fazia parecer mais velho quando falava. Desde que se conhecia que se sabia apaixonado. A raposa de Éxupery queixa-se ao principezinho, Rien n’est parfait, isto porque onde houvesse galinhas, teria de haver caçadores e onde estes não pusessem o pé também não haveria galinhas. Kyle sofria de um dilema semelhante com os pais das raparigas. Arriscou sempre, por vezes até a própria pele. São onze horas, o sol de verão está quase a pino e aquece as águas calmas do Drumragh, ouve-se o zumbido dos insetos cortando o silêncio e de quando em vez uma leve brisa vem sacudir a sombra da vegetação nas margens. No meio do leito está um pequeno bote fundeado com uma âncora pequena. É a calmaria total. Quem olhe a embarcação da margem não vê nada nem ninguém, quase parece abandonada, mas fixando bem a vista percebe-se um certo balançar. Da mesma forma que apurando o ouvido conseguimos perceber uma voz máscula e jovem cortada por um risinho feminino. Ela está deitada de costas no fundo do bote, o sol doura-lhe a pele clara e a brisa sopra-lhe o púbis exposto à luz e ao azul do céu e dos olhos de Kyle que está a seu lado, recostado sobre um cotovelo, elogiando as formas dela e o sorriso enquanto os seus dedos passeiam o corpo oferecido. Baixa-se para beijá-la e é o paraíso. Seguido do inferno:
– Kyle Mckenziiiiiiie! Seu grandessíssimo filho da puta, salvo seja, que a tua mãe é uma santa senhora que não merece o filho que tem, eu vou buscar-te seu atrevido e encho-te o corpo de chumbo!
Kyle manteve-se calmo, riu-se com ela, abraçaram-se. Bastava que ficassem quietos e nada aconteceria. Mas aconteceu. Quando ouviu o ruído dos barcos a motor, Kyle disse-lhe, Fica quieta, eles querem-me a mim, vão atrás de mim e esquecem-se de ti, nunca te levantes. Ela riu, puxou-o para si, agarrou numa mão dele que levou ao seu púbis e disse-lhe ao ouvido, Kyle Mckenzie, não te atrevas a ser apanhado hoje; à meia-noite no celeiro do meu pai! Estás louca? Ou é isso ou nunca mais me tocas. Seja! À meia-noite no covil do lobo! Kyle levanta a cabeça, olha à sua volta, são dois barcos, um vem descendo a corrente e outro vem-na subindo, olha para a margem, pensa que consegue mas, Vai ser por um triz, e faz-se ao rio completamente nu, nada desalmadamente para a margem oposta àquela em que está o pai ofendido, sim, o pai, que a donzela já se percebeu de que lado está, os homens nos barcos percebem-lhe o plano e dirigem-se para a margem, Kyle chega primeiro a terra e começa a correr em direção a um arvoredo perto, quando os homens se preparam para iniciar a sua corrida de perseguição, a rapariga, por curiosidade, levanta a cabeça, um acompanhante do pai ofendido vê-lhe a cabecita a espreitar e exclama:
– Olha, Ron, não é a tua filha!
– Olha, pois não, mas devíamos dar uma lição àquele malandro!
– Sê sensato, Ron, tu não és o ofendido… sabes lá se a rapariga estava ali autorizada…
– Olha lá, mas tu ’tás parvo ou quê? Aquele era o Kyle Mckenzie, a única autorização que ele tem é a sua própria para perseguir todas as raparigas do Tyrone…
– E para curar as tuas éguas quando sofrem de peeira.
– Lá nisso tens razão.
Fez um gesto para os perseguidores de Kyle na outra margem e gritou:
– Rapazes, vamos embora, esse safado não merece o combustível dos barcos nem o tempo que perdemos com ele, além disso nem sei quem é a rapariga…
– É a filha do…
– Cala-te, besta, já te disse que não sei quem é a rapariga!
À noite, no celeiro de telhas falhas, a lua substituiu o sol na cumplicidade dos murmúrios abafados pela palha e a Natureza cumpriu a sua missão.

Outras vezes entregava-se à conversa com os animais. Gostava particularmente de pedir conselhos ao Malte. Fora um garanhão promissor para as corridas, mas a necessidade levou a que a sua força fosse aproveitada nos trabalhos do rancho. Em vez de passar a vida a correr com outros cavalos, tinha nas suas corridas o propósito de juntar as reses do gado. E cobria. A sua linhagem era de tal forma garbosa que os Mckenzie se davam ao luxo de cobrar quantias exorbitantes por cada vez que o espantoso animal plantava uma sementinha de si numa égua da vizinhança. Hoje trabalha pouco. Está velho e cansado mas nunca foi abatido porque se tornou numa figura do Clã Mckenzie e num símbolo do rancho. Kyle gostava de pegar no Malte e caminhar à beira do rio e pelas estradas de terra sem o montar. Ia andando e ia-lhe contando as suas aventuras com as raparigas, os problemas na família, a contabilidade do rancho, os projetos para o futuro e contava depois que o Malte dava bons conselhos. Quando chegava à primeira localidade depois do rancho, entrava no pubcom o Malte pela mão e pedia duas pints, uma de homem e outra de cavalgadura. Mickey, o empregado de balcão, servia uma pint de Guiness a Kyle e vazava dois litros de cerveja num balde, passava o balde a Kyle que o segurava enquanto Malte bebia a sua Guiness tranquilamente. Saíam os dois semiébrios e conversando de coisas menos sérias. Os amores de Malte, o sentido da vida, o significado da sombra das árvores, o porquê de cada rapariga ter um pai e esse pai ser obcecado por caçadeiras… e faziam poesia juntos. Partes desses poemas, aquelas que Kyle conseguia relembrar no dia seguinte, registava-as num caderninho de escrita pequenino que guardava na mesa de cabeceira e tinha escrito na capa “Poemas de Kyle Mckenzie e seu ajudante, o Grandioso Malte”.

A vida no liceu de Omagh também não era fácil para o jovem e ruivo Mckenzie. As alunas queriam estudar com ele, as professoras queriam que ele estudasse para elas, as raparigas queriam-no apanhar sozinho para marcar encontros fortuitos e lutar pela exclusividade da sua atenção, as professoras queriam-no apanhar sozinho para tentar convencê-lo a seguir a sua área e todas, sem exceção, lhe sorriam e, à sua maneira, o seduziam. E Kyle ia bebendo as palavras delas, alunas e professoras, e ia mergulhando nos decotes delas, alunas e professoras, e ia-se deixando seduzir por elas, alunas e professoras e quando cresceu e o percurso no liceu se aproximou do fim, Kyle navegava no corpo delas, alunas e professoras. Gostava de deitar-se com os lábios junto ao sexo delas soprando o púbis para o ver revolto como os rápidos do Camowen e ficava contemplando as formas onduladas dos corpos como se estivesse visitando as dunas do deserto mas com o insuperável odor de um corpo de mulher depois do amor. Era um aluno contraditório, quase misterioso. Andava por ali displicente, um caderno preto no bolso de trás dos jeans, o olhar perdido nas raparigas e na folhagem das árvores, Que andas a fazer Mckenzie? A pensar. A pensar? Pensar, pensamos todos nós. Aí é que te enganas, a maioria de nós não pensa, reage. Pensar dá trabalho, é gerador, iniciático.Viravam-lhe as costas e iam à sua vida e Kyle continuava no labor de pensar. O que é que queres ser na vida , Mckenzie? Pensador. Pensador? Ninguém ganha a vida como pensador! É porque ainda ninguém pensou o suficiente. No último ano do liceu, as coisas precipitaram-se na sua mente. Se bem que o mais correto não é dizer-se que se precipitaram, mas antes que foram precipitadas. Miss Melanie era uma professora de Inglês que usava sempre uma saia de fazenda comprida, uma blusa de seda com gola aos folhos e um grosso casaco de lã por cima. Tinha uns óculos pequeninos, o cabelo apanhado atrás num totó e uma rede a envolvê-lo. Trazia invariavelmente uma pasta de cabedal preta, nunca se atrasava e nunca se esquecia de perguntar por um trabalho que tinha pedido. Foi ela que lhe deu a beber a fluidez melódica de Shakespeare, o romantismo extremado de Lord Byron, a intriga familiar e rural de Jane Austen e a fantástica e perturbante veia realista de James Joyce. E tentou-o com ideias. Um dia disse-lhe, Livra-te de ficares nesse rancho a dar cerveja a um cavalo, já pensaste que, ao contrário do que te deixam acreditar, tu podes viver de pensar e, mais importante, de ensinar a pensar. Tu percebes a literatura, tu sentes a literatura, tu vives a literatura e, à parte algumas falhas por desleixo, tens um bom domínio do inglês, darias um excelente professor, não fiques aqui, Kyle Mckenzie, vai estudar miúdo, vai estudar, andas fascinado com todos esses autores e as suas ideias e a sua sensibilidade e nem sabes tudo o que estás a perder, há mais, Kyle, há muito mais e na universidade podes ter acesso a tudo.O discurso, diversas vezes repetido, era motivador, espicaçava a curiosidade mas só por si não provocaria uma epifania. Susy provocou. A verdade é que, nesse ano, Miss Melanie, de palavras distantes, mas apaixonadas, adoeceu gravemente, fruto da idade a que estamos, todos nós humanos, sujeitos. E foi o contraste de todo esse entusiasmo, dessa capacidade de fazer parecer que cada palavra era um milagre, com o discurso leviano e superficial de Susy que o levaram a decidir. Era uma rapariga jovem, recém-formada, reagiu muto bem aos encantos dele e sabia perfeitamente o que estava nas páginas centrais dos tablóides, o problema é que, para ver o milagre das palavras em Shakspeare ou em Joyce, era preciso um pouco mais e para esse pouco a ela faltava-lhe muito. Susy está deitada na penumbra do seu quarto alugado em Omagh. Ao seu corpo nu chega uma ténue claridade que faz bailar sombras no seu ventre e derrama nos seios pequeninos e redondos um mar de prata. Kyle está como mais gosta, com os lábios junto ao sexo dela soprando os pelos do púbis. Fazem pouco efeito porque estão aparados muito curtos como se fossem um risco preto numa folha prateada de luz. Ele observa-lhe as formas, apetece-lhe perceber aquele encanto, quer saber o que pensaram e o que escreveram os homens sobre as maravilhas do mundo e, entre elas, sobre esse deleite que é observar um corpo tombado, oferecido à luz ténue e prateada de um fim de tarde. E, estranhamente, lembrou-se de Miss Melanie. Nunca a senhora lhe oferecera o corpo, nem a ele nem a nenhum outro homem em toda a sua vida, mas dera-lhe as explicações todas, as possíveis, dadas as limitações. Susy, por seu lado, dera-lhe o corpo sofregamente, mas não tinha uma única explicação que superasse a banalidade e Kyle, contemplando-lhe as formas, percebeu que lhe faziam mais falta as explicações. Faziam-lhe a falta toda. Levantou-se, vestiu-se à pressa, deixou-a com uma interrogação na mente e outra nos lábios, Está tudo bem, Kyle?Ele não chegou a responder. Apressou-se. Chegou a casa e disse, Meu pai, minha mãe, vou para Belfast estudar.E foi. Inscreveu-se nos exames que superou com assinalável sucesso,matriculou-se no curso de Língua e Literatura Inglesa e quando foi aceite chegou-se a casa de Miss Melanie e disse-lhe baixinho, Conseguimos, Miss Melanie, conseguimos. Ela sorriu, prostrada na cama, e respondeu com ternura, Conseguiste, miúdo, tu é que conseguiste e, Kyle, isto é só o princípio. No outono de 1967, Kyle entra em Belfast com dezanove anos para conquistar o coração da cidade e desbravar todo o saber. Conquistará Belfast, há de desbravar muito do conhecimento e será também em Belfast que o seu coração ficará cativo para quase sempre.

É para nós informação óbvia sabermos que habitamos uma cidade se de uma cidade se tratar. E por vezes, seja por ignorância ou por vício, ao dizer a palavra cidade, fazemos a evocação mental de um emaranhado de edifícios. Nada mais errado, porquanto as cidades são, sobretudo, o que nelas se vive e como se vive. Já constitui facto menos óbvio e percetível haver cidades que nos habitam. Podemos até nunca ter vivido nelas, mas vive em nós o seu espírito e se calha o destino levar-nos até lá, de imediato nos identificamos e concluimos, Oh, mas eu sou daqui! É um fenómeno recorrente identificarmos em nós o espírito de uma cidade. Descobrirmos, como já se disse que éramos habitados por ela mesmo antes de habitarmos nela. Foi essa compatibilidade e essa sintonia que Kyle Mackenzie descobriu em Belfast. E por isso a sua adaptação foi tão rápida e harmoniosa. Há pouco tempo lá estava e era como se lhe conhecesse os segredos todos, como se sempre ali tivesse vivido. Os três primeiros anos foram o perfeito encantamento, o príncipe e a princesa, o enamoramento do homem pela urbe que o completa. Frequentava as aulas, empenhava-se nos trabalhos, debatia com os colegas e com os professores, escrevia para o jornal da universidade, ia a palestras sobre tudo o que lhe interessasse, História, Filosofia, Arte e sempre, sempre a Literatura. Organizou tertúlias e outras organizavam-se sozinhas e eram as mais apetecíveis, noites inesperadas e espontâneas a discutir o pensamento do Homem e a sua expressão, bebendo Guiness e beijando quem se deixasse beijar ou devolvesse a carícia só porque sim. Tudo começava num pub e acabava no dia seguinte em casa de alguém, corpos seminus e mal acordados, a vida saboreada, discutida e levada do prazer do estímulo intelectual até ao suor gemido da carne. O ruivo de Omagh começou a ser conhecido em Belfast e a criar a sua teia de relações de tal forma que, quando voltava às margens do Drumragh, se sentia pacificado e inquieto. Primeiro, pela tranquilidade que bebia do lugar. Depois, porque lhe faltava o ópio e esse ópio chamava-se Belfast. Era comum ouvir-se nos corredores da universidade frases como, O ruivo disse, O ruivo marcou, O ruivo mandou fazer… Kyle conquistou Belfast e tomou posse no trono do conhecimento e dos relacionamentos. E, da mesma forma que Belfast era para si uma droga, ele parecia ser uma droga para Belfast. Havia quem arriscasse que Kyle nunca mais deixaria a Irlanda do Norte, mas, como o leitor já percebeu, enganou-se quem tal disse e se tivesse feito aposta, perderia. A sua mudança começou em 1970 e o curioso é que daí em diante e até conhecer Madalena, as coisas iam suceder-lhe de dois em dois anos. Como ele diria mais tarde, Vivi de biénio em biénio.Um dia, nesse ano, cruzava um dos jardins junto à universidade, abraçado a amigos, e viu-a passar entre duas moças com quem conversava. Era alta, muito loira, os olhos verdes e líquidos, as ancas generosas e tinha um sinal junto ao nariz, por baixo do olho direito. E deu-se o caso incomum de ele ter olhado para ela e ter continuado a conversa como se nada tivesse visto, mas algo lhe ficou gravado na mente que o suspendeu da conversa , deu mais quatro ou cinco passos, segurou os amigos que o ladeavam por um braço para os calar e perguntou:
– Vocês viram aquilo?
– Aquilo o quê, rapaz?
– Vai ali a mulher da minha vida!
Os tipos abriram a boca, pensaram que era Guiness a mais e iam para gozar com ele quando ele lhes virou as costas, correu para o grupo de moças e perguntou ^`a do meio:
– Olá, como te chamas?
– Sandrine…
– Sotaque… francês!
– Suíço! Se é que isso existe…
– Deve existir, tu, pelos vistos, tens um…
– Sim, tenho, querias…
– Queria perguntar-te se queres passar o resto da tua vida comigo…
– Se quero, não sei, mas acho que o mínimo que posso fazer perante tanta ousadia é perguntar quem pergunta.
– Kyle Mckenzie… já viste como soa bem?
– O teu nome?
– Não. O teu. Sandrine Mckenzie. É brutalmente multicultural.
– Bebes uma cerveja, Kyle Mckenzie?
– Não, mas aceito uma Guiness!

Era uma daquelas moças que está uma temporada noutro país a estudar ao abrigo de um programa com o nome de um filósofo antigo qualquer. Ao cabo de três meses viviam juntos. Foi numa paixão fulminante e intensa. Eram de áreas diferentes e costumavam brincar dizendo que se completavam. Kyle mostrou-lhe a cidade, leu-lhe poesia ao luar e à chuva, fizeram amor em todos os locais que consideraram dignos do seu amor, dançaram, riram, choraram e quando ela partiu, Kyle ficou melancólico e abatido e iniciou um período de visitas frequentes a Genebra, ao longo de um ano, para visitá-la e tocar-lhe e beber-lhe a vida e o espírito.

O inverno vai rígido. O frio aperta com inusitada severidade. Finda janeiro de 1972 e as piores vontades dos homens combinaram encontrar-se no domingo, dia 30. Kyle espreguiça-se na cama desfeita do quarto em desalinho e batem-lhe à porta com tal força que parecem querer derrubá-la.
– Kyle! Ruivo, ó ruivo, acorda, pá!
Ouve as vozes, dirige-se para a porta, quatro ou cinco colegas irrompem pelo quarto em altercação e o confuso é que Kyle não consegue perceber se estão assustados ou entusiasmados e isso há de entristecê-lo em breve.
– Mas afinal o que é que se passa?
– Foi fantástico e terrível, pá, colocaram uma bomba numa igreja e limparam o sebo a uma carrada deles!
– Onde é que foi isso?
– Em Derry, pá! O que pensas disto?
– Desnecessário. É uma catástrofe desnecessária. Nós pensamos o que pensamos e às vezes pensamos pouco. Algum de vocês é protestante porque pensou no assunto ou herdaram todos essa condição como se fosse uma doença?
– Não digas isso, pá, eles são separatistas, pá!
– Sim, e nós somos unionistas! Andamos a unir o quê, rapazes? E como? À bomba! Eles cometem crimes, nós cometemos crimes e tudo não passa de um gigantesco crime e têm razão, rapazes, é preciso fazer alguma coisa…
– O que é que vais fazer, Ruivo?
– Vou a Derry!

Kyle foi a Derry depois do domingo sangrento, visitou as famílias de algumas vítimas, sobretudo as mais jovens, e pediu-lhes desculpa pela insanidade dos homens. E rezou com elas. A sua alma enlutou-se de vez. O sol da sua vida estava em Genebra. E aqui, a violência atingia expressões indignas da sua terra natal. Concluiu o curso nesse ano. Lecionou inglês durante um ano em Belfast, mas não conseguiu suportar a escalada de agressividade e violência, não conseguiu assistir aos seus colegas conspirando atos de morte, não conseguiu suportar a ausência de Sandrine. Em 74 mudou-se para Genebra, definitivamente. Nunca mais daí sairia. Exercia como professor de inglês na universidade e visitava regularmente as margens tranquilas do Drumragh ou as revoltas do Camowen. Essa regularidade foi-se perdendo e as visitas à Irlanda tornaram-se mais esporádicas. Vivia para Sandrine. Envolto no amor por ela. Com ela. Dois anos depois casaram. Uma cerimónia íntima de meia dúzia de pessoas, umas palavras de circunstância e fugiram para uma cabana na montanha a fazer amor. Não frutificou, então, mas viria a dar frutos mais tarde. Duas meninas, Mary em 78, pelo trigésimo aniversário de Kyle e em 80 veio a rebelde Charlotte. Kyle dedicou-se em exclusivo às suas três mulheres e fez delas a sua alegria e a sua razão de viver. Percebeu a importância de ensinar jovens. Ser pai fez-lhe mudar muitas opiniões e perspetivas. E foi por essa razão que em 82 mudou de trabalho. Continuou como professor de inglês, mas optou por ensinar os mais jovens no secundário. E essa opção viria a mudar a sua vida, por mais breve que fosse. Viria a dar-lhe a oportunidade de acreditar de novo no Ser Humano. E bem precisava. Sandrine, paixão de juventude, mulher nas alegrias e nas tristezas, mãe das suas filhas, fora surpreendida na cama, suando com outro homem, gemendo com um estranho. Essa infidelidade corroeu-o por dentro, desiludiu-o em relação a tudo e a todos. Kyle declarou que 1984 seria o ano horribilis da sua vida. Enganou-se. Em 1986 foi-lhe diagnosticado um cancro no cólon e o casamento, de mil maneiras fragilizado, sucumbiu. Atormentado por uma doença cuja fama a precedia, a exigir exames e tratamentos violentos, fustigado pela deceção de um divórcio que se anunciara e surgira na pior altura, Kyle não espera nada da vida nem das pessoas. Assim, quando o ano letivo de 1987/88 começou, o homem que entrou na sala de aula apresentado como professor de inglês era um tipo cinzento e desiludido. Acontece que a vida não se domina nem se controla e tem os seus próprios caprichos. A nós, humanos, cabe-nos aceitar a nossa vulnerabilidade e passar o tempo com a maior dignidade possível e, se for caso disso, usufruir das boas surpresas que ela nos reservar. A Kyle reservou só mais sete anos, mas reservou-lhe os mais luminosos, os mais intensos, e os mais belos. Esses sete anos valeriam uma vida, como já se disse. Valeram a vida de Kyle Mckenzie e a paixão de Madalena.

———————- jpv ———————-


Deixe um comentário

A Paixão de Madalena – Ponto de Situação

Caros leitores e amigos,

tem sido muitas as mensagens de correio eletrónico perguntando pelo terceiro capítulo. Tal como anunciei, estou numa fase muito atarefada e a publicação pode ser mais lenta. Ainda assim, sempre vou dizendo que este terceiro capítulo é muito extenso. Cinco ou seis vezes maior que o segundo e a sua preparação tem sido demorada. Está para breve… Grato pelas vossas mensagens.
jpv


10 comentários

A Paixão de Madalena – Capítulo 2

A Paixão de Madalena

Livro I – A Paixão de Madalena

2. Há cidades que exercem sobre os seus habitantes e visitantes uma magia especial como se algo nos fosse familiar mesmo sendo a primeira vez que lá vamos, como se pairasse no ar certa nostalgia ou ainda como se houvesse a comunhão de um sentimento coletivo clara e facilmente identificável. Genebra tem esse sentimento. É a paz. A tranquilidade. Rodeada de montanhas cobertas por mantos brancos de neve, composta, na parte velha, de ruas estreitinhas e típicas, a cidade usufrui, sobretudo, da presença do imenso lago. É como se aquela água límpida, quase sem ondulação, sussurrando nas margens, transmitisse uma paz comum. Hoje em dia, o trânsito já se vai vendo caótico, sobretudo na travessia do lago, mas na década de noventa, quando Kyle Mckenzie aí vivia, o frenesim urbano era mínimo e Genebra podia descrever-se como uma aldeia grande. Estamos nos primeiros dias de outubro de 1994, o frio começa a fazer sentir-se, as nuvens de neve vão cercando as montanhas que, em breve, estarão brancas como véus de noiva. Já sabe bem um casaco de pele ou mesmo de penas. Sendo trágico perder-se uma vida humana, sempre que tal acontece, e aconteça com quem acontecer, mais trágico se torna quando a pessoa que deixará este mundo sabe o que vai passar-se. E Kyle sabe. Há vários anos que luta contra esta doença, fez os testes todos, fez todos os tratamentos, ganhou, perdeu, avançou para a vida e cedeu espaço à morte, mas hoje, neste preciso momento em que Madalena lhe segura a mão e lhe diz, Não partas, não podes partir, falta fazer uma coisa, pelo menos uma, quero ter um filho teu, nosso, tu sabes, Sim, eu sei, mas não posso já cumprir essa promessa, meu amor, acho que o meu tempo se esgotou, não sinto forças para continuar, também eu quis esse fruto do nosso amor, mas não foi possível, acho que os deuses nos invejaram, Kyle sabe que não sobreviverá a este ataque silencioso da doença. Como se houvesse formas diversas de conceção natural, Madalena cerra os dentes, fecha os olhos, leva a mão de Kyle ao seu ventre e deseja um filho dele, um filho do amor perfeito. Ele pressente a intenção, sorri levemente e murmura, Sempre uma sonhadora…

O último ano fora uma tortura. As dores, as perdas de consciência, as consequências devastadoras da quimioterapia. Tinha resistido bem nos últimos sete anos, tinha combatido de todas as formas possíveis, seguiu todos os conselhos e fez as experiências todas, até o xarope de aloé vera, o cato milagreiro, mas o facto é que a missão em África o fragilizara bastante e agora não lhe apetecia mais, não conseguia mais sobreviver. A morte havia vencido pelo cansaço. Não leva arrependimentos, exceto não ter dado a Madalena o filho que ambos desejavam. Com esforço e sofrimento, ainda tentara há um par de meses atrás, mas o seu amor, abençoado de tantas formas, parecia não ter colhido a bênção do Senhor naquela vontade.

Madalena passa-lhe uma mão pela face, vê-o muito fraco, completamente vulnerável e pressente, também ela, que o vai perder. As máquinas à sua volta fazem bips metálicos, mostram gráficos e de quando em vez cospem tiras de papel. O quarto está escurecido e não são permitidas visitas à exceção da mulher de Kyle. Ela beija-lhe as mãos e a face e a testa e repete mecanicamente, como se tivesse desaprendido todas as outras palavras, Meu amor, meu amor, meu amor…Nunca chorou junto a ele. Kyle era a fonte da alegria e da vontade de viver, não poderia, não quereria, trazer sinais de tristeza à sua beira. Foi quando saiu do hospital que Madalena explodiu num choro desesperado e convulso, caminhava sem destino a ver se a dor a perdia por entre o emaranhado das ruas, limpava as lágrimas com as mãos e continuava a chorar e a dar gargalhadas pelo meio do choro à medida que imagens da sua vida em conjunto lhe afloravam à memória. Às vezes, quando queria fazer amor com ela, Kyle brincava com a sua diferença de idades, Princesa, anda cá ao velhote, vamos ver se isto ainda funciona, e viam e acabavam mergulhando em carícias apaixonadas até a princesa e o velhote tombarem suados e exaustos. A própria cidade lhe parecia mais triste, menos amistosa, menos acolhedora. Só mais tarde perceberia, mas a verdade é que Madalena nunca viria a superar a perda de Kyle. Conhecera-o. Entusiasmara-se com ele. Aprendera com ele a ser mulher. Entregara-lhe a vida. Rira com ele. Chorara com ele. E agora ficava-lhe um vazio profundo no peito. Madalena perguntava-se se seria possível, se seria justo, se seria humano, conhecer o homem da sua vida, encontrar o amor dos amores e só poder desfrutá-lo durante sete anos. Poderiam sete anos valer uma vida inteira de paixão e de amor? Não compreendia porque teria de morrer o homem que lhe mostrara a vida, que lha entregara. No último ano, Kyle não se cansou de repetir, Princesa, não te preocupes, vais encontrar um homem melhor do que eu… e mais novo! Não sejas tonto, Kyle, não há dois homens como tu. Tu és como essa cerveja irlandesa que bebes como água, podem fazer outras, mas é na Guiness que está a essência. Ah, princesa, a Guiness! Essas garrafas fazem milagres! Kyle Mckenzie, comporte-se! Riram da partilha cúmplice e ambos souberam que Kyle a havia libertado. E ela percebeu que essa era só mais uma razão para nunca desprender-se dele.

Olhando a cena que agora presenciamos, podemos dizer sem grande risco de imprecisão que lá fora é Genebra e aqui dentro é Belfast. O lago adormecido e calmo exala tranquilidade. Está frio. O manto branco circundante da cidade cresce a cada noite que passa. É manhã, mas ainda muito escuro. Madalena está na cozinha, tem um café forte fumegando em cima da mesa, ao lado, scones que acabou de confecionar e está de frente para o fogão onde rebrilham tiras de baconfrito com ovos estrelados. Espremeu duas laranjas e juntou um pouco de água. Decidiu reviver sozinha todos os rituais que praticava com Kyle. Tem-no gravado na alma e no peito. Quer também incluí-lo nos seus gestos do dia-a-dia. Vai cantarolando “The Whole of the Moon” dos Waterboys e prepara-se para começar a comer. Algo aconteceu, contudo, que não tinha acontecido ainda. O odor perfumado do bacon e dos ovos, o aroma do café, tudo isto que, normalmente, lhe fazia crescer água na boca e comer com satisfação trouxe-lhe, súbito, um vómito. Correu à casa-de-banho e vomitou tudo o que tinha no estômago. Água. E pensou, Mas ainda nem sequer comecei a comer, deve ser a sugestão. E voltou à cozinha. Desta vez nem precisou sentir o cheiro da comida, assim que avistou ao longe os ovos, foi acometida de novos vómitos. Enfiou a cabeça na sanita e expeliu água. Colou os olhos na parede e gritou: Kyle!Pegou na carteira, desceu as escadas numa correria de saltar degraus, saiu para o frio com um braço no ar e a palavra a saltar-lhe dos lábios, Táxi! Táxi!Entrou na farmácia afogueada, com o peito cheio de esperança e medo e antecipação:
– Um teste de gravidez, por favor.
– Que idade tem a menina?
– A suficiente para estar grávida do meu amor.
– De acordo.
– Posso usar a casa-de-banho?
– Claro que sim, respondeu-lhe o farmacêutico perguntando a si mesmo que urgência poderia haver para saber uma jovem se estava grávida ou não. Se não estivesse, problema encerrado. Seria talvez o melhor. Se estivesse, nada poderia fazer agora se não esperar, marcar umas consultas, contar à família, ao pai e continuar a esperar. Pensou isto o farmacêutico porque desconhecia as aflições e as urgências de Madalena, as mesmas que o amável leitor já conhece.

A casa-de-banho era pequena, mas Madalena não precisava de mais. Um lavatório com um espelho por cima e a sanita onde está sentada. Lê apressadamente as instruções e inicia os procedimentos. Dois minutos mais tarde agarra na prova da sua satisfação e sai à rua com o teste de gravidez em punho gritando, pela segunda vez nessa manhã, Táxi! Táxi!

Depressa! Depressa! Repetia ela ao segundo taxista do dia. Entra no hospital com a roupa em desalinho e o peito em sobressalto, atravessa um corredor, sobe dois pisos de elevador, respira fundo, sai para outro corredor, dirige-se à ala de internamentos de oncologia, Deixem-me passar, preciso falar com Kyle Mckenzie, sou a mulher dele, deixem-me passar. Um enfermeiro segura-a, tenta acalmá-la, puxa-a para uma salinha e diz-lhe, Tenha calma, por favor, tenha calma, precisa ouvir-me. Ela pressente as piores notícias e grita, Ele morreu? O meu Kyle morreu? Não. O senhor Mckenzie não morreu ainda, mas temo que as notícias não sejam animadoras. Como assim? Deixe-me falar com ele. Eu deixo, mas ele não vai poder ouvi-la, há duas noites atrás, pouco depois da senhora sair, o senhor Mckenzie entrou em coma e nada indica que vá recuperar, infelizmente só os aparelhos de suporte de vida o mantêm entre nós. Madalena levanta-se, ignora as palavras e os avisos do enfermeiro, corre para o quarto, ajoelha-se junto à cama de Kyle e fala com ele entre lágrimas e soluços, Acorda, meu amor, acorda, acorda seu irlandês teimoso, vamos ser pais, conseguimos, conseguimos, ouve-me, Kyle, ouve a tua princesa, conseguiste, Kyle, conseguiste, ficará entre nós uma semente de ti, o fruto do nosso amor. Dizia estas palavras como que esperando que a maravilha da notícia o despertasse, como se, pronunciadas as palavras de anunciação, Kyle se libertasse dos tubos e dos fios e das máquinas e lhe respondesse, Sim, princesa, conseguimos, vês, o teu velhote ainda funciona. Ela esperou depois algo mais ténue, um sinal impercetível, um sorriso tímido, um piscar de olhos. Nada. Kyle Mckenzie não voltou a acordar. Nunca saberia, neste mundo, que fora pai. Morreria semanas mais tarde naquele quarto de hospital. Morreria, por ironia, junto à estação do nascimento dos nascimentos, o Natal. Madalena recebeu do seu professor uma última lição. Aprendeu que pode um homem estar morto e vivo ao mesmo tempo. Pode jazer inerte e frio numa cama de hospital e fervilhar de vida no ventre de uma mulher. É preciso ser-se um homem especial para conseguir tal feito. É preciso ser-se uma mulher especial para aceitar a vida de um tal homem e dedicar-lhe com devoção a alma e todo o amor de que se é capaz.

É por serem especiais que contaremos a sua história. Fazemo-lo já porque maio não vem longe e com ele chegará o fruto do seu amor: Jacob.

——————————– jpv —————————–


9 comentários

A Paixão de Madalena – Capítulo 1

A Paixão de Madalena

Livro I – A Paixão de Madalena

1. A tarde cai. Fenece a luz do dia. Um manto cinzento e triste cobre esta Terra que viemos habitar. Já o coroaram de espinhos. Já percorreu a última estrada. Caiu e levantou-se. Chegou carregando o seu próprio madeiro. Ao madeiro o pregaram. O madeiro ergueram. Do madeiro sangrou fundindo carne e sangue e lenha num só. Escarneceram dele com propostas materiais e impossíveis, Se és o Senhor, liberta-te daí! E não viram que não foi pela matéria que deixou pregar-se. Não foi a matéria que quis libertar. Ferido, cansado, acertadas as contas com o ladrão a seu lado, desceram o madeiro e descravaram-lhe o ferro da carne. A mãe o tem no colo e o limpa e o acaricia. E junto a ela outras mulheres de família ajudam a tratar o corpo do Homem, filho do Senhor e da Mulher escolhida para o entregar ao mundo. E entre elas uma outra mulher. Sem laços de família nem outro direito ao seu corpo que não fosse tê-lo amado. Madalena.

A mãe e as demais familiares podem reclamá-lo como seu, podem chorá-lo e todos acharão legítimo esse choro. Um choro de dor. Um choro de posse. Acredita o escrevedor humilde destas linhas que Cristo veio até nós para amar. Para ensinar-nos o amor e a salvação por ele. Acredita e sente-se confortável com tão nobre crer. E que Cristo seria o nosso se não conhecesse todas as formas de amor e, conhecendo-as, as não quisesse experimentar a todas? Sim, preferimos a ideia de um Cristo amador que amou tudo de todas as maneiras inclusive as mulheres à maneira dos homens. E, tendo-o feito, que outra mulher poderia ter sido amante de Si que não essa que se encontra aí prostrada, lavada em lágrimas de silêncio, limpando-lhe as feridas do corpo?

Sim. Amou Cristo a Madalena. E amou Madalena a Cristo. E outro laço não tiveram que a certeza desse amor. Cristo despojou-se do Seu corpo e entregou-lho. Madalena despojou-se da sua alma e ofereceu-lha. E enquanto as outras mulheres o limpam em gestos de posse, chorando a perda, Madalena percorre-lhe o corpo com um pano humedecido, limpa-lhe as feridas e reconhece-lhe as formas e fá-lo em gestos de desprendimento e dádiva. Deu Cristo a vida pela Humanidade e resgatou-a. Deu Madalena a alma pelo amor do filho do Senhor e encontrou-os. Ao amor. E ao Senhor. E encontrou um caminho de arrependimentos e expiações pelo poder resiliente do Amor.

Desceram o madeiro. Descravaram-lhe o ferro da carne e ficaram as mulheres limpando-o. Mas só uma o conhecia por inteiro. A si e ao seu legado de Amor. Madalena.

—————– jpv ———————


2 comentários

"A Paixão de Madalena" – Advertência

Caros Leitores e Amigos,

Há uns dias prometi começar a publicação do romance “A Paixão de Madalena” em setembro e é isso que farei. Impõe-se, contudo, uma explicação que funciona também como advertência. Embora os capítulos iniciais estejam escritos e revistos, muito falta ainda redigir e rever e corrigir. Como sempre faço, estou a investir muito neste texto. Gostava imenso que resultasse num texto bem escrito com uma história interessante e, de preferência, bem contada. Tudo isto acontece numa fase em que várias mudanças estão acontecendo na minha vida pelo que venho alertar-vos para eventuais demoras na apresentação dos capítulos.

Quem seguiu os romances anteriores, apercebeu-se de que, normalmente, não gosto de fazer intervalos de publicação superiores a cinco dias. Honestamente, não sei se será possível. Sei que tentarei. A investigação está feita. A estrutura está concluída e a redação começada. Tudo dependerá de como a vida se apresentar nos próximos meses.

Queria demorar um pouco menos de um ano a concluir e publicar aqui no MPMI este romance até porque tenho já na calha um outro projeto que me anda a fazer comichão na mente.

Assim, posso adiantar que os cinco livros que apresentei se desdobrarão por 35 capítulos. Ora, se conseguisse publicar um capítulo por semana, em nove meses, mais coisa menos coisa, teríamos a publicação concluída.

Dada a satisfação por respeito aos leitores que decidirão se seguirão, ou não, a história, resta-me um “até já” e desejar-vos boas leituras. Divirtam-se!
jpv