Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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Estórias ao Acaso: Noite Fria (IV)

Noite Fria (IV)

Seguiram de mão dada, em silêncio, por mais algum tempo. E só a pouco e pouco as palavras foram regressando à vida. Coisas banais, primeiro, depois foram crescendo na conversa as ideias e em pouco tempo falavam entusiasmados do tempo que tinham passado sem se contactar, os porquês, as razões que levaram a vida a ser a vida. Falaram dos seus percursos, sorriram nos detalhes, estiveram sérios nas questões mais graves, disseram parvoíces, comentaram uma fachada e uma velhinha que passava. Foram prosaicos e poéticos. E riram. Ela ria alto, um riso franco e seguro. Ele sorria e contemplava a mulher desta vida. E falaram das diversas vidas. Desta e da outra. Nem as tentaram justificar. Sabiam que se tratava de rios paralelos, sem concorrência, correndo os dois para o mar sem se atravessar. Nesse momento houve silêncios. Ambos sabiam que viriam a atravessar-se ou um secaria. Estava longe, ainda, esse tempo. Sim, estava. Não interessava agora ali. Não era um pensamento para este dia nem para este encontro.
Os seus passos como que os conduziram acompanhando o ritmo da conversa. Foram buscando, por intuição, um espaço agradável para aquele tempo limitado por razões que agora não vêm ao caso, nem acrescentam nada à estória.


E pode dizer-se que os passos dos amantes são sábios. Encontraram um jardim. E um banco nele. Ela anichou-se no peito dele, encostou-lhe a cabeleira farta e encaracolada ao coração. atravesou as pernas por cima das suas e ele aceitou aquele sentar felino de gata no sofá em tarde de frio. Fizeram discursos longos e longos silêncios também. Ele beijou-lhe as mãos e as faces e a testa as vezes todas que quis até não se sentir saciado. Brincaram com as mãos um do outro num enlevo de fim de tarde, trocando calor e cumplicidades e bem poderia dizer-se com a singeleza que o verbo encerra que estiveram namorando na vida onde ainda se podia namorar.
O olhar fixou-se, os olhos brilharam, ela sorriu um sorriso que parou no meio e sem palavras consentiu. Ele percebeu o convite e gentilmente, com um movimento suave de quem acaricia a fragilidade, puxou-a pela cintura e poisou-lhe um beijo nos lábios e sentiu a suavidade da carne de seda e o beijo cresceu na entrega mútua a uma união frágil de viver e forte de amar. A sua respiração era agora uma só, como um só era o seu corpo. Foi um beijo demorado, os lábios e as línguas e as mãos de ambos ficaram conversando, agora com mais argumentos que os do primeiro abraço. Quando o beijo terminou, trocaram vários beijinhos pequeninos como se fossem o eco do primeiro, a pedrinha que vai saltitando em cima da água fazendo círculos mais pequeninos até parar, ou melhor, deixar de caminhar… Enroscaram-se, de novo, felinos e fetais. E ali ficaram, sorvendo os minutos em silêncio num banco de jardim, seu universo provisório de amar.
– Sabes quando foi a primeira vez que nos beijámos? Quero dizer, assim um beijo apaixonado, na boca, nos lábios?
– Não sei, não estou certa. Acho que foi daquela vez no jardim quando me foste ajudar… Ou não… já sei, foi no trabalho…
Tinha já colocado demasiadas possibilidades…
– Não sei, a sério… já lá vão tantos anos, quinze, não é? E sabes que não sou muito boa com os pormenores. Pelo menos a lembrá-los.
Sim, pensou ele, pelo menos a lembrá-los porque a vivê-los és fantástica.
Fez-se um pequeno silêncio. Ela colocou um sorriso inquisidor como que a reclamar a resposta e a conclusão da conversa começada… Se não fosse para a terminar que sentido teria começá-la? Ele percebeu. E estava tão seguro. Tão certo, tão enlevado ainda pelo primeiro beijo que o seu coração de adulto batia como um jovem alazão à solta na lezíria. E revelou.
– Foi ainda agora! O beijo que me deste há momentos foi o primeiro beijo que trocámos. Destes, bem entendido!
– Pois foi.
Ela disse isto como se tivesse sabido sempre a resposta. E sabia.
Estes amantes das palavras, pelas palavras, com as palavras tinham amado tão intensamente com elas que foi precisa uma ausência de quinze anos para que o corpo reclamasse para si um quinhão daquela cumplicidade. Amaram-se tanto e tão intensamente, conversaram tanto de mãos dadas, trocaram tanta intimidade no olhar, no sorrir e no desenrolar das conversas proibidas que se esqueceram do corpo. Abandonaram-no à porta da vida e viveram e amaram sem espaço nem tempo.

Estavam acariciando as mãos e as palavras, enroscados um no outro, naquela tarde sem fim com banco de jardim quando, súbito, num arranque inesperado de emoção e coragem e quero lá saber quantas vidas tenho, agora estou nesta e vou vivê-la, ele esticou o pescoço como quem vai dizer-lhe um segredo, deixou-lhe, pelo caminho, um beijo na face, e já sem poder olhá-la nos olhos sussurrou tremendo como se tivesse muito frio, como se todo o universo se abrisse a seus pés, com se a luz do fim de tarde se apagasse consumida pelo turbilhão que lhe ia no peito de coragem: “Quero fazer amor contigo!”.


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Estórias ao Acaso: Noite Fria (III)

Noite Fria (III)

A reunião decorria intensa. Os pontos de vista defendiam-se com fervor. Por vezes, as divergências levavam a ironias, sarcasmos e invectivas mais ou menos bem encaixadas, consoante o estofo do atingido. Mas, desta vez, ele não conseguia envolver-se. Havia à sua volta uma redoma de um vidro invisível, como que um escudo daqueles com que na ficção científica se salva a Terra da grande catástrofe. Ele ouvia-os ao longe e, no entanto, estavam todos encerrados na mesma sala. Por diversas vezes tentou envolver-se com a reunião mas estava demasiado envolvido com ela. O que sentia chama-se antecipação, esquadrinhou as palavras na mente e planeou centenas de vezes as coisas que não viria a dizer-lhe. Era hoje. Faltavam poucas horas. Tudo se resumia a um café em conjunto, um encontro fugaz de amigos que reatavam contacto. Não podia mentir a si mesmo. Não era nada disso. Era o momento que tanto imaginara e por que tanto esperara…

Resolveu enviar-lhe uma sms: “só já faltam duas horas e trinta e três minutos!
A resposta foi breve: “Está quase a acabar o sofrimento.“

Ela não soube, nunca, o impacto e o efeito daquelas palavras nele. Havia alguém nesta Terra imensa de desencontros que se encontrara consigo e para quem o tempo da ausência era sofrimento. A falta que tinha desta dedicação. Desta coisa simples que era alguém dizer-lhe “Estás aí, sei que estás aí e para mim isso tem um significado. Estás aí e eu quero estar aí contigo!“. De repente, com a precipitação mental que o caracterizava e a paixão que agora o dominava e submetia, pensou deixar a outra vida e viver só nesta.

Nada havia, contudo, de errado na outra vida. Era uma boa vida. Só não era esta. E, num momento de euforia, atravessou-se-lhe na mente a nuvem negra das limitações com que nascem os humanos. Esta condição estranha que é termos uma coisa maravilhosa, a vida, mas só podermos tê-la uma vez. Irrepetível. Amarrados, inexoravelmente, a cada opção, a cada gesto, sem espaço de erro ou manobra e, paradoxalmente, entregues à mais absoluta ilusão de liberdade. Sacudiu os pensamentos, voltou ao tom de voz dela, ainda ecoando desde o telefonema iniciático. Hoje era dia desta vida. Amanhã, esta vida seria a outra.

Chegou ao local combinado mais cedo. Queria evitar um desencontro. E esteve ali tremendo, escolhendo uma posição de que ela pudesse gostar. Ficou na pior possível. De pé, pernas afastadas, braços cruzados, parecia um segurança de discoteca. Haviam de rir-se disso, quando fosse o tempo de rir.

O dia estava caindo. O sol espalhava-se pela cidade amarelecido da tarde e o calor era pouco mas a luz era irrepetível. Ela anunciou-se ao longe, passo firme como quem sabe exactamente para onde vai querendo ir. O recorte da silhueta contra a luz foi-lhe mostrando um corpo igual ao que conhecera, o mesmo cabelo, o mesmo trejeito de cabeça inclinada para um lado a entornar o sorriso. Notou, com interesse, que ela foi reduzindo o vigor da passada à medida que espaço encurtava entre si. Quando estava já junto a ele, a menos de um metro e as respirações eram audíveis, parou.


E um estranho fenómeno aconteceu. Os amantes das palavras, pelas palavras, com as palavras, ficaram sem elas! Um olhar no olhar. Um sorriso mútuo, uma contemplação. Um estou aqui, aqui me tens, sou tua. Um estou aqui, aqui me tens, sempre fui teu. Foram as ideias que se comunicaram mas para tanto não houve precisão de palavras. E, estando os corpos presentes, também não foram necessários para mais do que sorrir e olhar. A conversa era agora outra. E as palavras que fossem pronunciadas nada mais seriam que ruído.

Ele estende-lhe as mãos abertas com as palmas para baixo. Ela estende-lhe as mãos com as palmas abertas para cima. Encaixam. Ela percebeu-lhe a força. Ele leu-lhe a gentileza. E abraçaram-se. Ficaram imóveis, de corpos colados, sentindo a verdade daquela presença, cheirando, comunicando com o corpo todo as coisas que estavam suspensas das palavras há tantos anos. Alguns transeuntes estranharam aquelas duas pessoas, ali, de pé, que se não largavam, abraçadas, como se não quisessem falar-se, olhar-se mais… só sentir-se.

Ainda sem palavras, afastaram os corpos, voltaram a olhar-se nos olhos e a sorrir-se nas almas. Deram as mãos e começaram a descer a rua, lado a lado, com o sol a aquecer-lhes as costas e a projectar as suas sombras na calçada.


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Estórias ao Acaso: Noite Fria (II)

Noite Fria (II)

– Olá! eu sou a…
Ela não precisava dizer mais nada.
Não foi só o tom doce da voz que ele reconheceu. Foi a confirmação de um momento que antecipara em sonhos, em pensamentos altos e nos escondidos. Fora um desejo que sufocara. Fora algo que escondera dentro de si até esquecer-se de que o tinha guardado no peito. E aquelas palavras, ainda que poucas, foram suficientes para acordar em si tudo o que adormecera. E assim que ela acabou de pronunciar o seu nome ele estava já falando como se a última vez que tinham trocado palavras não tivesse sido há quinze anos mas somente há quinze minutos. O que houvera fora breve mas intenso, tão intenso, que o tempo não apagara. E tudo se reatou com um “Olá!”.
– Sim, eu sei quem és. Claro que me lembro de ti. Estás com a voz mais segura…
– Obrigada! Passei uns tempos difíceis mas superei. Agora estou bem. Trabalho estável, cabeça limpa. Não tinha o teu número. Calculei que ainda trabalhasses aí. Liguei-te para o trabalho e deram-me o número.
A voz era, como sempre fora, doce, fluida. Tinha um timbre de seda e carinho e no fim de cada palavra, de cada frase, emergia da aparente fragilidade uma força e uma firmeza que sempre constrastaram com o corpo fino e esguio a anunciar vulnerabilidade. Esta mulher não era frágil. Esta mulher já o vencera uma vez.


O dia que prometia pouco e terminava em noite fria estava aquecendo almas e prometendo o mundo. A juvenilidade destes adultos revelou-se nos minutos que se seguiram. Trocaram-se telefones, mails, reavivaram-se momentos passados e cada um foi tenteando o outro, procurando perceber-lhe as intenções, avaliando os estragos do tempo nas promessas de amor. A noite foi longa, ao computador. Frases longas, fotos a avivar a imagem esfumada na mente. O motivo que justificava o contacto bailou na conversa mas quando foi trazido às palavras já interessava pouco. Nenhum acreditou nele e seguiram fazendo o que melhor sabiam: amaram-se com as palavras que nestas coisas do amor, o corpo é mais o pretexto do que o texto. É mais o motivo do que a razão. É dispensável e, contudo, sempre presente. As palavras, essas, ardiam na pele e queimavam por ser ditas. Acariciavam, envolviam de ternura e entendimento o que os corpos nunca suprimiram: a solidão.

Encontrar-se-iam, claro. Como amigos. Amigos sempre foram…

Ela está agora a deitar-se. Encolhe-se, como sempre faz. E o som dos carros lá fora, e as sirenes das ambulâncias intermitentes, e algumas vozes altercadas ao longe, tudo isso é hoje música nocturna a embalar a alma numa noite fria.

Ele está agora a deitar-se. Cumpre os rituais de sempre mas há nesta noite fria algo diferente: hoje o coração não lhe cabe no peito. A verdade não o convence. Belisca-se. Sim, está nas nuvens da terra! Puxa um pouco mais para si os cobertores e pronuncia “Boa noite!”. E uma voz ensonada e distante responde-lhe do outro lado da vida: “Boa noite, meu amor!”


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Estórias ao Acaso: Noite Fria (I)


Noite Fria (I)

Noite fria. Ombros encolhidos e o bafo a desenhar figuras brancas à frente das mãos juntas. Ele sai do trabalho no fim de um dia que promete pouco. O piscar irritante das luzes do carro anuncia portas destrancadas. Casaco atirado com desprezo para o banco de trás. Chave na ignição e o telefone toca…

Em momentos destes, hesitava sempre se atenderia ou não. Se é certo que o dia prometia pouco e o que quer que fosse que respirasse vida do outro lado pudesse ainda fazer brilhar uma qualquer centelha de calor humano, não é menos certo que a vida, nestas alturas em que as noites têm pouco para dar e já perderam a aura idílica e romântica da juventude arfada entre seios generosos e beijos ávidos e desencontrados, tinha uma certa estabilidade. E saber com o que se conta, mesmo que seja nada, é uma conquista dos anos que aprendemos a apreciar.
Há, contudo, essa humana curiosidade que dita, não raro, as nossas atitudes e a inscrição “número desconhecido” no painel do telemóvel espicaçava tanto como incomodava. Há homens e mulheres que resistem a isto. Ignoram. Desligam. E seguem a sua vidinha como se nada tivesse acontecido. São poucos. E há outros que não se perdoariam, nunca, não ter sabido o que estava ao dobrar da esquina. Que grande cometimento ou que coisa nenhuma se escondia por detrás do enigma anunciado. Ele era desses.
Deixou tocar mais umas vezes. O tempo suficiente para meter a primeira, acelerar, segunda, pisca à esquerda e com o telémovel entalado entre a orelha e o ombro articulou em tom expectante de quem, sem estar perguntado, perguntava: “Estou?”