Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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Estórias ao Acaso: Noite Fria (XXIV)

Noite Fria (XXIV)

– Porque eu amo outra mulher!

Repetira firme e sincero no dia em que se separara da outra vida e da sua mulher para ganhar o direito a ser plenamente feliz. Sabia, com a ansiedade de uma criança que abre o embrulho para ver o brinquedo, que muito havia ainda a fazer e a viver até poder usufruir da felicidade que está construindo mas tinha esperado o tempo necessário para ganhar esse direito.

Tal como a sua mulher prometera, o processo não tinha sido nada fácil. Sempre dentro dos limites exigíveis da educação e até da cooperação mas lutado e suado cada cêntimo, cada dia com os filhos, cada obrigação e cada direito. Não o moviam as questões financeiras mas a sua mulher, ferida na dignidade e na desilusão de não poder lutar por ele nem pela sua vida, tornara-se exigente e até cruel na forma como disputaram o divórcio.

Por tudo isso, o processo fora longo, demorado e sofrido. Quase um ano passara desde o dia em que decidira cortar com a outa vida e anunciar tal decisão de peito aberto, franco e corajoso à mulher com que tinha vivido uma quase vida. Tudo para ser livre e viver pleno e inteiro de si. O dia dessa libertação chegou.

Sai do tribunal, passa pela colunata, atravessa o átrio exterior e assoma à escadaria imensa onde já vimos assomar outras personagens desta estória num dia de sol tépido. Os dias frios deram lugar aos amenos e estes aos quentes e estes de novo aos frios e hoje, sob uma chuva miúda e gelada, este homem que é amante das palavras pelas palavras com as palavras está livre para ser amante pleno de corpo e alma entregues àquela que o espera. Talvez por isso, talvez por ter-se sacrificado ao silêncio até ao momento em pudesse entregar-se a ela e recebê-la sem culpas nem desculpas nos seus braços, nunca se havia lembrado dela desta forma viva e profunda como a recorda agora, aqui, ao cimo da escadaria do tribunal que se prepara para descer e mergulhar no anonimato da vida.

À medida que vence a escadaria ajudado por todos os santos, sobe o ritmo no seu peito marcado pelo entusiasmo. Já sabe o que vai fazer. Vai entregar-se à mulher que verdadeiramente ama e com ela construir uma vida. A vida. Comove-se e uma lágrima surpreende-lhe a caminhada. Pode bem confundir-se com um pingo de chuva que tenha fintado o chapéu negro e largo, de varetas abertas e ponta metálica espetada para o céu. Não sabe como vai fazer e diverte-se escolhendo a melhor forma, a que lhe der mais prazer, a que a surpreender mais. Terá de ser mágica. Lembrou-se de repetir o jantar interrompido. O mesmo local, os mesmos adereços e um final diferente. Desistiu da ideia por lhe encontrar um vago sabor aziago, um vago pressentimento a desgraça. Pensou telefonar-lhe e contar-lhe tudo e surupreendeu-se sorrindo de si mesmo e da ideia de comunicar a grande viragem, a grande mudança de rumo, por telefone. Liga uma pessoa o aparelho e depois do Estou sim, quem fala? Sou eu. Ah, olá, como vais? Bem e tu? despejar através do metálico do aparelho com eventuais faltas de rede, quebras de bateria e outros inconvenientes que a tecnologia encontra para nos desorientar, as palavras mais importantes da vida de um homem, vem ser minha, já posso ser teu. Vem amar-me às claras, de face erguida perante o mundo sem contas a dar, sem nada a recear, pareceu-lhe pouco apropriado. A importância do momento e do que se lhe seguirá justificavam que fosse dito pelas palavras ao alcance do olhar porque, no dizer das gentes, o olhar não mente. Além disso haveria o tacto, dedos entrelaçados em mãos ávidas de amar. E haveria os perfumes, os jeitos e os trejeitos que o corpo encontra para enfeitar e explicar o que vai meio-dito nas palavras. Nada disso poderia ser feito pelo telefone. Telefonar-lhe-ia, sim, mas para convidá-la para jantar. Descartada a repetição da noite de amor interrompido por lhe parecer a ambiência romântica demasiado pesada e festiva para um jantar que marcava um tempo de silêncio e distância, decidiu-se por algo mais simples, um pouco austero, até. Um espaço e uma refeição que marcassem a tristeza da distância e da ausência que agora terminavam. Um espaço e uma refeição com a sobriedade de quem vem de estar só. E depois, então, revelar-lhe-ia o porquê do seu silêncio, as mudanças que fizera, a libertação da outra vida, a disponibilidade para estarem juntos e unidos num só percurso. O percurso de realizarem o seu amor nos pensamentos, nas palavras e nos actos. Já fizera, mesmo, projectos que lhe apresentaria para se entreterem conversando-os, decidindo-os, vivendo-os. Onde viverem, como viverem, que opções para a casa, para os rituais, para a partilha… seria, para o final da noite, a festa da entrega e da comunhão. Desta vez, por curioso que pareça ao leitor, este homem que aqui vemos a caminho de ser feliz não pensou em sexo. Não pensou na carne tão ocupado estava com as coisas do espírito.

À medida que o recorte imponente do tribunal desaparecia atrás de si e do entusiasmo que levava no peito, foi ficando mais seguro, com o rosto mais aberto e levava consigo, já, a felicidade que queria partilhar com ela. Foi automático o gesto de pegar no telemóvel e digitar o número a que resistira tantas vezes. Agora, contudo, não havia dúvidas que estas cederam o espaço à firmeza de um amor limpo. Alguns toques insuportáveis de chamar e depois, como por magia, a explosão da voz doce dela, do timbre meigo, e um festival de sentimentos dançou no seu peito, bailou no seu olhar e fê-lo acreditar que o mundo era um local bom para se estar. O melhor de todos.

– Estou sim?
– Boa tarde meu amor!


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Estórias ao Acaso: Noite Fria (XXIII)

Noite Fria (XXIII)

Isto é a cozinha. Parece um campo de batalha. Uma enorme caixa de pizza envelhecida, com a gordura seca e as migalhas sobrantes enrijecidas pelo tempo, é o que mais se aproxima de uma toalha. Há canecas de loiça vazias de leite com café ressequido e copos com cascas de fruta dentro. A paisagem está condimentada por diversos recipientes de alumínio de refeições rápidas e nutritivas, mais rápidas do que nutritivas, cozinhadas em três minutos, vazias, semi-vazias e quase cheias, abandonadas à impessoalidade do sabor, ou falta dele, apodrecidas. Há restos de pão que não foi abençoado numa refeição e talheres pegajosos em latas de atum vazias. E há babéis de loiça amontoada em desalinho crescente buscando o céu e esperando a humana mão que não aparece. O frigorífico, se o abríssemos, seria um deserto de ideias. Uns quantos iogurtes com prazo ultrapassado, um pacote de manteiga meio gasto e já sem tampa e um pacote de leite magro aberto e quase cheio. A verdura não conhece para aqui o caminho. À medida que abandonamos a cozinha em direcção ao quarto, a paisagem muda e não muda. Muda porque se alteram os adereços, menos culinários ou comestíveis, e mais de vestir e despir que não andam os humanos outra coisa fazendo a vida toda que não seja vestir-se e despir-se das roupas, das máscaras e dos preconceitos. Não muda porque o caos é o mesmo. Jazem calças pelo chão e pela cama e em cima de uma cadeira ao fundo daquela. E há meias de calçar os pés inteiros espalhadas por todo o lado. E camisas e gravatas e cuecas e camisolas interiores e tudo em desalinho e desacerto buscando uma ordem longe dela. E o rasto da comida chegou até aqui. Um pacote de bolachas aberto e já só com restos visitado por um outro de leite com chocolate onde já não está o leite nem o chocolate estão enfeitando a mesa-de-cabeceira. Na casa-de-banho a tampa da sanita está levantada e um fio de pasta dos dentes escorre pelo lavatório e há um copinho para a escova mas esta saíu em romaria e perdeu-se, algures, no lava-loiça da cozinha entre uma caneca de leite quente e um telemóvel que tocava. E há nesta casa que não é um lar uma sala que é sala e escritório também. A televisão emite uma luz trémula mas não tem som. Há papéis por cima da mesa rectangular, pequena e frágil, comprada às postas numa grande superfície e montada pelo próprio com a ajuda de um manual de instruções impresso em papel reciclável cujo conteudo é atravessado por uma confrangedora infantilidade e pela imbecilidade descontextualizada de serem instruções de lá, onde se pariu a mesa, para aqui, onde se há-de montar e comer sobre ela e deixá-la morrer num contentor verde com as iniciais do município. Sobre esta mesa divagam impressos de ordem diversa, contas por pagar, panfletos promocionais que anunciam costoletas do lombo na frente e televisores no verso, extractos de conta sendo que o que está por cima dos demais tem na primeira linha um número mais volumoso que vai depois decrescendo até se converter noutro número volumoso mas desta vez com um sinal de menos a antecipá-lo. E há, para mal do habitante deste espaço, uma nota indemnizatória de despedimento com um valor semelhante ao que encima o extracto de conta. Feneceu nessa mesa, há muito, um computador portátil, de tampa fechada enfeitada com rodelas de suor dos copos que aí estiveram poisados. O ar é pesado e espesso e atravessado pela nicotina expirada de cigarros nacionais de que encontramos um pacote amarrotado no chão, aos pés da mesa, por vazio estar e ter perdido a sua desutilidade. E há jornais diversos abertos nas páginas dos classificados com rodelas azuis de esferográficas publicitárias e mal escreventes circundando alguns anúncios. E por toda a casa está espalhada pelo chão angústia e pendurado ao abandono em costas de cadeiras que fazem conjunto com a mesa anda o desespero. Vagueia pelo chão a desorientação, um estar perdido sabendo-se onde se está. E mais do que tudo e em todos os recantos desta casa mal cuidada há solidão. A solidão profunda de um homem que há meia dúzia de meses era pai e marido e trabalhador e estava vivo para a vida e agora a morre todos os dias lentamente, desempregado, fugindo aos fins-de-semana com os miúdos por não saber dar-lhes o que queria e gostava, por não saber cuidar deles, e descasado com a única mulher com que saberia estar casado.

José António é hoje menos do que a sombra do homem que foi. A vida é demasiado grande para si. Não tem braços suficientes para abraçá-la sozinho nem horizonte na mente para que os olhos vejam para além do que olham. À medida que o quotidiano foi fazendo exigências, este homem foi-se perdendo nelas, na sua incapacidade para fazer-lhes frente. José António precisa de dar e não tem a quem, precisa de receber e não tem de quem. Precisa ser guia e não tem quem guiar, precisa ser guiado e não tem quem o guie. Este homem anda amputado de corpo e alma porque não veio ao mundo para vivê-lo sozinho. Lembra-se bem da sua determinação de tomar o rumo da vida quando inspirou o sol tépido à saída do tribunal na manhã em que se divorciou. Mas a solidão matou-lhe todas as intenções. Está abandonado. José António parecia alimentar a vida que tinha e afinal não só a alimentava como se alimentava dela. E está vivendo a decandência profissional, financeira, emocional, familiar e está morrendo a vida e continua procurando em si as forças e as soluções. Precisava ser um exemplo para os filhos e encontra-se evitando-os porque nem para si é exemplo, porque é o primeiro a não acreditar em si.

Tão precária é a condição das gentes e tantas forças as gentes parecem ter. E parece até que quanto mais se sofreu, quanto mais frágil e fragilizado e vulnerável se esteve mais forte e resistente se vem a ser. José António está sentado numa cadeira ao lado da mesa de que falámos ainda agora, tem um cotovelo sobre ela. Está nú. Tem frio. Em cima da mesa, ao seu lado, junto ao braço que aí poisou, descansa o que resta de uma cerveja que foi fresca há uns dias. Pende o pescoço para a frente. Desacredita e desespera e olha o chão. E no chão está um talão de lavandaria. Tem qualquer coisa agrafada. Estende a mão sem curiosidade que não fosse a de saber só por saber, só porque a vida o tinha trazido até ali e quer ver o que está agrafado ao talão de quatro euros e oitenta e sete cêntimos. São dois papelinhos. Um oferece a limpeza de uma peça em gastos superiores a dez euros e o outro, mais colorido e em papel de qualidade um pouco melhor, tem em letras gordas a frase Venha trabalhar connosco!


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Estórias ao Acaso: Noite Fria (XXII)

Noite Fria (XXII)

A manhã vai a meio e, contudo, muitas vidas se decidiram, já. O dia está limpo e o sol inunda os espaços e as pessoas semeando a fé de que um tempo menos frio virá. Nem sempre as personagens desta estória têm seus humores de acordo com o tempo que vai lá fora. É o que acontece neste momento em que a luz tépida promete vida e renascer de vontades e empreitadas e cometimentos e, no entanto, para José António e Maria de Fátima é o fim.

O tribunal tem uma fachada neoclássica e uma imponente colunata antecipa um amplo espaço antes das escadarias que trazem as pessoas à casa da justiça ou as devolvem à vida. José António e Maria de Fátima estão voltando à vida. Têm o edifício imponente nas suas costas e pela frente o sol brilhando nas suas faces. O que por lá se disse por vontade própria ou obrigação do momento está dito e teve os efeitos que deveria ter. Foi simples. Quase não teria sido preciso lá ir não fossem as naturais divisões materiais do que em espírito estava unido e em espírito se desuniu provocando depois a réplica divisória nas coisas mais pequenas. Um outro assunto obrigou à visita à casa da justiça. É que este casamento e o divórcio que nele nasceu obrigaram a dividir o que não é divisível. Os filhos. José António, numa conversa de ambos sobre este incontornável problema, ainda esboçou um gesto, uma vontade, uma intenção de ficar com eles. Maria de Fátima não reagiu mal. Notou com agrado que perdera o marido mas os filhos não perderiam o pai, contudo, não permitiu que a vontade caminhasse para esperança. Com carinho lhe foi dizendo que o problema dele não seria tomar conta dos filhos mas tomar conta de si próprio. Ofereceu-se mesmo para lhe tratar das roupas durante os primeiros tempos. Nem lhe perguntou se ficaria por perto. Sabia que sim. José António era daquelas pessoas que não voam para longe. Assimilam hábitos seguros e com segurança e diligência os vão repetindo e é isso a sua vida. Sem sobressaltos. Não se espera destas almas o rasgo de imaginação, o risco e a aventura mas pode esperar-se a firmeza, a constância e a fidelidade no carácter. Percebeu nessa altura que no departamento da culinária estava autónomo como estaria nas limpezas mas não fazia a mínima ideia de como tratar da roupa. A de cama, a de vestir, a de higiene. Claro que se desembaraçaria mas envolver crianças pequenas nas suas experiências fê-lo pensar. Por outro lado, Maria de Fátima era quem conversava com a professora do Marco e não saberia gerir essa parte da vida. Acomodou-se. Tivesse ela os defeitos que tivesse, nunca descuidara os filhos. Aceitou. Debateram,depois, a regulação parental, quantos jantares por semana, quantos fins-de-semana por mês, quantos dias nas férias, com quem se passa o Natal, o Fim de Ano, a Páscoa, o aniversário do Pai, o da Mãe, o das crianças, a que horas buscá-los e a que horas entregá-los, a pensão de alimentação e as outras despesas de que não queriam fugir mas que não desejavam suportar sozinhos. Quando terminaram esta fase da discussão com o natural envolvimento dos advogados, José António percebeu que se estava separando mas não divorciando. Em havendo filhos, não há divórcio. Há vidas que seguem caminhos separados mas os seus sangues correrão juntos, feitos um naquelas crianças e os seus quotidianos estarão unidos para sempre a menos que algum abdique que é coisa que nenhum destes dois vai fazer.

Vêm saindo lado a lado e não se olham. Ela olha em frente, ele cola os olhos no chão. Estão agora de frente para o sol olhando o mundo com olhos novos. Trazem na face lições diferentes do passado e diferentes projectos e perspectivas para o futuro. São engraçados, os humanos, por vezes parecem estar vivendo as mesmas experiências e não estão porque as experiências são muito mais aquilo que se passa dentro de cada um do que os acontecimentos cá fora. E dentro de cada um tudo tem o impacto e a amplitude e a perspectiva que cada um lhe dá. Andamos caminhando lado a lado como vêm estes dois saindo do tribunal mas caminhamos caminhos diferentes. Maria de Fátima não vem sorrindo, vem meio-sorrindo que é o meio-sorriso o esgar que fica entre o rosto sério que vem de tratar sérias coisas e o rosto sorridente à vida que se espraia à sua frente. A sua face vem aberta, límpida e o olhar reflecte o brilho do sol. Maria de Fátima lamenta a perda de um homem e uma vida mas sabe que conquistou a liberdade de viver a sua natureza em verdade. Em verdade será! José António traz o mundo às costas. A sua face transmite pesar e o seu corpo dobrado também. Os olhos não reflectem o sol mas somente as nuvens que agora se não vêem mas o habitam por dentro. Este homem tinha uma vida, perdeu-a e ainda não sabe como viver outra. Sobretudo não sabe como viver entre duas vidas. Ergueu os ombros e levantou o olhar e decidiu que em seis meses seria outro homem, vivendo autónomo e livre. Tudo o que deixara de viver por amor a outrém, viverá por amor a si. Não sabe onde, mas quer encontrar as forças, o engenho, quer reagir, sabe que existe a pessoa que o merece e procurá-la-á porque não sabe, não pode e não quer viver sozinho. dedicar-se-á aos filhos, ao trabalho. Terá um hobbie. Ocupará o seu tempo, cuidará da casa e sobretudo, viverá os seus princípios igual a si próprio e sem a nuvem da mentira pairando por perto.


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Estórias ao Acaso: Noite Fria (XXI)

Noite Fria (XXI)

A imprevisibilidade é um traço humano que, por ser o que é, temos intensa dificuldade em perceber. Porque está uma mulher vivendo uma vida vinte anos inteiros dela e depois decide parar de súbito sem aviso? Porque está um homem fazendo o seu trabalho décadas a fio, partilhando sucessos e insucessos com os seus companheiros e, de repente, apanha um avião e vai para o outro lado do mundo começar tudo de novo? Porque está um casal fazendo amor e ela pára e diz não posso continuar e sai correndo para não mais voltar? Porque está um homem sendo honesto uma vida inteira construindo a sua imagem e o seu universo de relações com base nessa atitude e depois desaparece porque foi preso por fraude? Porque está uma mulher amando o seu marido e os seus amantes e vivendo na mentira a sua verdade e, uma noite, chegada a casa e entrada na cama, se farta, despe as máscaras todas e assume-se como é e enfrenta o que vier? Talvez não haja resposta, ou talvez a resposta seja tão simples e óbvia que se torne difícil vislumbrá-la. Sendo a vida tão maravilhosamente diversa e oferecendo tantas oportunidades e caminhos, é natural que indo um homem por um caminho há muito tempo, caminhando em calçado confortável sobre piso bem tratado, com o sol brilhando e a brisa correndo e havendo fontes pela beira da estrada, olhe para o lado e veja um carreiro pedregoso, enfeitado pela sinuosidade vertiginosa das curvas apertadas e precipitadas no vazio e se sinta atraído. Não que vá para melhor. Sabe-o porque está vendo onde vai e vendo está o que o espera. Mas vai para diferente e isso basta-lhe. É abismo mas é atracção. É pior, mas é muito melhor do que passar pela vida e sentir que foi desperdiçada. Este narrador que está com os leitores partilhando o curso desta estória habita num autor que conheceu um homem sábio. Tinha a quarta classe. E um dia disse que mais valia arrependermo-nos dos erros cometidos do que olharmos para trás e arrependermo-nos de não ter vivido. Os erros reparam-se. A vida não se recupera. Que saudades daquela sabedoria tranquila!

Por razões que em breve perceberemos, Maria de Fátima está a mudar o curso da sua existência. Que é o que fazem constantemente todos os humanos. Trocam os caminhos que percorrem uns pelos outros, uns com os outros e vão dando, recebendo, trocando a existência, tentando ficar. Mas não ficam. Partem todos.

José António está atónito. Percebeu em três palavras que todos os seus esforços tinham sido em vão. Percebeu que a sua mulher não era sua, pensou que era de outro. Enganou-se. E desejou, naquele momento desejou com todas as suas forças que atrás daquela revelação cruel houvesse dignidade. Não o esperava mas desejou-o intensamente. Podia tê-lo esperado. O que Maria de Fátima vai dizer-lhe magoá-lo-á como nunca fora magoado antes. Destruirá a esperança ténue que lhe habitava os dias de que o seu universo podia recompor-se. Mas será um discurso frontal, sincero e digno. A verdade, tantas vezes arredada dos seus gestos e das suas palavras, estará presente e será o fio condutor do que tem para dizer-lhe. Esta é uma verdade dura e talvez por isso não possa mais ficar contida nem escondida porque a mentira anda amordaçando uma verdade que é a própria natureza de Maria de Fátima. E a natureza das gentes mascara-se, esconde-se, oculta-se, mas não se amordaça que um dia chega sempre em que irrompe de onde estava e se apresenta ao mundo para ser o que é.
– Mas… minha querida…
– Não me chames isso. Não to mereço e sabe-lo. Minto-te amiúde e sabe-lo também. E não me revelas que sabes. E ganhas vantagem com uma mentira também. Não é mais nem menos grave. É outra mentira. Não me perguntes como sei que sabes porque não tenho resposta para essa pergunta. Não é nada que tenha visto ou ouvido. Simplesmente sei. Sei porque ages de modo diferente. Sei porque ninguém é assim tão bom e tão magnânimo que não esteja sacrificando algo, calando e amordaçando algo. Não tenho provas, não sei como sabes mas sei que sabes e sei que preferia que batesses com as portas, que ralhasses, que me acusasses e reclamasses os teus direitos de marido… Não fazê-lo é como se abdicasses de mim. É como se os teus gestos, ainda que magnânimos, fossem só em nome de ti e dos teus princípios e não me levassem em conta. Não podes anular-me nem viver por mim o que tem de ser vivido por nós. E esse é o teu erro e como temos errado os dois sei que meu erro tem sido deixar-te errar na ilusão de que esta relação pode resultar, de que não está já morta quando morta está há muito.
– Desde quando?!
– Desde sempre. Porque é desde sempre que me não possuis. Eu quero que me tomes nos teus braços e me comandes. Eu quero que me empurres para cama onde cais sobre mim e me tomas quer queira quer não porque no meu íntimo quero-te sempre. Não me entendas mal. Eu amo que me ames. Mas há um excesso no teu respeito, no teu cuidado e no teu desvelo que me faz sentir amada mas não desejada. E uma mulher tem de ser desejada. Eu não sou a tua boneca, eu sou uma mulher inteira e se me queres tens de saber ter-me por inteira!

Ele estava ouvindo uma mulher que não conhecia e estava já pensando que nunca quisera conhecer, que nunca lhe dera uma oportunidade de revelar-se, que presumira e induzira os seus comportamentos, que a aprisionara em vez de a libertar e por isso acaba de perdê-la. E como gostaria de a ter possuído. Como gostaria de ter tido a coragem das loucuras e das regras quebradas. Mas não teve e paga agora o preço dessa cobardia.

Maria de Fátima tinha sido educada mas impetuosa, firme e seca. Não ignorou o olhar amortecido de José António. A forma como se curvou perante as suas palavras e as aceitou carregando, já, o seu peso nas suas costas dobradas. Estava para alongar-se no ímpeto mas percebeu que ele não resistiria muito mais. Viu o seu marido indefeso, culpado na inocência e inverteu as suas intenções. Está agora passando-lhe uma mão fechada em concha pelo rosto como quem acaricia uma criança perdida e oferece-lhe palavras claras e meigas.

– Meu querido José António, como gosto de ti. Como te amo. E como não posso viver contigo. Não és tu Zé Tó. Sou eu, é a minha natureza. Eu vivo a vertigem da carne e da posse. Eu amo no sexo e no corpo. E sinto nesse prazer as emoções todas e aí me realizo mulher e me sinto inteira. Eu não tenho outro homem porque sendo de todos a nenhum pertenço. Meu querido, a minha natureza faz-te sofrer porque me não realizas nem completas e porque sofres as minhas faltas, as minhas ausências e as minhas mentiras. Meu amor, tu tens virtudes extraordinárias que eu não compreendo, que lamentavelmente não valorizo nem sei aproveitar. Tu mereces encontrar quem te valorize, quem te estime, quem te queira… Tu mereces viver em paz e em verdade a tua natureza e eu quero viver em verdade a minha. Tu precisas encontrar a coragem de cortar-me de ti. E se a não encontrares, eu divorcio-te de mim!

José António franziu o sobrolho estranhando a frase como se o seu sentido lhe estivesse escapando ao entendimento mas ela nem o deixou respirar e atalhou:

– Sim, meu amor, à falta de coragem tua, eu divorcio-te de mim! Era o que tu já devias ter feito porque não há sacrifício que valha a tua vida. Tu és um homem bom, o melhor dos maridos e o mais dedicado dos pais. Mas não és…
– Homem para ti!
– Se o quiseres dizer assim… talvez não seja eu mulher para ti. Te não mereça. Só sei que há entre nós um oceano de vidas e vontades e desejos e tendências e visões e loucuras. E nenhum de nós tem como cruzar esse mar de distâncias.

Pela segunda vez na mesma noite José António está espantado. Não consegue hostilizá-la. Não consegue detestá-la. Queria, mas não consegue. Ainda que lhe custe, José António reconhece a coragem e a força da mulher que tem ao pé de si e sabendo, já, que não a quer para sua mulher não pode deixar de sentir-se confortável por ser Maria de Fátima a mãe de seus filhos. E deseja que uma tal verticalidade seja hereditária.

Maria de Fátima olha-o e tem no olhar a ternura e tem no peito a dor de ter perdido um homem de que sentirá falta nas noites sozinhas e frias, nos dias perdidos, nas horas difíceis. Mas não continuará a mentir-se a vida. E agora está fazendo nova festa na sua face. José António coloca-lhe uma mão na cintura e encosta a sua cabeça no peito dela. Abraçam-se ficam assim entregues à sua perdição, à sua solidão, tentado encurtar as distâncias. E quase sem querer, ele olha-a e ia beijá-la na face quando ela se volta para ele e os seus lábios não se tocam mas passam perto uns dos outros, o suficiente para que pressentissem o calor. Agora tocam-se voluntariamente e estão beijando-se devagarinho. E vão fazendo tudo de devagarinho, colocando suavidade em cada gesto de amar. As roupas tombam no chão e ele ama-a e ela deixa-se amar. Quando terminaram os gestos da entrega ele anichou-se nos braços dela e nos cabelos dela e no peito dela e respirou-lhe o corpo sorvendo o ar. Ela acariciou-lhe a nuca e brincou com os cabelos finos dele. Estavam nesta letargia de amar quando ele se levantou nú, foi ao roupeiro, tirou um pijama e uma almofada e abandonou o quarto.

Maria de Fátima e José António tinham-se amado de despedir. Tinham partido um do outro sabendo que não podiam ser um do outro e sabendo também que seriam sempre um do outro. Quando a manhã acordou, saiu para a rua um homem resignado e decidido a tratar da sua vida. A tomar-lhe as rédeas e o comando. Só não sabia como.


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Estórias ao Acaso: Noite Fria (XX)

Noite Fria (XX)

A noite aproxima-se rápida e fria e embora a luz do dia esteja ainda vencendo o braço de ferro com a noite, em breve sucumbirá e restará só o breu. E, para sermos mais correctos, a artificilidade luminosa da cidade com que nos vamos iludindo e fingindo que a noite não cairá jamais. Mas cai e absorve a vida e transforma-a em noite que é vida a da noite, também, mas roupada de outros gestos, de outros ritmos e rituais com outros actantes mesmo que as pessoas sejam as mesmas. Já o narrador desta estória e até um seu personagem se referiram à injustiça de termos tantas vidas passíveis de ser vividas e só podermos optar por uma. Parece-nos que o Divino poder e a criação Divina estiveram fazendo a noite para que nos outrássemos e vivessemos outros caminhos noutras personagens licitadas pela ausência de luz que mais não é que outra forma de luminosidade. Por prudência e porque consigo e à sua responsabilidade transporta valiosa e insubstitível carga, José António rodou o manípulo à direita do volante e acendeu os faróis projectando o espectro amarelecido no alcatrão. O carro não é luxuoso mas é digno. E, sobretudo, está muito bem conservado. Já não cheira a novo mas tem odores de pinhais artificiais pendurados no espelho retrovisor. O tecido dos bancos está impecável. Foi escovado meticulosamente no passado Domingo e sê-lo-á de novo amanhã pela manhãzinha. A seu lado, Maria de Fátima exibe uma saia curta por cima das meias de lã negra e espessa e veste uma camisola com uma enorme e empolada gola. Negra a Saia. Branca a camisola. Cobre tudo com um casaco comprido branco com golas fofas a exibir uma penugem dançante. Traz salto alto e uma bolsa de mão de lantejoulas a imitar o negrume da saia. Hoje é Sábado e Maria de Fátima vai sair com as amigas.

José António fez questão de a acompanhar. Não demonstrou qualquer desconfiança. Pelo contrário, foi pressuroso na forma como se ofereceu, para que estivesse ela à vontade para tomar uma bebida. Ele iria levá-la e buscá-la quando e onde entendesse. Um toque no telemóvel seria o sinal.

– Não é preciso. Nem dormes descansado. A Teresa traz-me a casa. Posso vir tarde…
– Não faz mal. Qualquer hora é uma boa hora para ver-te.

Ela está agora saindo do carro no local combinado e José António verifica aliviado que algumas amigas a esperam. Esticam-se e trocam um beijo rápido nos lábios. Ela pensa que pode estragar o baton, ele pensa que outros lábios a beijarão antes que volte a fazê-lo. Acena às amigas de Maria de Fátima e elas retribuem sorrindo e gritando alto “não te preocupes, nós tomamos conta dela!” como se houvesse alguém capaz de tal cometimento.

– Calculas a que horas te poderei vir buscar?
– Ó Zé Tó, tu e as horas. Hoje é girls night, sem horas. Sei lá, antes das duas não. Eu bem te disse que isto era desnecessário.
– Não faz mal. Desculpa-me a pergunta. Dá-me um toque quando quiseres e eu venho buscar-te.

José António deu o jantar aos miúdos, brincou com eles, viram televisão juntos, deu-lhes um leite quente e despediu-se deles com um beijo na testa quando os foi deitar. Passaram os programas de entertenimento, depois a longa metragem e adormeceu pouco depois de Antonio Banderas e Angelina Jolie terem feito amor tropical em pecado. Quando despertou eram já três e quinze. Precipitou-se para o telemóvel. Nem chamadas por atender, nem sms. Calçou-se, enfiou um casaco por cima do fato de treino e meteu-se no carro. Os despojos da noite e seus excessos marcavam presença nas ruas. Garrafas na beira do passeio. Um grupo de jovens falando alto e um deles abrindo os braços e correndo errante de olhos postos no céu negro enquanto gritava “Ó lua que vais tão alta…”. A cidade não estava desperta nem adormecida, estava regorgitando vida em copos semi-vazios e beatas pisadas com a ponta do sapato. Chegado ao local, José António não viu Maria de Fátima. Esperou um pouco e descobriu uma das amigas num grupo de gente conversando à porta de um pub. Conduziu devagar até lá. Parou. Baixou o vidro eléctrico e perguntou:
– Olá desde há bocado, viste a…
– Sim, foi com a Teresa, acho que a foi levar a tua casa. ‘Tás giro, tu…
– Obrigado! Pela informação, quero dizer…
Agora estava preocupado. Seguiu para casa. Ligou-lhe.
-“O número para o qual ligou encontra-se desligado”.

São quase cinco horas. José António está acordado na cama, enrolado nos lençóis e nos cobertores e ouve o som metálico da chave a encontrar a posição certa na fechadura. Os passos dela entram na casa e guiam-na para a cozinha primeiro, depois para o quarto onde se precipita para a casa-de-banho privada e quando se enfia na cama ouve a voz do marido:
– Não ligaste.
– Não foi preciso.
– A Teresa trouxe-te?
– Não. trouxe-me o Eduardo.
– E quem é o Eduardo?
– Um amigo. Mais um conhecido, de facto. Estive com elas primeiro e depois passei o resto da noite com ele.
– A fazer o quê?
– Com elas, a dançar.
– Não, com ele.
– Com ele, sexo!


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Estórias ao Acaso: Noite Fria (XIX)

Noite Fria (XIX)

José António Cruz da Silva reaprendeu a ser feliz. Têm as mulheres e os homens esta particular capacidade de apagar o sofrimento quando é demasiado intenso, ou de atenuá-lo. É assim como que uma anestesia para as vivências mais difíceis de suportar. Vem isto ao caso de José António porque não se esqueceu ele de ter encontrado sua mulher na cama de ambos visitada por um estranho em seu seu lugar, gemendo e entregando-se a outro. Não se esqueceu da noite fria e chuvosa em que caminhou perdido pelas ruas que tão bem conhece. Ia mais perdido nos pensamentos do que no traçado da cidade. E não se esqueceu, sobretudo isso, da profunda mágoa e do intenso sofrimento que sentiu nesse dia. Não esqueceu. Mas apartou. Funciona este fenómeno assim como quem põe de lado, no prato, os alimentos de que não gosta. Estão lá mas é como se não estivessem. A ferida de José António está aberta mas não sangra. Encontrou em si causas e razões para o comportamento reprovável da mulher e reprouvou-se, recriminou-se e decidiu mudar. Traz na mente aquela nuvem que de quando em vez o sobressalta na tranquilidade dos dias que vai vivendo acomodado. É como se fosse um relógio de corda que o vai acordando periodicamente para a realidade, olha lá José António, põe travão nessa pontinha de felicidade, não ta permitas, lembras-te o que ainda há pouco tempo te aconteceu? José António não te entusiasmes com a vida nem confies na tua mulher que quem o faz uma vez, mil o fará pois que quebrada está a fronteira, aberta está a caixa daquela a que chamaram Pandora. E assim vai vivendo de tranquilidade em tranquilidade, de sobressalto em sobressalto, confiando, desconfiando, amando, acompanhando os filhos, descontando no rosário da vida um dia de cada vez vivido no único universo que conhece e domina, o da sua família.

Aqui onde o vemos, está sentado à mesa da cozinha com a família. Maria de Fátima à sua frente na outra ponta, a pequena e franzina Alice à sua direita aceitando aviões-colher-de-sopa, vruuuummm, esta é pelo o papá, vruuuummm, esta é pelo mano… e à sua esquerda o pequeno, menos pequeno, é certo, Marco das conversas de bola na aventura dos recreios da vida, Marco de querer saber tudo acerca dos dinossauros. José António conversa com o filho, brinca com a filha, pisca um olho a Maria de Fátima, faz-lhe um sorriso doce e perscruta-lhe os desejos e as necessidades com o intuito genuíno de os satisfazer. Se lhe falta o pão, vai buscá-lo. Pôs a mesa, aqueceu o jantar, dá de comer aos miúdos, repara que o guardanapo dela está já usado por usado ter sido e vai buscar-lhe outro, traz uma faca para o queijo, limpa a boca à pequena Alice que está tentado comer sozinha, tira dois cafezinhos de uma maquineta a imitar aquela do anúncio mas mais barata, levanta a mesa, ajuda o filho com os trabalhos de casa, brinca com eles um pouco, conversa com Maria de Fátima acerca da novela por que finge interessar-se, ou se interessa não querendo mas sendo verdadeiro no seu propósito, veste o pijama aos miúdos, vai deitá-los com Maria de Fátima, conversa com ela acerca do dia que está terminando e quando vai deitar-se fará amor com ela se ela assim o quiser e caso não queira adormece cansado e insatisfeito mas realizado.

Desde que decidiu mudar, José António está empenhado em ser um marido melhor, um pai melhor, um homem melhor. Está mais presente, sempre presente, é atencioso, carinhoso, voluntarioso, sacrifica-se pequenos prazeres e rituais antigos e emprega em seu lugar toda a sua energia a realizar a felicidade da sua família.

José António anda exausto e não se sabe até quando aguentará este estado de coisas mas a sua determinação é total. E é na medida da realização das necessidades, das vontades e desejos daqueles a quem chama seus que este empregado da contabilidade se sente feliz. E é por sentir-se bem e realizado na realização dos outros que podemos dizer, como fizemos no início deste capítulo, que José António reaprendeu a ser feliz. Mas a vida é injusta ou, não sendo injusta é cruel ou, não sendo injusta nem cruel, é vida. E esta felicidade quem a sente, tanto quanto sabemos, é José António. E é perigoso sentirmo-nos felizes por nós e pelos outros. Essa felicidade que o atravessa a ele convicto que está da sua mudança não sabemos se é também de Maria de Fátima porque não lho perguntámos ainda nem ela no-lo disse de vontade própria. O marido não lho pergunta com medo da resposta. Prefere tentar adivinhá-la nos gestos dela. Percebeu que ela está mais tempo em casa, atrasa-se menos vezes no trabalho, sai menos com as amigas. E quando diz, determinada e firme, no sábado à tarde vou sair com uma amigas, pode ser? Ele dilacera-se por dentro do corpo e da alma, teme que as amigas o não sejam de facto mas prefere não viver esse lado da vida dela, deixá-lo ao largo da sua própria vida, e responde-lhe terno e atencioso, claro que sim, diverte-te, eu fico com os miúdos, temos muito com que nos distrair. Ela percebe a referência aos filhos. Emudece. Não se demove.

Os dias correm céleres e não sendo este casal feliz, não é infeliz também. Maria de Fátima estranhou tão profunda mudança de atitude e questionou-o. Ele atirou-lhe com uma justificação verdadeira para além da verdadeira razão que não podia revelar-lhe, que queria aproveitar mais a maravilhosa mulher que tinha, a fantástica família que tinha, que era uma felicidade viver assim, que se sentia feliz e realizado e a eles devia tudo e por isso os compensaria com o desvelo e a dedicação de que fosse capaz. Maria de Fátima não acreditou. Conhecia-o bem demais. conhecia-se bem demais. Sabia de si que era uma causadora de problemas e sabia dele que estava tentando resolver um problema. Por agora, decidiu acreditar.

Quando entraram na intimidade dos lencóis e ela o puxou para si, José António foi carinhoso e terno, desvendou o seu reportório de carícias e foi suave e delicado no momento em que os seus corpos se fundiram. José António esteve fazendo amor com Maria de Fátima. Ela teria preferido sexo. Impacientou-se, cravou-lhe as unhas nas nádegas e quis que ele a possuíse, que a tomasse com vigor e altivez masculina. Estiveram amando-se desencontrados e sempre que tal acontecia a nuvem negra dos receios de José António ocupava-lhe as ideias e enchia-lhe o peito e Maria de Fátima costumava pensar: “Sábado, vou sair com umas amigas!”


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Estórias ao Acaso: Noite Fria (XVIII)

Noite Fria (XVIII)

Não fora uma conversa. Tinha sido uma discussão longa e extenuante. Ao cabo da mesma, em meio da profusão confusa de ideias que se atropelavam na sua mente e de impulsos de sentir que lhe atravessavam o corpo, emergia uma sensação de dever cumprido, de liberdade, de tranquilidade. Não obstante os problemas que sabia ter pela frente, a vida apresentava-se-lhe como uma planura a percorrer de acordo, apenas, com os seus princípios e a sua vontade. Nunca fora um homem aprisionado mas hoje sentia-se mais livre. Os dados estavam, definitivamente, lançados.

Do emaranhado de argumentações, de tolerâncias, de intolerâncias, de momentos mais tranquilos na conversa e de outros bem agitados pela violência das palavras limpando as feridas e jogando ao mundo as incompreensões, uma frase, dita por si, o tinha mantido seguro do seu rumo, orientado nos seus propósitos:
– Porque eu amo outra mulher!

Até chegar ao momento em que proferiu esta frase, o percurso não fora fácil. Não tanto pela conversa com a sua mulher desta vida, mais pela conversa consigo próprio até conseguir justificar-se perante si, preparar-se, perceber as suas intenções e as razões por detrás delas.
Decidiu separar-se, divorciar-se. Ir em busca da outra felicidade. Daquela que era alimentada por uma chama verdadeira de verdadeiro amor. Decidiu depurar-se de ter, de possuir, das regras, do casamento. Decidiu simplificar a vida e os seus processos. Não fora fácil. Nada fácil. E sempre que equacionara os filhos, hesitara. Sabia exactamente o que estava em jogo como sabia que a sua vida não era má. Só não tinha a chama que o incendiara nos últimos tempos. O facto é que queria mais da vida e de uma relação do que a normalidade. Nem sequer sabia bem o que era a normalidade. Sabia que estava sendo derrotado pela rotina, sabia que não investiam em si nesta vida como ela o fazia na outra. Achou-se pensando que das duas uma: ou tinha a vida certa com as pessoas erradas ou estava vivendo a vida errada com as pessoas certas. Sobressaltou-o uma ideia peregrina de entre as outras que o habitavam de costume: de facto, não havia uma razão para se divorciar. Nada havia que pudesse apontar à sua vida feita das suas opções. Nenhuma desculpa encontraria para justificar uma tal ruptura e consciencializou que não era uma desculpa o que procurava. Isso seria desonesto. O que procurava era a razão intrínseca do seu querer, da sua vontade, para que não fossem só um querer e uma vontade. O que procurava era a Verdade e só a Verdade lhe interessava apresentar a quem precisava comunicar as suas decisões. E essa verdade era toda ela Amor, amar mais, com mais intensidade e dedicação e ser mais amado. A sua verdade era a sintonia percebida e vivida sem mais explicações. A sua verdade era acreditar que a vida deve ser vivida e consumida e amada pelas melhores razões e não somente pelas menos boas. A verdade era o direito a procurar, sempre, a felicidade absoluta.

Pensou demoradamente nos filhos. Curiosamente não se fixou no que poderiam pensar de si mas somente em pequenos pormenores. Nos progressos escolares do mais velho. Nos problemas de asma do mais novo. Jurou de si para consigo que seria um pai presente, que os acompanharia sempre e, por entre as turtuosas e lúcidas razões que o levavam a pensar que tudo em torno dos filhos apontava para caminhos que não o da ruptura, não deixou de acreditar que, como os pais querem a felicidade dos filhos, os filhos também deverão querer a dos pais. Que aprendessem consigo ao menos isso, a lutar pela felicidade, a ter a coragem de a abraçar se a vida os presentear com a oportunidade.
E foi essa verdade que fez a diferença na confrontação com a sua mulher:
– Porquê? Porquê isto agora? Explica-me… de onde vem essa decisão? O que te faz falta? Que não te dou eu? Que te passou pela cabeça… uma coisa destas, assim, sem razão… és um crápula!
– Porque eu amo outra mulher! Porque quero ter a coragem desse amor…
Naturalmente que ela se debateu, tentou inverter o rumo das decisões dele que lhe faziam cair aos pés um projecto de vida. Contudo, depois da resposta dele, da força da franqueza crua e cruel das palavras, ela percebeu que aquela razão sendo a menos material era a mais palpável, a única plausível no âmbito das suas vidas. E uma honestidade dessas torna-se irrefutável. Sabia, por mulher ser, que nada do que pudesse dizer alteraria o que ele sentia mesmo que alterasse o que ele pensava. Obrigá-lo a ficar não mudaria o estado das coisas, só o agravaria. Esta mulher que conhecemos pouco porque temos tido mais olhos para a outra é mãe, quer preservar os seus filhos, quer salvar a luz que trouxe ao mundo e preservaria o homem e o amor que tem por ele se pudesse fazê-lo. Se pudesse disputá-lo num campo onde brilhasse, ainda que trémula, qualquer centelha de esperança. O campo para onde ele levara a argumentação estava fora da sua capacidade de influência. Ela sabia que podia conquistá-lo no desejo, no sexo, no companheirismo, no seu amor por ele, mas não podia fazê-lo no amor dele por outra, sobretudo assumido, assim, claro e contundente. Percebeu-lhe a linha honesta e franca na abordagem e foi com a mesma franqueza e com a mesma honestidade que lhe respondeu:
– Quanto a isso nada posso fazer. Lamento que não tenhas pensado nessa possibilidade antes de te casar. Lamento que tudo tenha acontecido depois de dois filhos, tantos anos partilhados, tantas coisas boas e más, que as más não são menos valiosas do que as boas… lamento, mas não posso mais do que isso. Vai à tua vida, sê feliz. Não te vou facilitar o processo, nem a vida. Sabes isso?
– Sei, claro. Acusa-me do que quiseres. O que quer que seja devo tê-lo na consciência!

Até nisto ele a desarmara. Nem uma contrariedade. Nem quero isto ou aquilo, ou os miúdos assim ou assado… só a força serena de saber para onde ia. A mulher dele invejou-o. Inveja-se sempre uma pessoa que sabe de forma segura e inabalável o que quer e para onde vai. Estas pessoas não se contrariam, pensou, estas pessoas vêem-se passar…
Ele não está feliz mas está aliviado. E congratula-se por ter tomado uma decisão. Não tanto pela decisão em si porque era o que intimamente desejava, mas porque ela significava assumir as rédeas e o comando da sua vida. Há tanto tempo não sentia esta brisa livre passar-lhe pela face. A brisa de ter a liberdade de aprisionar-se no amor da mulher que verdadeiramente ama. A brisa que nos corta, fria, a ilusão do conforto e nos faz sentir confortáveis com o desconforto. Conhecia bem os problemas que o esperavam no processo de divórcio, ou talvez não, mas antecipava-os e tomara uma primeira decisão enquanto senhor e timoneiro da vulnerável nau do seu destino: não levaria nenhum destes problemas para a sua nova relação. Não lhe diria nada a ela enquanto não fosse completamente livre para dar-se por inteiro, entregar-se a quem o quer e espera, com a mente livre, o corpo preparado, e a vida desobstruída… Afinal de contas, quem esperou quinze anos, espera mais uns meses. A Fénix prepara-se para renascer!


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Estórias ao Acaso: Noite Fria (XVII)

Noite Fria (XVII)

Vertendo-se com frequência e facilidade as palavras em sentimentos, o que este homem mais sente é NÃO. Não à impossibilidade de um amor que o despertara para a vida. Não ao fim das palavras entre os amantes das palavras, pelas palavras, com as palavras. Não à forma absurda como se interrompeu uma noite de amor. Não à forma lúcida e racional com que ela pusera um fim ao que parecia não ter fim. Não.

E os dias foram-se sucedendo e com eles foi crescendo esta revolta surda e amordaçada de quem quer gritar um amor e tem de o calar. À medida que os dias passavam e com eles as pequenas coisas e os pequenos gestos que os preenchem se acumulavam foi desdenhando cada um deles, dos gestos e dos dias. Negou de si para consigo a aceitação daquela decisão. Planeou vezes sem conta falar com ela, fazer-lhe juras de amor, prometer-lhe uma vida, abdicar de tudo e ser só seu. Planeou. Mas não executou. Sempre que estas ideias lhe ocorriam seguia-se um sentimento de crime e impunidade se abandonasse a sua família, aquela que construíu com as suas próprias mãos e os gestos delas. Após a negação da morte daquele amor e daquela relação de entendimento e sintonia, veio um tempo em que decidiu aceitar que haviam na sua vida duas mulheres, duas paixões, duas dedicações que se lhe tinham atravessado no caminho em alturas distintas do seu curso. E constatou. Constatou as duas mulheres que amava, os seus odores perfumados distintos e insubstituíveis, os seus timbres de voz marcando presenças e tonalidades diferentes nos dias, as suas peles suaves, os seus olhares, os sorrisos, as roupas, as palavras, as cumplicidades e o calor terno dos lábios de ambas. Aceitou que tinha uma só vida mas que nessa vida haviam duas mulheres. Não se substituíam, nem tão pouco uma poderia ocupar o lugar da outra. As duas tinham um espaço próprio na sua alma e no seu peito.

Acontece que o tempo tem um efeito domador das vontades nos homens. E a distância é um bálsamo para a ausência. E ela, lá longe, guardava consigo as palavras que agora não trocava com ele. E ele percebeu. Percebeu e aceitou. À medida que foi retomando as rotinas desta vida aqui presente, aquele que havia sido um amor intenso e fulgurante começou a constituir-se bruma e névoa da memória. Ao cabo de uns meses, a custo de dor, que é pior do que cortar um membro isto de calar um amor, foi aceitando. Aceitou a distância. Aceitou a decisão dela. Nunca a compreendeu exactamente. Para ele, ter-se-ia reatado o caminho do amor e ter-se-ia feito um hino ao amor e à glória da entrega. Ele amaria lá e cá. Seria capaz de abarcar no mesmo peito dois amores diferentes. Mas soube aceitar. Soube respeitar a vulnerabilidade dela, compreendeu o seu ponto de vista e a sua atitude e amou-a mais por isso. E, ao mesmo tempo, foi reamando quem o amava nesta vida. Nunca se decidiu verdadeiramente por uma delas, das mulheres e das vidas com elas, mas a presença duma e a ausência da outra apagavam a ausente e reacendiam a presente.

Hoje, neste dia de sol promissor, decidiu oferecer-se um café numa esplanada onde estão as gentes contemplando o tempo que passa, sentando-se na tranquilidade da tarde e pensando que o Céu bem podia ser assim. E está neste passar dos tempos limpando os pensamentos excedentes do cérebro bem como os contactos inúteis do telemóvel quando redescobre uma mensagem: “Amo-te incondicionalmente e para sempre!” Ficou pensando que para sempre era um valor extremado e absoluto como o era também incondicionalmente. E ele que pensara que havia nas razões dela para o abandonar toda uma lógica, toda uma gestão de sentimentos, todo um sentido ético e moral, sobressaltou-se pensando que poderia ter-se tratado, só e sem mais, de um sacrifício na impossibilidade de uma realização. Ela tinha, como todas as mulheres, um apuradíssimo sentido de posse e preferia não ter aquele homem para si em medida nenhuma do que partilhá-lo. Esta hipótese acordou-lhe a imensidão do gesto dela. A grandiosidade do seu amor. O tempo que levara a perceber isto…

E, súbito, como se a sua mente tivesse escolhido aquela tarde de esplanada e café forte à luz de uma promessa solarenga para as revelações interiores no encontro de si em si, percebeu que ainda não tinha feito nada. Limitara-se a esperar que uma das suas vidas sucumbisse à outra. Não tinha havido da sua parte um gesto de coragem, uma decisão, um agarrar da vida. As mulheres que o rodeavam debatiam-se por si mais do que ele próprio. Constatou em nome da sua dignidade que a vida não consiste em esperar que a vida aconteça mas é, antes, determinada pelas nossas opções e actos. Havia pensado muita vez nas consequências dos seus actos em terceiros e deixara-se condicionar por isso. Faltava pensar em si próprio. No que queria. Convencera-se de que a lógica dela para o rejeitar era válida porque se acomodara e não se dera ao trabalho de perscrutar a sua própria lógica.

Tinha numa mão uma vida de partilha construída a dois, depois a três e por fim a quatro, uma família. E também uma rotina e muitos cansaços. Tinha na outra a promessa de um amor puro e dedicado, de uma força, de uma companhia. Não podia continuar a ignorar que havia duas vidas que o disputavam, nem podia continuar a adiar optar por uma delas.

Quando se levantou da esplanda e deixou umas moedas jazendo à volta da chávena do café e encarou a luz promissora da manhã, já sabia no seu íntimo o que ia fazer mesmo que a decisão ainda não tivesse chegado à superfície.


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Estórias ao Acaso: Noite Fria (XVI)

Noite Fria (XVI)

O silêncio é profundo. O ambiente é de trabalho concentrado e os diversos colegas que partilham o espaço não querem comprometer tal concentração. Paira no ar um silêncio de produção. E esta harmonia de fazer em conjunto e em conjunto feita é cortada pelo toque inevitável do telemóvel dele. Normalmente desligá-lo-ia sem hesitar, procuraria um lugar onde pudesse falar e ligava de volta a quem quer que fosse que lhe tivesse tocado à porta da vida. Desta vez, não pensou duas vezes, não esboçou gestos incertos, levou o telefone ao ouvido e atendeu-o. O nome dela brilhava no visor e aquela ligação era mais para si do que um telefonema. Era a vida a reconectar-se. Com o aparelho encostado ao ouvido foi-se retirando da sala de trabalho sob o olhar acusador dos presentes. Um deles chegou mesmo a abanar a cabeça em sinal de reprovação enquanto pensava se aquele tipo não sabia que havia modo silencioso. Acontece que há coisas mais fortes do que outras e este telefonema fá-lo-ia nem que tivesse de sacrificar a reputação no trabalho. Não foi preciso tanto e a conversa aconteceu na mesma e mais ou menos como a seguir se verá.

– Olá! Ainda bem que ligaste. Queria tanto falar contigo.
– Sim, temos muito para conversar. Também preciso muito falar contigo.
– Ouve, queria começar por pedir-te desculpa…
– Não faças isso. Não há desculpas a pedir. Pelo menos a mim. Olha, como está o teu filho?
– Está bem mas tinhas razão só nos despachámos do hospital no outro dia quase à hora de almoço e foi preciso levar o mais velho à escola e a farmácia e… Mas olha, não falemos disso. Temos tanta coisa para conversar. Aconteceram coisas tão bonitas…
– Sim, aconteceram. Mas também aconteceram algumas que me fizeram pensar muito.
– Eu sei, pensei nisso tudo e acho que temos de viver a vida… ela é tão curta e nós amamo-nos tanto. Amo-te muito.
– Também te amo muito. Sabes, estou a desviar-me um bocadinho daquilo que queria dizer-te…
– Sim… diz.
– Eu não queria falar contigo sobre nós ao telefone. Queria olhar-te nos olhos e queria que me olhasses nos olhos. Tu podes, sem te forçar a nada, vir até aqui para conversarmos um bocadinho?… não precisa ser hoje…
– Mas será!

O narrador desta estória está perturbado com o valor e com o poder das palavras. Quando lhe disse há pouco o que queria que narrasse ripostou-me que esses mesmos gestos já os narrara uma vez nesse mesmo cenário afirmando que eu, enquanto autor, me estava a repetir. Julgo, até, que insinuou que eu estava ficando senil. Foi então que lhe disse que seria tudo igual excepto as palavras e quando pediu que lhas revelasse para as poder narrar ripostou, sério, mas essas palavras mudam muito, mudam tudo. São outros gestos. E ali ficámos conversando, autor e narrador, sobre as palavras enquanto gestos, se não seriam o mais fundamental deles, o mais poderoso e, simultaneamente, o mais banal. Condordámos, inclusive, que a expressão olha para o que eu faço, não olhes para o que eu digo é absolutamente ridícula porquanto dizer é já fazer também.

Encontraram-se no mesmo local do primeiro reencontro, sensivelmente à mesma hora. O sol tinha menos força agora e o abraço que deram teve menos corpo, teve menos tempo, foi igualmente cúmplice. Não é que não sentissem o mesmo amor e a mesma paixão que sentiam então, acontece porém, que a mesma vida que os unira estava agora intrometendo-se entre eles. E um abraço longo, de total dádiva, de peito aberto e alma limpa não se dá quando há assuntos pendentes estorvando a clarividência da mente e a limpeza dos gestos. Os passos dos amantes aprendem os caminhos do amor e as suas passadas repetem-se e os corpos andam enquanto os amantes dizem as coisas que precisam dizer. Talvez por isso, ele e ela percorreram as mesmas ruas, junto aos mesmos prédios do mesmo lado do passeio e crê-se, até, que se tenham cruzado com a mesma velhinha. As palavras não foram as mesmas. Não foram o crescendo de emoção que haviam sido, não foram o exteriorizar de corações sobressaltados pela paixão nem levavam consigo o brilho que o olhar tivera então. Estas palavras que vão trocando agora são banalidades de como está o tempo, como vai o trabalho, estás bonita, bonito estás tu. Palavras que não dizendo nada tinham uma função. Adiavam as outras que haveriam de ser ditas quando pudessem olhar-se nos olhos.

Como se soubesse a cidade inteira que estes dois precisam conversar, o banco onde se haviam enroscado nas memórias gratas e sentidas do passado está livre. E é nele que se sentam. Não é um jardim rebrilhando a luz de um dia de Verão. Não tem essa alegria nem essa pujança mas a penumbra que se anuncia aos poucos dá-lhe um ambiente mais privado. Ali estão, olhos nos olhos, as mãos entregues umas nas outras, o olhar terno encontrando-se o amor, perscrutando-se as possibilidades e as impossibilidades. No peito dele cavalga um coração ansioso e expectante. Moram em si as esperanças todas. Pensou em tudo que precisava dizer-lhe para retomarem a rota do amor e da felicidade. Trata-se de uma expectativa peuril e masculina. Pueril porque encara cada situação como uma oportunidade para além de todas as contrariedades. Masculina porque, vencido o susto e a tormenta de uma noite perfeita desfeita pela evidência de não poder separar em si as duas vidas que tem, está já separando-as de novo.

– Meu amor, minha querida, queria tanto, precisava tanto dizer-te tantas coisas. A minha cabeça ferve, o meu coração bate louco. Fiz tanto para que estivessemos juntos, para que o amor que nos une se revelasse e depois…
– Espera! Deixa-me falar a mim hoje. Eu sei tudo o que te devo. Eu sei e relembro com um amor imenso todas as coisas extraordinárias que me fizeste sentir. Eu sei como te dedicaste a nós, ao nosso amor. Eu amo-te muito, mas hoje deixa-me falar primeiro. Sabes, quando uma mulher ama só o consegue fazer com dedicação total e total compromisso. Uma mulher que ama fá-lo na entrega absoluta do seu ser. É a única altura em que fica vulnerável. E não espera nada de volta. Dá por dar, porque é essa a sua condição. Mas só pode dar a um homem que seja seu, que lhe garanta a segurança do seu amor e que esteja disponível para retribuir-lhe. Eu não posso chamar-te meu, meu amor! Não posso mentir-me e dizer que temos um futuro juntos. Tu tens um futuro, tens uma vida e eu estou aqui e não vejo o meu futuro, nem vejo que vida seja esta em que te amo e não posso amar-te se um telefone tocar. Tu não és meu. Meu querido, eu sou mulher como a tua mulher e morro por dentro sempre que penso que podia estar no lugar dela e imagino o que desejaria que ela fizesse se estivesse no meu. Ela ama-te como eu te amo e penso até que não tem mais legitimidade do que eu para amar-te porque não há regras no amor, não há legitimidade para o que o nosso coração sente, mas ela tem a legitimidade de esperar por ti, de sentir a tua falta. Tem a legitimidade de chamar por ti quando precisar de ti. Ela tem a legitimidade de projectar a vossa vida e esperar que os vossos planos se cumpram no amor que se têm. Eu sei que estás dividido e, mais tarde ou mais cedo, terás de decidir-te mas eu não quero estar por perto quando o fizeres. Não quero determinar as tuas acções. Tens de ser livre para construir o teu caminho. A tua mulher é a tua mulher e eu amo-te e amei cada segundo que estivemos juntos, cada carícia, cada palavra, mas não consigo ser a outra, não consigo pensar na minha felicidade contruída sobre a infelicidade da tua mulher e dos teus filhos. Amo-te, não duvides nunca disso, não duvides nunca de todas as coisas que te disse, mas não posso amar-te. Quero-te mas não posso querer-te. Não assim. Se tivermos de ser um do outro, seremos, mas noutras circunstâncias, sem culpa, sem receio que uma voz metálica no outro lado do telefone estrague uma noite de amor porque não é legítima… Tens de ser livre para viver e amar. Tens de fazer as tuas escolhas e eu tenho de ter a mesma liberdade. Tenho de ter a dignidade de amar livremente. De amar plenamente. De amar tranquilamente.
– Mas, meu amor…
– Chiiiiiuuu! Disse ela baixinho, quase sussurrando, e foi apressando-se, carinhosa, em colocar-lhe um dedo nos lábios para o silenciar. Olhou-o ternamente e quando tirou o dedo dos lábios dele foi para colocar no seu lugar os seus próprios lábios e beijá-lo com ternura mas sem paixão.

Levantou-se e caminhou afastando-se dele, deixando-o nas suas costas enquanto as lágrimas se precipitavam no seu rosto…


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Estórias ao Acaso: Noite Fria (XV)

Noite Fria (XV)

Ela não sabe ao certo quantos metros andou que não têm os humanos como medir senão com instrumentos ou por cálculo que sempre falha na precisão. Instrumentos não os tinha consigo pois vinha de uma noite de amor e desilusão e não estava ali porque andasse a medir espaços. O cálculo estaria sempre perturbado por tudo o que lhe ia na mente. Sabe o narrador desta estória que andou uns quinhentos ou seiscentos metros. Sabe ela que andou muito. Não pelo espaço percorrido mas pelo tempo passado. Têm os humanos esta particularidade que é a de medir o espaço em tempo. Habilita-nos isso a avançar que a distância normalmente percorrida em dez minutos, ou pouco mais, levou desta vez uns bem medidos quarenta e cinco minutos de reflexão, pensamentos turtuosos, avanços, recuos, decisões, indecisões e uma profusão de ideias e impulsos de acção que disparavam nas mais diversificadas direcções do sentir. Por vezes, estando a mente mais perturbada, parava o corpo e ficava olhando o chão, fitando uma árvore, um prédio para os quais olhava mas na realidade não via. Diversos foram os momentos em que apontou a biqueira elegante do sapato ao chão e ficou traçando o mesmo círculo até se perder o pensamento que estava conversando consigo. Outra curiosa e humana particularidade é a de percorrer-se caminho e não saber depois o que se percorreu, é a de andar entre a gente e não ver ninguém. Não foram muitas as pessoas que se cruzaram consigo. Um casal jovem e apaixonado, vestido de negro e cabedal, correntes pendentes da roupa e um cão rafeiro que os seguia. Dois homens, um alto e forte e o outro forte e baixo, os dois fumando e falando de futebol, mulheres e marcas de carros. Passou ainda um casal de jovens, ele de corpo esguio e cabelo espetado no espaço a afirmar a sua diferença, o outro dos jovens, também ele, tinha uma face mais clara, um olhar mais tímido e falavam de música, da que gostavam e da que não gostavam, levavam as mãos unidas e trocavam beijos pequeninos e furtivos.

Nada disto ela poderá algum dia garantir que viu. Jurará mais facilmente que percorreu toda a distância da sua humilhação sozinha, jurará que não havia ninguém na cidade nessa noite fria.

Este não foi um caminho de alívio. Começou por andar, como disse, porque precisava e terminou percebendo que andar não bastava. Esta mulher jovem e bonita que aqui vemos, deambulando e parando e evitando o caminho de casa e da cama onde a solidão e o desespero acabarão por vencer, sente-se humilhada. Não lhe disse a ele, mas, no momento em que ele atendera a chamada que interrompeu o amar nocturno, sentiu medo da voz longínqua e metálica do outro lado do telefone. Não percebia as palavras, mas senti-as como facadas cravadas nas suas faltas, nos seus pecados. Sentia-as como o castigo que temera mas ignorara por amor. Sentiu-se como a criança que fora apanhada a meio da malandrice e a quem não resta senão encolher os ombros e olhar o chão. Estava, por isso, envergonhada. Envergonhada de usar uma liberdade que não era sua. Humilhada por não ter antecipado a vergonha. Por se ter roubado a si mesma e conscientemente a liberdade de responder, de reclamar, de exigir, este homem é meu porque o amo, porque o tenho para mim como me tem para si…

Quando entrou em casa sentiu-se uma estranha no seu próprio espaço porque nunca havia ali entrado tão vulnerável… que fazer agora? Aguardar um telefonema? Esperar que a vida resolva os problemas que eram seus por si criados? Não. Ao menos a dignidade de decidir as suas passadas. Com a coragem que lhe restava conseguiu emergir senhora de dois cenários, conseguiu configurar duas possibilidades de vida. Qualquer uma delas exigia que agisse. Digna e honesta. Ou lutaria por ele e usaria de todas as suas forças para que entrasse definitivamente na esfera da sua vida, ou o abandonaria à vida que o tinha preso oferecendo-lhe a liberdade absoluta de decisão. A primeira implicaria mais determinação, o assumir do curso da vida. O preço a pagar poderia ser elevado. Ninguém gosta de construir a sua felicidade em cima da infelicidade de outrém! A segunda seria mais cómoda na acção mas mais dolorosa porque é de dor que falamos quando alguém abdica de um amor! A segunda implicaria também que se afastasse porque não se dá liberdade a outrém interferindo no seu julgamento.

Esta mulher bonita e dilacerada que aqui vemos de roupão e cabelo molhado vem do duche. Tentou lavar a alma com água quente e shampô. Reconfortou o corpo. A mais não teve direito. Procurou a cama e fechou-se nela. Cobriu a cabeça na tentativa inglória de apagar o mundo à sua volta. Está enroscada, em posição fetal e, se pudesse e tivesse coragem para tanto, chamaria sua mãe e pediria um mimo, um carinho, uma palavra de perdão. Mas há coisas que passam o seu tempo na vida e deixam de poder pedir-se. Esta mulher que aqui vemos no breu dos lençóis cobrindo a sua existência e a vergonha dela está soluçando baixinho quase como se não sentisse no direito de chorar. Sente que, como Ícaro, desejou demais, quis o sol da vida e acabou vítima dessa ambição. Encolhe-se um pouco mais sobre si mesma. Parou o choro. Só conseguiu adormecer depois de decidir-se por uma das duas possibilidades de vida que encontrou. Decidiu viver e o critério seria a dignidade!