Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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Problema e Tristeza

Caros amigos e leitores,
hoje, durante quatro horas (17h – 21h), escrevi o penúltimo capítulo de “Estórias ao Acaso: Noite Fria”. Escrevi directamente no blogger e fui sempre guardando. Quando terminei, inadvertidamente e porque estava a escrever num portátil sem rato de cabo, só com aquele tapete, apaguei o texto e devo imediatamente ter, de alguma forma, guardado porque nunca mais tive acesso a ele quando edito a mensagem. Alguém me sabe dizer se é possível voltar a momentos intermédios da produção, ou seja, a um dos momentos em que fiz guardar antes da última vez?

Era o mais bonito e interessante capítulo e também era o mais extenso. Estou desolado. O texto estava quase perfeito. Para mim, pelo menos. Tinha uma série de pormenores de escrita que tinha guardado para vós no final da narrativa… Isto é desesperante. Se alguém souber como me ajudar agradeço imenso.

João Paulo Videira


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Estórias ao Acaso: Noite Fria (XXXII)

 

Noite Fria (XXXII)

Não raro temos visto, entre os humanos, causas diferentes terem resultado em consequências semelhantes. Um homem pode sentir tristeza e chorar e pode sentir alegria e chorar. Uma mulher pode estar solteira e sofrer de solidão e pode estar casada e sofrer de solidão. Um homem pode odiar e matar e pode amar e matar. Uma mulher pode estar insatisfeita com o seu casamento e envolver-se com outro homem e pode estar satisfeita com o seu casamento e envolver-se com outro homem. Vem esta ilustração justificar a desarrumação que se mantém em casa de José António. O mesmo caos. Bem, quase o mesmo. Andava ele perdido e solitário e desamparado e a morrer a vida e tinha a casa na mais caótica confusão como aqui foi bastamente mostrado. E agora que ama e é amado, que tem uma companheira e uma amiga, uma guia e uma orientação, mantém-se o caos e o abandono. Sendo este último termo o mais apropriado pois é o que à letra e mais ajustadamente se passa. A verdade é que as duas almas perdidas e abandonadas, desejosas de se encontrarem noutro, nem que fosse para apontar-lhe os defeitos, que é muitas vezes esse o segredo das relações que duram e perduram, o dizer-se o que se pensa, o comunicar-se, nem que seja o menos bom, decidiram abandonar as suas casas de habitação e ter um espaço comum. Não lhe chamam ainda lar porque seria precipitado, mas vivem a secreta esperança de que possa transformar-se nisso os sofás, a televisão, as cadeiras, as camas, os candeeiros, as mesas-de-cabeceira e todos os pequenos objectos que acompanham o recente casal.

Estão deitados, os corpos nus cobertos pela roupa de cama, olhando o tecto como se fosse o céu. Trocam carícias faladas e banalidades como se fossem as coisas mais importantes do mundo. E talvez sejam. E em meio deste deleite que é o prazer de ver passar o tempo depois da entrega dos corpos suados e das almas uníssonas, sentem a presença, o calor de outro corpo que chegou ali voluntariamente e generoso se entregou e humilde recebeu. Estiveram fazendo amor e agora conversam e cabe-lhe a ela a palavra que é uma observação mas bem podia ser uma pergunta.

– Fazes sempre amor, nunca sexo…
– Não sei fazer sexo. Quer dizer, nem sei bem se sei ou não. Sei que só conheço esta entrega e esta dádiva…
– Nunca te apeteceu pensar só em ti?
– Acho que não sei…
– Não sabes se te apeteceu?
– Não sei fazer sexo.
– Isso resolve-se!
Ditas as palavras, ela saltou para o ventre dele, baixou-se sobre ele, esticou o dedo indicador e fê-lo deslizar pela testa dele, sobre o nariz e, por fim, muito devagar sobre os lábios. Baixou-se um pouco mais e sussurrou-lhe ao ouvido:
– Não faças nada. Não quero que faças nada. Agora, vais só receber.
E revelou um repertório de carícias que o surpreendeu. Salpicou-lhe a face e o pescoço com beijos pequeninos. Incendiou-lhe o peito com a ponta húmida da língua e percorreu-lhe todo o tronco traçando uma linha contínua de prazer entre o peito e o ventre. Segurou-lhe o sexo erecto e acariciou-o com os lábios quentes e humedecidos de prazer. José António colou as costas à cama, abriu os braços e cerrou nas mãos o lençol arrepanhado. Ela faz, agora, o percurso inverso e vem beijá-lo nos lábios, encaixa-se nele, e balança-se nele, sentada no prazer que dá e recebe. Nestes momentos, nestes rituais, nestes gestos que toldam a vista e o discernimento, há coisas que se fazem e depois se não sabe como fizeram. Ela está de gatas e José António vê-se numa situação única, penetrando uma mulher por trás, voluntariamente dando o que voluntariamente é recebido. E trocam-se palavras impronunciáveis a não ser nestas horas e nestas acções. E olha-lhe as nádegas alvas e sente uma ordem e cumpre-a e as nádegas já não estão alvas que encarnadas ficaram dos castigos que ela lhe pedia e ele lhe dava, primeiro a medo, depois, deixando-se levar pela libertação da mente e do corpo. E quando acabaram, José António descobrira-se um homem diferente, nem sonhava que era possível trocar aqueles gestos, quanto mais fazê-los. Tinha no peito um sentimento ambíguo de transgressão e prazer e a mente rebentava-lhe de perguntas e coisas para dizer e o que disse fê-lo sorrir mais tarde, pareceu-lhe ridículo, engraçado, mas na altura foi o que lhe saiu:
– Sabes, acho que fui virgem até hoje!
Ela riu e fez-lhe cócegas e abraçaram-se rebolando na cama e rindo. Depois quis testá-lo e disse com um timbre de voz esperto e malandro a que adicionou um ar falsamente preocupado:
– Amor, lembrei-me de uma coisa…
– Sim…
– Não usámos protecção!
José António gelou. No entusiasmo do momento esquecera-se, de facto, desse detalhe. E perguntou:
– Achas que?…
– Naaa… ‘tava a brincar contigo. Era preciso muita pontaria!
E riram os dois e beijaram-se e entregaram-se de novo. Desta vez fizeram amor com protecção. O amor foi bom. A protecção tardia.


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Estórias ao Acaso: Noite Fria (XXXI)

 

Noite Fria (XXXI)

E fizeram-se as apresentações que foram rápidas por poucas serem. E uma nota houve de registo neste encontro, sólida pedra que marcará os tempos que se seguirão. Sem uma qualquer pré-determinação, sem aviso, sem combinação porque nem se conheciam até hoje e não é numa conversa de pastelaria que ficam a conhecer-se as pessoas, outros acontecimentos têm de suceder-se, foram verdadeiros um com o outro. Disseram o que pensavam, o que sentiam, expressaram opiniões sem barreiras nem receios dos juízos mútuos. Se a esta conversa quiséssemos acrescentar um adjectivo, diríamos que foi franca.

Uma outra particularidade, dessas que vimos assinalando aos humanos, nos ajudará a perceber o que desta mulher vamos saber de seguida. Não são as pessoas o que são nem o que se mostram, mas antes a ideia, imagem chamada, que delas construímos. E construímos tal imagem recolhendo pormenores de aspecto e comportamento. E quando chegamos a dizer, do alto das nossas certezas, Fulano é fulano e é assim e é assado, e é simpático e é honesto e é desonesto e é boa pessoa, não estamos falando do que ele é mas da imagem que dele construímos. Problema nenhum daqui emergia não fosse a imagem, por força da humana condição, ser parcelar, incompleta e, por isso mesmo, tantas vezes errada. E, contudo, estamos sempre construindo as imagens e reformulando-as e acrescentando camadas de cor a um quadro nunca terminado. E, por entre as palavras da conversa franca e aberta, ajudadas pela presença do interlocutor, com suas feições, seu tom de voz, sua posição na cadeira, suas roupas, seus sapatos, está ela criando o seu José António. Vê-lhe o olhar conformado e imagina-o um homem acomodado. Vê-lhe o pescoço tombado para frente, curvando as costas, e imagina-o submisso e derrotado. Vê-lhe a camisa mal passada e a gola encavalitada no casaco de sebo e imagina-o desleixado, ou, pelo menos, pouco aprumado. Vê-lhe os sapatos gastos e por engraxar e imagina-o pouco cuidadoso. Ouve-lhe o timbre pesado da voz e imagina-o pouco dinâmico e assertivo. E, contudo, ao contrário do que poderia induzir a imagem que vai construindo dele, gosta da sua companhia, sente-se confortável nesta jovem conversa e, não obstante a juventude, já tão rica e recheada. E imagina agora, não o que ele é, mas o que poderia ser. Se este homem que diz chamar-se José António, não fosse acomodado, submisso e derrotado, se não fosse desleixado e pouco cuidadoso, bem que poderia ser só uma gentil e doce figura, cortês e dedicado, simpático e atencioso. E sorriu por dentro. Para quê colocar a questão? A vida estava a ensinar-lhe que dos homens não devemos esperar nada, tinha acabado de passar um tempo de solidão e sofrimento precisamente por causa de um homem que não era o que parecia. Mas, mesmo com esta ressalva de desconfiança, continuou a conversa. Sem saber de onde vinha, sentiu-se invadir pela esperança.
Era de facto ineteressante, o cavaleiro da fraca figura.

A ideia que dele foi construindo não podia estar mais certa. Nem mais errada!
Certa, sim, pois andava José António lutando contra pilhas de loiça por lavar à espera de vontades empreendedoras que não chegavam. Andava arrastando os passos, tentando acertar-se com a reaalidade de estar só, sem família, nem guia. Andava combatendo a desarrumação de uma casa abandonada ao passar do tempo e da indiferença por não ser um lar. Vivia acomodado o seu respirar, o seu dormir e o seu acordar que a essas coisas se não pode chamar vida enquanto não têm a chama da vontade e do entusiasmo. Desprendia-se de si e despedia-se da vida a cada minuto que passava. E, este mesmo homem, fora já outro e outro poderia vir a ser ainda. Por isso anda a imagem dela errada ao mesmo tempo que certa. Errada porque a José António só lhe falta um sopro, um carinho, um amparo, uma criatura que o guie pelos passos da vida partilhada que é a única que sabe viver. E saberá ser o homem que lhe abre a porta, que lhe puxa a cadeira, que a conforta, que conversa com ela, que se interessa pelos problemas dela como se fossem seus, que lhe prepara um jantar, que lhe acende as velas, que lhe apaga a luz e que com ela faz amor, beijando-a suave antes de adormecer. Saberá… sendo para isso preciso o muito e o pouco que é ela perceber que José António não é quem ela vê mas quem ela imagina que ele pode ser, o muito e o pouco de sentir a esperança no peito e confiar nela, o muito e o pouco de soprar-lhe vida ao ouvido, de encher-lhe o peito e a alma de companhia. A esperança já ela tem, como já este autor aqui disse. Precisa só decidir-se. Estava medindo-o e medindo-se e medindo a vida que tinha e a que poderia ter e estava ouvindo este homem, conversando com ele, e estendendo-lhe a mão e estava a vida realizando-se e crescendo e estava entrando alguém na vida dela que parecia ter as portas fechadas mas abertas estavam gritando por gente. E os dias sucederam-se e com eles as conversas e anda esta mulher pasma que vai morrendo a cada novo pequeno-almoço, almoço, jantar, chá, cinema, conversa, gesto, olhar, a imagem que construíra e à medida que ela morre, nasce e cresce a imagem que imaginara, que esperara mas cuja possibilidade negara a si mesma. Agora andam de mãos dadas pelas ruas e falam de música, de livros, de teatro, das suas profissões e um dia houve em que falaram das suas vidas e dos seus passados, e das feridas, das solidões. Quem são e como vieram a sê-lo. Sempre com verdade. Sempre com simplicidade que a vida é como é e não precisa ser enfeitada de complexidades e avessos que roubam a beleza dos direitos.

E um dia houve em que não tendo falando muito o pouco que disseram bastou para se reconhecerem cúmplices. Estavam na mesma pastelaria de sempre, na mesinha mais distante da porta junto ao vidro imenso e o telefone dela tocou. Reconheceu o número. Decidiu atender ali mesmo, à frente de José António, e fizeram-lhe um convite para jantar já nesta estória narrado como narrada foi a resposta que ela deu, a forma como o recusou. E, no fim, antes que José António pudesse articular qualquer palavra, ela atalhou:
– Era um amigo da minha vida antes de ti.
José António não respondeu com palavras. Acenou afirmativamente com a cabeça, tinha um tom sério no olhar e os lábios ligeiramente contraídos. Percebeu que as palavras dela eram mais do que uma informação. Eram uma pedra tumular. E isso bastou-lhe como lhe bastou a ela tê-lo dito. Saíram de mão dada e foram para casa fazer amor pela primeira vez. Como quem sela um pacto. No caminho, enquanto olhavam em frente, e diziam banalidades dispersas e carinhosas, ela deixou escapar uma lágrima e ele fingiu que não viu e respeitou o luto dela.


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Estórias ao Acaso: Noite Fria (XXX)

Noite Fria (XXX)

Tem a humana natureza particularidades que vamos assinalando por interesse e curiosidade ao longo desta estória. Uma delas, que agora nos ocorre, tem a ver com atribuirmos tempo errados a acontecimentos e fenómenos, assumindo uma soma e não descontando os intervalos. Como vai o discurso complexo, sente o autor necessidade de exemplificar. Por exemplo, pode uma pessoa dizer Demorei três meses a ler este livro, quando, na verdade, terá demorado umas noventa e seis horas que não são mais do que quatro dias. Acontece isto porque aquele livro andou fazendo parte das suas vivências ao longo dos três meses mas muitas horas foram passadas no banco de trás do carro, debaixo do braço, em cima da mesa-de-cabeceira, adormecido no sofá da sala, dentro de uma pasta. O importante foi a centralidade que teve na nossa vida e não o tempo efectivo que estivemos folheando e saboreando o folhear, amando as personagens, repreendendo-as, rindo com elas e com elas chorando e despedindo-nos no fim, umas vezes com saudade, outras, com alívio, outras ainda, com indiferença. Vem isto a propósito do último dia em que os amantes das palavras, com as palavras, pelas palavras estiveram juntos no jardim. Ela, porque o não podia ter inteiro, retalhado e dividido o não quis que não se retalha o amor. E disse o que tinha a dizer que era o que lhe ia na razão porque no coração outras razões moravam. E deixou-o entregue às suas opções sentado num banco de jardim enquanto se afastava chorando. Foram essas lágrimas que, como o livro do exemplo, lhe andaram bailando nos olhos e escorrendo pela face noites seguidas, dias inteiros, meses a fio. Descontando os referidos intervalos. Os das lágrimas que o sofrer, esse, não conseguiu ela intervalá-lo. Esta mulher não viveu. Arrastou-se. Sofreu dessa doença maligna a que andam dando nomes complicados e receitando drogas e terapias diversas e a que podiam só chamar de solidão e tratar com partilha e comunhão. E sentiu vezes múltiplas em ocasiões diversas o impulso natural de falar com ele, telefonar-lhe, mas sentiu sempre que isso já fizera uma vez e recordou-se da humilhação por que passara e relembrou-se a si mesma que era agora a vez dele fazer algo se algo quisesse fazer. E conteve-se. E por estas alturas andava ele lutando pela condição de poder tê-la com dignidade reconhecida em papéis. E por isso mesmo, por se querer apresentar livre e pronto para a amar, não lhe foi dizendo nada também. E assim se mata um amor. Não amando. Sim, que amar não é gostar e calar. Um amor silenciado é um amor que não viu a luz do dia nem dos olhos de quem se ama. Como diz a canção: Silence like a cancer grows. E cresceu. E foi emudecendo um amor que havia gritado bem alto a sua vontade de existir. E os olhos dela que andavam fechados para o mundo, porque o mundo se não arreda de onde está, foram-se reabrindo lentamente para ele. Primeiro, não querendo ver, depois, espreitando e finalmente olhando de novo a vida a ser vivida.

Acontece, pois, outra particularidade que andamos observando no comportamento dos humanos que é conseguirem adiar as coisas importantes e os importantes gestos e viverem presos dos pequenos, incapazes de os adiar. Adia-se a solidariedade. Não se adia uma reunião importantíssima de condóminos. Adia-se a educação. Não se adia a inadiável visita ao centro comercial. Adia-se o pensar. Não se adia o comer. Adia-se o ser. Não se adia o existir. E foi por via de um inadiável pequeno-almoço que ela entrou na pastelaria. Daquelas tradicionais, com o balcão envidraçado de forma arredondada, máquina de café com dourados, mesas diversas, empregadas com uma bata às risquinhas verticais brancas e cor-de-rosa e um enorme vidro com três mesinhas de dois lugares a permitir uma bica e um pastel de nata acompanhados da luz e da vista para o passar urbano das gentes. Nenhuma das três mesas estava ocupada, tão jovem era o dia e fresca a manhã. Ela sentou-se na mesinha mais distante da porta e nem sequer foi para evitar o frio do abre-e-fecha. Foi só para distanciar-se um pouco mais de qualquer encontro com um conhecido que estivesse obrigada a cumprimentar. E aconteceu o que tantas vezes acontece mas nem sempre com as repercussões que aqui relataremos. Entraram mais pessoas, já ela estava no fim da meia torrada e com o galão ao fim a chegar. E foram ocupando as mesas e as cadeiras que, em falindo os outros negócios todos, este do comer e do beber, por pouco que renda, sempre há-de resistir dada a sua natureza. E entrou também um homem com calças de bombazine, uma camisa de flanela mal passada e um casaco castanho de sebo, assim chamado. Transportava um ar dócil e o corpo curvado para a frente como quem carrega os problemas todos do mundo às costas. E mesmo que não sejam todos os do mundo, pode ser que sejam só os seus mas estarem esses a pesar-lhe demasiado. E pediu ele ao balcão a bica e o pastel de nata a que nos referimos há pouco. Pagou. Pegou na bica pelo pires com uma mão e com a outra trazia o pastel de nata num pratinho igual. Procurou com o olhar uma das três mesinhas junto ao imenso vidro transparente e curioso. Pareceu mesmo olhar um pouco mais para a mesinha mais distante da porta. Estavam todas ocupadas. Levantou o queixo observando toda a sala mas os lugares estavam tomados. Fez o que é natural fazer-se nestas circunstâncias. Voltou-se para o balcão a quem planeava devolver os pires e comer de pé. Ia a meio da rotação de regresso quando ouviu uma voz feminina de tom suave e doce:
– Sente-se aqui.
Ele não imaginou que fosse para si que falavam mas olhou, como olhamos sempre que se fala num tom acima do burburinho do espaço em que estamos, na direcção da voz e reparou com agrado que era consigo que a mulher bonita e triste falava.
– Sim, sente-se aqui. Eu só ocupo uma cadeira.
– Calculei que esperasse alguém.
– Não espero. Há muito que deixei de esperar. Só não sabia. Na minha vida há muito tempo que não entra ninguém nem creio que volte a entrar.
Enganou-se ela porque tinha acabado de acontecer o contrário das palavras que proferira e ainda pairavam no ar denso da pastelaria.
– Peço desculpa. Eu não quero incomodá-la.
– Quem lhe pede desculpa sou eu. Primeiro ofereço-lhe um lugar na minha mesa e depois destilo as minhas desavenças com a vida. Sente-se. Esta mesa é a melhor.
– Pois é, costumo sentar-me aqui. Gosto dos cantinhos. São mais acolhedores.
– Exactamente. Recomecemos. Bom dia! Quer fazer-me companhia? Tenho um lugar vago nesta mesa.
– É muito gentil da sua parte, a oferta. Vou aceitá-la. Muito bom dia! O meu nome é José António.


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Calma, calma, é já a seguir!

Caros leitores,
muitos de vós têm enviado mensagens de correio electrónico a perguntar quando é que publico o capítulo seguinte de “Estórias ao Acaso: Noite Fria” e se, eventualmente, já teria acabado a narrativa.

Por partes.
Não acabou ainda. Estamos na fase final mas ainda com algumas surpresas que incluem, por exemplo, personagens novas!!! Acontece que a vida pessoal e, sobretudo, a profissional deste autor tem estado muito atarefada neste arranque de ano civil e segundo período lectivo o que dificulta o processo de escrita que requer imensa concentração. Por outro lado, o atraso também se deve ao esforço extra que exige o “atar das pontas” no final da narrativa para tudo bater certinho…

Digamos que, nas próximas 48 horas surge o próximo capítulo.

Aproveito para agradecer todas as mensagens de motivação e incentivo que me vão dando por mail ou pessoalmente.

Um abraço e um excelente 2010… com tudo de bom incluindo muitas leituras.

João Paulo Videira


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Estórias ao Acaso: Noite Fria (XXIX)

Noite Fria (XXIX)

Há coisas que vêm de dentro. Há estados de alma que nos habitam e contaminam o que nos circunda. O dia é de sol enfeitado por uma brisa suave. Não fosse o calendário ser de dias curtos e frios e julgaríamos estar na Primavera. Mas este dia poderia ser de chuva miúda, de águas torrenciais, de ventos ciclónicos, granizo, neve, cinzento e sombrio ou qualquer outra manifestação climatérica que a Natureza decidisse que, à volta de Maria de Fátima, haveria sempre luz e sol e brilho.

Saíu há pouco do hotel e ainda sente o toque do rapaz musculado na sua carne, ainda ouve o seu murmurar sensual, ainda sente a sua respiração junto ao pescoço e, contudo, já o esqueceu. Caminha feliz e inconsciente pela rua. Está entregue só a si, às suas opções e aos seus caprichos e vive confortável com isso. É estranha esta felicidade de quem se limita a vivê-la sem saber de onde vem e porque vem. Ou a única. Cremos mesmo que, no momento em que soubesse por que era feliz, Maria de Fátima deixaria de sê-lo. Reside na espontaneidade do que sente não interrogado nem perscrutado pela consciência este caminhar ditoso pela rua. Há no rosto de Maria de Fátima uma alegria específica e definida. A alegria da liberdade que veio até si. Maria de Fátima conhece bem o seu corpo e os desejos dele e, mais do que isso, sabe como satisfazê-lo. Assume a sua condição e vive a verdade dela. Em si nunca haverá uma luta entre o corpo e a mente porque estará esta sempre servindo aquele. Sem remorsos. As suas opções são simples. Usufrui da vida como ela se lhe apresenta e afasta o complexo de si como quem afasta um mau presságio.

As mentes mais elaboradas e a habituadas a esquadrinhar no comportamento humano os pecados e os castigos para eles, distantes, por natureza, da matriz de Maria de Fátima, encontram-lhe com facilidade o vício e a imoralidade triunfando sobre o caminho difícil da virtude moral. Acontece, porém, que não haverá, nunca, culpa nem imoralidade onde vive a inconsciência e a inocência. Esta mulher é promíscua mas não o sabe. Apenas conhece de si que é como é, que gosta do que gosta, que vive como sabe. Essa é a sua verdade e a sua religião e vive de acordo com elas. Se há crime nesta mulher, não pode haver castigo para ele porque é um crime sem culpa. Maria de Fátima tem a coragem dos seus defeitos e das suas virtudes e é genuína nos seus gestos. Teve a força e a clarividência de mostrar a José António que a sua vida em conjunto não era o caminho de nenhum dos dois. Mostrou-lhe o dele e assumiu o seu. Decidiu bem porque decidiu abraçar a vida em harmonia com a sua natureza.

Maria de Fátima tinha um compromisso. Foi com os filhos ao cinema. Eram desenhos animados, pipocas e coca-cola. Foi a tarde perfeita para as crianças e a mãe delas. Hoje é dia de jantarem os miúdos com José António. Maria de Fátima entrega-os ao pai ao fim da tarde, sem rancor, cumprindo o estipulado e depois irá jantar com um amigo. Não sabe no que dará a noite mas não perde tempo a pensar nisso. Será o que for. Dará o que der. Não teme nem hesita. A vida é bela, é única, é sua e está só à espera de ser vivida…

Quando Maria de Fátima mergulha na noite, pode ser a mais inconsciente das criaturas que a habitam mas é também a mais segura.


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Estórias ao Acaso: Noite Fria (XXVIII)

Noite Fria (XXVIII)

Uma cama de hotel digno mas sem luxos. Um utilitário. Lençóis brancos. Ar aquecido. Roupa masculina e feminina serpenteando o chão e os móveis deixando-nos saber que a entrada no quarto fora arfada e fugosa. Um corpo viril e suado, com claros sinais de estar em boa forma adquirida no ginásio está deitado na cama com as mãos presas à cabeceira com um par de algemas. O rapaz geme de prazer como se quisesse conter a explosão que vai seguir-se mas não fosse capaz. Em cima de si balança-se, em ritmo certo e crescente, um corpo feminino esguio e, contudo, sólido. Está encaixada no sexo erecto dele, projecta para a frente um braço e assenta a mão no peito dele e deixa para trás o outro braço cuja mão assenta numa coxa musculada do jovem suado. E movimenta-se em cima dele provocando e esperando a alegria da explosão quente que acolherá dentro de si.

O que tinha de acontecer, aconteceu e ela tomba a cabeça para trás e fica saboreando o momento de prazer. Maria de Fátima está saciada e tem um compromisso. Levanta-se devagar e deixa o seu jovem musculado companheiro algemado à cama.
– Não vais deixar-me aqui, pois não?
– Por acaso vou.
– ‘Tás maluca?!
– Calma, não é para sempre. É só enquanto tomo um duche.
– Tu és louca?!
– Não. Apenas não quero que me agarres com as tuas tentadoras mãos porque tenho de estar a horas noutro local…

O duche foi rápido. Cumpriu a higiénica função e mais não lhe foi exigido. Maria de Fátima vem saindo da casa-de-banho envolta numa toalha branca justa ao corpo, presa por cima dos seios, realçando-lhe as formas e sacode os cabelos molhados com uma mão enquanto agita a cabeça. O rapaz está dormitando na letargia que sempre ataca quem acabou de dar o suor e o sémen. O corpo escorregou e estendeu-se totalmente e os braços ficaram pendurados das algemas. Ela veste-se, rápida. Não veste as cuecas pretas e deposita-lhas no ventre. Como que a não querer entranhar-se do suor dele, beija-o na testa e abre-lhe as algemas. Ele pressente-a e pergunta:
– Amas-me?
– Amo. Muito.

Sai do quarto composta, fecha a porta nas suas costas, ergue os ombros e olha a vida em frente e quando começa a atravessar o corredor em direcção ao elevador diz alto para poder ouvir-se a si própria:
– A ti, e a todos os outros!


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Estórias ao Acaso: Noite Fria (XXVII)

Noite Fria (XXVII)

A casa onde mora o desiludido amante das palavras, com as palavras, pelas palavras, está impecavelmente arrumada. Como se este homem estivesse à espera de alguém para jantar. A sala onde o vemos agora junto a uma janela contemplando o exterior tem um aspecto austero. Móveis, só os necessários. Objectos em cima deles, ainda menos do que isso e os que se vêem estão organizados como se houvesse uma ordem geométrica a presidir à sua disposição. A noite cai fria e, se há um convidado esta noite, não deve estar atrasado porque não dá este homem quaisquer sinais de impaciência ou, sequer, de uma espera mais sofrida. Está de pé, olhando a rua com as mãos atrás das costas. Está só. Por fora e por dentro. Sente a solidão profunda de quem caminhou um caminho sozinho e não encontrou o que procurava. Só um beco sem saída. Só o desengano. Só o desespero. O desespero de quem se perde para a vida sem, ao menos, ter a desculpa de ter sido enganado no percurso a seguir. Nada disso. Cada passada fora dada com a força das suas convicções, com a fé e o crer de quem ama e crê que é amado. E deixou um rasto de sofrimento e erros que o envergonham. Como pôde enganar-se daquela forma? Desperdiçou uma família em busca de uma quimera e quando lá chegou não encontrou uma nem outra. Só o desespero e a solidão dos seus erros. Só uma vida errada. Percebe, agora, a sua ambição, o excesso dela. Percebe agora que desafiou os deuses mais do que poderia suportar. Quis mais, além do muito que tinha ainda que não se apercebesse o quanto esse muito significava. Quis viver duas vidas no espaço de uma. Quis poder o que os homens não podem. E foi amado. Pelos filhos. Pela mulher. Por ela. Mas à vida, não nos cabe controlá-la. Só vivê-la. Uma vez. E o seu excesso, a sua “hybris” fora castigada. E sabe que não se assumem responsabilidades só porque alguém diz Eu assumo as responsabilidades. Assumem-se quando alguém paga o preço dos seus actos e sofre as consequências deles. Não conhece este homem o preço a pagar pela família que destruíu mas descobri-lo-á em si.

A neblina que há uns dias lhe toldava o olhar e o pensamento foi-se desvanecendo aos poucos e na medida exacta da compreensão dos seus actos e da amplitude das consequências deles. Está tranquilo e tem no olhar essa calma e essa serenidade que invadem os homens que encontraram em si a solução para os problemas por si causados. Já não é tempo de tragédia que tragédia foi o desmoronar das vidas que o rodeavam. Já não é tempo de sentir-se encurralado nem envergonhado porque encontrou, já, a saída e a forma de resgatar a sua honra e a sua dignidade.

Volta as costas à janela por onde olhava a rua sem a ver, só para entreter a vista enquanto pensava, e dirige-se para este sofá de um lugar só. É aqui que costuma ler. É aqui que costuma entregar-se ao pensamento e à televisão, agora desligada, e é aqui que tantas vezes costuma adormecer. Enterra-se no sofá e deixa-se absorver pelo seu conforto como se nada mais houvesse na vida que valesse a pena ser vivido.

A convidada da noite entrou na casa. Veio silenciosa e fria. Não necessitou bater à porta nem que lha abrissem e não quis ser apresentada. Nem precisava. A esta casa não veio porque assim o tivesse decidido. Veio porque fora convidada.

Este homem que aqui vemos enterrado no seu sofá, no universo da sua sala e da sua intimidade tem um braço sobre o colo e o outro descaído e abandonado para fora da poltrona. Adormeceu, já, pela última vez e dentro de momentos estará frio.

Ao lado do sofá confortável está uma mesinha de chá e em cima dela um frasco de comprimidos vazio do seu conteúdo. O frasco não está tombado, nem há comprimidos derramados o que pode induzir leituras diversas sendo a mais segura a convicção dos gestos de quem os praticou. Aqui há-de chegar um homem diplomado de médico e há-de escrever o óbito e a causa dele. E aí figurará a morte causada por ingestão indevida e excessiva de um químico não prescrito e cuja identificação em nada acrescenta a esta estória. Nada mais errado que andamos nós, pequenos humanos, atribuindo aos instrumentos as causas sendo estas de outra ordem. Mais certo estaria o médico que escrevesse no óbito Este homem morreu de amar e não ser amado, morreu de desgosto pungente, agonizou em desespero e vergonha pelos seus actos. Mas vemos isto, sabemos isto e continuamos a dizer que a causa da morte foram os comprimidos, o veneno, o laço na corda, no cinto, a ponta da faca, o comboio que passava… e teimamos no erro e sempre que o fazemos perdemos uma oportunidade de tentar perceber onde radica a causa. Que solidão é esta que nos traz morrendo a vida mergulhados em desespero?!

Os serviços fúnebres terminaram há momentos. O cemitério encontra-se quase deserto de lágrimas e sussuros. Restam alguns amigos mais íntimos que vão encolhendo os ombros, enfiando as mãos nos bolsos das calças e afastando-se lentamente do local onde o deixaram, só, para a eternidade. Outros abanam as cabeças em sinal negativo como que dizendo que não à inevitabilidade da morte. Junto à sepultura recente restam duas silhuetas femininas, de negro vestidas. Uma mulher informou outra e as duas estiveram presentes e aqui estão olhando o chão. Não se falaram que nada havia para dizer. Vieram ambas retribuir crisântemos. Flores que ele oferecia para as fazer sorrir e que agora marcam a sua despedida em silêncio. Tem este estranho poder a morte que é o de separar os mortos dos vivos e unir os vivos aos vivos. É como se o seu peso e a sua força exigisse que sejamos mais do que a nossa individualidade para podermos enfrentá-la.

Lá fora, José António espera no carro e quando ela chega e entra na viatura, ele faz-lhe uma festa terna na face e beija-a suavemente nos lábios.

– Gostavas muito deste teu amigo…
– Muito! Mesmo muito. Posso mesmo dizer que foi mais do que um amigo.


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Estórias ao Acaso: Noite Fria (XXVI)

Noite Fria (XXVI)

É interessante como o mundo à nossa volta nunca é o que é mas somente como o vemos. Todas as vivências, todas as manhãs, todas as tardes e as noites todas, todas as paisagens, sejam rurais ou urbanas sejam, todas as gentes que passam e ficam, todos os edifícios, todas as árvores, o sol todo e toda a chuva, as ruas todas, os caminhos todos, os veículos e os animais todos não são, nunca, o que são. São sempre como os vemos. E vemo-los sempre como estamos vivendo, filtrados pelo olhar que temos nesse dia, nessa hora, nesse momento exacto.

Este homem que aqui vemos está cego. Não vê. Olha, mas não vê. Tem um telemóvel na mão. Os braços estão caídos. Ficou olhando o mesmo ponto inexacto que estava fitando enquanto falava ao telefone e não mais tirou de lá os olhos. Não que não queira. Só não consegue. E ficou, assim, inerte, olhando o vazio, mudo e quieto no meio da cidade que passa por si, que rodopia à sua volta. Ficou entre as vozes e os ruídos e as buzinas e as sirenes das ambulâncias que passam como se lá estivesse só o corpo vazio de si que o resto não sabemos nós nem o próprio onde pára.

Há pessoas estudadas, com muitos anos de livros complexos repletos de gravuras legendadas que chamariam a este estado de choque. Não lhe chamaremos nós nada que não temos competência para tanto mas aspectos há em que somos os únicos habilitados a prestar informação qualificada. Sabemos, por exemplo, que estranhou ele os traseuntes olhando-o como se tivesse algo de errado. E tinha. E talvez por isso iniciou-se em si o despertar. Tão célere quanto doloroso. Vai despertando e os sons vão entrando em si e começa a reposicionar-se no universo. Onde está, como está, porque está. E, em simultâneo, é assaltado pela consciencialização do que acaba de acontecer-lhe. Cai em si. Reconhece, num vortex de sofrimento e incredulidade, a loucura que cometeu, a porta da desgraça que abriu. Como fora igénuo e, pior, muito pior, incauto. Interroga-se porque não a interrompeu, Que dizes tu? Estou livre para ser teu. Quero que sejas minha. Abandonei uma mulher que me ama e amo, um par de filhos, uma vida… tudo por ti e agora dizes-me que tens um companheiro tranquilo? Onde estão as tuas promessas de amor? Mas não disse nada e agora percebe as razões. Foi uma inacção que se apoderou de si porque fora apanhado de surpresa, porque não se espera da pessoa a quem se entrega a vida que nos diga que não a quer mais. É como se não tivesse acreditado no que ouvia. E foi um respeito e uma dignidade. Não se discute nem regateia a liberdade de outrém fazer as suas opções e escolher os seus caminhos quando vimos de fazer o mesmo. Não se determina para os outros a liberdade que se reclama para nós: a de amar.

Em meio desde acordar para a dor, em meio deste sofrimento profundo que ainda não percebe bem, só sente, cujas consequências ainda não consegue perceber, perguntou-se quem seria aquele José António tranquilo e dedicado que a fazia feliz e o matava a si por dentro, lhe destruía a vida sem saber… E como quase acontece sempre que perguntamos algo, este homem já a tinha a resposta consigo. E a resposta que encontrava em si é que não seria importante quem era o dedicado e gentil namorado dela mas quem ele próprio não conseguira ser ou deixara de ser. Não conseguira ser um amante dedicado e exclusivo, não conseguira entregar a sua existência à mulher que lha pedira e sonhara, erradamente, que o poderia fazer. Não conseguira ser um José António gentil e presente e abdicara de ser a única coisa que conseguira ser até ao momento: um marido e um pai. Deixara de ser o que aprendera a ser ao longo de uma vida. E em meio deste ser e não ser perdera as duas vidas. Uma, porque não era sua. A outra porque, sendo sua, a rejeitara.

A trágica ironia da existência oferecera-lhe duas vidas. Cegara-o. E fizera-o perder ambas. E sentia-se agora engolido por uma solidão súbita, uma sensação de estar já pagando o preço da sua imprudência e da sua ambição. E, num momento breve de clarividência, viu-se protagonista da tragédia humana. Uma certeza, ainda envolta na neblina incerta do choque e do pensamento, parecia crescer em si. Havia entrado neste palco pelo seu próprio pé e pela sua própria vontade e teriam de ser a sua própria vontade e o seu próprio pé a tirá-lo dele.


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Estórias ao Acaso: Noite Fria (XXV)

Noite Fria (XXV)

-Estou sim?
– Boa tarde meu amor!
– Olá, como estás?
– Estou bem, muito bem. Feliz. Sobretudo por estar a falar contigo.
– Bem… estás mesmo satisfeito. Nota-se no que dizes, como dizes. Fico muito feliz por ti. Mas a que se deve tão boa disposição?
– A muitas coisas… mas disso não queria falar já…
– Ah, não foi esse o motivo do teu telefonema?…
– Sim e não.
-Então?
– Sim… e podemos falar disso depois. Não, porque estou a telefonar-te para te convidar para jantarmos juntos. Podíamos escolher um local simpático, até já pensei onde poderia ser, tu conheces-me, sempre a preparar tudo, mas só se concordares, claro. Depois púnhamos a conversa em dia, retomávamos o fio à meada… afinal de contas tínhamos entre nós uma coisa tão bonita, não queria chamar-lhe relação, que foi interrompida de forma um tanto brusca e acho que isso não é justo. Quer dizer, eu compreendo tudo o que sentiste e disseste na altura mas era algo tão bonito e nada como um jantar, já sem ser a quente, com outra calma, para analisarmos a situação, para conversarmos, enfim, reatar alguns laços.
– É muito querido da tua parte o convite mas… sabes… tenho andado com a agenda um tanto preenchida. Quer dizer, entre nós não há essa coisa da agenda mas tenho andado bastante ocupada.
– Como assim?!
– Olha, vou ser honesta e sincera contigo porque sei que farias o mesmo comigo. Eu sofri muito com o que nos aconteceu…
– Claro…
– Sim, deixa-me continuar… e senti-me muito mal com o papel que desempenhei em toda esta situação. Não foi nada agradável para mim e, ao mesmo tempo, imaginei-me do outro lado da situação e não gostaria que mulher alguma me fizesse o mesmo. Não vou dizer que te esqueci. Nada disso. Bem tentei mas as coisas não são assim tão fáceis. Não consegui. Contentei-me com o meu quotidiano tranquilo e silenciosamente sofrido. O tempo foi passando, os meses… Meu Deus, como o tempo voa! Enfim, recentemente conheci um homem que não tem a tua energia, não tem a tua presença mas faz-me sentir muito bem, muito tranquila e, em certos momentos, até me faz sentir feliz. E sei que é meu. Às vezes chamo-lhe meu só para saborear a sensação. As coisas têm corrido bem… … … não dizes nada?
– Fico muito feliz por ti. Como sempre te disse, tu mereces o melhor do mundo. Eu quis dar-to!
– Eu sei. Mas não podes. Repara, tu tens a tua família, sempre tiveste, sempre a adoraste e eu não queria construir a minha felicidade sobre a infelicidade de outrém. Tu sabes… e depois este meu doce namorado é um excelente companheiro e estou certa de que descobriremos os caminhos do amor e do fulgor.
– Como é que ele se chama? Posso saber?
– Podes. Não é que não possas mas estava à espera que me perguntasses outras coisas sobre ele. Bem, eu conto-te na mesma, afinal é o que os amigos fazem uns com os outros… a menos que não queiras saber…
– Claro que quero!
– Cá vai: tem um trabalho humilde, é distribuidor de roupas de uma lavandaria, é muito diligente no trabalho, muito cumpridor. É divorciado. Recentemente divorciado. Sofreu imenso com o processo. Ele gostava imenso da ex-mulher mas não resultou. Acho que temos isso em comum: as feridas. É sereno, tranquilo. Quando falo, ouve-me de facto. É gentil e meigo. Vê lá tu que ainda é daqueles que me puxa a cadeira quando me levanto da mesa.
– Esses estão em extinção!
– Pois estão! E eu encontrei logo dois – tu também me puxavas a cadeira – mas este pode ser meu! Quanto ao que menos importa mas parece interessar-te, chama-se José António.
– Desejo-te muitas felicidades.
– Obrigada. E tu? Como vais? Olha a oferta para o jantar continua de pé? É que podemos jantar na mesma, os amigos jantam juntos, certo? Só que agora talvez não seja a melhor altura…
– Claro que podemos. Eu depois ligo-te. Eu vou indo bem, Senti saudades tuas, só isso.
– Também tenho pensado em ti mas estou a tentar ter uma vida… compreendes?
– Claro que sim. Espero que consigas e sejas feliz.
– O mesmo para ti. Gosto muito de ti.
– Eu também… um beijo.
– Beijo… e dá notícias…
– Darei.