Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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De Negro Vestida – X

 

Rotinas – X

Ao preparar o jantar de quinta-feira, Maria de Lurdes está tão alheada como estava ao pequeno-almoço. Agora, já não por via da antecipação mas por causa do enlevo. Um dia dedicado a si, ao perfume químico do salão, à conversa de Hortense, aos cuidados de Teresinha, a um almoço tranquilo e à invasão da ousadia de Gininha, deixa-a leve, tranquila, predisposta para o bem e nas nuvens das vidas que sabe não viverá mas com que sonha todas as quintas-feiras à noite. E quando a família abandona, como de costume, a mesa do jantar, Maria de Lurdes vai deitar-se. Protege o cabelo, veste a camisa-de-noite e deita-se na cama olhando o tecto como se fosse o céu das possibilidades. Está semi-recostada, com os braços por fora da roupa da cama e as mãos cruzadas. E tem um sorriso. Um sorriso que, mesmo sem Maria de Lurdes saber, assusta profundamente Carlos Manuel.

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O Romance “De Negro Vestida” foi publicado, capítulo a capítulo, neste blogue, entre 26 de janeiro de 2010 e 22 de abril de 2011.

Agora que conhecerá outros voos, nomeadamente, a publicação em livro, deixamos aqui um excerto de cada capítulo e convidamos todos os amigos e leitores a adquirirem o livro.

Obrigado pela vossa dedicação.

Setembro de 2013

João Paulo Videira

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De Negro Vestida – IX

Rotinas – IX

Onde quer que entre, quando Gininha entra nalgum lado, a vida entra consigo. Uma pastelaria, um pronto-a-vestir, um restaurante, uma farmácia ou um salão de cabeleireiro são inundados pela cor que sempre a acompanha, pelo perfume que transporta, pela pose que exibe e pela voz que anuncia a sua presença e a marca. O parágrafo que agora redigimos está mal começado. Usámos o verbo entrar, três vezes repetido na mesma frase, contrariando ensinamentos antigos de um professor primário de voz grave e mão pesada, porque entrando estava Gininha na Pastelaria Avenida, no entanto, o efeito que esta pujante manifestação de vida causa faz-se sentir, a bem dizer, sempre que passa e passar deveria ter sido o verbo. E, ao fazê-lo, os homens levantam os olhos dos jornais de esplanada, viram a cabeça para trás contrariando o sentido da caminhada que levam, dão toques de cotovelo, abrem janelas de automóveis e contemplam a pose e a pompa, o espectáculo de luz e cor, a energia de vida que é ver Gininha passando, estando ou entrando numa pastelaria como agora faz. Tem um espírito independente e livre, tem uma atitude ousada e um comportamento vistoso e, ao contrário do que temos visto neste mundo em que viemos passar uma vida, Gininha não é assim porque coloque uma qualquer máscara ou accione um qualquer mecanismo de defesa. É assim genuinamente sendo assim. Extrovertida nas palavras, no olhar, no vestir e, claro, no andar com que se transporta pelas ruas.

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O Romance “De Negro Vestida” foi publicado, capítulo a capítulo, neste blogue, entre 26 de janeiro de 2010 e 22 de abril de 2011.

Agora que conhecerá outros voos, nomeadamente, a publicação em livro, deixamos aqui um excerto de cada capítulo e convidamos todos os amigos e leitores a adquirirem o livro.

Obrigado pela vossa dedicação.

Setembro de 2013

João Paulo Videira

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De Negro Vestida – VIII

 

Rotinas – VIII

O dia amanheceu com gestos pequeninos, miudinhos, como se, por se fazerem menores, se fizessem em menos tempo. Maria de Lurdes põe o mesmo pequeno-almoço na mesa mas põe-no de forma diferente. Não na disposição dos lugares de cada um, nem na festa de luz e cor e cheiros que aviva a mesa, mas na forma menos pausada e mais sussurradamente apressada com que prepara a refeição inaugural do dia. Não pretende dar a ideia de que quer despachá-los para fora de casa, mas dá. É indisfarçável a energia ansiosa que lhe atravessa o brilho do olhar, os gestos nervosos de trazer e levar e quando se cruza com um deles no espaço amplo da cozinha, em vez de esperar tranquilamente, com a tranquilidade que todos lhe reconhecem de mãe e mulher, que passe, apressa-o com um Vá lá, vá lá! fazendo com a mão um gesto de Apressa-te e passa! Lembrando os sinaleiros que noutros tempos serpenteavam a cidade.
E, à quinta-feira, quando os vê partir, em debandada da sua vida para a vida deles, não sente o rasgar interior nem o impulso de os reter. Larga-os livremente para a liberdade deles que, neste dia, é também a sua. Normalmente, quando sente que já não estão no prédio, exclama Ora, ora… como quem pensa Por onde vou começar a vida que há hoje para viver?
Ao pequeno-almoço, o marido repetira, como quem confirma, aquilo que diz todas as quintas-feiras à mesa:
– Hoje é dia de Gininha?
– Hum, hum…
Ele já sabia a pergunta e a resposta para ela. Ela já sabia a resposta e a pergunta para ela. Ele sabia, já, que não viria almoçar a casa porque nunca vem. Habituou-se, há muito, a este ritual e respeita-o. Interiormente considera-o como uma espécie de grito do Ipiranga semanal da sua mulher. Admite-lho porque, de quando em vez, também solta o seu.

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O Romance “De Negro Vestida” foi publicado, capítulo a capítulo, neste blogue, entre 26 de janeiro de 2010 e 22 de abril de 2011.

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Obrigado pela vossa dedicação.

Setembro de 2013

João Paulo Videira

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Onde se produziu quase todo o capítulo VIII

Por razões de trabalho, acordei hoje na agradável paisagem alentejana que as imagens documentam. A paz e a tranquilidade da manhã num local assim ajudaram a produzir quase todo o capítulo VIII de “De Negro Vestida”. A sua publicação será breve. Para já aqui ficam alguns pedacinhos alentejanos. É natural que as imagens não tenham grande qualidade porque foram feitas com telemóvel mas julgo que documentam bem paz da paisagem alentejana às 8h da manhã.

Um chabouco para a beberragem dos póneis.

Vista genérica do complexo do Hotel da Ameira junto a Montemor-o-Novo.
É muito agradável e bastante acessível.
Consiste na recuperação de uma herdade com seus baracões e estábulos todos convertidos em hotel.
Uma zona de descanso. Tem uma vista ampla e muito verde nesta época do ano.

A vista a partir da área exterior de descanso. Muitos quartos têm esta vista.

Escadaria da capela da herdade da Ameira.

Frente da Capela de Nossa Senhora da Ameira, na herdade com o mesmo nome.

Vista da capela para o Hotel. Vegetação circundante.


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De Negro Vestida – VII

 

Rotinas – VII

Maria de Lurdes não gosta particularmente da quarta-feira. Mesmo assim, percebe que um dia passado no conforto da sua casa, com as suas coisas, na sua intimidade, com os intervalos que faz para beber um sumo ou ir à casa-de-banho ou descansar dez minutos, vale bem a pena o sacrifício de tratar das roupas. Passando-as e arrumando-as pela casa.
O dia, hoje, tem a vantagem de ter nascido solarengo e brilhante. Maria de Lurdes despachou os pequenos-almoços, arranjou roupas e lanches e mandou-os à vida sendo que a vida estava, já, à espera deles. Tratou da sua higiene e, não gostando do peso do trabalho de cuidar das roupas, prefere-o a ter de sair de casa. O trabalho é pesado mas decorre no seu ambiente, na sua casa, tratando das roupas da sua gente.

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Setembro de 2013

João Paulo Videira

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De Negro Vestida – VI

Rotinas – VI

Ela está semi-nua, ajoelhada em cima da cama desfeita como ela. Cuecas pretas a desenharem rendas na pele alva do corpo. Estava em tronco nu mas por pudor do momento vestiu a camisola interior dele. Sente-se humilhada e tem nos olhos raiados de água e sangue a raiva da decepção. Os cabelos desgrenhados dos restos do sexo e do desalinho do desatino. Levanta as duas mãos à frente da cara com as palmas voltadas para si e os dedos como se estivessem arranhando o ar. As palavras que profere trazem o ódio e a raiva do olhar e um azedume profundo e grita ao mesmo tempo que chora num pranto de quem vê o horizonte esfumando-se.
– És um filho da puta! Um grandessíssimo filho da puta!
– Calma… nunca te enganei a este respeito…

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O Romance “De Negro Vestida” foi publicado, capítulo a capítulo, neste blogue, entre 26 de janeiro de 2010 e 22 de abril de 2011.

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Setembro de 2013

João Paulo Videira

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De Negro Vestida – V

 

Rotinas – V

Há uma expressão popular que, segundo dizem as línguas do mundo, tem origem na Grécia dos gregos mas que, na nossa modesta opinião, se pode perfeitamente aplicar a qualquer povo, nomeadamente, ao nosso. Diz o aforismo que o homem é a cabeça da família mas a mulher é o pescoço sendo que o pescoço vira a cabeça para onde quer. Tem esta expressão ecos e sínteses variadas pelo mundo fora ao longo da História da Humanidade. A mais comum e, por isso, a mais conhecida é aquela que dita que por trás de um grande homem está sempre uma grande mulher. Permitam-nos um reparo. Nem sempre a mulher está atrás. Muitas vezes tem estado à frente, acima e também ao lado. Menos referida esta última quiçá por ser a mais importante e menos vistosa. Estende-se o reparo a outra situação não abrangida pela expressão que vimos analisando. É que, muitas vezes, têm estado grandes mulheres atrás de homens que nunca chegam a ser grande coisa pois não almejaram ser tão homens quanto elas! Não fazendo, para não aborrecer a benevolência do leitor, desta humilde estória uma dissertação sobre a condição feminina, arriscamos, ainda, uma conclusão perfeitamente impressionista, casuística mesmo, mas não menos válida por isso. Trata-se, pois, de acreditarmos que a maioria destas mulheres, que estiveram sendo homens no corpo deles, é, ou foi, doméstica.

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O Romance “De Negro Vestida” foi publicado, capítulo a capítulo, neste blogue, entre 26 de janeiro de 2010 e 22 de abril de 2011.

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João Paulo Videira

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2 comentários

No coração da serra.

Foi onde se produziu grande parte do capítulo V de “De Negro Vestida”. Assim que o manuscrito estiver tratado, será aqui colocado… já falta pouquinho.
Entretanto deliciem-se com os pormenores da paisagem da serra d’Aire e Candeeiros. O local é bem mais a sul do que o que aqui foi mostrado no outro dia mas igualmente espectacular.
Até breve…

O arrife da serra d’Aire e Candeeiros
A Primavera anuncia-se.

Contraluz na subida.

Paisagem para sul com A1 no horizonte.

Imponência.

A paisagem e o companheiro.

Paisagem para Este.

Há centenas de Km deste muro na serra. Todo construído manualmente.

Sol e Sombra.

Sol e sombra (2).

O escritório e as nuvens que contam estórias.


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De Negro Vestida – IV

Rotinas – IV

Não deve haver sentimento mais frustrante do que concluir-se uma obra e, ao concluí-la, ainda no prazer da contemplação, descobrir-se que está incompleta. Ou, estando completa, descobrir-se que carece de manutenção desde o momento primeiro da sua conclusão. Assim ficou o Criador, olhando, descoroçoado, o universo, pois, mal o concluíra, toda a Natureza, com particular ênfase para a Humanidade dada a libertinagem que lhe fora confiada, começou a pedir por pão. E se o Criador pensou, ao acabar a obra, que a obra estava acabada, bem se enganou. A própria Natureza, tão pródiga a resolver os seus problemas, necessitou desde a primeira hora de uns trabalhos de manutenção. Não teve o Criador outro remédio que não fosse emendar a mão. E se havia um búfalo com parasitas, encomendou à garça que lhos comesse montada no lombo dele. E se havia excesso de restos carnívoros abandonados pelos predadores, logo encomendou às rapinas que deles se alimentassem limpando os espaços e reciclando o que para outros eram lixos abandonados. Os exemplos multiplicaram-se e só quando a omnipresença do Criador confirmou que a sua omnipotência havia resolvido os problemas de manutenção, pode Ele descansar um dia, sétimo na sequência.
E foi por este encadeamento de criações e necessidades que viemos a ter pescadores que pescam o peixe, caçadores que caçam a caça, mineiros que extraem o minério, lavradores que rasgam a terra, agricultores que semeiam as sementes, lenhadores que racham a lenha, carpinteiros que carpintam os móveis, serralheiros que trabalham o ferro, domadores que domam os animais, professores que ensinam os ensinamentos, médicos que prescrevem os medicamentos, enfermeiros que assistem os enfermos, jornalistas que divulgam a palavra, escritores que contam estórias, padres que orientam rebanhos, pastores que fazem o mesmo que os padres mas com dificuldades acrescidas por não poderem socorrer-se das palavras, prostitutas que iludem a vida, poetas que a cantam… e todos eles têm sua função de manutenção da divina criação onde a criação divina ficou falha de solução própria e autónoma. E todos eles têm seu reconhecimento e vieram, mesmo, a ter sua recompensa e sustento. Todos, menos a mais injustiçada de todas as tarefeiras de Deus, a que nunca viu a profissão reconhecida nem remunerada pois que ainda hoje, em plena era das tecnologias, não recebe, não passa recibo, nem verde de outra cor qualquer, e não desconta para a Caixa nem paga i erre esse. A Doméstica. Nem ao menos serve a desculpa da falta de importância de seu mester que é, sem dúvida e comummente aceite, dos mais importantes. Cuidar da célula fundamental da nossa vida social: a família. Cuidar do lar. Educar e acompanhar o crescimento dos filhos, apertando-os a si para os libertar depois. Estar incondicionalmente ao lado do seu companheiro.

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O Romance “De Negro Vestida” foi publicado, capítulo a capítulo, neste blogue, entre 26 de janeiro de 2010 e 22 de abril de 2011.

Agora que conhecerá outros voos, nomeadamente, a publicação em livro, deixamos aqui um excerto de cada capítulo e convidamos todos os amigos e leitores a adquirirem o livro.

Obrigado pela vossa dedicação.

Setembro de 2013

João Paulo Videira

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De Negro Vestida – III

 

Rotinas – III

Antes do primeiro raio de luz que anuncia o astro rei, antes do momento primeiro em que o breu da noite é cortado por uma tímida centelha de luz, a selva dorme. Profunda e negra, num silêncio absoluto de fazer as almas sentirem-se abandonadas, somente cortado, a espaços, pelos animais que fazem de noite o que a maioria vive fazendo de dia. Assim está o lar de Maria de Lurdes. Profundamente adormecido, sossegado e em paz.
Depois, por entre a folhagem e nas tocas e nos recantos escuros e escusos, há, algures, um animal que pressente a chegada do dia e sabendo pela certeza do saber que o Criador lhe deu porque racional não é ou, pelo menos, lhe não chamamos, emite o seu som de despertar. Pode ser um grasnar de ave de porte, um piar de ave miúda ou o ruído distante de um mamífero que percebe se anuncia mais uma sequência jubilosa de luz a que tentará sobreviver e a que nós chamamos dia mas eles não, ao menos que tenhamos conhecimento.
Assim está este lar que estamos devassando, a mulher que vamos conhecendo. Primeiro, ainda no escuro, pressentiu o dia e abriu um olho para certificar-se da luz. Qualquer humano pensaria É noite, virar-se-ia para o lado e continuaria a explorar o sono e o sonho. Mas, as Marias de Lurdes deste mundo que são mães e conhecem a labuta de cuidar de uma casa, conseguem distinguir os diversos timbres de escuridão. E esta mulher, deitada de lado, de costas para o marido, com as mãos persignadas como quem reza debaixo da cabeça suportando-a e dando-lhe um pouco de altura, com um olho aberto e outro fechado, conseguiu já ver que este escuro não é o da tarde que termina, nem o da noite que se inicia, nem já o da noite profunda que ela conhece do tempo distante de mudar fraldas e dar de mamar. Este é o escuro que se está perdendo para a luz. Dentro em breve, após o despertar das vidas para a vida, o mundo estará girando, ruidoso, à sua volta. Por isso, não fecha o olho que tem aberto. Abre o que tem fechado. E, com o olhar fixado na parede, reconstrói para a manhã que hoje se anuncia, os gestos da manhã que ontem foi.

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O Romance “De Negro Vestida” foi publicado, capítulo a capítulo, neste blogue, entre 26 de janeiro de 2010 e 22 de abril de 2011.

Agora que conhecerá outros voos, nomeadamente, a publicação em livro, deixamos aqui um excerto de cada capítulo e convidamos todos os amigos e leitores a adquirirem o livro.

Obrigado pela vossa dedicação.

Setembro de 2013

João Paulo Videira

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