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De Negro Vestida – Aproxima-se a Hora do Lançamento…
Caros Familiares, Amigos e leitores,
Está quase na hora do lançamento de “De Negro Vestida”.
A todos os que me têm apoiado, encorajado e ajudado neta aventura de começar uma vida nova, aquela que sempre sonhei, a da escrita publicada, o meu muito sentido agradecimento.
Só posso prometer continuar a escrever. Até amanhã!
Lançamento do Livro "De Negro Vestida"
Mulheres de Quelimane, Homens de Maputo.

Histórias a Preto e Branco
Mulheres de Quelimane, Homens de Maputo.
A história conta-se em poucas palavras. Homens que nunca daqui saíram, mulheres que vieram de longe. Quelimane. Quem vem de Quelimane diz que é onde brotam os melhores ananases, onde ficam as praias mais tentadoras, onde nascem as mulheres mais dotadas e onde se cozinha a melhor mucapata de caranguejo que as gentes de Moçambique alguma vez provaram.
Chamaram-lhe Virgínia a conselho de um padre português que vivia em Inhambane desde antes de ter barba até a ter grisalha da velhice e amarelada dos cigarros vespertinos sugados debaixo de uma acácia sem idade. Dissera o pároco que o nome significava pureza, virgindade e que aquela menina deveria ser guardada para o Senhor, entregue às Carmelitas da Missão e criada com Avé Marias e Padre Nossos numa vida dedicada ao espírito e à Divindade. Bem intencionado foi o pároco, mas desconhecedor das forças e premências da Natureza, ou, sendo conhecedor, subestimador delas.
Virgínia foi-o enquanto pôde. Aos catorze anos partiu para Maputo com o pai da criança que levava na barriga. Depois dessa, teve outra e depois dessa está tendo outra aqui nesta cama onde se encontra deitada, abrindo as pernas ao mundo e esperando que a sogra lhe tire o filho do ventre. Estranhou, pois, as palavras da velha que, quando lhe tirou o filho e lho deu para o colo, disse:
-Toma, este é o primeiro.
-Primeiro?
E por ser o primeiro a ver a luz do sol nesse dia, Primeiro lhe chamou e ao que veio a seguir, com a lógica inquebrantável de quem vive a Natureza como sua casa de ser, Segundo lhe chamou. Primeiro cresceu um rapaz forte e bonito e fisicamente dotado. Tudo o que tivesse a ver com ferramentas, ar livre e futebol e fazer com as mãos era com ele. Ímpeto forte e palavra larga. Segundo cresceu um rapaz sereno, muito replexivo, fechado nos seus próprios pensamentos, muito dado às contas, às letras, aos livros. Tudo o que tivesse a ver com pensar, com palavras, esquemas e táticas e fazer com o cérebro era com ele. Força serena e gesto comedido.
Cresceram juntos, comeram o mesmo pão, a mesma manga, a mesma banana, o mesmo arroz. Eram iguais. Um rosto simpático, os dentes largos em cima e fininhos em baixo, as mãos longas e as pernas esguias. Adoeceram nas mesmas semanas, tiveram as mesmas faltas de apetite e os mesmos desejos vorazes de ananás polvilhado com açúcar. Foram cúmplices na escola, na rua e em casa e diziam os amigos e os familiares que só Virgínia, a mãe, os conseguia, de facto, diferenciar.
-Como faz dona Virgínia?
-Ora, olho para eles.
-Mas são iguais!
-Não são nada! Bem diferentes, até.
E depois testavam o saber da mãe:
-Qual é aquele ali?
-Aquele é Segundo.
E chamavam:
-Segundo!
E o rapaz virava-se.
-Xiii, dona Virgínia, como faz para saber?
-Já disse, olho.
-E o que vê diferente?
-Ora, Primeiro tem fogo e luz e movimento no corpo. Um sol que lhe sai dos olhos e ilumina o mundo. Segundo tem nuvens no olhar e um lago azul no corpo que ele empurra a custo.
-Xiii, dona Virgínia, isso não são coisas de ver.
-São sim, são coisas de uma mãe ver.
A areia branca da praia sob os pés, entra dois passos na água calma do Cuacua e fica com o rio pelo artelho, olha-o intenso, a luz da madrugada vem despontando por cima do azul transparente e límpido do Índico, a barriga redonda e grande, prestes a rebentar, sente falta do som da vela do dow ao vento, a água chapinhando o casco do barco, e diz para ele:
-Josué, leva-me no mar!
E ele levou, desceram com suavidade aqueles vinte quilómetros até ao grande oceano e assim que lá chegaram as ondas das águas que trazia no ventre sincronizaram-se com as do mar salgado, e foi sem destino e veio naquele bailado até à praia e quando chegou, sentou-se na areia e pariu. O sal da água ficou na pele da menina a que ela chamou de Estrela como a que estava semi-enterrada na areia onde o mar se vem deitar.
Ainda duas semanas não tinham passado, dormia ela com a criança em cima do peito, levava-a para todo o lado enrolada numa capulana que lhe passava por cima de um ombro, por baixo do outro e atava à frente, sob os seios enormes de leite de que ela, religiosamente, duas vezes por dia, tirava umas gotas e colocava no sexo da bebé, sem saber porque fazia aquilo, eram gestos que vinham de um tempo lá longe, antes de tudo o que ela conhecia, e Josué começou a querer partilhar o peito da mulher com Estrela, chegava-se a ela com o sexo empertigado e pedia, Dá para mim. Ela conseguiu escorraçá-lo durante uns dias, mas acabou cedendo nas intenções e, aproximadamente um ano depois de Estrela, nasceu Flora.
-Eh, mulher, só me dá meninas.
-Eh, homem, só me faz meninas.
Em Quelimane viviam poucos portugueses. A cidade era muito longe dos interesses. Eram meia dúzia de famílias e um viúvo que perdera a sua na guerra, mulher, filhos, irmãos, cunhados, sobrinhos, e resolveu cobrar à terra que levara os seus, a sua própria morte. Um homem austero e rigoroso, alto e fendido de rugas longas pelo rosto abaixo, que viu as meninas crescerem por ali com cestos de mangas à cabeça, caranguejos atados por cordéis, ananases pendurados em paus atravessados nos ombros e tudo o mais que duas crianças com pouco mais de dez anos pudessem tentar vender. O português nunca tinha tratado nenhum moçambicano pelo nome próprio. Usava tu para tudo. Resolveu mudar.
-Josué, essas meninas não vão à escola?
-Não tem como, senhor.
-Hão de ir. Manda lá para minha casa.
-Mas eu preciso…
-Eu pago.
E pagou. Pagou o tempo delas. Assim, Josué podia pagar a quem o ajudasse quando elas não estavam que era quase sempre pois que, embora haja notícias contrárias, a verdade é que a escola é coisa que requer muito tempo, muito trabalho e algum sofrimento. E pagou também as despesas com elas. E viu o seu investimento dar frutos. Mas não todos. Pouco antes de fazerem o exame da décima segunda classe, o português sentiu uma dor no peito, vazou mais um uísque para acalmar, recostou-se na cadeira e partiu deste mundo. Foi ter com a família que já lá estava.
Josué viu que as meninas tiveram boas notas. Agradeceu, no seu íntimo, ao português, e decidiu pô-las a trabalhar. Não foi bem sucedido na intenção. Por esses dias, apareceu em Quelimane um homem de fato escuro, pasta de cabedal castanho e papéis a saltar dela e a ditar a vida das pessoas. O português tinha morrido, mas continuava vivo. E esse homem foi batendo de porta em porta, em havendo porta para bater, ou chamando pelo nome das pessoas:
-Senhor Josué! Senhor Josué Nhangave!
-Josué Nhangave sou eu, o Senhor não mora aqui, está no céu.
-O senhor é pai das meninas Estrela e Flora Nhangave?
-Dessas e mais uns quantos que por aí andam.
-Temos de conversar.
-Ah sim? E porquê?
-O senhor Madeira…
-E quem é esse?
-O falecido.
-Ah, o português!
-O senhor Madeira.
-E quem é esse?
-O falecido.
-Ah, o português!
-O senhor Madeira.
-Madeira, agora que está num caixote, mas foi de carne e osso…
-Chamava-se Madeira.
-Por aqui toda a gente o chamava de português.
-Por ser de Portugal…
-Não. Por ser o nosso português de Portugal. O senhor também há de ser de Portugal e ainda não lhe chamei de português.
-Enfim, o senhor… o português deixou em testamento expressa a vontade de que meninas Estrela e Flora estudassem.
-E quem paga a vontade dele?
-O próprio.
-Mesmo depois de morto?
-Mesmo!
-Como assim?
-Pois, o dinheiro para a educação das meninas não lhe é entregue…
-Mas podia!
-Pois, mas o senhor Madeira, o português, deixou instruções precisas. Todos os meses se transfere uma importância para a conta das meninas…
-Conta? Senhor, a única conta que há cá em casa é a da mercearia e isso é porque a Faustina vende fiado.
-Senhor Josué, o importante é que o senhor saiba que o português me deixou a responsabilidade de gerir essa verba. Eu abrirei as contas para as meninas num banco, elas irão estudar e todos os meses eu faço as transferências. A única regra é que não podem reprovar, caso contrário, interrompem-se as transferências.
-Português sabido. E como é que o senhor sabe isso tudo? Acaso o português fala consigo do além?
-Não. Mas deixou tudo escrito. Há vários anos, de resto. Assim que as meninas passaram no exame da quarta classe.
-E não disse nada?
-Não sei. Pelos vistos, não.
-Porquê?
-Lá teria as suas razões…
-Português sabido! E elas vão estudar o quê?
-Elas devem saber a sua vocação.
-É?
-É!
E lá foram as duas para Maputo estudar contabilidade na Eduardo Mondlane e ainda o curso não estava acabado, já tinham propostas de trabalho que não puderam aceitar para não quebrar a regra do português defunto. Quando terminaram, a colocação foi rápida. Escolheram ambas o BCI. Podiam ter escolhido outra instituição, mas a farda do BCI, saia cinzenta, camisa laranja e uma chapinha com o nome do funcionário, fez a diferença. Estrela e Flora vivem bem. Ajudam os pais naquilo que podem e de quando em vez vão a Quelimane visitá-los, passear no rio Cuacua, tomar um banho de azul no mar, comer ananases irrepetíveis e a melhor mucapata do Universo. Da próxima vez que lá forem, levarão seus recentes namorados. Estrela namora com Primeiro e Flora com Segundo.
Tudo começou numa tarde de tédio. Primeiro via televisão. Segundo lia. O programa não era bom. O livro era técnico.
-Segundo…
-Sim, mano…
-Vamos sair.
-Onde?
-Vamos na Costa do Sol. Apanhamos um pouco de mar.
-Primeiro…
-Sim, mano…
-Sabe o que nos faz falta?
-O quê?
-Namoradas.
-Você não quer! Estou sempre a encontrar namoradas para nós e você não gosta de nenhuma.
-Primeiro, você não encontra namoradas, você providencia encontros fáceis com moças fáceis que têm dificuldade em pronunciar um dissílabo.
-Um quê?
-Vê? Vê? Nem você sabe o que é um dissílabo! A professora explicou.
-Quando?
-Na segunda classe!
-Xiii, mano, faz tempo, muitos anos, como é que eu ia lembrar?
-Eu lembro.
-Pois, mas você veio ao mundo para não esquecer nada.
-E você, Primeiro, veio ao mundo para quê?
-Para nos encontrar namoradas!
-E porque não encontra?
-Falta um plano.
-Não seja por isso.
Segundo puxou um caderno e traçou um plano original, tão original como o pecado na Terra. Iam andar com roupas de correr pela marginal acima e abaixo, para lá e para cá, e quando se cruzassem com duas amigas interessantes, seguiam-nas e metiam conversa invocando que tinham em comum o hábito de correr.
-Segundo…
-Sim, Primeiro…
-Você não tem o hábito de correr!
-E depois? Mero pormenor. Um detalhe… por uma namorada eu corro!
-Ela há de chegar láááááá na Aldeia dos Pescadores ainda você está no Naval.
-Primeiro, não brinque. Eu corro.
-Pronto, tudo bem. E quando vamos?
-Já?
-Já!
Primeiro não se enganou muito. Segundo era uma lástima na corrida. Ele ia e vinha, corria duzentos metros para lá e voltava para cá a buscar o irmão. Como quase sempre acontecera em toda a sua vida, vestiam de igual, ou quase igual, mas, não obstante a incrível semelhança física entre ambos, quem os olhasse de longe, havia de reparar na vitalidade com que um corria e na lentidão com que o outro se arrastava. Primeiro decidiu transformar os seus avanços em investidas exploratórias. Ele iria para a frente, procurava um par de moças interessantes e interessadas, voltaria correndo, preveniria Segundo para o encontro e exigia dele que produzisse, entretanto, aquelas frases geniais para captar a atenção das desconhecidas. Quando propôs isto ao irmão, a reação não podia ter sido melhor:
-Excelente ideia, Primeiro. Vá lá explorar que eu fico a congeminar frases fabulosas.
Estrela e Flora, como era hábito todas as manhãs e também ao fim-de-semana, vinham correndo pela marginal. Deixavam o carro no parque do Clube Naval, iam até à Costa do Sol e regressavam pelo mesmo caminho. Vinham já no último terço do percurso, quando se cruzou com elas um rapaz que ia em sentido contrário.
-Viu esse, Flora? Estava olhando para si.
-Eu acho que era para si, mana.
Ainda não tinham acabado de comentar a passagem dele, já ele estava regressando, ultrapassando-as.
-Flora…
-Sim, mana…
-Ou esse é Super Homem e foi lá na Costa do Sol e regressou em menos de um minuto, ou voltou por sua causa.
-Não me parece o Super Homem, Estrela, falta-lhe a capa. Mas foi por sua causa que ele voltou. Aposto que vai olhar para trás em menos de cinco segundos.
-Aposta fácil!
Enganaram-se as duas. O rapaz, não só não olhou para trás, como desapareceu no horizonte. Alguns momentos depois, viram-no voltar, mas trazia um igual ao seu lado.
-Flora…
-Sim, mana…
-Esse daí, se não é super homem, é milagreiro. Olha lá, ele foi um, vem dois.
-É, tem razão, Estrela, mas o clone dele é meio desajeitado a correr.
-É. Tão iguais e tão diferentes. Aposto que vão falar.
-Aposta fácil!
Eles passaram sem dizer nada.
-Como é, mana, não acertamos uma aposta com o Super Homem e o clone desajeitado?
Mas acertaram. Ainda mal tinham passado por elas, Primeiro e Segundo voltaram para trás.
-Segundo, agora precisamos da sua frase.
-Não se preocupe.
Os jovens correram, alcançaram-nas a custo, elas perceberam que eles se aproximavam, olharam para eles e Segundo, pleno de confiança, arriscou:
-Olá meninas, boa tarde, gostam de correr?
-Não. Fazemos isto por obrigação! Disse Estrela.
E arrancaram a correr, deixando-os para trás.
-Que coisa previsível!
-É mana, falta de originalidade.
Não tiveram tempo de comentar mais nada. Ouviram um estrondo e um grito e voltaram-se para trás.
Os irmãos tinham reagido de imediato trocando o passeio pela estrada por haver menos obstáculos e pessoas e acelerando o passo, Segundo, o desajeitado, tropeçou numa das inúmeras arcas congeladoras espalhadas ao longo da marginal repletas de Coca-Colas, Sprites, 2M, Manicas e tudo o que possa refrescar as agruras do calor à beira-mar, uma garrafa de Coca-Cola, dessas que ficam em cima das arcas anunciando o que por ali se vende, tombou e caiu ao chão, Segundo desviou-se dela e, ao fazer esse gesto, ficou mais dentro da estrada, vinha passando um chapa que, surpreendido pelo gesto súbito, não foi a tempo de emendar a rota e o espelho da Toyota Hiace embateu com estrondo nas costas de Segundo que se estatelou. Ficou de costas, a boca muito aberta da surpresa e os olhos a olharem o azul do céu como que a certificarem-se se era o céu dos vivos ou dos mortos. Primeiro acorreu de imediato e em pavor:
-Segundo, Segundo, meu irmão, você está bem? O que aconteceu?
-Acho que atropelei o chapa!
Estrela e Flora aproximaram-se. Flora, com a preocupação estampada no rosto, perguntou:
-Você caiu?
-Não. Estou aqui a admirar a vista!
Rebentaram todos numa gargalhada, mesmo atordoado. Segundo ripostara a tempo de fazer justiça ao que se havia passado há uns minutos atrás. Ela aconselhou:
-Vamos ao hospital!
-Segundo, ainda no chão, a recuperar lentamente todas as capacidades, não se conteve:
-Mano, não só chamei a atenção delas, como as fiz voltar para trás!
-Mas não era preciso quase morrer por isso!
Voltaram a rir e Estrela resolveu fazer as apresentações. Estendeu a mão e disse:
-Estrela.
-Primeiro.
-Primeiro o quê?
-Eu sou Primeiro.
-Estamos fazendo uma corrida?
-Não. Meu nome é Primeiro.
-Primeiro do que o meu?
-Xiii, sempre a mesma coisa! Eu me chamo Primeiro! Primeiro é o meu nome!
-Não diga! E o clone desajeitado é o…
-Segundo.
-Minha nossa! E tem um terceiro?
-É, tem… mas não se chama assim…
-Perderam a conta…
-Mais ou menos isso…
Flora interrompeu:
-Eu sou Flora e acho que devemos levar o seu irmão ao hospital.
Apanharam um táxi e foram. Não havia nada de mais. Ao cabo de umas horas de espera, já tinham conversado o suficiente para que a disposição de Segundo estivesse ótima e, a haver alguma coisa grave, já se teria anunciado. Como não anunciou, decidiram ir esperar para a esplanada do Mundusque é ali perto. E, ao fim da noite, percebia-se claramente que o caráter mais expansivo e resoluto de Estrela pendia para a determinação de Primeiro, enquanto que o recato e a prudência de Flora se inclinavam para o tipo reflexivo de Segundo. E os casais ficaram feitos. Seleção natural. E muito tempo assim duraram e durariam mais tempo ainda não tivessem eles decidido trocá-los!
Estrela está atravessada na cama com a cabeça assente numa mão e o cotovelo espetado no colchão. As longas pernas negras oferecem a sua beleza ímpar ao primeiro homem que entrar pela porta do quarto e a vir semi-nua, só com a lingerie estonteante. Esse homem será Primeiro. Chega do trabalho, coloca a chave na porta, entra, ela pressente-o e chama-o, ele sente o odor do incenso no ar, a tarde cai, há só dois ou três candeeiros de pé acesos, a casa está à meia luz, ele percebe, precipita-se para o quarto e quando a vê nem se apercebe que ela disse, Vem cá meu homem, vem ser o meu Primeiro, atira-se a ela à medida que se despede das roupas, beija-a avidamente na boca e incendeia os seios dela com a sua língua voraz e ardente, procura-lhe o ventre e lambe-o com volúpia, coloca-a de quatro, procura-lhe a carne rosada por entre o ébano da pele e quando a encontra, enterra-se nela, segura-lhe as ancas, movimenta-se em ritmo vigoroso, derrama-se nela e dez minutos depois adormece a seu lado.
Flora seria incapaz de esperar semi-nua em cima da cama por Segundo. Combinaram entre si que quem chegasse primeiro a casa adiantaria o jantar e é o que ela está fazendo. Segundo entra, pousa as chaves, vai à casa-de-banho, aproxima-se dela por trás e beija-lhe o pescoço. Trocam impressões sobre o dia de ambos, sentam-se na sala a ler um pouco e quando Flora pressente a hora de se irem deitar, levanta-se, vai à casa-de-banho fazer a sua higiene, veste o pijama e entra na cama. E é lá que está quando Segundo chega, poucos minutos depois. Deita-se, apaga a luz e começa a sua longa e demorada sinfonia. Dá-lhe beijinhos pequeninos atrás da orelha, depois beijos gordos e generosos no pescoço, as suas mãos percorrem-lhe o interior das coxas, a língua dele procura a dela e as mãos sobem aos seios que ele acaricia com suavidade, e beija-lhos, e deixa-os humedecidos, e desce ao ventre que beija devagarinho, e brinca com o sexo dela e segura-lhe uma mão e tocam-no juntos e quando ela já arqueia o corpo de desejo e solta pequenos gemidos, Segundo deita-se sobre Flora e penetra-a devagarinho e é devagarinho que fica fazendo amor com ela e fica cuidando do seu corpo de mulher jovem enquanto os minutos voam. É já tarde quando explodem em uníssono e os seus corpos vibram de êxtase. Depois, Segundo recosta-se na cama, acolhe a cabeça dela no seu ombro e pergunta:
-Gostou?
-Hum, hum…
E ficam conversando a intimidade até adormecerem nos braços um do outro.
Desde que não estivessem a correr, Primeiro e Segundo eram mesmo muito parecidos. O mesmo formato da cabeça, o mesmo olhar, o mesmo jeito de inclinar ligeiramente o tronco para a frente, as mesmas mãos largas e suaves, até a voz era praticamente igual. Quando estavam no trabalho, a caminho dele, num almoço de amigos, numa viagem de lazer, havia sempre alguém que, dirigindo-se a um deles, perguntava:
-E qual é você?
A verdade é que eles gostavam da confusão e encorajavam-na, ora usando as mesmas roupas, ora dizendo as mesmas frases, ora trocando papéis propositadamente para confundir as pessoas. Em pequenos pormenores do quotidiano, chegaram mesmo a reparar que até Estrela e Flora tinham momentos de hesitação. E foi por causa de uma dessas hesitações que tudo começou. Estrela aproximou-se de Segundo julgando que era Primeiro, abraçou-o por trás, beijou-lhe o pescoço e disse:
-Está tranquilo, meu bem?
-Muito tranquilo. Disse Segundo estremecendo.
-Espero que sim. Esta noite estou contando consigo.
Ele não lhe disse que era o irmão errado, não foi capaz. Mas contou a Primeiro:
-Mano, no outro dia sua namorada me abraçou e me beijou.
-Como?
-No pescoço.
-Não é isso, como é que ela fez isso?
-Ora, pensou que eu era você. Chamou-me Primeiro.
-E você aproveitou, seu safado!
-Não. Mas tive uma ideia.
-Você e as suas ideias…
-Mano, preste atenção. As relações sempre se desgastam, as pessoas sempre se cansam e as relações começam a ser vítimas da rotina e a definhar e depois morrem e há traições e problemas… ora, quem sabe se nós não temos aqui a solução… de vez em quando, sei lá, quando um de nós andasse num momento da relação mais aborrecido, podíamos trocar.
-Quê?! Você é maluco!
-Não concorda?
-Claro que concordo! Mas elas vão reparar.
-Não vão nada.
-Como não vão nada?
-Eu explico. No dia combinado, saímos de casa exatamente com a mesma roupa, meias, cuecas e perfume incluídos.
-Nós já usamos o mesmo perfume.
-Eu sei, foi só para avisar.
-E…
-E à noite cada um regressa para casa do outro. Só temos de partilhar alguma informação sobre elas, o que elas gostam, você sabe… no ato da intimidade, os planos do casal, do que elas andam a falar… que me diz?
-Que você é um maluco chapado! E um génio. Vamos lá trocar namoradas.
-Não, mano, não é trocar namoradas, é trocarmos um ao outro.
-E não é a mesma coisa?
-Tecnicamente não.
Nos dias que se seguiram, Primeiro e Segundo conversaram mais um com o outro do que com as próprias namoradas. A caminho do trabalho, no trabalho, pelo telefone, à noite, trocaram e-mails e lá se iam informando intensamente acerca dos hábitos delas. E assim se urdiu e preparou o plano. E foi como a seguir se conta que se pôs em prática.
Saíram de casa pela manhã. No trabalho trocaram as chaves dos carros e das casas e as carteiras com os documentos e quando a tarde caiu dirigiram-se para a sua escapadela amorosa de dissimulação.
Primeiro conhecia bem aquela entrada, aquelas escadas, aquele elevador que só parava nos pisos ímpares. O facto é que, quando os dois casais decidiram juntar-se, Primeiro e Estrela ficaram na flat que era delas e Segundo e Flora foram morar na flatque era dos rapazes. E é por isso que não há para ele qualquer efeito de estranhamento. O que está fazendo, fingindo, fez muitas vezes a sério. Mas não se engana, hoje leva um fogo no peito, uma palpitação e uma antecipação. Não pode negar, pelo menos a si próprio, que já tivera uns pensamentos atrevidos envolvendo a namorada do irmão. Ficara-se por aí, contudo. Ora, a ideia de Segundo viera reanimar esse desejo. Chave na porta, porta aberta, chaves no aparador, Boa noite, amor, casa-de-banho, cozinha, aproxima-se por trás e beija-a no pescoço, estremece, ela vira-se, olha-o nos olhos e diz, Bem-vindo, meu amor, e beija-o longamente. E enquanto o beijava, ele saboreava o beijo e repetia para si próprio, Devagar, devagar, devagar, nada de pressas. E controlou a sua voracidade. Por momentos. Jantaram e Primeiro esperou que ela se fosse deitar, mas sempre foi dizendo que estava cansado a ver se a apressava com subtileza. Não resultou. Flora estranhou que, nessa noite, ele visse televisão em vez de ler, ainda por cima canais de desporto, mas pensou que eram assim os homens, volúveis e instáveis. E tinha razão. Foi-se deitar. Fechou-se na cama após a higiene e pouco depois, Primeiro, feito Segundo, chegou ao pé dela e lembrou-se das palavras do irmão, Com calma, mano, muita calma, com carinho, com ternura, e pensou que seria assim, com carinho, ternura e calma. Acontece que, após os primeiros beijos no pescoço, depois de trocarem as línguas e assim que Flora lhe ofereceu os seios à visão e ao tato, Primeiro começou a arfar, lambuçou-lhos com vigor, abocanhou-lhe o sexo como se o fosse engolir, pô-la de quatro, segurou-a pelas ancas e cavalgou-a como num filme de cobóis e adormeceu dez minutos depois. Flora, surpresa, pensou que o seu gentil e amoroso namorado se tinha transformado numa locomotiva e, porque é mulher inteligente e sabida, ocorreu-lhe que talvez ele estivesse tendo outras experiências e foi quando pensou nessa possibilidade que se lembrou, E se sou eu quem está tendo outras experiências?!
Segundo, já de si propenso aos nervos, estava mais nervoso do que nunca. Tremia das mãos e estremecia do coração. E levava aquela ideia colada na mente, Ser enérgico, ser enérgico, ser enérgico, você é que comanda. Chave na porta, dá meia volta, outra meia, ainda, cheira-lhe a caril de amendoim, entra e diz, Boa noite! Estrela apressa-se na resposta, Boa noite? Não tem beijo hoje, não? Claro que tem! Avança para ela que está de volta dos tachos, dá-lhe uma palmada no rabo com a convicção que consegue inventar, roda-a para si e beija-a longa e ternamente. Juntou alguma sofreguidão ao beijo. A suficiente para ela não desconfiar. Jantaram. Estiveram na sala. A certa altura, ela levantou-se e disse:
-Vou dormir. Você vem para o quarto?
-Claro. Claro que vou para o quarto. Me aguarde.
Ela estava a despir-se quando ele entrou e começou a despir-se também.
-Primeiro…
Fez-se um silêncio. A verdade é que Segundo não estava habituado a ser tratado por Primeiro. Estrela levantou a voz e ele acordou:
-Primeiro!
-Sim, amor…
-Então? Você não me vai atacar?
Outro silêncio. Apesar das conversas com o irmão para preparar este encontro, Segundo não sabia bem o aquilo queria dizer. Respondeu com uma pergunta:
-Atacar?
-Claro. Ser minha locomotiva. Arrasar este corpo de pecado…
E já não acabou a frase. Ele atirou-se a ela, beijou-a na boca, acariciou-lhe os seios desnudos com os lábios, com um puxão firme e seco arrancou-lhe as cuecas diminutas e atirou-a para cima da cama, mas todo aquele impulso frenético se acalmou assim que a viu de costas sobre os lençóis. Estrela era uma mulher bonita e pujante, uma fonte de prazer, e ele queria bebê-la, não secá-la, tomá-la gota a gota, não atacá-la, e quase sem se aperceber dobrou o seu corpo sobre o dela, beijou-lhe o pescoço, atrás das orelhas, passou-lhe uma mão pela testa e beijou-lhe as faces devagarinho, depois os lábios, as mãos dele procuraram uma floresta e encontraram um pequeno arbusto e deixou-se ficar a acariciá-lo e tocou-lhe os mamilos muito ao de leve com a língua e foi com ela que lhe incendiou o ventre e o sexo e quando entrou nela, já ela o estava ansiando. Estrela estranhou todo o delicioso tratamento, mas o que mais a espantou foi o facto de ele não ter caído para o lado a dormir. Deitou-se, recostou a cabeça dela no seu ombro e perguntou:
-Gostou?
-Hum, hum.
O dia amanheceu claro e brilhante, o sol nasceu lá longe, para lá da Xefina, emergiu do mar azul e pendurou-se no céu a iluminar Maputo. Quando se encontraram, nenhuma delas sabia se haveria de falar. Flora, por prudência e timidez. Estrela, por ter medo de estar com razão. Ela sabia que a obra de arte da noite anterior não fora da autoria de Primeiro, mas não se importaria de ser enganada outra vez. Acontece que o apelo fraterno foi mais forte. Segurou as mãos de Flora entre as suas e perguntou-lhe:
-Tudo bem consigo?
-Claro. E consigo?
-Tudo bem. Me diga, mana, como estava Segundo ontem?
-Estava… arrasador.
-Como?
-Não interessa… e como estava Primeiro?
-Normal. Tudo bem, Graças a Deus.
-Safada! Você gostou! O meu desajeitado é melhor do que a sua locomotiva!
-Ai mana, será que eles…
-Claro! Até uma cega via! Me diz como foi ele?
-Divinal. O melhor de sempre. Que sedução! Que carinho! Você ficou com o melhor dos dois nesse departamento. Quem diria que esse desajeitado a correr teria tanto jeitinho… e Primeiro, como foi?
-Tentou parecer-se com Segundo, mas acabou a atropelar-me.
-Mana Flora…
-Sim, Estrela…
-Devíamos estar zangadas com eles.
-E estamos!
-Então porque falamos com essa calma sobre o assunto? Nós dormimos com o namorado uma da outra!
-Sei lá. Acho que por duas razões. Primeiro porque isso é uma coisa que se espera dos gémeos, nossa, eles até as doenças partilham! E depois porque talvez também nós desejássemos essa troca secretamente.
-Você quer trocar comigo?
-Não! Eu referia-me a experimentar trocar, por uma vez. Sabe, Segundo é inconfundivelmente melhor amante, mas não me importo de ser atropelada uma vez por outra.
-É, acho que tem razão. Eu prefiro a energia de Primeiro, mas esse mel de Segundo, de vez em quando, para quebrar a rotina, cai muito bem!
-Mas… mana…
-Sim, Flora…
-Há um pormenor…
-Qual?
-Esses dois acham que nos enganaram.
-Você acha que eles pensam que nós não reparámos?
-Claro! Caso contrário teriam revelado.
-Xiii, safados! Como assim? Eles não são nem parecidos na cama.
-Nem um pouquinho. O que fazemos em relação a isso, Estrela?
-Xiii, nem sei… espere lá, esses dois podiam levar uma lição…
-Como assim?
-Me oiça com atenção…
Dois meses passaram até que o episódio da troca de namoradas se começou a esfumar no tempo e os rapazes baixaram a guarda, descansaram a desconfiança e as cautelas e pensaram que a troca tinha funcionado. E foi por essa altura que as mulheres de Quelimane resolveram dar uma lição aos homens de Maputo.
Primeiro vem cansado. Coloca a chave na porta e abre-a. Ao entrar, sente o cheiro da comida pairando no ar e a azáfama de um dia de trabalho começa a ser vencida pelo acolhimento do lar, apressa-se para a cozinha, quer os lábios de Estrela, e quando lá chega encontra Flora.
-Olá, você por aqui?
-Sim. A mana pediu. Coisa chata. Ela hoje vai ficar até muito tarde na agência. Talvez só chegue daqui a umas três ou quatro horas de tempo.
-Então? Algum azar?
-Não. É um inventário. Coisa séria. Têm de estar incontactáveis e tudo.
-E você?
-Deixei Segundo comendo. Ele vai dormir já, já, também está cansado e eu prometi à mana que tratava de si.
-De mim? Disse ele com a interrogação no olhar e a insegurança na voz.
-É, eu disse que vinha-lhe fazer o jantar, mas… – avançou para ele com olhar sorrindo, mordendo o lábio inferior, e as ancas baloiçando um pouco mais do que a conta – se você precisar algo mais é só dizer. Não quero que lhe falte nada… nadinha mesmo. E pousou-lhe um dedo sobre o nariz que deixou escorregar para os lábios dele.
-Mas… Flora, tenha calma, sua irmã, ela vai-se zangar… afinal, nós somos cunhados, quer dizer, uma espécie de cunhados…
-Ai é? E no outro dia quando você me atropelou nós éramos o quê?
-Quando eu o quê?
-Quando você entrou em minha casa, me beijou, me atropelou e me fez sua…
-Você sabe?
-claro que eu sei! Estrela não reparou, acho que seu irmão é melhor imitador. Acontece que eu, não só notei a diferença, como adorei… você é uma máquina sexual, uma bomba orgásmica!
-Ai sou?
-É! E eu quero disso! Muito. Todos os meses. Que estou a dizer? Eu quero você todas as semanas!
-Mas…
-Mas nada. Ou isso, ou conto para ela!
Beijou-o na boca enquanto lhe apertava o sexo mostrando-lhe quem estava no comando. Quando terminou o beijo, virou-lhe costas em direção à porta de saída e disse:
-Coma o seu jantar. A festa começa amanhã!
Segundo chegou a casa, nessa mesma noite. Chave na porta, o odor da comida a invadir-lhe o cérebro, levanta o nariz, inspira fundo o cheiro da sua casa e do seu jantar, sorri e fecha os olhos. Está assim quando ela se aproxima por trás, tapa-lhe os olhos com as mãos e diz:
-Xiiiiiiiiu!
Coloca-lhe uma venda, leva-o para o sofá, senta-o, faz-lhe uma massagem nos ombros e depois vem escancarar-se no colo dele, passa-lhe uma mão pelo sexo e beija-o longamente. Durante o beijo, ele estranhou alguma coisa, tirou a venda com brusquidão e:
-Estrela! Você?
-Porquê o estranhamento? Não lhe sou familiar?
-Como assim?
-Ora, como assim? Acha que eu não notei sua surpresa naquela noite?
-Notou?
-Claro! Você é um poço de mel. Sem fundo! Não há igual a você. Segundo, só no nome.
-E sua irmã? Deve estar a chegar…
-Não. Hoje está de inventário. Vem bem tarde… dá tempo para a gente combinar…
-Combinar o quê?
-Ora o quê? Quando nos vamos ver, onde nos vamos ver, quantas vezes nos vamos ver…
-Mas, Estrela, isso é impossível. Aquilo foi uma brincadeira. Uma vez sem exemplo.
-Pois olhe que, para mim, você foi exemplar! Flora nem notou a diferença.
-Não?
-Não.
-E agora?
-E agora eu estou viciada em seu mel, sua doçura, e vou querer ela para mim, para sempre.
-Sempre?
-Pois, quer dizer, para sempre também não. Todas as semanas!
-Como? Todas quê?
-Semanas.
-Mas… mas…
-Mas nada. Ou isso ou conto para ela.
Caiu sobre ele, beijou-o um beijo lânguido e demorado, encostou os seios aos nariz dele e, súbito, saiu de cima dele, pegou na mala e dirigiu-se para a porta.
-Xau, meu doce, até amanhã!
-Amanhã?
-Amanhã!
Foram vinte e quatro horas infernais. Nem Primeiro, nem Segundo sabiam se haveriam de dizer um ao outro, queriam estar com elas, mas não obrigados e, mais certo do que tudo, não podia permitir, nenhum deles, que a sua própria namorada soubesse que a sua irmã estava viciada e que tudo começara… ah… se arrependimento matasse! Passaram o dia taciturnos, a murmurar respostas desencontradas com as perguntas, a não ouvir o que lhes diziam os colegas e até os chefes, o que custou a Segundo a primeira reprimenda da sua vida profissional. As suas mentes vaguearam na indecisão, sem saber que opção tomar. A brincadeira da troca tinha-lhe saído cara, pensara cada um por si. Segundo foi o primeiro a decidir-se. Ligou a Estrela.
-Olá.
-Olá.
-Estrela, hoje não vou poder.
-Nem se atreva! Flora está aqui ao pé de mim. Quer que ela saiba?
-Não! Não! Quer dizer, não sei… mas não posso… não sei como iludir meu irmão, muito menos minha namorada… Estrela, me desculpe! Me desculpe! Eu imploro seu perdão! Foi uma brincadeira de mau gosto.
-Mau gosto? A mim, soube-me muito bem, cunhadinho…
-Fique séria, Estrela, por favor.
-Eu estou séria, machão, e você está onde eu queria! Me guarde. Vou-lhe dar um sinal ainda esta tarde.
E desligou-lhe o telefone na cara.
Primeiro aguentou-se um pouco mais. Quando resolveu ligar a Flora, tinha um plano. Não lhe apetecia bater em retirada ainda que lhe apetecesse retirar-se.
-Olá.
-Olá.
-Flora, meu amor, estamos combinados para hoje, certo?
Ela estremeceu, mas não se mostrou abalada:
-Claro que sim. Não falte!
-Pois… isto está um pouco complicado no trabalho, mas quero ver se não falho…
-Safado! Quer ver? Quer ver? Eu é que quero ver você nos meus braços, hoje! Ah, e… Primeiro…
-Sim…
-Descarte-se de seu irmão!
-Mas, Flora, o que você pede é impossível.
-Ou fica possível, ou conto para ela.
-Não. Isso não. Flora, me perdoe!
-Como? Não se está ouvindo bem, acho que não tem sinal…
-Perdão! Eu peço perdão. Me perdoe aquela brincadeira tola. Fomos um pouco longe de mais…
-Um pouco longe? Se bem me lembro, você foi bem fundo! E eu adorei. E agora quero mais!
-Flora…
-Me aguarde. Vou-lhe dar sinal ainda esta tarde.
E desligou-lhe o telefone na cara.
Poucos minutos depois estavam as duas mulheres de Quelimane na rua contando palavra por palavra as conversas ao telefone, as súplicas deles, e riam, riam como há muito não se lembravam de rir.
-Flora…
-Sim, mana…
-Que fazemos com esses dois?
-Tenho uma ideia…
Daí a momentos, cada um deles recebeu uma mensagem de SMS da cunhada combinando um copo no Mimmos da 24 de Julho. Elas foram juntas e estacionaram o carro no separador da avenida de frente para o restaurante e ficaram a vê-los chegar. Primeiro tinha-se descartado de Segundo, Tenho de ir ter com a minha dama. Segundo deixou-se descartar e considerou aquilo uma bênção dos céus. Ainda respondeu, Eu também tenho o que fazer lá em casa. Sabe como é, manutenção. Segundo chegou primeiro. Sentou-se e esperou por Estrela. Quando viu chegar Primeiro, ficou sem pinga de sangue.
-Mano, você aqui? E sua dama?
-E sua manutenção?
-Decidi parar aqui para uma geladinha
-É. E já não gosta de uma geladinha comigo?
-Gosto, mas você disse que ia para casa?
-E ia, mas não fui… oiça, Segundo, precisamos falar…
E ia continuar quando se aproximaram duas figuras femininas que não precisavam de apresentação.
-Podemos saber o que estão os senhores aqui a fazer?
-Ah… nós…
-Mana Flora, acho que estes dois devem estar a preparar alguma…
-É, mana Estrela, devem estar a pensar em engatar duas irmãs para depois as trocarem na cama!
-Flora, nós… eu…
-Cale-se! Mana Estrela, qual é o seu?
-Nem sei bem, mana Flora… acho que é esse machudo aí da esquerda, mas ultimamente isso varia com os dias.
-É? Consigo também?
-Verdade…
-Pois o meu devia ser aí o desajeitado jeitosinho da direita, mas ultimamente ele vira locomotiva de vez em quando…
-Meninas, por favor…
-Por favor? Você disse por favor? Não queria dizer outra coisa?
E eles curvaram-se, desculparam-se, desdobraram-se em explicações, que fora uma brincadeira, uma ideia maluca, uma coisa para não se repetir, e quando a situação roçava a humilhação, elas decidiram aceitar as desculpas, Flora dirigiu-se propositadamente a Primeiro e pegou-lhe por um braço, Estrela fez o mesmo com Segundo.
-Vamos, meninos. Para casa que se faz tarde!
Segundo ainda disse:
-Mas… nós estamos trocados!
-Não estão nada. Hoje fica assim!
-Hã?! Assim?! Vocês vão-nos trocar na cama outra vez?
-Cama? Quem falou em cama? Hoje, vocês vão cozinhar para nós!
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Leitura de Férias
Resultados da Sondagem sobre "A Paixão de Madalena"
Pessoalmente, estamos a adorar escrevê-lo. E, uma vez feita a investigação, estamos a demorar o tempo necessário para que o texto assente e se defina. É, por assim dizer, um prazer trabalhado.
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A Paixão de Madalena – Capítulo 12
A Paixão de Madalena
Livro II – O Cordeiro de Deus
12. É preciso conhecermos as pessoas para as percebermos. É, sobretudo, preciso conhecê-las antes de as julgarmos. A história que agora se contará não justifica o futuro, mas derrama luz sobre ele.
Já estiveram os três à mesa. Agora está só o pai, perna cruzada, jornal aberto, e o filho olhando o que resta da refeição, girando o garfo sobre a comida, um braço estendido ao longo da mesa e a cabeça sobre ele. Carne de jardineira não lhe agrada. Sobretudo não percebe o que veem os adultos no feijão verde e, como não está autorizado a sair da mesa antes de terminar, vai espalhando a comida no prato e, de quando em vez, pergunta:
-Já posso?
-Come o que tens no prato!
E aquela frase, assim contundente, caiu-lhe em cima como uma espada de cortar esperança. Não lhe resta mais do que continuar a remexer a comida fria à espera que o pai se canse. Numa reviravolta que dava a um pedaço de feijão verde cortado aos quadradinhos, o vegetal saiu-lhe disparado do garfo, bateu-lhe no peito, tabelou no joelho e anichou-se no chão, mesmo por baixo dos seus pés. A primeira reação foi olhar para o pai. Felizmente tinha a cara por trás do jornal e não tinha visto. Enganou-se no juízo. Saiu da cadeira e foi abaixo da mesa buscar o pedaço de feijão verde e era lá que estava quando tudo recomeçou. Lembra-se do sabor a sangue logo após o primeiro pontapé a encher-lhe a cara e a cortar-lhe os lábios, lembra-se de bater com a parte de trás da cabeça na perna da mesa e depois não se lembra de mais nada. Erguido pelos cabelos, esbofeteado e esmurrado ao som de uma letra que variava pouco, Julgas que ando a matar-me a trabalhar para te pôr a comida na mesa e tu depois a atirares para o chão? Hã? Hã? Responde-me! Não! Não quem? Não, papá! E achava que tinha respondido bem e por isso não percebeu a sequência de bofetadas e murros após a resposta. A voz da mãe ao longe gritando, depois pegando nele, serenando-o, os cuidados e a humilhação numa próxima refeição em família:
-Aquele ainda esta semana levou uma tareia à moda antiga. A deitar-me a comida para baixo da mesa, o sacanita… depois lá veio a mãe com falinhas mansas e paninhos quentes. Não me importa. O pai dá a educação, a mãe dá os mimos. Sempre assim foi, sempre assim será.
Quando entrou na escola, Mário Só não pôde evitar a pergunta da professora:
-O que te aconteceu Marinho?
-O meu pai bateu-me, disse o miúdo com inocência e verdade.
Bernandino Só foi chamado à escola e quando lá chegou ralhou com a professora, reclamou para si a função de educador, ela que se limitasse às tabuadas e às cópias que o pai era ele, sabia muito bem o que estava a fazer, filho seu nunca lhe haveria de faltar ao respeito. À noite, chegou a casa, fechou-se num quarto com o miúdo, gritando-lhe que o que se passava em casa não se contava na rua porque só à família dizia respeito, tirou o cinto e descarregou na criança a humilhação de ter sido chamado à escola. No dia seguinte a professora percebeu que a cavalaria da besta Bernardino Só havia de novo carregado sobre a pobre criança e já não lhe perguntou nada. De tempos a tempos aparecia com marcas visíveis do calvário que era o seu quotidiano e a professora aprendeu a rezar e a pedir que não se repetisse muitas mais vezes. Mário Só não tinha irmãos, razão porque colhia todas as atenções do pai que jurara fazer dele um homem. E o seu conceito de fazer dele um homem era ensinar-lhe palavrões, comprar-lhe cadernetas com os cromos da bola e verificar se ele já tinha decorado os nomes dos jogadores do Varzim e do Farense e perguntar-lhe, em público, Olha lá, pá, já apalpastes o cu a alguma gaija lá da tua escola? O coitado não respondia e, quando chegava a casa, a mãe apressava-se a fechar-se com ele no quarto a dizer-lhe que aquilo eram brincadeiras do papá, para não levar a sério, nem repetir aquele palavreado.
Certo dia, estavam os três à mesa, a mãe acabara de sentar-se. Como habitualmente, fizera tudo sozinha, o jantar, a cozinha arrumada que Bernardino não queria ninguém à mesa com a casa de pantanas, a mesa posta, as sobremesas prontas, a sua comida quase fria, o marido e o filho quase comidos e bebidos. E assim que se sentou, Bernardino atacou:
-Traz-me os palitos!
Num momento de cansaço e inusitada ousadia, Maria das Dores respondeu-lhe, educada, mas declinando o pedido:
-Ai, Bernardino, vai lá tu que ainda agora me sentei.
As costas da mão dele voaram e assentaram-lhe com violência tal que a senhora caiu desamparada. Bernardino percebeu o ar perplexo do filho e disse-lhe como quem ralha:
-E tu vê lá se aprendes a ser homem. Homem que é homem não admite certas coisas.
E quando Mário Só faz menção de levantar-se para ajudar a mãe, foi impedido por verbal e inequívoco comando:
-Deixa-te estar no teu lugar! A tua mãe sabe levantar-se sozinha.
Mais tarde, Bernardino abordou o miúdo:
-Mário, ouve o pai, o pai gosta muito da mamã, mas a vida é difícil, tem de haver rigor e respeito e o que hoje te pode parecer mal, amanhã vais perceber e valorizar, o pai não faz nada que não seja para bem da mamã e de ti, percebeste?
-Sim, papá.
-Então vá, vai lá dormir.
E Mário Só foi deitar-se e adormeceu nessa noite anestesiado pela violência dos gestos do pai. De manhã percebeu que a mãe estava marcada na face e deu-lhe um abraço mais demorado. Maria das Dores percebeu e recuperou a vontade de viver.
Enquanto andou na escola, Mário Só foi um miúdo submisso e cumpridor, mas sem qualquer ponta de imaginação. O medo, por vezes, tolhe as almas e elas, por defesa, encolhem-se e podem nunca chegar a nascer para o mundo. Mário Só era um jovem profundamente respeitador, mas nunca soube o que era o respeito. Encolhia-se por medo e foi por via desse mesmo medo e desse encolhimento que nunca foi aluno para além do sofrível. Aos dezasseis anos, assim que pôde, saiu da escola e foi trabalhar de servente para as obras. E foi aí que aprendeu a fumar um cigarro, a beber meia dúzia de minis numa tarde, a puxar pelo cabedal, a erguer a espinha e a trabalhar a vida. Sempre submisso, quase sempre discreto, a evitar os palavrões que usava de quando em vez e com parcimónia só para que ficasse claro que era tão homem como os outros. E começou a sair à noite, sobretudo ao fim de semana e uma dessas noites trouxe-lhe o primeiro corpo de mulher. Pago, bem entendido, mas, ainda assim, a melhor oferta que o Universo e a vida lhe haviam feito em quase vinte anos de existência. Cedo se apercebeu que transportar era com ele. O carro de mão, o empilhador do armazém de construção, a moto do Joaquim, mais tarde, uma carrinha de caixa aberta, muito velha, que o empreiteiro usava para materiais de menor porte. Era rápido e eficaz nas suas escapadelas ao armazém para ir buscar vinte e cinco quilos de cimento cola, uma caixa de azulejo que tinha faltado nas contas, são tramados, os cortes, geram muito desperdício, duas pontas de ferro de doze, meia palete de blocos. Um dia, a polícia mandou-o parar e ele parou e respondeu a tudo com verdade e submissão e o patrão viu-se e desejou-se para se safar da enrascada de ficar com a carrinha apreendida e uma multa monumental. Propôs pagar-lhe a carta e ir descontando no vencimento, mês a mês, em pequenas parcelas. Mário Só sorriu e aceitou. Não falhou o código e menos ainda a condução. Depois, quem o queria ver, era montado na carrinha velha a acartar materiais de um lado para o outro. O próximo passo que lhe pareceu lógico foi tirar a carta de pesados e, no mesmo dia em que a conseguiu, teve uma oferta de emprego. Pediu um avanço para pagar uma dívida. Deram-lho e ele foi ter com o empreiteiro e acabou de pagar o que lhe devia. Puseram-lhe um carro pesado nas mãos, um mapa, uma listagem de fornecedores e clientes e a sua tarefa era ir buscar e distribuir caixas de bacalhau. Não tinha horário. Tinha fretes por dia. Se os acabasse cedo, saía cedo. Se os acabasse tarde, saía tarde. Descansava um dia por semana e recebia dez vezes mais do que a acartar baldes de massa e carros de mão de areia nas obras. Alugou uma casa velha e pequena onde ia dormir e via televisão nas folgas. Passava algum tempo em bares frequentados por camionistas e os seus afetos entregava-os às prostitutas de beira de estrada. Um dia estranhou porque uma delas segurou-lhe a cabeça entre as mãos e disse:
-És só um menino cheio de medo.
Ele estremeceu:
-Que dizes?
-Esquece. Não é nada. Eu tenho a mania que conheço os homens pela maneira como…
-Bebeste?
-Sim, bebi! Que parvoíce a minha, estar para aqui a dar conversa a clientes. Estou paga, estás servido, até à próxima, se a houver.
Passou a procurá-la. Encontrou-a umas poucas de vezes. Gostava da forma como ela lhe acariciava a nuca enquanto ele suava em cima dela e gostava, sobretudo, dela ter sempre uma palavra no fim. Uma provocação. Uma observação.
-Olha lá, já pensaste em ter uma namorada a sério?
-Já.
-E…
-Não sei o que dizer, não sei o que fazer… e esta vida de um lado para o outro com o camião também não ajuda…
-Tens medo das mulheres?
-Não. Tenho medo de mim ao pé das mulheres.
-Tu é que sabes, mas isto não é vida.
-A tua?
-Não. A minha faz todo o sentido. Escolhi-a. A tua! A tua é que está uma baralhada. Não te percebo, miúdo, não te percebo.
-Não há nada para perceber. Sou um tipo burro que gosta de conduzir e teve a sorte de conseguir ganhar dinheiro com aquilo que gosta de fazer.
-Não sei… há qualquer coisa baço no teu olhar…
Nunca mais o viu. Nem poderia. Ele emigrou. Um dia, a mãe, com quem falava de tempos a tempos, a quem mimava às escondidas do pai que decidira não rever desde que fora trabalhar, disse-lhe com esperança na voz:
-Tenho uma novidade.
-Ai sim? Conta.
-O tio António perguntou por ti.
-O da Suíça?
-Sim. Queria saber como estavas e eu disse que bem, que estavas um homem, tinhas trabalho, eras independente, e ele perguntou o que fazias e eu contei um pouquinho da tua história, mas isto já foi há tempos…
-E só agora me contas?
-Na altura não dei importância, mas esta semana ele voltou a ligar, diz que tem lá trabalho para ti, que apareceu lá um emprego de motorista, acho que é para andares com um senhor que é advogado, carro bom, alojamento e alimentação e o ordenado é muito melhor do que aqui… querem um português. Dizem que somos de confiança e tio conhece-o e falou em ti…
-Isso é a sério?
-É. Achas que a mãe gosta de dar-te esta notícia? Vais para lá e nunca mais te vejo, mas o teu bem é o meu bem e se tu fores para melhor, eu fico feliz…
-Dá cá um beijinho.
Mário Só abraçou a mãe, beijou-lhe as faces e poucas emanas depois desembarcou em Genebra.
O salão está escurecido. É banhado por ecos de luz emanada da mesa central sobre a qual pende uma lâmpada longitudinal que ilumina o pano verde. As bolas está já muito distribuídas. Por cima de um sussurrar abafado, ouve-se o silêncio que invade a sala. Madalena está debruçada sobre a mesa de snooker, o taco na mão direita assente sobre os dedos da esquerda que ela apoia na mesa. É preciso que a bola branca vá ao fundo da mesa tabelar com efeito e volte para trás a empurrar a bola preta para dentro do buraco no mesmo topo onde se encontra agora a bola branca, mas no canto oposto. Estão separadas por uma bola inoportuna e será preciso arriscar esta longa viagem. A branca já lá vai, Madalena ergue-se, , respira fundo e reza para dentro. Se falhar é o seu fim. Se ganhar, são quatro mil francos. Uns meses a respirar melhor o quotidiano, alguns bens fundamentais para as crianças. E a bola rola serena, quase lenta, a sala está suspensa da sua trajetória, o adversário e a assistência esperam quase impacientes. Nunca uma mulher havia participado no torneio de Genebra, quanto mais ganhá-lo. A bola já encontrou a tabela lá ao fundo, faz a viagem de regresso descrevendo um vê. Falta saber se é um vê perfeito. Ela aí vem…
A vida tem sido difícil. Não lhe tem dado tréguas. Madalena decidiu procurar todas as saídas, experimentar todos os caminhos. Enfim, quase todos. Pediu autorização para ficar meia hora a treinar numa das mesas de snooker depois de fechado e limpo o pub. Só pelo facto de ser tão pouco habitual ver uma mulher jogar, foi-lhe concedida permissão. E ela ficava, no fim de um dia de trabalho, espreitando tabelas, traçando percursos, ensaiando efeitos. Um dia pediu dinheiro emprestado ao patrão para se inscrever num torneio, era ao sábado, ao final da tarde, sem conflituar com o seu horário de trabalho. Ele não lhe emprestou o dinheiro, pagou-lhe a inscrição:
-Pago para ver até onde vais.
O prémio contemplavam os primeiros quatro classificados. Madalena terminou essa longa jornada em quarto lugar, fez questão de devolver o dinheiro da inscrição e guardou o resto. Era pouco. Para os outros. Para ela e os seus meninos representou imenso. Mais três competições deste tipo nos primeiros quatro lugares e poderia inscrever-se no torneio de Genebra. Jogou cinco para conseguir a qualificação. Sempre pedindo e devolvendo a verba da inscrição. Da única vez que não chegou ao prémio, pagou com horas extra. Via um pouco menos as crianças, mas o torneio de Genebra rendia quatro mil francos. Treinou mais intensamente nos últimos tempos. Um dos frequentadores do pub, que ainda conhecera e confraternizara com Kyle, ofereceu-lhe um estojo com um taco desmontável:
-Tome, nunca fui bom nisto. Ganhe o torneio por nós, pela malta aqui do bairro.
Sabia que teria de estar ao seu melhor nível para chegar à final e, chegando, tudo poderia acontecer. O seu fraco… o seu fraco era ter pena do adversário e, por isso, falhar em momentos cruciais. O patrão ralhava sem cessar:
-Tens de manter o nível até ao fim, a precisão na tacada, o instinto de vitória, não podes amaciar, desfaz os tipos, imagina que são teus inimigos, pensa nos teus filhos, faz o que quiseres, mas não tenhas pena dos gajos!
À medida que se aproxima da bola preta, a branca perde velocidade, vai acariciá-la, terá de ter ainda a força suficiente para empurrar a outra que está a meia dúzia de centímetros do buraco… toca-lhe de mansinho, a preta desliza suavemente, a direção é perfeita, chega junto do buraco e parece parar, hesita, suspende-se como a respiração da sala e… tomba! Está lá dentro! A sala explode em aplausos, o patrão vem abraçá-la, Albertina corre para ela, segura-lhe a cabeça entre as mãos enquanto grita, Conseguiste! Conseguiste! Até o homem que emprestou o nome a Jacob a veio felicitar. Sessão de fotos e entrega do prémio, garrafas a salpicar champanhe, as felicitações do adversário. Madalena espera que os ânimos acalmem um pouco e vai arrumar o taco no estojo. Estava de costas para a multidão em festa quando sentiu uma mão no seu ombro. Era Mário Só.
-Parabéns, Madalena.
-Obrigado, Mário.
E não foram precisas outras palavras, pendurou-se no pescoço dele e beijou-o apaixonadamente com o coração a bater forte como não julgara até esse dia que pudesse voltar a acontecer. Daí a seis meses estariam casados e daí a outros seis divorciados. Foi simples e fulminante a história.
Foi quando fazia uma jogada de precisão. Baixou-se sobre o tapete verde da mesa. Tinha a bola branca alinhada com a preta. Era uma tacada distante mas limpa. Só necessitava de uma pancada forte, seca e precisa. Olhou a bola branca, aqui perto, moveu o taco para a frente e para trás com vigor em movimentos de aproximação à bola, levantou os olhos sem levantar a cabeça e procurou a preta ao fundo da mesa para traçar a linha imaginária que as haveria de unir e, por cima dela, ao fundo da sala, em visão enevoada e periférica, a zona pélvica dele, do adversário que assistia suspenso aos seus movimentos. Num relance, lembrou-se de que Kyle chamava àquilo, na intimidade, o “pack” ou ainda “um rei e dois súbditos”, levantou um pouco mais o olhar e encontrou o tórax definido e os braços musculados encimados por um olhar verde e cristalino cheio de promessas. Ainda não havia reparado nele. Aquele olhar continha promessas de risco e a vida tem sido tão dura e tão repetitiva que um pouco de risco só poderia ser o sal que lhe vinha faltando. E desceu-lhe um calor de desejo que depois lhe aflorou à cara, era inacreditável, tanto tempo depois de ter feito amor pela última vez, emerge-lhe na mente um pensamento erótico que lhe rebenta na face no meio de uma jogada que valia cem francos. Foda-se!, pensou. Puxou o taco atrás, bateu a bola. Falhou. Ele concluiu o jogo com serenidade e no fim, quando os presentes faziam conversas e desenhavam teorias acerca do que poderia ter acontecido, ele veio felicitá-la:
-Parabéns. Jogou muito bem.
-Mas perdi.
-Pois… essa foi a parte que não percebi.
-Claro que percebeu. Você colocou-se à frente do meu campo de visão para me distrair.
-Não sabia que constituía distração para si.
-Na altura constituiu.
-E agora?
-Agora, depende do que disser…
-A única coisa que me ocorre dizer é que não ganhou o melhor jogador, você joga muito melhor do que eu, talvez lhe falte certo instinto assassino.
-Pois, mas eu sou mãe de duas crianças.
-Pense que o que está a fazer salvaria a vida delas.
-E salvaria…
-Ah… joga pelo dinheiro.
-Entre outras coisas.
-Levante o prémio. Você mereceu-o.
-Jamais! Nunca aceitei uma esmola, nunca recebi nada que não tivesse conquistado.
-Compreendo, mas posso pagar-lhe o jantar?
-Se não tiver melhor companhia…
-Tenha ou não tenha, neste momento, não quero outra coisa que a honra da sua companhia.
-Disse as palavras corretas, senhor…
-Mário Só.
-Mário. Tratei-o por senhor porque não o conheço, nunca fomos apresentados.
Mário Só soltou uma gargalhada e acrescentou:
-Pode e deve tratar-me só por Mário, mas não foi isso que eu quis dizer quando revelei o meu nome. Eu chamo-me Só de apelido.
-Ah! Mário Só!
-Exato! E a senhora…
-Só Madalena.
-Mau…
-No meu caso, o só era para não usar a senhora…
Jantaram. Madalena revelou-lhe que estes pequenos torneios no pub eram uma simpatia do patrão para ela ter com quem treinar uma vez que estava para inscrever-se no torneio de Genebra. Mário Só confessou-se admirador da sua forma de jogar e custasse o que custasse, estaria no torneio para apoiá-la. Levou-a a casa. Despediram-se educadamente e com algum pudor e passaram a conversar com regularidade no pub, sobretudo, porque ele esperava pela hora dela sair e levava-a a casa. E foram partilhando o que pensavam da vida, algumas coisas sobre os seus percursos até chegarem ali. Ficaram amigos de conversa com o desejo latente não consumado por prudência de ambos e particular contenção dele. As suas vidas haviam sido demasiado complexas para acreditarem, assim, de repente, no amor e uma cabana. Andaram neste bailado das palavras e das conversas cúmplices cerca de seis meses até que um dia Mário Só se encheu de coragem e lhe disse:
-Madalena, tu tiveste a tua vida, eu tive a minha, já percebemos que nos entendemos, que gostamos da presença um do outro, não quero desconcentrar-te do torneio de Genebra, mas não achas que merecemos um pouco mais do que conversar à noite depois do teu trabalho?
-As conversas são boas…
-Por isso mesmo, porque são maravilhosas, porque és quem és, porque sou quem sou… pensa!
-Já pensei.
-Já pensaste?!
Mário Só não conhecia a Madalena determinada, decidida e até impetuosa que o leitor vem conhecendo e não sabia, também, que esta mulher estava ansiando mudança e risco. Por isso se surpreendeu com ela:
-Estás a pedir-me em casamento?
-Talvez não tenha usado as melhores palavras, mas queria ir para aí.
-Faltam três semanas para o torneio. Se eu ganhar, beijo-te e casamos.
Mário Só ficou perplexo. Será que tudo não passava de um jogo?
-E se não ganhares?
-Beijas-me tu e a seguir casamos.
O homem respirou de alívio. Abraçaram-se. E foram para suas casas sonhando acordados.
Mil novecentos e noventa e oito. De Portugal chegam ecos de uma exposição internacional de grande impacto. Em Genebra, Madalena ganha um torneio de snooker , beija um homem e casa-se recatadamente. Só alguns amigos e familiares de ambos a presenciarem o momento. A mãe de Mário Só chora de alegria, Albertina vive numa intrigante e saudável desconfiança em relação ao rapaz das falas mansas, Jacob e Mariana parecem conviver bem com a presença do novo homem da casa. O quotidiano é desafogado e feliz sem ser apaixonado, mas, honestos sejamos, nunca se confessaram paixões entre estes dois. Ele trabalha. Ela trabalha, deixou de novo o pub, fica com mais tempo para os miúdos e à noite pode continuar, agora no conforto do lar, todas as conversas que havia iniciado com Mário Só quando ele a vinha pôr a casa após o turno nu pub. Aos fins de semana passeiam e dedicam-se a dar algumas alegrias aos miúdos. Ao domingo, Madalena entra na cozinha e prepara uma refeição esmerada. Foi num desses domingos, durante uma dessas refeições especiais. Madalena andava numa roda viva a preparar tudo, estava impaciente, as coisas na cozinha não correram como esperara. Mariana, normalmente uma ajuda preciosa, estava impaciente e até um pouco rabugenta, Jacob agia fazendo justiça à condição de criança, batia com os talheres nos pratos e gritava que queria comida, não era de birra, mas enervava. Madalena conseguira servir a refeição, mas a sobremesa complicara-se e ela andava para cá e para lá, Mário Só estava irritado com aquela inusitada barulheira à mesa de uma refeição que costumava ser tranquila e não comera descansado. Junto ao final da refeição, por entre o barulho e a movimentação atarefada de Madalena, disse:
-Trazes-me os palitos?
-Não posso, levanta-te e vai buscá-los.
Ele franziu o sobrolho, levantou-se contrariado e foi. Poderia não ter-se cruzado com ela e tudo teria sido diferente, mas cruzou-se com ela na cozinha:
-Podias ter levado a merda dos palitos à mesa.
-Podias ter levantado o cu da mesa para ajudar.
Ele já tinha passado por ela quando ouviu a resposta. Uma coisa antiga e má, uma semente ruim de gestos impróprios, acordou em si, cresceu, fez-se gigante no seu peito:
-Vê lá como é que falas comigo…
-Como tu mereces.
As costas da mão dele rebentaram-lhe os lábios, o tabuleiro de vidro que tinha nas mãos caiu ao chão, ela deu dois passos desamparada, ele cresceu para ela e esbofeteou-a quantas vezes lhe apeteceu. As crianças fugiram para o quarto, ele levantou a mão de novo mas apercebeu-se de que ela já não estava consciente. Saiu de casa. Só voltou à noite. Já não encontrou ninguém. Madalena acordou. Olhou em volta e tudo lhe parecia irreal. A vida voltara a testá-la, a surpreendê-la. Havia entre ela e as forças da natureza humana este constante medir de resistência. Estava cansada. Sangrando dos lábios. Colocou-se de frente para o espelho do guarda fatos toda nua e fotografou-se. Telefonou a Albertina. Colocou as coisas mais essenciais em dois táxis e enquanto a avó levou as crianças para sua casa, Madalena foi à polícia e apresentou queixa. Mário Só não negou nem rebateu as acusações. Foi condenado a serviço comunitário, não aproximar-se menos de quinhentos metros da residência de Madalena e a pagar-lhe uma indemnização imediata. Ou o faria com meios próprios ou o Estado o faria por si e Mário Só ficaria devedor do Estado com juros. Pagou com dinheiro próprio. Madalena abriu uma conta separada da sua conta à ordem e considerou aquele dinheiro um findo para a educação das crianças e a sua própria. Pressentiu que estas coisas aconteciam por deformação de caráter, mas também por falta de formação e não quis, nunca mais, viver dificuldades por via da falta de formação. Voltaram os dias difíceis, as refeições parcas, os recursos escassos, mas, agora, Madalena sabia que tudo isso tinha um fim à vista. O tempo de concluir o curso técnico de contabilidade e administração em que acabar de matricular-se. Era um curso de cinco anos, mas o sistema suíço permitia que pudesse fazer-se em menos caso os estudantes se auto-propusessem para exames. Madalena traçou um plano para concluir o curso em três anos. Era arrojado. Exigia um duplo sacrifício. Ter de estudar mais horas e não poder trabalhar no pub. Era para isso, para suprir a falta da verba que daí advinha, que o dinheiro da indemnização de Mário Só serviria. O seu coração ficaria marcado para sempre pela desilusão, mas a sua dignidade mantinha-se intacta. A sua batalha com a vida continuava. A primeira vez que casara, a doença levara-lhe o príncipe e deixara-lhe um filho como resgate desse amor. A segunda vez que casara, a violência trouxera-lhe uma desilusão mas trouxera-lhe uma lição. Dependeria sempre e só de si. Seria, enquanto vivesse, absolutamente livre. Nada valia a hipoteca do mais precioso bem da Humanidade. Estava aberta a amar, sim, agora mais do que nunca, mas sem preconceitos, sem papéis, sem formalidades, só com as pessoas que quisessem amar tanto e tão livremente como ela. Qualquer homem que a quisesse, que desejasse o seu amor, teria de respeitar a sua liberdade. O homem que não compreendesse isto, não poderia amá-la.
Madalena não voltará a casar. Amará de novo. Sempre com a mesma entrega que Kyle lhe ensinara e sempre com a liberdade que Mário Só a levara a compreender como imprescindível e intocável. É sinuosa, a vida, os caminhos que percorremos pelas nossas próprias passadas levam-nos, por vezes, a lugares e pessoas surpreendentes. O pensamento de Madalena em relação ao amor e a quem pudesse merecê-lo havia-se centrado, naturalmente, em homens e, contudo, seria uma mulher, a primeira pessoa a merecer esse amor. Marcelle Deschamps.
Foi na faculdade. Madalena matriculou-se no regime noturno para poder trabalhar de dia e, não obstante o cansaço de um dia de trabalho, tirava apontamentos que nem uma louca. Tentava captar tudo o que era dito, registar todas as demonstrações, pedia aos professores para colocarem os cálculos no quadro. Um dia, uma mulher alta e bem constituída, longe de magra, mas não gorda, de cabelos loiros a derramarem oiro sobre os ombros, tentou ajudar:
-Não precisas correr atrás dos apontamentos dos professores, está tudo disponível na reprografia.
-É gratuito?
-Não.
-Então tenho de correr atrás dos apontamentos dos professores.
Mais palavras não foram ditas porque não foram precisas. No dia seguinte, Marcelle aproximou-se dela, estendeu-lhe com discrição um saco escuro, e disse:
-Toma, são os deste semestre.
-Obrigada. És muito generosa, mas não aceito nada de ninguém. É uma questão de dignidade.
-Parece mais uma questão de orgulho.
-Admito que possa parecer, mas não é essa a razão.
-A vida tem-te tratado mal?
-Tem os seus momentos, mas quando me castiga, exagera sempre na força.
-Faz assim, guardas os apontamentos, estudas por eles e no próximo semestre oferece-los a alguém…
-É a mesma coisa.
-Não é não. A capacidade de dar dignifica o que se recebe.
-E porquê este gesto? O que queres de mim?
-Irra, a vida tem-te tratado mesmo mal!
-Como disse, teve os seus momentos…
-Olha à nossa volta. O que vês?
-Homens.
-Exato. Uns privilegiados. Nascem com uma coisa pendurada entre as pernas e estão automaticamente em vantagem em todos os campos…
-E…
-E eu pretendo equilibrar um pouco a balança. Considera que o meu motivo é solidariedade feminina. Devemos ser um caso de estudo, duas mulheres a estudar contabilidade na mesma faculdade…
-Com uma condição.
-Qual?
-No próximo semestre ajudas-me a escolher a beneficiária.
-Feito.
Foi o suficiente para começarem a conversar com frequência. Entre as aulas, nos trabalhos de grupo. Começaram por partilhar conhecimento e ideias e pistas de solução para problemas, primeiro, e depois, tudo o que havia para conversar entre duas mulheres, deve ter sido conversado por Madalena e Marcelle. Passaram a encontrar-se também ao fim de semana para estudarem e fazerem trabalhos. Marcelle conheceu as crianças e ajudava a cuidar delas nesses dois dias de descanso que dão sentido ao resto da semana e rápido se apercebeu que Madalena se deslocava de casa para a escola e da escola para casa caminhando um longo troço do percurso e fazendo o restante de autocarro. Era uma forma de poupar. Começou a levá-la, Conversamos no caminho, disse, e de qualquer forma não preciso desviar-me. Foram trocando histórias. Ambas trabalhavam, ambas adoravam a contabilidade e a gestão, ambas eram adeptas do rigor e acreditavam no controlo dos números. Constituíam, uma para a outra, uma interlocutora motivante e desafiante das suas próprias capacidades, uma interlocutora válida que obrigava a outra a estar atenta e a não falhar. Tiveram ambas excelentes notas no final do primeiro semestre. Numa noite fria, coberta pelo manto branco da neve, em que levou Madalena a casa, estavam já à porta, ainda dentro do carro, e Marcelle aconchegou-lhe as mãos entre as suas como que para aquecê-las:
-Tens as mãos frias.
-Em Portugal diz-se que é amor todos os dias, mas deve haver algum problema com esse provérbio…
-Ou não.
E puxou-a para si e beijou-a nos lábios. Madalena afastou-se num impulso:
-Eu não sou…
-Não és humana?
-Humana sou, só que nunca…
-Nem eu. E também não sou o que tu não és e também sou humana e será preciso outro requisito, uma palavra que te certifique, um rótulo, para beijares quem amas?
-Acho que não.
Aproximaram-se lentamente e encostaram os lábios rosados e sentiram o calor e a emoção que passava através deles. Não falaram do que acontecera. Permaneceram amigas verdadeiras e cúmplices mas não voltaram a beijar-se nem a trocar qualquer outra carícia do corpo. Era como se as suas almas se bastassem. Pelo menos, até encontrarem o homem que viria a pôr à prova todos os seus limites. Essa fantástica criatura que completaria o inseparável grupo dos três emes.
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A Paixão de Madalena – Capítulo 11
A Paixão de Madalena
Livro II – O Cordeiro de Deus
11.Madalena nunca pôs luto. No corpo, bem entendido. Que na alma ficou-lhe para sempre essa sombra cinzenta. Pense o leitor o que entender, o facto é que não houve só uma razão. Foi porque Kyle não era um homem de lutos, mas de coloridos. Não era um homem de abatimentos, mas de lutas e causas e de acreditar. Foi porque era demasiado nova para isso. Madalena enviuvou com vinte e um anos e essa não é a idade de escurecer a pose, antes de a iluminar. E outra razão houve, a mais importante de todas. Vai para cinco anos que Liberta bateu à porta de Madalena que lha abriu e lhe aceitou nos braços uma menina de semanas, por uma semana. Passou a dita semana e outra e mais outra e outra ainda e já vamos em cinco anos sem que de Liberta se tenha tido mais notícia. E dessa relação, a de Madalena com a menina, tem sabido pouco, o leitor. Soube que a menina ficou e soube que andou por terras de África com Madalena a quem, com muito propósito, chama de mamã. São engraçadas, as crianças, menos complicadas que os adultos. A sua justiça é imediata e é a da vida. Não precisou de mais nada senão saber que era daquela jovem mulher que lhe vinham os cuidados, os afetos e os ralhetes, que são outra forma de cuidado, e chama-lhe mãe, por mãe ser, sem mais juízos de valor com intrincados raciocínios sobre a biologia da maternidade. E pode dizer-se, em ambígua, mas verdadeira formulação, que foi Madalena mãe, antes de ter sido mãe. Foi em Mariana que aprendeu a mudar fraldas, foi com ela que aprendeu os cuidados com as refeições, as horas, incluindo noite dentro, os alimentos indicados para isto e para aquilo e os contra indicados para aquilo e para isto, foi a ela que aturou birras e as acalmou, foi com ela que aprendeu a ver febres e a medicá-las, foi com ela que passou noites em branco, que conheceu as urgências do hospital, a ela ensinou os primeiros passos, correndo dos seus braços para os de Kyle e voltando aos seus com um sorriso a espelhar medo e vitória, foi a ela que ensinou as primeiras palavras, por esta universal ordem: não, mamã, papá. E por aqui se vê quão funda vai a relação entre elas, mesmo estando Mariana em tão tenra idade. A primeira vez que Mariana disse mamã, chamava por Madalena e não por Liberta e à medida que foi dizendo outras palavras e apropriando-se, com elas, do mundo à sua volta, fê-lo com a orientação e o amparo de Madalena. E agora, venha de lá o cientista, o médico, o juíz, o cidadão comum, mais certificado, com diplomas de insígnias douradas emoldurados e pendurados na parede, convencê-la de que mãe é aquela que a pariu. Saiu de dentro dela, é certo, mas não foi com ela que cresceu.
Brincavam ao fim de semana, sobretudo ao domingo. Iam ao parque, faziam corridas e Madalena ouvia-a dizer, Olha, mamã, olha, é um pato! É sim, minha pequena, é sim. Respondia-lhe reforçando o entusiasmo da descoberta. E ao longo dos últimos quase cinco anos fizeram-se cúmplices. Nota-se essa cumplicidade nas coisas pequeninas do quotidiano, por exemplo, quando Madalena chega a casa do trabalho e vem cansada e abatida e segue para a cozinha a aquecer o jantar e sente a mão pequenina dela puxando a saia:
-‘Tás triste mamã?
Outras vezes, no supermercado, a menina põe-se em bicos dos pés, segura o carrinho das compras e tenta empurrá-lo:
-A Maiana leva, a mamã ’tá cansada.
Quando Kyle faleceu, explicações foram necessárias. Madalena optou pela simplicidade nas respostas:
-Onde ’tá o papá?
-O papá foi para o céu.
-O céu do Jesus?
-O céu do Jesus.
Levou-a à janela, mostrou-lhe o céu e disse:
-Vês aquela estrelinha pequenina, ali em cima?
-Sim.
-Quando ela piscar, foi o papá que te piscou o olho.
-O papá vê a Maiana?
-Claro!
-Olha mamã, olha, o papá piscou o olho!
Inexplicável força têm as crianças. Muito para além do seu tamanho e da consciência que lhes atribuímos, porquanto, não raro, foi Mariana que amparou Madalena na dor e no sofrimento. Parecia perceber os momentos em que era necessário o seu olhar doce, a sua voz apaziguadora ou a sua mão pequenina encostando-se à face de Madalena:
-Não chores, mamã!
E assim têm sido conforto uma da outra, alegria uma da outra, amparo uma da outra, e por esta razão, sobretudo por esta, Madalena não pôs luto. Não se cria uma criança no degredo. E sorria quando lhe apetecia chorar, brincava quando lhe apetecia enterrar-se na cama para nunca mais sair. Nos últimos meses intensificou-se esta relação, a barriga de Madalena parece um balão, já pode sentir-se o bebé pontapeando a vida e Mariana costuma conversar com ele e fazer planos para a sua chegada. Madalena tem sentido algumas dificuldades, mas tem conseguido trabalhar e Kyle deixara-lhe algum dinheiro que, entretanto, se está acabando. Vive entre o entusiasmo de receber neste mundo a mais preciosa herança que o seu amado irlandês lhe poderia ter deixado e as dificuldades que se preveem. Cuidar de duas crianças não é o mesmo que cuidar de uma e o início da vida de um ser humano requer muita atenção, muita energia e muitos recursos. Recursos que Madalena não tem. Jacob vai nascer na Primavera de mil novecentos e noventa e cinco e os anos que se avizinham anunciam-se difíceis.
Não foi de repente. É sempre assim. Um problema pode surgir de repente. Uma fase negra na nossa vida não. Um aviso aqui, um sinal dias depois, uma dificuldade mais à frente e, quando olhamos à nossa volta, estamos imersos numa teia de aborrecimentos que nos prende à materialidade da existência. Há mesmo vidas que se enredam neste processo e se perdem para todo o sempre. Não será o caso de Madalena. Ainda assim, quando Albertina lhe bateu à porta num dia de semana, noite tardia, Madalena deveria ter suspeitado do que a esperava. A avó trazia cara de caso, um ar preocupado e sério, e quando perguntou o que perguntou estava genuinamente preocupada e quando Madalena respondeu o que respondeu estava a ser genuinamente verdadeira, perdoe o leitor a redundância se conseguir, resulta a mesma de ainda caber neste nosso retorcido pensamento a ideia de genuína falsidade.
-Olá, filha, como estás?
-Bem e tu vó Bé?
-Preocupada…
-Hummm, por essa cara… muito preocupada… que se passa vó Bé?
-Ora, que se passa… diz-me tu!
-Está tudo bem…
-Madalena, querida, vim aqui para te fazer uma pergunta…
-Então faz, vó…
-Já pensaste como é que vais criar essa criança que trazes na barriga e mais essa outra que, a bem dizer, te deixaram na soleira da porta? Como vais fazer, Madalena?
-Ora, vó Bé, um dia de cada vez. Vou criá-los um dia de cada vez. Enquanto houver para mim, haverá para eles…
-Mas é isso mesmo, Madalena, como é que haverá para ti?
-Vou voltar a trabalhar mais…
-Sim, meu amor e a atenção que as crianças precisam…
-Terão toda a que eu conseguir dar-lhes e essa, muita ou pouca, terá de chegar.
-Tu não vês os problemas, Madalena?
-Os que vejo, vó, preparo-me para eles, os que não vejo é porque não merecem a minha atenção, está descansada que, se merecessem, vinham ter comigo. Um problema não nos poupa, vó. Se nos poupa, não é um problema, é um erro de julgamento nosso.
-Tu assustas-me, filha…
-Pois, mas olha que tudo o que sou, foste tu que me ensinaste…
-E julgas que essa ideia não me atormenta… não sei se encorajar-te com o Kyle foi uma boa ideia…
-Para! Para já com isso! O Kyle aconteceria na minha vida com ou sem o teu consentimento, é e será sempre o homem da minha vida.
-Tu és tão nova, filha, ainda tanta coisa te vai acontecer.
-Nada do que vier a acontecer-me apagará o que já aconteceu… vó… não te arrependas tu daquilo que para mim foram os melhores anos da minha vida vivida e a viver…
-Pois… mesmo assim, os problemas estão aí… estou preocupada…
-Com o quê?
-Precisas de um pai para essa criança.
-Albertina, que se passa contigo? Esta criança tem o melhor pai que alguém poderia desejar. Não o conhecerá em vida, mas eu me encarregarei de que o pai viva em cada respiração do filho…
-Não é isso, Madalena, é a questão da paternidade. Tens de registar a criança quando nascer e dar-lhe um nome.
-Dou-lhe o meu.
-Não podes, filha, tens de indicar um pai…
-Hã… indico o Kyle.
-Não podes, filha, por mais injusto que te pareça, essa criança tem de ter um pai vivo… o teu filho precisa ser adotado para ser registado…
-Que estupidez, as leis dos homens são estúpidas, os homens são estúpidos… tinhas razão quando aqui entraste, havia um problema, mas repara como eu tinha razão também, por problema ser, encontrou caminho até mim… e se bem te conheço… esse ar preocupado… não é por causa do problema, pois não?
-Como assim, filha?
-Tu tens uma solução, não tens vó Bé? E temes que possa não aceitá-la…
-Eu conheço-o. É um bom homem. Trabalhador, respeitado e, tanto quanto sei, respeitador, é português, aceita mesmo acolher-te juntamente com as crianças…
-E o que quer ele em troca?
-Nada…
-Então, agora é a tua vez de ser ingénua? Ninguém faz nada por nada…
-Ele enviuvou… está um pouco perdido… se trouxeres a casa cuidada e lhe tratares da roupa…
-Mas ele quer uma empregada ou uma segunda mulher? É que lá tratar-lhe da casa e da roupa ainda é como o outro, mais do que isso…
-Não sejas tonta… é só mesmo isso…
-Posso conhecê-lo, falar com ele, perceber o que quer…
-É que, além do nome para a criança, ele pode dar-te algum conforto, filha, não terias de pagar renda, a água, a luz…
-Veremos.
E viu. E gostou do que viu. Um homem mais novo do que a avó, pacato, austero, de poucas falas e trato delicado. Estava há muito na Suíça. Tinha vindo como servente, passara a pedreiro e há já uns anos tinha uma pequena empresa cujo propósito único e único trabalho era produzir caixilhos de alumínio para janelas. Não trabalhava em portas, não colocava vidros nas janelas, não punha as colas, de manhã à noite, quatro pessoas selecionavam os perfis, traçavam as medidas, levavam à serra, aplicavam as esquadrias e montavam os caixilhos e depois duas pessoas e uma carrinha de caixa aberta procediam às entregas. A sua companheira de sempre, porteira há vinte e cinco anos, desde que haviam chegado à terra do frio e da neve, fora assassinada num assalto ao prédio de que cuidava. Moravam lá os dois, como era normal. Foram atados a duas cadeiras, de costas um para o outro, e foram agredidos. Ele sobreviveu. Ela sucumbiu. Teve direito a uma foto pequenina no Correio da Manhã com meia dúzia de linhas imprecisas e um título enorme na página 9. O homem ficara desesperado, desleixou o negócio e esteve quase para desistir desta vida. A pouco e pouco foi acordando para o quotidiano, mas nunca lhe saiu a tristeza do peito, nunca mais viu o sol, mesmo nos dias em que parecia brilhar. Se brilhava, era para os outros. Aceitou dar o nome ao filho da jovem viúva. Albertina explicou-lhe que a menina não tivera nenhum azar, mormente, o da desonra. Fora mesmo casada. Muito nova se tomara de amores por um estrangeiro doente. Viveram bem, mas a doença consumira-o e deixou-a com uma filha emprestada nos braços e um filho do defunto no ventre. A mais velhinha era, de facto, sobrinha. Uma sobrinha que ela criara desde as duas ou três semanas de idade como se de uma filha se tratasse, aliás, a pequenina chama-lhe mamã. É trabalhadora, a pequena, e pode ajudá-lo com a lida da casa. Nada mais, bem entendido. E, para bom entendedor, “nada mais” bastou como explicação dos limites todos. Bastou durante algum tempo. Seis meses. Depois, a ele apeteceu-lhe mais que nada era muito pouco. A verdade é que, assim que viu Madalena entrar-lhe pela porta dentro com os olhos cheios de vida azul e os cabelos louros esvoaçando e prendendo-se-lhe ao canto da boca, o homem sobressaltou-se. No seu peito houve um pequenino estrondo como se, estando longe do Japão, tivesse ouvido da bomba atómica um rumor longínquo e abafado. Aguardou. Sossegou-se. Recolheu-se ao seu canto e aos limites da sua promessa: “nada mais”. Nada mais seria.
Em maio, Jacob apresentou-se ao mundo. Poderá Madalena esquecer muita coisa, mas nunca o inigualável momento de parir o seu filho. A dor, o corpo a rasgar-se por dentro, a sensação de se perder o controlo da nossa vida para se trazer outra ao mundo. Quando a criança chorou, a mãe chorou com ela e pronunciava, Já está, seu irlandês teimoso, já cá está o nosso filho, podias ter esperado mais este pouco que seria tanto. Que diz a menina? Perguntou a enfermeira. Rezo. Faz muito bem. Tem aqui um belo rapaz, mas agora vamos levá-lo connosco. Passa-se alguma coisa? Não, rotinas. Passava, mas isso são histórias de outro rosário. Lá iremos. Nunca se conhecerão completamente as consequências da maternidade, contudo, com pouca margem de erro se pode dizer que a Madalena mudou-lhe por completo a perspetiva que tinha da vida, da morte, da existência, da dedicação e a própria noção que tinha de si mesma antes de ser mãe se alterou radicalmente. As crianças estavam a maior parte do tempo com ela e o tempo que restava ficavam com Albertina que não morava longe. Madalena trabalhava muito, mas as dificuldades sérias surgiram seis meses mais tarde quando o generoso pai adotivo de Jacob decidiu que “nada mais” era muito pouco. Tomou-se de amores por Madalena. Fez-lhe propostas diversas, tentou persuadi-la a uma relação mais séria, mais íntima, e vivia entre a doçura das flores e dos presentes que lhe oferecia e a raiva de não conseguir perceber porque lhe dizia ela que não. E, contudo, a razão era simples. Não o amava. E, sobretudo, o idílio da vida com Kyle estava ainda muito próximo. A sua tarefa mais imediata, a mais urgente, a que lhe consumia as atenções e as energias todas, era criar aquelas duas inocentes almas. E no dia em que ele, insistindo, pareceu querer cobrar o facto de ter dado um nome de pai à criança, assim que lhe aflorou aos lábios o argumento de estar a dar-lhe guarida, ela sentiu-se presa e reagiu como sempre reagia a essa condição, libertou-se. Numa tarde em que chegou do trabalho e procurou por ela, o homem que emprestou o apelido a Jacob não encontrou nada. Nem Madalena, nem Mariana, nem Jacob, nem as roupas deles, nem as coisas… nada. E nada fora tudo o que lhe sobrara. Acontece muito a quem quer tudo.
Madalena não disse nada a Albertina. Porque era uma decisão só sua, porque não queria ouvir a avó pedir-lhe para pensar duas vezes e, sobretudo, porque era previsível que o homem que emprestou o apelido a Jacob entrasse em contacto com Albertina, eventualmente, julgasse que teria alguma coisa a ver com a decisão de Madalena. Deixá-la na ignorância protegia-a desses julgamentos. Por outro lado, a decisão era sua, as consequências teriam de ser por si suportadas. Talvez fosse orgulho, no seu íntimo sabia que também era orgulho, mas era um orgulho de sobrevivência e o facto é que o homem que emprestou o apelido a Jacob foi ter com Albertina e perguntou-lhe onde estava Madalena e esta reagiu dizendo que deveria estar com ele, o que se passava, e ele lá disse que não estava e Albertina lembrou-se de ir ao anterior apartamento e é verdade que Madalena estivera lá, acontece que o andar está já ocupado e mesmo que não estivesse, a renda havia subido e Madalena confessara não poder-lhe chegar. Saíram de lá os dois com a as mãos vazias e a preocupação do peito espelhada no olhar. Madalena é um espírito livre, comentou Albertina, tentar retê-la, é perdê-la para sempre.
Percebeu finalmente o que eram responsabilidades, percebeu finalmente o que era lutar combatendo as dificuldades sem poder vacilar e, sobretudo, mostrando às crianças que a vida é esperança. Sorriu sempre. Brincou sempre com eles. Viveram de forma magra e austera. Nunca tiveram fome. As crianças. Por vezes, ao final do dia, Madalena preparava-lhes a refeição e comia um tomate. Refogava o tomate em sal e comia-o com pão. Era o que podia. Depois deitava-os, pedia a Mariana que olhasse pelo mano, lhe mudasse a fralda que ela quando chegasse haveria de lavar a suja. Nesses dois anos, Madalena sobreviveu com pouco mais do que duas mudas de roupa. Tinha um trabalho ao longo do dia. Voltara ao pub, à noite, servindo às mesas, e aceitava trabalhos de contabilidade para fazer. Eram sobretudo emigrantes que lhe confiavam os sinais de mais e de menos e os impressos e seguiam à risca os seus conselhos de como orientar a vida e os negócios, onde gastar, onde não gastar, onde estava fugindo o dinheiro, de onde estava chegando. No fim de um dia de trabalho, tinha a hora de jantar com as crianças e depois disso o pub e depois disso a lida da casa e as refeições do dia seguinte e aos fins de semana as limpezas e os trabalhos de contabilidade e ao sábado à tarde corriam ao parque e respiravam ar sem teto, corriam, mostravam o mundo a Jacob apontando-lhe as coisas e dizendo-lhe os seus nomes. Passou fome, sim. Muita dela por orgulho. Acontece que o orgulho é parte da massa com que se fabrica uma espinha dorsal íntegra e erguida. Muitas vezes pensou no homem que emprestou o apelido a Jacob, em como seria fácil pedir-lhe ajuda, ao menos uma refeição de jeito, mas isso seria a negação de si própria, seria abdicar de si e nunca mais confiar-se nada. Muitas vezes pensou em socorrer-se de Albertina, pedir-lhe dinheiro emprestado, mas de novo a assaltava a urgência de sobreviver por si, de se bastar. E se não houvesse Albertina? E se não conhecesse o homem que emprestou o apelido a Jacob? Preferia deitar-se com fome do que deitar-se com a vida hipotecada. Por vezes comia no pub. Às escondidas. Restos. Pão, sobretudo. Saciava-se com o que os outros desperdiçavam. Nesses dias abençoou o desperdício alheio. Fazia as contas dos outros e as suas. A renda da casa, a água, a luz, o gás, as mercearias, os detergentes, o dinheiro dos transportes públicos, da farmácia, o dinheiro para as necessidades das crianças, e adiava as suas. E, sempre que conseguiu, leu. Deu graças aos homens pelas bibliotecas públicas e, às vezes, ao sábado à noite ou mesmo ao domingo à tarde, quando as crianças tombavam no sono, ela mergulhava nos fantásticos mundos que não podia viver, mas que não se dispensava de ler. Têm esse poder, os livros, permitem-nos viver mais do que uma vida ao mesmo tempo.
Ao cabo de dois anos, corria o ano de mil novecentos e noventa e sete, Madalena tinha interiorizado este ritmo de sacrifícios, esta austeridade forçada, as passadas limitadas do dia a dia e, contudo, não se sentia oprimida. Pelo contrário. Estava a conseguir. Jacob tinha dois anos. Era um menino meigo, com um olhar azul e infinito de ternura. Mariana era mais do que filha. Era uma amiga cúmplice do quotidiano, das opções no supermercado, dos truques de poupança, da alegria encontrada nas coisas pequeninas. Foi então que conheceu, quase por acidente, Mário Só. Seria seu segundo e último marido e uma das mais fugazes relações que viria a ter em toda a sua vida. Mas foi também um ponto final nas dúvidas. Mário Só seria breve, mas absolutamente fundamental na aprendizagem que estava fazendo acerca das pessoas, absolutamente fulcral na forma como se estava formando o seu caráter. Mário Só seria o fechamento do processo de crescimento de Madalena. A definitiva passagem de menina a mulher. Teria de morrer com ele para ressuscitar depois dele. Teria de iludir-se e desiludir-se. E só depois estaria pronta para todas as coisas que ainda lhe faltava viver. Contaremos essa morte e essa ressurreição que anda enganado quem julga que é exclusivo de Cristo, tal fenómeno. A vida tem pedras arremessadas para todos nós, e tem para todos nós alguém que se curva e nos lava as feridas. A vida tem uma Cruz para todos nós e para todos nós tem alguém que nos espera quando nos descem do madeiro. Entre o momento de soçobrar e o de reerguer há um átomo de tempo que só no peito de cada um se mede e se encontra. Chama-se Paixão.
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A Paixão de Madalena – Capítulo 10
A Paixão de Madalena
Livro II – O Cordeiro de Deus
10.Fora atribulada e longa, a caminhada. Viera Ele de salvá-la da morte arremessada em cada pedra. Um ou outro popular, talvez desses que pensam nunca ter pecado, ainda os perseguiu. Ele voltou-se para trás e fez-lhes um gesto veemente com o braço:
-Ide à vossa vida!
E foram.
Ela caminhava com a cabeça vergada pela vergonha, os olhos pregados no chão, as lágrimas de arrependimento lavando-lhe a face. Segura ao braço dele, tropeçou aqui e ali e abriu lenhos de sangue na carne dos pés. Ele tinha caminhado muito antes de encontrá-la e agora quase corria e, por isso, seus pés tinham terra pó e sangue seco de pequenas feridas. Entraram em casa dela. A mulher correu a todas a janelas a tapá-las com tecidos, restou uma luz trémula, um raio de sol cortando a escuridão e deixando ver o bailado do pó à sua volta.
A casa estava na penumbra. Alguém bateu à porta, mas não foi ouvido. A mulher puxou um pequeno banco de madeira e convidou-o a sentar-se. Foi buscar um alguidar com água a uma bilha e um pano limpo. Era um líquido precioso. Normalmente não se usava a primeira água para lavar os pés. Mas aquele era um convidado diferente. Não vinha pelos mesmos motivos dos outros. Acabara de salvá-la. Era Ele. Molhou o pano e espremeu-o. Começou por limpar-lhe a face, depois o pescoço, voltou a mergulhar o pano na água, lavou-o, espremeu-o e levou-o aos pés dele e lavou-lhos com movimentos cuidados envoltos em dedicação e admiração.
Está Ele sentado no banco. Está ela ajoelhada à sua frente lavando-lhe os pés. Segura-lhe um de cada vez, mergulha-os na água e depois fá-los emergir do alguidar e acaricia-os com o pano antes humedecido, limpa-lhos da terra e do sangue seco. Nunca olha para cima. Não se atreve. Mantém-se prostrada perante o Senhor. Quando termina, , ergue-lhe os pés lavados e limpos e beija-os.
-Porque me beijas os pés?
-Porque sois quem sois…
-Sou um pecador como todos os outros.
-Não sois como todos os outros.
-Sou sim. Sou mesmo mais pecadores do que eles.
-Senhor…
-Ouve… eu conheço o caminho da salvação, a minha missão era simples, bastava que vos ensinasse esse caminho, que vos levasse a segui-lo ou desse a minha vida por vós. Verás, dentro de pouco tempo, que terei de morrer por vós pois não consegui ensinar-vos o caminho da salvação.
-Ensinai-me esse caminho, Senhor, e eu o gravarei em meu coração. Eu o aprenderei, Senhor.
-Sim. Ensinarei. Sim. Aprenderás.
-Qual é o caminho, Senhor, dizei-me, eu vos suplico.
-O único caminho para a salvação, Maria de Magdala, o único capaz de vos redimir de todas as faltas, é o Amor.
-Eu vos amo, Senhor.
-Eu sei, Maria de Magdala, mas não basta que me ameis. Amai-vos uns aos outros.
E dizendo isto, o Senhor se levantou, o Senhor ergueu Maria de Magdala e a sentou no pequeno banco de madeira, o Senhor puxou o alguidar com a água e pano para junto de si e se prostrou diante da mulher que acabara de aprender a suprema lição. E com gestos lentos e cuidados, o Senhor lhe lavou as lágrimas desenhadas na face e os pés das feridas e do pó e tendo terminado o Senhor lhos ergueu e os beijou.
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A Paixão de Madalena – Capítulo 9
A Paixão de Madalena
Livro I – A Paixão de Madalena
9.Reconhecemos nós e reconhecerá o leitor que, desde que pode comunicar com palavras, ditas ou escritas, o Homem anda conversando e debatendo em torno dos mesmos assuntos que não serão mais do que uma mão cheia. O sentido da vida, o que é a morte, o valor do amor, o papel do sexo, a solidariedade, a existência, ou não, de divina e reguladora entidade, a subsistência, a segurança, a origem das espécies e, claro, essa filosófica e interminável discussão acerca da mudança. Há quem defenda de forma clara e inequívoca que as pessoas não mudam. Nascem com uma matriz comportamental e é com ela que morrem e, mesmo quando tentam mudar, hão de vir ter à sua originária e única maneira de ser. Os adeptos desta teoria aduzem pesados e imutáveis argumentos. E há quem defenda de forma clara e inequívoca que as pessoas mudam. Nascem lá como nascem, mas crescem, aprendem, são permeáveis ao conhecimento, vulneráveis às experiências e acabam alterando a sua maneira de ser.
Escolhemos escrever neste ainda breve capítulo, por duas vezes, a expressão maneira de ser. Essa palavra, maneira, daria motivo para um romance e mais umas quantas teses de mestrado e doutoramento e ainda diversos capítulos em compêndios mais ou menos competentes sobre teoria da literatura. São, quanto a nós, esforços inúteis e inócuos porquanto quando o autor destas linhas escreve maneira de ser, toda a gente, mais ou menos letrada, percebe do que se trata. Quase tão inútil a discussão quanto essa outra que ainda há pouco referimos sobre se, efetivamente, o Homem muda ou não. Inútil, pois, que não se discute, ou deveria discutir, que possa depender da escolha do Homem aquilo que é a sua essência. Quando nascemos já estamos mudando. E mudamos, até, o mundo à nossa volta. E quando vivemos, a mudança é essência e definição da própria vida. É certo que, por motivos de segurança e auto consciência, tentamos cristalizar no tempo certas imagens de nós e por isso mesmo vamos dizendo, Eu sou isto, Eu creio nisto, Eu quero isto, Eu ajo assim, De mim esperem isto. Acontece, pois, não se tratarem mais do que tentativas de cristalização de imagens pois que, à medida que vamos fazendo estas declarações, vamos mudando com elas e até por elas.
Continuai, assim, a discutir o indiscutível que, para nós, humilde autor desta Paixão, a de Madalena, a mudança é um facto imutável.
Madalena mudou. Não foi fácil. Nem a sua decisão, nem a aceitação dela por parte de quem a rodeia, nem a sua execução por se tratar de fenómeno raro, raramente autorizado. Corria o ano de mil novecentos e noventa e três, tinham regressado há pouco de África, e a menina que conhecemos adolescente completou vinte primaveras. Nesse ano, em todos os meses, no dia do seu aniversário, Kyle lho lembrou com um carinho, uma pulseira, uns chocolates, umas flores, um jantar romântico. No final do ano não pôde continuar porque foi hospitalizado. Assim, quando Madalena o visitava e calhava no dia do seu aniversário, dizia-lhe ao ouvido:
-Vinte anos! És uma mulher!
Assim se pode dizer que, no ano em que fez vinte anos, Madalena fê-los doze vezes. Kyle nunca se esqueceu de lho relembrar e foi também a consciência dessa maturidade que a fez querer mudar. É que, tendo Madalena vinte anos, pouca matemática seria necessária para se perceber que sua irmã morrera há dez. Não se trata da mana Liberta que lhe deixou Mariana nos braços e nunca mais voltou, nem voltará. Trata-se de outra irmã. Um pouco mais nova. Muito pouco.
Foi numa terça feira. A manhã estava fria de sol e por isso mesmo o corpo se encolhia mas a alma se expandia a novos horizontes e realidades. Entrou pelo Registo Civil dentro, procurou alguém que a pudesse atender, e disse com convicção na voz e na intenção:
-Quero mudar de nome!
-Lamento, senhorita, mas isso não vai ser possível.
-Como assim, não vai ser possível?
-Não. Ninguém muda de nome. Se uma pessoa mudar de nome, toda a sua identidade passada se altera, todos os documentos que assinou perdem validade e todos e todos os que assinar daqui em diante é como se fossem assinados por outra pessoa.
-Sim, compreendo, mas, efetivamente, eu não pretendo mudar de nome. O que eu quero é acrescentar um nome aos que já tenho.
-Muda pouco, o caso. Outro nome, outra pessoa…
Madalena sentiu-se encurralada e quando se sentia encurralada costumava reagir com mais vigor e imaginação. E foi por isso que lhe saiu o argumento que lhe saiu e é como lhe saiu que o relatamos:
-Então quer dizer que, se os meus pais me tivessem chamado Monte de Caca, eu tinha de ficar Monte de Caca para o resto da vida?
-Meu Deus, a senhora chama-se Monte de Caca?!
-Chamo.
-Jesus, credo… nesse caso há uma solução…
-E qual é?
-A senhora tem de expor a sua situação num requerimento e remetê-lo à Direção Nacional dos Cartórios e Notariados. A sua exposição será avaliada por uma comissão que, em casos muito excecionais, pode deferir…
-E onde é que entrego o requerimento?
-Aqui mesmo. Ou remete por correio.
-Remeterei por correio.
-Sim, claro! As melhoras, quer dizer, boa sorte.
-Não se preocupe, tenho outros nomes…
-Ah sim? Pois claro que sim… ufa, que alívio. Agora nem sabia como despedir-me…
-Madalena. Madalena da Conceição…
-Madalena da Conceição M…
-Sim, veja lá a desgraça.
-Uma desgraça, de facto.
Madalena saiu feliz. A ingenuidade da senhora levara-a a dar-lhe a informação que pretendia. Seria agora necessário redigir o requerimento com propriedade e com rigor para que se percebesse a sua motivação. Era mesmo necessário contar alguns momentos da sua vida em que não queria voltar a mexer. Teria de ser. Nunca gostara de ser Conceição. Não percebia a sua conceção ou, percebendo-a, sabia-a mergulhada no pecado dos homens ainda que emergisse do amor deles. Mas os homens tinham decidido não ver o amor e concentrar-se no pecado. Exilaram-na da vida muito cedo. E por isso se entregou a Albertina e à sua irmã mais nova. Pouco mais nova. Por outro lado, essa irmã sempre fora uma luz na sua vida. Um sorriso, um conselho, uma matreirice, um olhar, uma confissão, uma partilha, uma ligação com o mundo real. Uma luz a fazer sentido. Chamava-se Maria da Luz. E Madalena queria expurgar de si a conceção em pecado e eternizar em si a luz que de si nunca tinha saído. Essa irmã era a comunhão total, era parte de si, a sua razão para continuar a viver. Têm força os mortos. Por vezes, mais do que os vivos. Antes de partir, Maria da Luz dissera-lhe, Vive, vive tudo por mim como se fosse eu. E Madalena tem trazido consigo essa missão, a de mostrar a Maria da Luz como é a vida. E terminava o requerimento como começara, solicitando que a deixassem ter um nome que fizesse sentido e desse vida a quem merecia a vida e emprestasse esperança a quem precisava dela. Queria ser Madalena da Luz em vez de Madalena da Conceição. E é com a luz desse nome que enfrentará a vida que lhe falta viver. Tem muita pela frente. Alguma carregada de sofrimento e outra salpicada de alegrias como normalmente sucede a todos nós.
A cara lavada em lágrimas, Mariana ao colo sem perceber o que se passava, o hospital atrás d si, um táxi, a campainha da porta de Albertina a chorar, os cabelos brancos da avó a surgirem e uma explosão:
-Ajuda-me, avó Bá, ajuda-me! Não posso, não consigo viver sem ele. Era a minha trave, a minha vida, o meu homem… porque tem de acabar, avó? Porque tem de acabar assim?
Albertina chegou-a ao seu peito, fechou a porta, levou-a para dentro e tentou sossegá-la. Usou palavras de coragem, que estaria com ela como sempre estiveram, que teriam Mariana para criar, se quisesse voltariam a viver juntas…
-Eu só o quero a ele, avó Bá, eu só o quero a ele…
-Mas o que te disseram?
-Que tinha pouco tempo. Meses. A viagem a África não ajudou…
-Mas não foi a vontade dele?
-Claro, mas está fraco… vai passar o Natal no hospital. Só sairá se recuperar o suficiente e quando o tempo estiver menos agressivo, mas virá por pouco tempo… foi o que disseram.
-Aceita a dor, Madalena, só assim a conseguirás superar.
-Eu não queria perder mais ninguém. Primeiro a mana e agora o meu homem, o meu irlandês teimoso de olhos azuis.
-Será sempre teu, Madalena.
Madalena tem lutado com a vida para conquistar-lhe confiança e sempre que parece superar uma provação, uma onda de sofrimento, a vida derruba-a de novo, joga-a ao chão, seu lugar primeiro e último.
O estado de saúde de Kyle melhorou, piorou e voltou a melhorar. Sofria de cancro no cólon. A luta era difícil e penosa e, pior de tudo, tinha um vencedor anunciado. Saiu do hospital numa manhã chuvosa de abril. Madalena chamara um táxi que esperou enquanto foi buscá-lo lá dentro. Levou-o para casa, tratou-o como um príncipe, o seu príncipe. Teve de refazer o quotidiano para poder cuidar dele. Manteve em casa a senhora que a ajudava com Mariana. Trabalhava. Ganhava muito pouco, mas o vencimento de Kyle era generoso e ela geria-o com rigor. Fizeram inúmeras tardes de chá, conversaram sobre livros, os amigos vieram visitá-lo de quando em vez e pelo verão sentia-se a recuperar. Com mais força. Numa tarde de agosto, quis fazer amor. Fizeram amor devagarinho como se não quisessem estragar nada. No fim, ela limpou-lhe o suor da testa. Adormeceram abraçados. Ela sonhou que sobrevoavam o mundo na sua cama observando os monumentos e saudando as pessoas. Ele sonhou que jogava à bola com uma criança que o tratava por pai. Quando acordaram, disse a Madalena:
-Sonhei que tínhamos um filho.
-Foi só um sonho.
Madalena não sabia ainda, nem tão pouco Kyle, mas tinham de facti um filho. Aquele que acabaram de fazer. São insondáveis os caminhos da mente.
Dois meses mais tarde, Kyle voltará ao hospital e, tendo o leitor prestado atenção ao início desta história, saberá que foi para morrer. E saberá também que Madalena descobriu a semente do amor de ambos e correu a contar-lhe e ele já não ouviu. Não soube Kyle que seria pai, embora tivesse pressentido que lhe tinha feito um filho. E sonhou. Sonhou com o fruto desse amor, depois de fazer amor. E era com isso que estava sonhando outra vez, quando adormeceu para sempre.
Jacob, assim se chamará. Não será somente o filho de Kyle. Será a herança do seu amor. E assim viverá. Como o fruto da paixão de Madalena.
——————- FIM DO LIVRO I ——————-
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