Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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Espera

Espera

Goteja o tempo
Escorrido
Como chuva na janela.
Perdem-se na profusão
Dos gestos,
Os sentidos.
A chuva é bela,
O tempo difuso,
A alma emprestada,
O corpo adiado.
Não há mais o que fazer…
Em vez desta
Incerta espera,
Preferia a certeza
De morrer.
Dai-me uma estrada
De dor empedrada,
Coberta de passadas
Em sangue
E choro.
Mas uma estrada,
Um rumo,
Um horizonte
E um fim.
Perdi-me
De mim
E dos meus sinais.
Não encontro mais
Essa vontade antiga
E ansiosa.
Esse desejo
De conquista
Vitoriosa.
A única vitória
Que importa
E sou capaz
É a paz.

Goteja o tempo
Escorrido
Como chuva na janela.
Mas a chuva
Já não cai
Como era.
Morre fria
Na minh’alma
E chama-se
Espera.

jpv


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Penumbra

Penumbra

Recordo a penumbra
desse quarto
E sua cama de música.
O espaço amplo
E definido.
Os pés descalços,
Um livro aberto
Semi lido.
Um corpo deitado
Sobre um corpo vencido,
Um rasto
De sensualidade
E nudez discreta.
Um sexo que acolhe,
E um sexo à descoberta,
Abrindo caminhos
De conquista e merecimento.
Uma porta entre-aberta.
Poucas palavras.
Um sexo envolvendo
Um sexo abandonado dentro.
Um sono profundo.
O princípio
E o fim do mundo.
Uma luz ténue.
E, tal como na noite,
De dia, o mesmo traço,
Dois amantes
E a penumbra
Desenhando o espaço.

jpv


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Instante

Instante

Passaste célere
E pediste pouco.
Olhaste em frente
E viste
O amor louco
Avançando como locomotiva,
Trepidando
Na tua paixão cativa
Da minha cativa paixão.
O teu sexo
Na minha mão.
O meu peito
Sobre o teu coração
Sulcando jeiras inexploradas,
Sementes nunca dantes semeadas,
Palavras por dizer. Indizíveis.
Os meus olhos
Nos teu olhos.
A minha língua
Nos teus seios apetecíveis.
Amores eternos.
Almas perenes.
Sentimentos tragicamente perecíveis.

Olhei em frente e não te vi.
Algures no caminho esqueci-me
De ti.
E fica-me esta lembrança
Grata e viva
Do teu olhar rompendo
O fumo branco da locomotiva
Agora em meu peito
Trepidante.
Viveu-se uma vida
Num singular e efémero instante.

Passaste
E eu fiquei,
Triste e só,
No lugar que te dei.

jpv


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Abandono

Abandono

Abandonado o meu desejo
À tua vontade.
Abandonado o meu tempo
À tua idade.
Abandonado o meu corpo
Ao teu momento.
Nascido para o mundo
Nesse abandono,
Adormecido no teu colo
O meu sono.
No teu seio embrião
Estende-se o braço,
Abre-se a mão
E toca-te.
E a luz brilha
No caminho que o desejo trilha…
E em ti cresço,
Exuberante e excitado
Nesse corpo
Onde vive
Meu corpo abandonado.

jpv


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Orvalhada

Orvalhada

Manhã fresca
E perfumada,
Roseira singela
Gotejando da orvalhada.
Vida transparente,
Verde fresco,
Folha vertente.
Sopra, a brisa,
Os odores
Em profusão.
Cheira a terra,
Brota essência,
O Chão.

E vivo.
E renasço.
E tenho saudades
De ter partido.
É esta terra húmida,
É este chão,
É esta chuva,
Que me dá sentido.

Caminho descalço
E sinto a água lavar-me
Os pecados.
É fresca e límpida.
Veio do Céu,
Gotejando milagres,
Fecundar os rasgos semeados.

E vejo nisto
Um renascer,
Um ciclo que recomeça,
A força de viver
Na luz que atravessa
Cada gota que brilha
E promete
O Sol que reflete.

Tenho no peito
A esperança renovada
Porque é fresca, a manhã,
E perfumada!

jpv


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Baú das Memórias – ORION Nº3

Dois anos depois do Nº 2, em agosto de 1990, publicava-se o Nº3 da revista ORION.

Este viria a ser o último número da revista e trazia significativas diferenças em relação aos dois primeiros. Toda a conceção tinha o mesmo aspeto artesanal, mas, na verdade, o processo foi mais elaborado.

Na capa, a expressão “Revista de Poesia” foi substituída por “Revista de Criação Literária” por via da profusão de textos em prosa. No interior, surgiam, pela primeira vez, ilustrações junto aos textos. A revista foi impressa nos Serviços Regionais de Coimbra do Instituto da Juventude e, por essa razão, no verso foi impresso o logotipo daquela instituição bem como o preço de capa que os autores estabeleceram: 150 escudos. Não sei se alguma vez se produziu algum dinheiro com a sua venda. Todo o processo era agora gerido por Graça Nunes.

O elenco de autores deste número foi:
João Paulo Videira
Graça Nunes
Paulo Alexandre
Carmen Sofia Gonçalves
José Fernando

Destaco, deste número, um texto meu. Assim escrevia há 22 anos…

jpv
—————————


Há três horas
Uma hora não chega.
Há três horas
Eram quatro.
Há três horas
Mil sonhos sonhei
Mil cantigas cantei…
O meu espectador não veio.

– Algum tempo mais tarde –

Há três vidas
Espero uma.
Há três vidas
E o espectador já morreu.
Há três vidas
Que não cesso
De procurar
O espectador que sou eu!

João Paulo Videira

Orion nº3 – 1990


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Baú das Memórias – ORION Nº2

Um ano depois, em maio de 1988, com um elenco de escritores diferente, publica-se o nº2 da revista de poesia ORION. 

Uma das autoras, Graça Nunes gosta do projeto, agarra nele e dá-lhe nova vida. A publicação foi sujeita, de novo a venda antecipada de exemplares, mesmo antes da sua impressão. Uma vez concluída a edição foram distribuídos os exemplares por quem havia comprado.

Os autores foram:
Graça Nunes
Paulo Alexandre
João Paulo Videira
José Fernando

Este número era menos volumoso e continha textos em prosa. Este facto viria a mudar a designação da revista, mas isso deixo para o próximo Baú de Memórias. Por agora destaco um texto do nº2, da autoria de José Fernando.
jpv

—————————–

Tenho saudades de nada
Do que ainda não vivi.
E são tantas as recordações
Que por vezes as esqueço
E me disfarço por dentro a branco
E fujo de volta ao sítio onde estou.


José Fernando
Orion nº2 – 1988


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Baú das Memórias – ORION Nº1

Em 1987, por volta de maio, um punhado de colegas, estudantes universitários, publicou o nº1 de uma revista de poesia intitulada ORION.

Lembro-me que tivemos a ideia no início do ano, escrevemos um texto de apresentação que líamos às pessoas a quem pedíamos que pagassem um número da revista caso reuníssemos toda a verba para a publicação. Se não juntássemos o dinheiro todo devolveríamos a contribuição de cada um.

Felizmente foi possível fazer a publicação e, com inexperiência, com textos muito incipientes, mas cheios de fé nas nossas capacidades, publicámos as nossas poesias pela primeira vez em livro. Foi uma verdadeira aventura.

Os primeiros autores da ORION foram:
António Andrade
Fernando Mina
João Paulo Videira
José Fernando
Quia
São Saúde

Venho saudar os jovens autores de então. Venho saudar o espírito empreendedor. Venho saudar a poesia. E, claro, venho saudar todos os leitores do mundo.

De todos os textos, escolhi um para vos mostrar. Não é meu. É da São Saúde. Achei-o tão bonito e tão bem feito que o decorei para sempre e quando reencontrei a autora, 20 anos depois, recitei-lho!

Um dia destes, falo-vos dos outros números. Houve três!
jpv


——————-


O crime perfeito
Com o perfeito alibi
Foi eu ter nascido
Da alma que despi.
Ninguém o descobriu,
Ninguém desconfiou;
Foi o mar que me engoliu
E depois me vomitou.

São Saúde
Orion Nº1 – 1987


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Um Aceno

Um Aceno

Um aceno,
Um adeus,
Um abraço.
Uma vontade interrompida
E o quebrar de um laço.

Foram esperanças
E ilusões,
Pequenos sonhos
De grandes dimensões.
E foi o entusiasmo,
A entrega
E a dedicação.
Foi um agarrar firme
E foi um abrir de mão.

Foi a força
De vencer.
Foi a intenção
E foi o crer.
Foi o rasgo.
A sorte que se fez,
O azar que bateu.
Foi um homem que cresceu.

E foi a vertigem.
Foi a decisão
Na ponta da coragem.
Foi um peso.
Foi um homem engolido na voragem.

Foram palavras.
As que se disseram
E as que ficaram por dizer,
As coisas que se fizeram
E as que ficaram por fazer.

Foi um tempo
Longo
E escasso.
Foi uma vida,
Em breve
E curto estilhaço.

Foram as minhas virtudes
E os defeitos meus
Condensados em poucos gestos.
Um aceno.
Um adeus.

jpv


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Até Já!

Até Já!

O som inconfundível
Da máquina nos carris,
A travagem chiada,
A porta desliza
E abre-se a entrada.
Lá dentro a sonolência
Matinal
E a tua figura jovial.
Tens um traço de ruralidade
E um outro cosmopolita,
E vive em ti
Uma companheira de viagem,
Uma pessoa bonita.

Foram horas de leitura comum,
Dias a escrever aventuras,
Histórias e poesias,
Conversas sobre loucuras
Cheias de sentido
E também vazias.
Foram sorrisos,
E foram lágrimas,
Foi a conversa
E a cumplicidade,
Foi a partilha de duas almas
Ligando o campo
À cidade.
O lar ao trabalho.
A realidade ao sonho.

Não me vou despedir de ti.
Esta, sendo a última,
Não é a derradeira
Das nossas viagens.
A vida tem surpresas,
Tem esquinas
E tem mais paragens.
E será numa dessas
Que nos vamos reencontrar,
Sem promessas,
Só com a esperança
De voltar
A escrever um verso,
Uma linha partilhada
Sobre o mistério da vida
Ou,
Tratando-se de nós,
Sobre rigorosamente nada.

Foi sempre e só
Uma questão de amizade,
Uma viagem menos solitária,
Uma ideia,
Uma frase
Com ou sem dor.
Na tua mente,
Na minha mente,
E no teu computador.
Na blogosfera,
Na emoção,
Na excitação…
E, depois, Santa Apolónia.
Até amanhã!
Até amanhã!
E, na manhã que depois vinha
Tudo de novo se repetia,
Os mesmos gestos
De vida,
A mesma magia.
Adeus, companheira!
Até já!
A única coisa verdadeira
Que fica
É esta amizade bonita
Nascida nos bancos
De um comboio,
Crescida no apoio
Que trocámos
E cristalizada
Nas palavras que reinventámos.

À Dulce,
Pela amizade partilhada
Em dois anos de inúmeras viagens.
As de comboio. E as outras.
jpv