Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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Herança da Beira da Estrada

Herança da Beira da Estrada

Um Dia Destes
Reclamo outra herança
E inverto a funesta
E repetitiva dança
Do deve e do haver.
Os meninos já não crescem,
A terra seca estéril
E não medra o verde.
A chuva queima a pele
E arde no coração
A fogueira do desespero.
Não sei as armas,
Não conheço outras
Que as palavras
Com que amo e odeio.
A virtude morreu.
A esperança
É um cinza indefinido,
Um braço erguido,
Um grito suspenso,
Um olhar tenso,
Um lápis partido.
Vi-os caminhando
Por entre os povos
Jogando ao ar
Sementes de medo
E conforto.
O homem sentado no sofá,
Mudo como um penedo,
Com o comando na mão,
Afinal, estava morto.
Puta que te pariu,
Semente ruim!
O homem de bem não te viu
E sugaste o tutano da terra
Até ao fim!

jpv


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Navegante do Pó

Navegante do Pó

És o navegante
Altivo
Do mar encapelado
Que me tem cativo.

Sou o caminhante

Desta estrada de terra e pó.

És o capitão
Do motim
No mar da minha revolta,
Rota sem horizonte nem fim.

Sou o homem
Que pisa o chão de ida
E perde o norte da volta.

E temos ambos,
Em terra ou no mar,
A força do olhar
Sob a mão erguida.
O sentido do tutano
Da vida.
A ânsia do regresso
Mesmo antes da partida!

jpv
(Ao som da tua playlist,
Nina Simone, Sinnerman)


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Filho

Filho

A minha mão
Na tua mão segura,
Não sei se te prende a mim
Ou se me prende a ti
Nessa sensação que perdura
Entre perder-te
E ter-te assim.

O meu peito
Ao teu peito entregue,
Não sei se bate o meu
Porque o teu quer
Ou se bate o teu
Porque o meu lhe empreste
A vida.

O meu olhar
No teu olhar preso,
Tem uma ânsia
E um fogo aceso
De libertar-te e reter-te.

Já foste.
Tinhas ido, já.
Estiveste cá,
Mas foste sempre de lá.
De onde a tua vida se faz,
De onde os demónios
Procuram a paz
E os anjos os atiçam com desejo.

Já foste.
E deixaste a tua presença
Forte.
E não há gume que corte
Este estares aqui,
Sempre.
Ausente do meu tato.
Presente no local certo e exato
De mim.

Sem ti
Não há universo
Nem motivo para que haja.

Morri já
E não sei.
Dei ao mundo a vida que dei
E resgatei a minha pobre
E atormentada alma
No momento em que te vi.
O primeiro,
E este último,
Ainda agora e aqui.

Gosto de ti
Cada vez mais
À medida que a vida se desenrola.
Seja a traçar sagaz teoria,
Seja a beber mais uma coca-cola.

E dói e sangra a tua liberdade
Em mim.
Esse sangue que precisa jorrar
Para que se realize
O homem
E eu possa, por fim,
Descansar na tua existência.
Ser pai não tem ciência,
Basta sofrer,
E ver-te crescer e partir,
E fingir
Que sou feliz com isso
E a espaços
Abraçar-te como se não houvesse amanhã.
Ser filho é bem mais difícil.
É a arte de navegar ancorado,
De partir amarrado
E nessa única
E singular partida
Reinventar toda a vida
E viver tudo de novo.

Gosto de ti
Cada vez mais
À medida que a vida se desenrola.
Seja a traçar sagaz teoria,
Seja a beber mais uma coca-cola.

jpv


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Lágrima

(Vilankulo, Moçambique. Foto de APC)

Lágrima

Sais de ti e procuras
Outras vidas,
Novas aventuras.
E achas o caminho
E a razão
Dessas passadas
Em solidão.
E quando te olhas
Ao espelho
Ouves uma voz,
Que em jeito de conselho,
Veio dizer-te:
– De tanto procurares,
Podes perder-te!

jpv


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Crónicas de África – Malária e Poesia

Crónicas de África – Malária e Poesia

Maputo, 6 de dezembro de 2012

A malária é um problema que afeta África em geral e, naturalmente, Moçambique não lhe é isento. Há muita publicidade institucional aconselhando as pessoas a usar mosquiteiros e a protegerem-se das mais diversas formas. Não é que apanhar malária uma vez seja mortal, longe disso, trata-se. Acontece que afeta órgãos vitais e contraí-la por diversas vezes, isso sim, pode tornar-se letal.

Percebe-se, pois, que, mesmo praticando cuidados básicos, repelentes, mosquiteiros, roupas que cubram o corpo, pode acontecer ser-se picado por um mosquito infetado, sobretudo, fora de Maputo.

Quando isso acontece, por mais tratamentos que se apliquem, há sempre aquele medo das consequências, Afinal o que é que me vai acontecer? Depois, a malta habitua-se e convive com essa realidade africana.

Um dia destes, a nossa empregada, a F., apareceu-nos às sete e meia da manhã, como é costume, mas trazia o filho mais novo, de um ano, às costas! Vai de perguntar-lhe se estava tudo bem e ela a responder em lágrimas de aflição que o trouxera porque estava cheio de febre e diarreia. Ainda por cima, era dia de chuva.

Não estivemos com meias medidas, enfiámos a F. enervada e em lágrimas no carro e levámo-los a um Centro de Saúde. Uma hora e meia depois, recebemos uma sms dela a dizer que estava despachada e fomos buscá-la. Os testes foram inequívocos: o bebé tinha malária. Por razões óbvias, a saúde da criança e a chuva, metemo-los no carro, levámo-los a casa e dissemos-lhe para não vir trabalhar enquanto a criança não estivesse estável. Nesse momento, a F. mostrou-se um bocadinho menos preocupada. Já sabia o que enfrentava, o bebé já tinha levado uma injeção e estava muito bem disposto. E atravessámos a tempestade, trovões, águas e lamas até chegarmos junto à sua casa e foi nesse caminho que, da malária, emergiu a poesia. Uma frase só, uma expressão, F. não sabe, mas desenhou uma invejável metáfora. Andam os escritores perscrutando os caminhos da inspiração, buscando a beleza estética nas formulações originais, gastando tempo em aturado estudo, para encontrar a poesia e afinal ela foi nascer da malária, ali, a meio do caminho entre Maputo e Albazine, no coração amedrontado de F. Comecei eu:

– Então, estás mais aliviada?
– Estou, fico sempre assustada. Essa doença já levou o meu pai e uma irmã minha.
– Tens medo…
É. Quando a doença aparece, o meu coração corre para longe.

E pronto. Ali fiquei eu. Com a expressão a ecoar-me na mente, com o desenho claro da preocupação da F. sempre que a malária bate à porta. Essa doença que tanto brota morte como poesia.

jpv


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Palavra Indizível

Palavra Indizível

Arde no peito
E sempre volta
Uma coisa sem jeito
Que se chama revolta.
Vem de longe,
De tempos sem data.
É um nó denso
Que não se desata.
É um fulgor
E um peso mudo.
É um nada
Que às vezes é tudo.
É uma gente perdida
Sem esperança
Nem vida.
É uma história
Sem raça nem glória.
É um dobrar vencido,
Um diálogo perdido,
Um caçador mirando a corça…
Uma gente sem vontade
Nem força.
É uma palavra indizível
Que se diz.
Outrora foi uma nação,
Hoje,
É só um país!

jpv


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Pescaria

Pescaria

Empurravas esses paus
Unidos de vontade,
E tinhas por bons,
Os ventos maus
Da tua liberdade.
Eras franzino.
Um fraco rapazinho
Com um homem no peito,
Enfrentado o Índico sozinho
Numa barca sem jeito.
Ganha onda,
Perde ondas,
Ganha metro,
Perde metros.
Acometes o mar pujante,
Saltas-lhe às cavalitas,
E num instante
O teu olhar se ergue
E és pescador!
Há em ti uma força maior
E um desejo sem medida.
O mar luta só pelo mar,
Tu,
Lutas pela vida.
E quando sais
E trazes o fruto fresco
Da tua labuta,
Desenhas um sorriso
E já não é diminuta
A embarcação.
É um palco de sonhos
Onde se mostra teu coração.
E vê-se nos teus olhos
O orgulho do homem.
E, olhando com jeitinho,
Ainda se vislumbra,
O medo do menino!

jpv


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Geografia da Alma

(Imagem de Telma Moreira, aqui)

Geografia da Alma

Não peças
O que não tenho
Para dar-te.
Não queiras
O desenho
Que não sei desenhar-te.
Não sintas
Por mim
Esses sentimentos
Que são teus.
Não procures nos teus meandros
Os meandros meus.
Não me guies os passos,
Não me estendas os braços,
Generosos e oferecidos.
Quanto mais os estendes,
Mais os meus se sentem perdidos.

Não sejas a minha luz,
Nem a mão que me conduz,
Não sejas para mim nada.
Apenas a suave alvorada,
A alma
Pela minh’ alma amada.
Não queiras o meu espaço.
Oferece-me, só,
O teu regaço
E recebe nele a minha entrega.

jpv


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Terra de Surpresas

Terra de Surpresas

Fechou-se o céu.
E estremeceu.
As nuvens deram tudo
O que tinham de seu.
Abafou-se o ar.
Não bulia uma folha,
Era difícil respirar.
E o calor envolvia a vida
Como um manto sufocante.
E tudo isto durou
Um breve instante!

Desponta o sol
Ao longe.
Corre uma brisa fresca
E perfumada.
Nesta terra de surpresas
Tudo, num repente,
Fica nada!

jpv


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Mão Divina

Mão Divina

Cai certa,
Esta chuva,
E em profusão.
Escorre pelas paredes,
Galga o chão.
A cada esquina,
Um riacho encontra outro,
E a carreira que era fina
Agora abre rios
De lavar a cidade.
Arrasta as folhas
Varridas e amontoadas.
Empurra terras e areias
E as garrafas abandonadas.
Traz esse silêncio
E esse respeito
Que é desfazer
O que o homem tinha feito.
E passam três crianças
Em calções e descalças,
Trazendo por seu
Só isso
E a chuva que cai do céu.
Ressoa forte
E sonora
Nos telhados aqui à volta.
Um homem que esperava
Foi-se embora…
E passa esta mão
Divina
Banhando a cidade,
Recolhem-se as pessoas,
Expõe-se a verdade.

jpv