Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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Boas notícias

Caros amigos,
a estória que aqui fomos acompanhando ao longo de alguns meses e cujo registo pedíramos ao IGAC, recebeu ontem o deferimento do pedido e respectivo registo num documento de que aqui deixamos um excerto.

A partir de agora, valha isso o que valer, “Estórias ao Acaso: Noite Fria” está protegida contra cópia ou plágio não autorizados…

O próximo passo…

Um excerto do certificado:


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Making of "Estórias ao Acaso: Noite Fria"

A pedido de vários amigos, cá vão alguns esclarecimentos e dados curiosos. De facto, ao longo da publicação da novela “Estórias ao Acaso: Noite Fria”, foram-me fazendo muitas perguntas sobre o texto, como é que eu escrevia e onde arranjava tempo. Fiat lux!
O blogue.
Este blogue foi criado para a publicação de textos que eu escrevia e enviava por mail à minha irmã. Eram, supostamente, autobiográficos. Alguns amigos começaram a dizer-me que deveria escrever textos mais extensos e ambiciosos. Contar uma estória. Daí a ideia de escrever a novela que agora terminou.
Ficção ou realidade.
Acontece que muitos continuaram a achar que eu estava a escrever um texto autobiográfico por causa do teor do blogue, logo, tinha vivido os amores e as aventuras das minhas personagens!!!
Pois, lamento desiludi-los, mas a estória é ficcionada. Quer dizer, quase toda ficcionada. Como qualquer escritor, vivi algumas coisas que escrevo e vi viver outras. Tudo tem referências da realidade, mas nada se passou exactamente como está contado.
Tempo de escrita.
Todos os capítulos foram escritos três vezes. Uma em esboço. Uma em texto rascunho. E uma em texto revisto. Foram sempre escritos à noite, depois da meia-noite, isto durante a semana , ou durante as tardes de domingo, à lareira.
Espaço da escrita.
Três espaços possíveis. No escritório, num computador de secretária. Na sala, ao pé do quentinho do lume aceso com um portátil, ou na cama, também com um portátil. O outro espaço é o mais curioso: alguns, poucos, capítulos, foram escritos directamente para um caderno onde quer que me encontrasse. À porta do supermercado, num parque de estacionamento, ou no carro, no meio da lezíria.
Inspiração ou transpiração.
Muitos leitores perguntaram se havia um plano ou se era tudo inspiração. Devo dizer que a inspiração é fundamental mas não basta. Houve um plano geral da estória e depois houve pequenos planos para cada capítulo. Depois, o esboço e por fim o texto já mais “limpo”, isto é, com alguma revisão e pronto a publicar. Dos 33 capítulos, mais o epílogo, só quatro foram escritos directamente no blogger. Desses, um perdeu-se definitivamente por “erro informático com ajuda humana”, hihihi.
Comentários e visitas.
Durante o processo, o texto não foi muito comentado no blogue. Teve alguns comentários no Facebook onde eu colocava excertos. Também os colocava no Hi5 mas sem reacção. A maioria das reacções chegou-me por mail. Muitas pedindo para dar determinados rumos à narrativa ou para dar determinados destinos às personagens. Era impossível atender a isto porque havia um plano e não segui-lo implicava quebrar a coerência da estória. Os capítulos que mais reacções causaram foram o da noite de amor interrompido e o do suicídio. O texto foi publicado no blogue entre 16 de Novembro de 2009 e 18 de Janeiro de 2010 e nesse período o blogue teve, aproximadamente, 1646 visitas e 4025 leituras. Ou seja, normalmente, por cada visita havia três leituras. Estiveram aqui pessoas de todas as partes de Portugal continental, regiões autónomas e dos cinco continentes! Vá-se lá saber porquê?! Ou como!
Música e imagens.Cada capítulo era acompanhado por uma imagem (alguns, poucos, por duas) que fui buscar à Internet e que não tivessem nenhuma menção de registo ou direitos de autoria. A busca era feita no separador “Imagens” do Google com palavras relativas ao capítulo, por exemplo, “amor”, “solidão”, “desilusão”, “telefonema”, “ruiva” (“ruiva” deu cá uns resultados!). Quando as imagens não me satisfaziam, fazia a busca com as mesmas palavras mas em inglês para ampliar o espectro de resultados. As músicas tentavam ser alusivas a cada capítulo, ou seja, não era porque me apetecia aquela música mas porque ela poderia ter algo a ver com o conteúdo do texto. Ou me lembrava imediatamente de uma ou fazia uma busca semelhante às imagens mas no Youtube.
Futuro.
Já foi pedido ao IGAC o registo do romance e, se houver uma oportunidade, gostaria de publicar. Só não sei se o texto tem qualidade para tanto. Entretanto, descobri que para além das crónicas que eu escrevia, também gosto de escrever narrativas, contar estórias, por isso, a próxima já está arquitectada e a sua publicação periódica, aqui, começa em breve…
Um abraço de gratidão a todos os leitores e amigos pelas leituras e pelas palavras simpáticas e aqui ficam algumas fotos dos momentos de produção. Se ainda quiserem saber mais curiosidades perguntem aqui nos comentários, tentarei responder. JPV.

No quentinho do edredão com Ibsen por perto.


Ao lume, desconfortavelmente sentado naquelas rodelas
de palha que se vendem no IKEA para não me dar o sono.

Um pormenor do plano geral. Foi escrito a encarnado porque
no dia em que tive a ideia não tinha nenhum instrumento
de escrita à mão. Só uma esferográfica encarnada e folhas
impressas de um lado. Foi a encarnado no verso das ditas!

Plano de um capítulo.

O ambiente de escrita mais comum.


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Um agradecimento e uma novidade

Agradecimento.
Venho agradecer a todos os amigos e leitores que me incentivaram à escrita e me apoiaram na escrita. “Estórias ao Acaso: Noite Fria” fará o seu percurso com naturalidade e com naturalidade aceitará o seu destino.

Novidade.
Ao longo da publicação dos capítulos, enviaram-me por mail muitas perguntas sobre o processo de escrita, se era ficção ou se eu tinha vivido todas (!!!) aquelas situações, se havia um plano ou se era tudo inspiração e também me pediram muitas vezes para dar determinados rumos à estória. Ora, decidi fazer um pequeno apanhado das perguntas mais frequentes e a partir delas publicar aqui uma espécie de making of “Estórias ao Acaso: Noite Fria”. Em breve cá estará.

Saudações a todos e grato por todas as leituras.

João Paulo Videira


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Estórias ao Acaso: Noite Fria (EPÍLOGO)

Noite Fria (EPÍLOGO)

Não era possível passar despercebida, mesmo que quisesse. Fosse um ambiente restrito, fosse um espaço amplo, fosse qual fosse a sua atitude. Margarida tinha um olhar desafiador, um sorriso inquietante, quase como se estivesse sempre a perguntar algo ou a espicaçar um comentário. Era evidente para quem a observava, e para si mesma, que muitas das vezes fazia de propósito. Gostava mesmo de não passar despercebida. Mas não era aí que residia o milagre. Esse acontecia quando ela se distraía de si, quando, sem querer, tirava a máscara e ficava natural. Podia ser numa esplanada olhando quem passa enquanto bebia o sumo de laranja natural pela palhinha. Podia ser na rua olhando a montra de uma loja de roupas, podia ser mordiscando a ponta de um lápis, sentada na beira de uma secretária da faculdade que tantas vezes preferia às cadeiras ou podia ser só numa roda de amigos quando a conversa ia longa e os teatros todos já tinham sido representados e os assuntos mais interessantes surgiam e pediam outras franquezas. Era para lá da barreira da representação que Margarida ficava mais inquietantemente bela. Irresistível. E sabia que era irresistível. Só não sabia que o era mais ainda nestes momentos porque lhe passavam despercebidos. Era uma jovem mulher plena de espírito, cheia de coragem e de uma fina e requintada inteligência. Contudo, não era pelo olhar, nem pelo sorriso, nem pela inteligência, nem pelo espírito que os homens e as mulheres mais reparavam em si. Era o cabelo. Uma farta e profusamente encaracolada cabeleira fulva dava-lhe um ar rebelde e livre. E era de facto uma coisa e outra. Tinha a face serpenteada de sardas pequeninas muito juntinhas num tom suave de caramelo. O nariz bem empertigado quer porque assim tinha nascido, quer porque o seu génio provocador o empurrava para o mundo afirmando a sua presença. Não era alta embora baixa se não possa dizer que fosse e tinha um corpo magro de ver a ossatura nas costas e nas canelas. Comia com avidez e vontade assim como quem vai devorar o mundo mas nunca engordava. E adorava comer com as mãos sobretudo se estivesse numa situação formal em que não pudesse fazê-lo. Dizia que só comendo com as mãos poderíamos efectivamente saborear a comida porque a textura faz parte do sabor. Margarida estava constantemente desafiando os limites. Quais? Todos. Se uma fraqueza quiséssemos encontrar nesta harmonia feminina de fazer estontear os homens e as mulheres seria a voz. Era uma voz aguda, vibrante, não incomodativa mas que desafinava com facilidade sempre que a tentava erguer acima dos decibéis aceitáveis para uma conversação civilizada. Faz Deus estas torturas quando entende, que é dar a uma pessoa a vontade de dizer as coisas todas do mundo ao mundo, largar na face do seu semelhante as verdades nuas e cruas e cruéis, Você está com mau aspecto? Não está? e depois não lhe oferece instrumento condizente com tamanha vontade e proliferação de palavras. Acontece que Margarida era muito menina para em meio de uma conversa dizer como quem cospe E escusa de dizer-me nas costas que eu tenho uma voz esquisita porque sei bem que sou uma cana rachada. E desarmava o pensamento na mente do agressor ainda o dito se não tinha formado por completo. Havia, contudo, um traço que, destoando de toda esta energia, de todo este dinamismo, de todo este desafiar da Humanidade e da vida, lhe conferia ainda mais encanto. Por vezes, por motivos quase-nada, por coisas pequenas que se lhe faziam grandes na alma e no sentir, ficava com a voz mais serena, o olhar mais meigo, o jeito mais menino e indefeso. Um passarito que caíra do ninho, uma criança chorando, um homem indefeso, uma mulher entristecida, uma lua cheia na noite limpa e estrelada, uma canção do Sinatra quando estivesse sozinha em casa. Certa vez, ainda pequenita, sentada no banco de trás do carro que o pai conduzia quando regressavam de uma praia domingueira pediu-lhe que parasse porque queria fazer xi-xi. E correu na direcção de um cachorrito abandonado por que tinham passado. E veio carregada com ele, arfando de cansaço, nada perturbada pelo cheiro, pelas carraças, pelas pulgas e pelas feridas abertas na carne do animal. Coitadinho. Disse com os olhitos marejados. Temos de o ajudar. À parte estas tiradas comportava-se sempre exibindo a sua irreverência e fazia questão de a sustentar na autonomia com que assumia as suas posições e os seus gestos. A primeira vez que saiu de casa foi aos três anos. Deram com ela no jardim, sentada num banco de ripinhas verdes a ver as outras crianças brincar. A segunda vez que saiu de casa, “fugiu” para casa da tia Alice e só voltou três semanas depois. Tinha onze anos, os dentes intervalados por espaços largos e quase tantas borbulhas como sardas. Fez aquilo a que chamou greve de pais. A última vez que saiu de casa foi aos dezoito e nunca mais voltou. Ou melhor, volta quando lhe apetece que é quase todos os dias ou, pelo menos, as vezes todas que quer durante a semana. Seja por causa de um mimo da mãe, um beijo do pai, uma comidinha caseira, um adiantamento da mesada ou um serão a ver televisão e a contrariar as opiniões dos pais. Nunca lá dorme. Vai sempre ficar à sua própria casa. A sua casa é a sua liberdade, o seu universo. E foi uma conquista negociada a troco de ganhar juízo e tirar Direito como o pai quer e a mãe apoia. Na altura aceitou e cumprirá a sua parte do acordo. Já decidiu que fará a vontade aos pais mas nunca exercerá. Tem o fascínio do jornalismo e é por aí que vai seguir e fazer vida. Como, ainda não sabe mas também não está preocupada com isso. Está nos primeiros anos depois dos vinte e vive uma fase de experimentalismo relacional. Leu Henry Miller e Anaïs Nin, deixou-se seduzir pelo traço de Frida Kahlo e tem uma miniatura de “El abrazo amoroso del universo” em cima da secretária abandonada ao tempo e à falta de paciência para o Código e Civil e quejandos. Está fascinada com o fulgor e a crueza da fase sombria de Goya. Sabe de cor algumas das falas de Marlon Brando em “O último tango em Paris” e ouve Blues. Margarida declarou-se praticante consciente e devota daquilo a que chama o desporto mais concorrido do universo: a sedução. Não é o sexo que lhe interessa. Nem tão pouco uma relação estável. Pelo menos para já. É o desafio. Margarida estuda-os, lê-lhes os sinais nas roupas que trazem vestidas, nos carros que conduzem, na firmeza do aperto de mão, na segurança da voz, no brilho do olhar. Anda conhecendo e dizendo que é para escolher o seu homem. Mas não é, de facto. Esta jovem espirituosa e inteligente tem os homens todos a seus pés. Em poucos segundos. E o que verdadeiramente procura é um homem que esteja à sua altura. Que a não siga mas a faça segui-lo. Que lhe diga Não. Tudo o resto virá depois mas faz-lhe falta esse carácter. Gosta do jogo de olhares, do calculismo e do atrevimento das primeiras palavras, da ousadia das primeiras insinuações. Sonda-os, ronda-os, cerca-os e quando vêm a jogo reage de acordo com as atitudes deles. Massacra os que são excessivamente confiantes, os presunçosos. Trata com ironia e sarcasmo impiedoso os menos inteligentes. E abandona com indiferença os fracos. O seu espírito selectivo já só tolera um homem inteligente, delicado e, claro, corajoso. É assim como se a mãe Natureza lhe tivesse implantado um código de critérios de selecção. Quando um homem passa no seu crivo, Margarida faz a festa do espírito e do corpo.

Margarida está no terceiro ano e viemos encontrá-la numa aula de Direito Sucessório. O anfiteatro tem um ar sólido e antigo mas perfeitamente conservado. As filas ovaladas de cadeiras, com uma mesa contínua a seguir a oval das cadeiras, sucedem-se. As mais longas lá em cima. As mais curtas cá em baixo uma vez que aí se aperta o semi-círculo. Esta aula não é convencional. Há uma projecção na parede por trás do professor que não está lá uma vez que se encontra junto a um grupo de alunos. Pelo espaço, claramente desconfortável para este tipo de trabalho, dispersam-se outros grupos de trabalho em que os alunos se viram para trás, se esticam para a frente, se colocam de pé ou sentados na longa mesa semicircular. O labor é intenso e discutido e, a espaços, sobressai a voz de Margarida. Mas, vamos ao que interessa que não foi por causa do trabalho de alunos e professores que aqui viemos. Margarida tem uma saia curta e justa ao corpo, preta. Uma camisa branca de que só vemos a gola por fora de uma camisola de gola alta, larga e descaída. O cabelo tem a exuberância da juventude e do ruivo com que nasceu. Está sentada na mesa traçando uma perna por cima da outra assentado a ponta do pé na cadeira onde devia estar sentada. Está virada para trás e discute com vigor na fala, energia no olhar e provocação na postura. O professor olha-a de soslaio e remete-se ao pudor que a ética lhe exige mas não resiste a voltar a espreitá-la. Os colegas encontram sempre forma de passar junto ao espaço onde está o seu grupo de trabalho e alguns deixam-se de pudores e ficam a olhá-la como uma dádiva dos deuses ou da natureza. Acontece que não só nos fartamos de olhar como, por vezes, nos podemos fartar de ser olhados. Margarida fartou-se. Deu uma qualquer desculpa e saiu. Foi para a rua inspirar o ar frio, olhar as montras e dar passadas largas e desajeitadas mas com graça. Gosta de perder-se na multidão da cidade para se encontrar consigo despida das máscaras desnecessárias por entre o anonimato da urbe.

Numa calçada que sobe para si e desce para os que consigo se cruzam, observa ao longe um homem junto a uma montra de roupas e resolveu considerá-lo interessante. Gabardina creme, calça de bombazina azul-escura, camisa branca e gravata a condizer. Gostou do aprumo. Aquele era da classe dos metódicos e organizados. Esses oferecem vantagens. Foi, no entanto, o olhar dele que a cativou. Era um olhar que gritava receios, transparecia lealdade e nem por isso deixava de ser melancólico. Apostou consigo mesma, que é o que fazemos quando conversamos o mundo connosco, que aquela melancolia não era tristeza. Era só insegurança. Era só aquém. Aquele homem perfilado de frente para a montra andara reprimido uma vida inteira e, por isso, tinha uma outra vida inteira para libertar. Andara sempre aquém dos seus sonhos. Talvez porque nem os tivesse sonhado ainda que são esses os sonhos mais perigosos e os mais poderosos. Os sonhos que faltam sonhar. E havia doçura naquele olhar. Uma doçura suave e meiga e abandonada como certo cachorrinho que apanhou na beira da estrada num dia da sua feliz infância. Não quis mais entregar-se ao desenho do carácter do estranho que ia ficando mais próximo à medida que ela avançava na calçada. Decidiu abordá-lo. Estava convicta de que confirmaria o retrato que acabara de traçar. Este era um homem facilmente seduzível porque andava ansiando vida e vida era ela. Inteira. Este era um homem que a desiludiria ao primeiro contacto pois não era capaz de um Não fosse por cobardia ou ânsia de vida. E Margarida pensou testá-lo para abandoná-lo rápido.
– Boa tarde. Disse ela meneando a cabeça, atirando-lhe o perfume e o olhar atrevido.
– Vinha subindo a calçada e apostando comigo mesma que você seria um homem interessante. Decidi convidá-lo para tomarmos um cafezinho… Não me tome por atrevida. Ou tome. A verdade é que apenas gosto de conhecer gente interessante… vamos a isso…
– Não.

Foi esta a palavra que a fez escolhê-lo. Demorar-se na vida deste homem. Não interessa muito o que disse Margarida depois no Não rotundo que apanhou. Interessa que tinha ela armas a que ele não podia resistir. E quis. E hesitou. Mas vinha-se descobrindo um homem diferente em si e quis saber, também, até onde iria este seu novo ser. E ela rodeou-lhe as palavras, insinuou-lhe as curvas do corpo fresco, amarrou-o com o sorriso cristalino e confundiu-o com a bruma da cabeleira farta e ruiva. Estão em casa de Margarida e acabaram de fazer amor. Ela queria sexo mas percebeu que acabaram de fazer amor. E viu que acertara em quase tudo. Sobretudo na doçura que lhe saía do olhar perdido e lhe tomava conta dos gestos e das palavras. Quis perder-se na vida dele mas sabia que um homem assim tinha já, por certo, a vida perdida para outros braços e outros lábios. E assim como quem brinca com ele mas, ao mesmo tempo, lhe vai mostrando as fronteiras disse-lhe num tom a meio caminho entre o sério e o brincalhão:
– Você é formidável. Faz sempre amor com essa entrega num primeiro encontro? Tenha cuidado, não se vá apaixonando que nem o nome um do outro sabemos ainda.
– O seu nome é Margarida que é o que está escrito a letras azuis naquele azulejo pequenino em cima da cómoda. Apaixonado estou desde que a vi, a cheirei, lhe toquei os cabelos e a pele. Só falta que saiba o meu nome para que nos possamos apaixonar segundo as suas regras. Se quiser correr esse risco, viver essa vida, pergunte-mo por vontade sua que eu, se esse risco quiser correr, se essa vida quiser viver, lho direi.
– Inusitadamente inteligente. Pois bem, não é a vida uma sucessão de acasos e oportunidades? Pois cá vai. Como se chama o cavalheiro que faz amor com as palavras, com o corpo e com alma num primeiro encontro?
O homem ficou parado, de pé, olhando o chão e pensando que tudo estava sendo demasiado rápido, que demasiado se estava jogando e arriscando às cegas e levianamente e preparou-se para sair sem dizer-lhe o nome. Acontece, porém, que levantou os olhos e viu-lhe a figura recortada pela luz, os cabelos rebeldes, o sorriso maroto, o olhar intenso e desafiador. Viu a vida à sua frente.
– Eu chamo-me José António.

————- FIM ————-


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Estórias ao Acaso: Noite Fria (XXXIII)

 

Noite Fria (XXXIII)

A casa de José António continua desarrumada. Não porque ele não a arrume. Só porque já lá não vai. Anda desarrumando em conjunto e uníssono outros espaços. José António e esta mulher que ama andam acertando os corações e as almas e vivem a harmonia desarrumada da vida que acontece. E onde havia cuecas de homem pelo chão, peúgas penduradas das costas de uma cadeira, sapatos de luva abandonados debaixo de uma cama e calças de ganga atiradas à espera infinita, há agora cuecas de homem e cuecas de mulher, peúgas e collants, sapatos de luva e sapatos de salto alto, calças de ganga e saias plissadas. Mas é uma desarrumação diferente. Onde estava o definhar de um homem entregue ao deserto da solidão e de uma mulher perdida na desesperança, está um casal partilhando alegrias e alegrias e alegrias e tristezas que partilhadas ficam mais alegres umas e menos tristes as outras. E há pequeno-almoço a dois, e põe ele um avental e cozinha mimos e carinhos que traz para a mesa, e dividem-se tarefas e por vezes surpreendemo-la na mesa da cozinha com um lápis atrás da orelha, uma calculadora e os impressos do IRS a dois. Ou a um mais um que vai dar ao mesmo sendo ela que os preenche a ambos.

Ela está grávida. De resto fomos nós testemunhas do momento em que José António perdia outras virgindades e por via disso se esqueceu da protecção. E curiosamente foi esta criança muito desejada. Vem isto ao caso das humanas particularidades que vimos assinalando. Uma delas é a facilidade com que confundimos projectar com desejar. É bem verdade que ela não quis dizer-lhe, por temer assustá-lo com a ideia, por julgar prematuro, as frases que lhe andaram queimando a boca, Vem ser meu, vem amar-me com a ternura que só tu tens e deixa-me essa ternura no ventre para que a devolva eu ao mundo em forma de vida e gente, vem amar-me e ser pai comigo sendo mãe que estou pronta. E este homem que teme a solidão e ama a vida andava com a mente em caminhos próximos e pensou mas não quis dizer-lhe Sim vou ser teu e a ti me entregarei e farei contigo o único amor que conheço e de que sou capaz e serás tu mãe enquanto eu pai porque pronta te sinto. Nem tão pouco em uníssono disseram Vamos fazer um milagre e ter uma criança e, contudo, esta criança não foi menos desejada do que uma outra qualquer que antes de ser concebida já tinha ido ao médico perguntar se podia ser vida. A luz vem a ser luz e as trevas vêm a ser trevas quando a Natureza entende e como o entende sem precisar de explicar-nos nada nem de prestar-nos quaisquer contas. A Natureza acontece quando tem de acontecer e faz quando tem de fazer e em sendo preciso enfeitiça-nos de desejo e ensina-nos o calor da entrega e esquece-nos a protecção e finta-nos a racionalidade dos planos e a prudência dos gestos.

O Povo, na sua sabedoria de provérbios e aforismos atirados ao vento, formulados em conselhos, jogados à cara de incautos infractores, também se engana. E anda dizendo e espalhando aos sete sóis de Portugal que Não há luar como o de Janeiro, nem amor como o primeiro e para José António não há luar mais precioso que esta barriga enorme e redonda como uma lua cheia que ela anda carregando com as mãos nos lombos das costas como que empurrando o mundo todo que traz consigo, nem tão pouco é este o seu amor primeiro como já aqui foi amplamente explicado. E, mesmo não sendo o primeiro, não é menor que não há milagre maior que é uma pessoa querer amar e encontrar quem queira por si ser amado. A felicidade é como a infelicidade, diferentes na essência, semelhantes nos efeitos, ambas roubam a clarividência das gentes afectadas. José António está hoje regressando a casa com sorriso largo que quase lhe apaga o traço melancólico do rosto. E assobia, dá pequenos saltinhos enquanto caminha depressa para o seu ninho ditoso, e agora faz uma festa na cabeça de um pequenote que vai de mão dada com a mãe e entra em casa, beija-a nos lábios, um beijo fresco e jovial e mesmo antes dela lhe poder dizer Boa tarde meu amor, que bom que chegaste, vens feliz, amo-te muito e mesmo antes de ele lhe responder Vim depressa porque vinha para ti, porque vinha para vós porque o nosso filho não se vê ainda mas já cá está, já nos altera os ritmos, ajoelhou-se de frente para a barriga dela, levantou a blusa e beijou-lhe a lua cheia, cumprimentou o filho e falou com ele como se lhe estivesse respondendo e uma altura houve em que fez um silêncio para encostar o ouvido à barriga como quem escuta algo profundo, a vida a crescer, talvez, e olhou para cima com os olhos a brilhar das lágrimas da alegria e olhou-a nos olhos e aos olhos dela veio o mesmo brilho líquido e fez uma festa na cabeça de José António deixando ficar a mão na sua nuca como quem lhe segura a posição e grava o olhar e o momento para nunca mais esquecer-se do que é o amor e ouve as primeiras palavras que ele diz:
– Vamos casar?
– Oh, meu amor! Meu querido José António! Não estamos casados já? Não é o casamento uma união sagrada por isso chamada sacramento? E não é esta nossa vida um milagre sagrado? Meu amor, quando eu estou doente és tu quem me traz o chá quente e reconfortante e estando doente tu sou eu quem te leva a canja retemperadora, tomamos banho na mesma banheira e limpamo-nos às mesmas toalhas, e em perdendo eu a escova de dentes que depois encontro junto ao micro-ondas é a tua que uso porque comigo a partilhas, e à noite quando vamos dormir e eu digo Boa noite meu querido, é a ti que o digo e quando tu me respondes Boa noite meu amor é a mim que amor chamas, e quando o desejo nos inflama as vontades e os gestos é a ti que me dou e és tu quem entra em mim e em mim entrega o seu ser, e és tu quem maravilhosamente me ensina a fazer amor-amor e sou eu quem te ensina a fazer amor-sexo. E há neste viver uma verdade. Tens tu uma confiança inteira que é a minha e tenho eu uma inteira confiança que é a tua. E o mais certo é que este nosso casamento existe porque assim o fazemos e não há nenhum papel por ti assinado e assinado por mim que nos garanta mais ou melhor do que temos.
– Tens razão!
José António trazia consigo uma felicidade tal que não permitiria que, o que quer que fosse, com ela interferisse. Muito menos uma qualquer discussão ou divergência em torno de nada. De resto, nunca fora homem de grandes argumentações. Era, isso sim, de grandes confianças. Confiaria, portanto.

Está José António aprendendo outros limites para os seus gestos, para as suas palavras e anda libertando a alma e o corpo e dá, dá e entrega-se, total, inteiro, primeiro com pudor e agora também sem ele. E está esta mulher recebendo e dando de volta, e tem certezas e seguranças e sabe que pisa chão firme ao lado deste homem que a ama e por si é amado. Há na vida deles a linha ténue do equilíbrio, sempre tão difícil de achar, tão arredada das gentes, e há a harmonia das vontades, dos gestos e dos gostos. E há prazer nas cedências. José António já trabalha de novo num escritório e mais do que nunca é um homem dedicado e diligente. Sabe ajudá-la no que ela precisa, sabe rir com ela e com ela partilhar tristezas e apreensões. Continuou sempre a puxar-lhe a cadeira para que se sentasse e a abrir-lhe a porta para que passasse. Lembra-se das horas dos comprimidos quando ela precisa de os tomar, vagueia pelas prateleiras dos supermercados, opina sobre roupas e ajuda-a a comprar sapatos e adora fazer-lhe uma salada à noite. E conversa. Fala-lhe e ouve-a de facto como se estivesse mostrando-lhe que sabe o segredo de amar uma mulher: ouvi-la e fazer eco do que ouviu nas suas acções. E há nos dias que passam um tom de tranquilidade a pintar as manhãs e um ar de comunhão salpicando as noites. Ela sente essa entrega e dá-se a vida o quanto pode e como pode como se quisesse compensá-lo por aquele milagre de dar recebendo que é uma honra receber genuinamente de quem genuinamente dá. Os seus dias têm rotinas e sabe o que pode esperar deles. Não há na sua vida novidade nem paixão nem arrebatamento mas não os trocaria por este fluir ditoso dos sóis e das luas. Duvida. Duvida muitas vezes. É assaltada pelo se. Se lhe tivesse telefonado. Se tivesse aceitado o jantar sem que este homem que a ama também soubesse. Se fosse jantar com o outro e visse e ouvisse o que dele viria. E sempre que duvida sacode a cabeleira farta, faz um som esquisito com a boca, como quem afasta um presságio, e lembra-se de José António fazendo amor consigo. E volta às suas certezas. Certa, sempre, de que nunca se arrependerá de ter entrado na pastelaria naquela manhã, nunca se arrependerá de ter-lhe oferecido a cadeira para sentar-se e de tê-lo deixado entrar na sua vida.

Um destes dias fluía e aconteceu o que tanta vez acontece, como até já nas páginas desta estória aconteceu, que é as personagens serem interrompidas nos seus afazeres e nos seus pensamentos por telefones que tocam. Tocou o dela e ela afastou-se um bocadinho. Voltou triste. Uma tristeza funda e cava a marcar-lhe a face. Não trazia lágrimas. Só uma humidade contida no olhar.
– Morreu um amigo meu.

José António ofereceu-se para a levar ao funeral quando fosse a altura. Temeu por ela. Pelo seu estado e quis ajudar. No percurso, por entre as ruas e pelos caminhos a percorrer, não se pronunciou um som. Ela porque não quis e ele porque não quis querer. Respeitou-lhe o silêncio que era luto. Quando chegaram ela não lhe pediu que fosse e José António não se ofereceu. Intuiu que era assunto de antes de si. Agora, assim, drasticamente encerrado. E ficou a vê-la ir de preto e barriga protuberante. Fosse quem fosse aquele amigo que agora partia do mundo dos vivos que vão morrendo para o mundo dos vivos que já morreram, tinha sido importante para ela. E viu que ela ficou até depois do fim. Só saiu do cemitério já todos os outros haviam saído do horizonte esquadrinhado das ruas. Vinha acompanhada por uma mulher chorosa, vestida de preto, também. Despediram-se sem se falar. Fingiram beijos encostando a cara e viraram-se costas. Quando ela chegou ao carro, José António esticou-se do banco do condutor, onde estava, atravessou todo o carro com o braço estendido e abriu-lhe a porta por dentro. Ela entrou. Não falou. Ficou olhando o regaço onde tinha as mãos. José António não quis perguntar-lhe nada mas abriu-lhe uma oportunidade para que falasse se quisesse e sem perguntar deixou suspenso no ar um comentário pronunciado com respeito e interesse:
– Gostavas muito deste teu amigo…
– Muito! Mesmo muito. Posso mesmo dizer que foi mais do que um amigo.

E, num instante, num momento breve e fugaz, ela arrependeu-se de tudo o que não vivera, das perguntas que não fizera, dos telefonemas que evitara, das palavras que silenciara. E percebeu que nunca saberia. Nunca viveria. O assunto estava definitivamente encerrado por drástica decisão dele. E conformou-se. Resignou-se. E chorou. E encontrou naquelas lágrimas o seu luto. E fez de novo silêncio. José António percebeu que o silêncio voltara e respeitou-o de novo. Sentiu que ela estava chorando uma perda e deixou-a chorar. Seriam aquelas lágrimas a pedra tumular que faltava àquele assunto. E por aqui se percebe a importância dos silêncios, tão necessários a uma vida partilhada como as palavras ditas. As palavras rasgam os espaços, mostram, evidenciam, gritam. O silêncio apodera-se dos espaços, comunica pela ausência do que se não diz por não ser necessário. Quando chegaram a casa, olharam em volta para a desarrumação sem tristeza e viram que, afinal, já tinham um lar.

A vida é uma imensa trama de estórias ao acaso que vivemos julgando controlar. O que fazemos, quando fazemos, como fazemos, com quem fazemos. Planeamos, executamos, ansiamos, desejamos, trazemos, levamos, decidimos e no desenrolar das narrativas que vivemos e vemos viver experimentamos a ilusão de controlo. Mas, como as personagens de uma estória ao acaso, basta que o Autor altere uma vírgula, acrescente um ponto, inclua um episódio, adicione um evento, provoque um encontro ou um desencontro, mate uma personagem ou faça nascer outra e toda a trama se altera e todas as relações e interacções ganham novas perspectivas e dimensões. E quando uma personagem numa estória ao acaso, como na vida, se cruza com outra não é com ela que se está cruzando mas com todo o universo de experiências, vivências, relações e circunstâncias que a outra transporta consigo. E as consequências tornam-se incomensuráveis e inimagináveis pois infinitas são as tramas possíveis que nos esperam a cada esquina da existência. E é a vida como uma noite fria que vivemos encolhendo os ombros, soprando o bafo nas mãos e estendendo o olhar à nossa volta à procura de uma alma que com a nossa se cruze e com ela se aqueça. E se essa alma trouxer uma vontade e um corpo que ao nosso se junte, um milagre completo se estará fazendo na noite fria que é a vida.

Não se apresse a tirar conclusões, leitor atento. Não feche já a janela das possibilidades porque esta estória ainda não acabou. Falta conhecer Margarida!


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Sobre o texto perdido

O penúltimo capítulo de “Estórias ao Acaso: Noite Fria” perdeu-se mesmo. Só já resta a esperança ténue, muito ténue, de que a equipa do blogger mo recupere. Penso que não será possível.

Isto é muito difícil para mim. Gostei tanto do texto que tudo o que faça me vai parecer aquém da qualidade dele. Eu sou sempre bastante céptico em relação à minha escrita mas deste eu gostei bastante. Tinha uma combinação entre o conteúdo e a fluidez da escrita que achei muito feliz.

Vou reescrevê-lo enquanto tenho algumas coisas na memória mas não o publicarei até ter uma resposta da equipa do blogger. Há pouco perguntaram-me se eu não tinha apontamentos. Claro que sim. Tenho um plano e tópicos por capítulo mas isso é só o esqueleto. O “enchimento” faz toda a diferença e a criação bem como a criatividade não se repetem. Perdeu-se para sempre um bom momento de escrita e vai por aqui bastante tristeza e raiva. Os fortes reagem. reagirei mas sempre com a sensação de amputação.

Um abraço a todos e um obrigado pelas ajudas e pelo apoio.

João Paulo Videira


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Problema e Tristeza

Caros amigos e leitores,
hoje, durante quatro horas (17h – 21h), escrevi o penúltimo capítulo de “Estórias ao Acaso: Noite Fria”. Escrevi directamente no blogger e fui sempre guardando. Quando terminei, inadvertidamente e porque estava a escrever num portátil sem rato de cabo, só com aquele tapete, apaguei o texto e devo imediatamente ter, de alguma forma, guardado porque nunca mais tive acesso a ele quando edito a mensagem. Alguém me sabe dizer se é possível voltar a momentos intermédios da produção, ou seja, a um dos momentos em que fiz guardar antes da última vez?

Era o mais bonito e interessante capítulo e também era o mais extenso. Estou desolado. O texto estava quase perfeito. Para mim, pelo menos. Tinha uma série de pormenores de escrita que tinha guardado para vós no final da narrativa… Isto é desesperante. Se alguém souber como me ajudar agradeço imenso.

João Paulo Videira


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Estórias ao Acaso: Noite Fria (XXXII)

 

Noite Fria (XXXII)

Não raro temos visto, entre os humanos, causas diferentes terem resultado em consequências semelhantes. Um homem pode sentir tristeza e chorar e pode sentir alegria e chorar. Uma mulher pode estar solteira e sofrer de solidão e pode estar casada e sofrer de solidão. Um homem pode odiar e matar e pode amar e matar. Uma mulher pode estar insatisfeita com o seu casamento e envolver-se com outro homem e pode estar satisfeita com o seu casamento e envolver-se com outro homem. Vem esta ilustração justificar a desarrumação que se mantém em casa de José António. O mesmo caos. Bem, quase o mesmo. Andava ele perdido e solitário e desamparado e a morrer a vida e tinha a casa na mais caótica confusão como aqui foi bastamente mostrado. E agora que ama e é amado, que tem uma companheira e uma amiga, uma guia e uma orientação, mantém-se o caos e o abandono. Sendo este último termo o mais apropriado pois é o que à letra e mais ajustadamente se passa. A verdade é que as duas almas perdidas e abandonadas, desejosas de se encontrarem noutro, nem que fosse para apontar-lhe os defeitos, que é muitas vezes esse o segredo das relações que duram e perduram, o dizer-se o que se pensa, o comunicar-se, nem que seja o menos bom, decidiram abandonar as suas casas de habitação e ter um espaço comum. Não lhe chamam ainda lar porque seria precipitado, mas vivem a secreta esperança de que possa transformar-se nisso os sofás, a televisão, as cadeiras, as camas, os candeeiros, as mesas-de-cabeceira e todos os pequenos objectos que acompanham o recente casal.

Estão deitados, os corpos nus cobertos pela roupa de cama, olhando o tecto como se fosse o céu. Trocam carícias faladas e banalidades como se fossem as coisas mais importantes do mundo. E talvez sejam. E em meio deste deleite que é o prazer de ver passar o tempo depois da entrega dos corpos suados e das almas uníssonas, sentem a presença, o calor de outro corpo que chegou ali voluntariamente e generoso se entregou e humilde recebeu. Estiveram fazendo amor e agora conversam e cabe-lhe a ela a palavra que é uma observação mas bem podia ser uma pergunta.

– Fazes sempre amor, nunca sexo…
– Não sei fazer sexo. Quer dizer, nem sei bem se sei ou não. Sei que só conheço esta entrega e esta dádiva…
– Nunca te apeteceu pensar só em ti?
– Acho que não sei…
– Não sabes se te apeteceu?
– Não sei fazer sexo.
– Isso resolve-se!
Ditas as palavras, ela saltou para o ventre dele, baixou-se sobre ele, esticou o dedo indicador e fê-lo deslizar pela testa dele, sobre o nariz e, por fim, muito devagar sobre os lábios. Baixou-se um pouco mais e sussurrou-lhe ao ouvido:
– Não faças nada. Não quero que faças nada. Agora, vais só receber.
E revelou um repertório de carícias que o surpreendeu. Salpicou-lhe a face e o pescoço com beijos pequeninos. Incendiou-lhe o peito com a ponta húmida da língua e percorreu-lhe todo o tronco traçando uma linha contínua de prazer entre o peito e o ventre. Segurou-lhe o sexo erecto e acariciou-o com os lábios quentes e humedecidos de prazer. José António colou as costas à cama, abriu os braços e cerrou nas mãos o lençol arrepanhado. Ela faz, agora, o percurso inverso e vem beijá-lo nos lábios, encaixa-se nele, e balança-se nele, sentada no prazer que dá e recebe. Nestes momentos, nestes rituais, nestes gestos que toldam a vista e o discernimento, há coisas que se fazem e depois se não sabe como fizeram. Ela está de gatas e José António vê-se numa situação única, penetrando uma mulher por trás, voluntariamente dando o que voluntariamente é recebido. E trocam-se palavras impronunciáveis a não ser nestas horas e nestas acções. E olha-lhe as nádegas alvas e sente uma ordem e cumpre-a e as nádegas já não estão alvas que encarnadas ficaram dos castigos que ela lhe pedia e ele lhe dava, primeiro a medo, depois, deixando-se levar pela libertação da mente e do corpo. E quando acabaram, José António descobrira-se um homem diferente, nem sonhava que era possível trocar aqueles gestos, quanto mais fazê-los. Tinha no peito um sentimento ambíguo de transgressão e prazer e a mente rebentava-lhe de perguntas e coisas para dizer e o que disse fê-lo sorrir mais tarde, pareceu-lhe ridículo, engraçado, mas na altura foi o que lhe saiu:
– Sabes, acho que fui virgem até hoje!
Ela riu e fez-lhe cócegas e abraçaram-se rebolando na cama e rindo. Depois quis testá-lo e disse com um timbre de voz esperto e malandro a que adicionou um ar falsamente preocupado:
– Amor, lembrei-me de uma coisa…
– Sim…
– Não usámos protecção!
José António gelou. No entusiasmo do momento esquecera-se, de facto, desse detalhe. E perguntou:
– Achas que?…
– Naaa… ‘tava a brincar contigo. Era preciso muita pontaria!
E riram os dois e beijaram-se e entregaram-se de novo. Desta vez fizeram amor com protecção. O amor foi bom. A protecção tardia.


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Estórias ao Acaso: Noite Fria (XXXI)

 

Noite Fria (XXXI)

E fizeram-se as apresentações que foram rápidas por poucas serem. E uma nota houve de registo neste encontro, sólida pedra que marcará os tempos que se seguirão. Sem uma qualquer pré-determinação, sem aviso, sem combinação porque nem se conheciam até hoje e não é numa conversa de pastelaria que ficam a conhecer-se as pessoas, outros acontecimentos têm de suceder-se, foram verdadeiros um com o outro. Disseram o que pensavam, o que sentiam, expressaram opiniões sem barreiras nem receios dos juízos mútuos. Se a esta conversa quiséssemos acrescentar um adjectivo, diríamos que foi franca.

Uma outra particularidade, dessas que vimos assinalando aos humanos, nos ajudará a perceber o que desta mulher vamos saber de seguida. Não são as pessoas o que são nem o que se mostram, mas antes a ideia, imagem chamada, que delas construímos. E construímos tal imagem recolhendo pormenores de aspecto e comportamento. E quando chegamos a dizer, do alto das nossas certezas, Fulano é fulano e é assim e é assado, e é simpático e é honesto e é desonesto e é boa pessoa, não estamos falando do que ele é mas da imagem que dele construímos. Problema nenhum daqui emergia não fosse a imagem, por força da humana condição, ser parcelar, incompleta e, por isso mesmo, tantas vezes errada. E, contudo, estamos sempre construindo as imagens e reformulando-as e acrescentando camadas de cor a um quadro nunca terminado. E, por entre as palavras da conversa franca e aberta, ajudadas pela presença do interlocutor, com suas feições, seu tom de voz, sua posição na cadeira, suas roupas, seus sapatos, está ela criando o seu José António. Vê-lhe o olhar conformado e imagina-o um homem acomodado. Vê-lhe o pescoço tombado para frente, curvando as costas, e imagina-o submisso e derrotado. Vê-lhe a camisa mal passada e a gola encavalitada no casaco de sebo e imagina-o desleixado, ou, pelo menos, pouco aprumado. Vê-lhe os sapatos gastos e por engraxar e imagina-o pouco cuidadoso. Ouve-lhe o timbre pesado da voz e imagina-o pouco dinâmico e assertivo. E, contudo, ao contrário do que poderia induzir a imagem que vai construindo dele, gosta da sua companhia, sente-se confortável nesta jovem conversa e, não obstante a juventude, já tão rica e recheada. E imagina agora, não o que ele é, mas o que poderia ser. Se este homem que diz chamar-se José António, não fosse acomodado, submisso e derrotado, se não fosse desleixado e pouco cuidadoso, bem que poderia ser só uma gentil e doce figura, cortês e dedicado, simpático e atencioso. E sorriu por dentro. Para quê colocar a questão? A vida estava a ensinar-lhe que dos homens não devemos esperar nada, tinha acabado de passar um tempo de solidão e sofrimento precisamente por causa de um homem que não era o que parecia. Mas, mesmo com esta ressalva de desconfiança, continuou a conversa. Sem saber de onde vinha, sentiu-se invadir pela esperança.
Era de facto ineteressante, o cavaleiro da fraca figura.

A ideia que dele foi construindo não podia estar mais certa. Nem mais errada!
Certa, sim, pois andava José António lutando contra pilhas de loiça por lavar à espera de vontades empreendedoras que não chegavam. Andava arrastando os passos, tentando acertar-se com a reaalidade de estar só, sem família, nem guia. Andava combatendo a desarrumação de uma casa abandonada ao passar do tempo e da indiferença por não ser um lar. Vivia acomodado o seu respirar, o seu dormir e o seu acordar que a essas coisas se não pode chamar vida enquanto não têm a chama da vontade e do entusiasmo. Desprendia-se de si e despedia-se da vida a cada minuto que passava. E, este mesmo homem, fora já outro e outro poderia vir a ser ainda. Por isso anda a imagem dela errada ao mesmo tempo que certa. Errada porque a José António só lhe falta um sopro, um carinho, um amparo, uma criatura que o guie pelos passos da vida partilhada que é a única que sabe viver. E saberá ser o homem que lhe abre a porta, que lhe puxa a cadeira, que a conforta, que conversa com ela, que se interessa pelos problemas dela como se fossem seus, que lhe prepara um jantar, que lhe acende as velas, que lhe apaga a luz e que com ela faz amor, beijando-a suave antes de adormecer. Saberá… sendo para isso preciso o muito e o pouco que é ela perceber que José António não é quem ela vê mas quem ela imagina que ele pode ser, o muito e o pouco de sentir a esperança no peito e confiar nela, o muito e o pouco de soprar-lhe vida ao ouvido, de encher-lhe o peito e a alma de companhia. A esperança já ela tem, como já este autor aqui disse. Precisa só decidir-se. Estava medindo-o e medindo-se e medindo a vida que tinha e a que poderia ter e estava ouvindo este homem, conversando com ele, e estendendo-lhe a mão e estava a vida realizando-se e crescendo e estava entrando alguém na vida dela que parecia ter as portas fechadas mas abertas estavam gritando por gente. E os dias sucederam-se e com eles as conversas e anda esta mulher pasma que vai morrendo a cada novo pequeno-almoço, almoço, jantar, chá, cinema, conversa, gesto, olhar, a imagem que construíra e à medida que ela morre, nasce e cresce a imagem que imaginara, que esperara mas cuja possibilidade negara a si mesma. Agora andam de mãos dadas pelas ruas e falam de música, de livros, de teatro, das suas profissões e um dia houve em que falaram das suas vidas e dos seus passados, e das feridas, das solidões. Quem são e como vieram a sê-lo. Sempre com verdade. Sempre com simplicidade que a vida é como é e não precisa ser enfeitada de complexidades e avessos que roubam a beleza dos direitos.

E um dia houve em que não tendo falando muito o pouco que disseram bastou para se reconhecerem cúmplices. Estavam na mesma pastelaria de sempre, na mesinha mais distante da porta junto ao vidro imenso e o telefone dela tocou. Reconheceu o número. Decidiu atender ali mesmo, à frente de José António, e fizeram-lhe um convite para jantar já nesta estória narrado como narrada foi a resposta que ela deu, a forma como o recusou. E, no fim, antes que José António pudesse articular qualquer palavra, ela atalhou:
– Era um amigo da minha vida antes de ti.
José António não respondeu com palavras. Acenou afirmativamente com a cabeça, tinha um tom sério no olhar e os lábios ligeiramente contraídos. Percebeu que as palavras dela eram mais do que uma informação. Eram uma pedra tumular. E isso bastou-lhe como lhe bastou a ela tê-lo dito. Saíram de mão dada e foram para casa fazer amor pela primeira vez. Como quem sela um pacto. No caminho, enquanto olhavam em frente, e diziam banalidades dispersas e carinhosas, ela deixou escapar uma lágrima e ele fingiu que não viu e respeitou o luto dela.


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Estórias ao Acaso: Noite Fria (XXX)

Noite Fria (XXX)

Tem a humana natureza particularidades que vamos assinalando por interesse e curiosidade ao longo desta estória. Uma delas, que agora nos ocorre, tem a ver com atribuirmos tempo errados a acontecimentos e fenómenos, assumindo uma soma e não descontando os intervalos. Como vai o discurso complexo, sente o autor necessidade de exemplificar. Por exemplo, pode uma pessoa dizer Demorei três meses a ler este livro, quando, na verdade, terá demorado umas noventa e seis horas que não são mais do que quatro dias. Acontece isto porque aquele livro andou fazendo parte das suas vivências ao longo dos três meses mas muitas horas foram passadas no banco de trás do carro, debaixo do braço, em cima da mesa-de-cabeceira, adormecido no sofá da sala, dentro de uma pasta. O importante foi a centralidade que teve na nossa vida e não o tempo efectivo que estivemos folheando e saboreando o folhear, amando as personagens, repreendendo-as, rindo com elas e com elas chorando e despedindo-nos no fim, umas vezes com saudade, outras, com alívio, outras ainda, com indiferença. Vem isto a propósito do último dia em que os amantes das palavras, com as palavras, pelas palavras estiveram juntos no jardim. Ela, porque o não podia ter inteiro, retalhado e dividido o não quis que não se retalha o amor. E disse o que tinha a dizer que era o que lhe ia na razão porque no coração outras razões moravam. E deixou-o entregue às suas opções sentado num banco de jardim enquanto se afastava chorando. Foram essas lágrimas que, como o livro do exemplo, lhe andaram bailando nos olhos e escorrendo pela face noites seguidas, dias inteiros, meses a fio. Descontando os referidos intervalos. Os das lágrimas que o sofrer, esse, não conseguiu ela intervalá-lo. Esta mulher não viveu. Arrastou-se. Sofreu dessa doença maligna a que andam dando nomes complicados e receitando drogas e terapias diversas e a que podiam só chamar de solidão e tratar com partilha e comunhão. E sentiu vezes múltiplas em ocasiões diversas o impulso natural de falar com ele, telefonar-lhe, mas sentiu sempre que isso já fizera uma vez e recordou-se da humilhação por que passara e relembrou-se a si mesma que era agora a vez dele fazer algo se algo quisesse fazer. E conteve-se. E por estas alturas andava ele lutando pela condição de poder tê-la com dignidade reconhecida em papéis. E por isso mesmo, por se querer apresentar livre e pronto para a amar, não lhe foi dizendo nada também. E assim se mata um amor. Não amando. Sim, que amar não é gostar e calar. Um amor silenciado é um amor que não viu a luz do dia nem dos olhos de quem se ama. Como diz a canção: Silence like a cancer grows. E cresceu. E foi emudecendo um amor que havia gritado bem alto a sua vontade de existir. E os olhos dela que andavam fechados para o mundo, porque o mundo se não arreda de onde está, foram-se reabrindo lentamente para ele. Primeiro, não querendo ver, depois, espreitando e finalmente olhando de novo a vida a ser vivida.

Acontece, pois, outra particularidade que andamos observando no comportamento dos humanos que é conseguirem adiar as coisas importantes e os importantes gestos e viverem presos dos pequenos, incapazes de os adiar. Adia-se a solidariedade. Não se adia uma reunião importantíssima de condóminos. Adia-se a educação. Não se adia a inadiável visita ao centro comercial. Adia-se o pensar. Não se adia o comer. Adia-se o ser. Não se adia o existir. E foi por via de um inadiável pequeno-almoço que ela entrou na pastelaria. Daquelas tradicionais, com o balcão envidraçado de forma arredondada, máquina de café com dourados, mesas diversas, empregadas com uma bata às risquinhas verticais brancas e cor-de-rosa e um enorme vidro com três mesinhas de dois lugares a permitir uma bica e um pastel de nata acompanhados da luz e da vista para o passar urbano das gentes. Nenhuma das três mesas estava ocupada, tão jovem era o dia e fresca a manhã. Ela sentou-se na mesinha mais distante da porta e nem sequer foi para evitar o frio do abre-e-fecha. Foi só para distanciar-se um pouco mais de qualquer encontro com um conhecido que estivesse obrigada a cumprimentar. E aconteceu o que tantas vezes acontece mas nem sempre com as repercussões que aqui relataremos. Entraram mais pessoas, já ela estava no fim da meia torrada e com o galão ao fim a chegar. E foram ocupando as mesas e as cadeiras que, em falindo os outros negócios todos, este do comer e do beber, por pouco que renda, sempre há-de resistir dada a sua natureza. E entrou também um homem com calças de bombazine, uma camisa de flanela mal passada e um casaco castanho de sebo, assim chamado. Transportava um ar dócil e o corpo curvado para a frente como quem carrega os problemas todos do mundo às costas. E mesmo que não sejam todos os do mundo, pode ser que sejam só os seus mas estarem esses a pesar-lhe demasiado. E pediu ele ao balcão a bica e o pastel de nata a que nos referimos há pouco. Pagou. Pegou na bica pelo pires com uma mão e com a outra trazia o pastel de nata num pratinho igual. Procurou com o olhar uma das três mesinhas junto ao imenso vidro transparente e curioso. Pareceu mesmo olhar um pouco mais para a mesinha mais distante da porta. Estavam todas ocupadas. Levantou o queixo observando toda a sala mas os lugares estavam tomados. Fez o que é natural fazer-se nestas circunstâncias. Voltou-se para o balcão a quem planeava devolver os pires e comer de pé. Ia a meio da rotação de regresso quando ouviu uma voz feminina de tom suave e doce:
– Sente-se aqui.
Ele não imaginou que fosse para si que falavam mas olhou, como olhamos sempre que se fala num tom acima do burburinho do espaço em que estamos, na direcção da voz e reparou com agrado que era consigo que a mulher bonita e triste falava.
– Sim, sente-se aqui. Eu só ocupo uma cadeira.
– Calculei que esperasse alguém.
– Não espero. Há muito que deixei de esperar. Só não sabia. Na minha vida há muito tempo que não entra ninguém nem creio que volte a entrar.
Enganou-se ela porque tinha acabado de acontecer o contrário das palavras que proferira e ainda pairavam no ar denso da pastelaria.
– Peço desculpa. Eu não quero incomodá-la.
– Quem lhe pede desculpa sou eu. Primeiro ofereço-lhe um lugar na minha mesa e depois destilo as minhas desavenças com a vida. Sente-se. Esta mesa é a melhor.
– Pois é, costumo sentar-me aqui. Gosto dos cantinhos. São mais acolhedores.
– Exactamente. Recomecemos. Bom dia! Quer fazer-me companhia? Tenho um lugar vago nesta mesa.
– É muito gentil da sua parte, a oferta. Vou aceitá-la. Muito bom dia! O meu nome é José António.