Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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De Negro Vestida Chegou a Maputo


Caros amigos e leitores,

De forma antecipada em relação ao esperado, “De Negro Vestida” chegou hoje a Maputo.

Foi um momento de realização, mas foi, sobretudo, um momento de comoção.

Agradeço publicamente a generosidade da Escola Portuguesa de Moçambique pelo seu transporte, na pessoa da sua Diretora, e estendo o agradecimento a todos os que trataram do processo burocrático!

A obra chegou, finalmente, às mãos do seu autor.

Agradeço, também, à Chiado Editora pela remissão dos volumes.

Agora, avançamos para o lançamento no próximo dia 28 de dezembro de 2013, na livraria Book it, em Torres Novas, pelas 16:30h, no edifício do Centro Comercial Modelo.

Depois, ainda tentaremos uma sessão em Lisboa no início de janeiro e para o final do mês, a sessão de lançamento nesta deliciosa África, neste acolhedor Moçambique!

Árvore: check! (muiiitas!)
Filho: check! (liiiindo e muito amado!)
Livro: check! (De ficção e em papel é o primeiro!)

Pai Natal, apesar da lista estar completa, se possível, não queria morrer já. É que estou a redigir outro romance e já tenho mais dois na gaveta! Ah pois…
jpv


Clique para aumentar. Se quiser, claro. Não é uma ordem! Hehehe…


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Mulheres de Quelimane, Homens de Maputo.

Histórias a Preto e Branco

Mulheres de Quelimane, Homens de Maputo.

A história conta-se em poucas palavras. Homens que nunca daqui saíram, mulheres que vieram de longe. Quelimane. Quem vem de Quelimane diz que é onde brotam os melhores ananases, onde ficam as praias mais tentadoras, onde nascem as mulheres mais dotadas e onde se cozinha a melhor mucapata de caranguejo que as gentes de Moçambique alguma vez provaram.

Chamaram-lhe Virgínia a conselho de um padre português que vivia em Inhambane desde antes de ter barba até a ter grisalha da velhice e amarelada dos cigarros vespertinos sugados debaixo de uma acácia sem idade. Dissera o pároco que o nome significava pureza, virgindade e que aquela menina deveria ser guardada para o Senhor, entregue às Carmelitas da Missão e criada com Avé Marias e Padre Nossos numa vida dedicada ao espírito e à Divindade. Bem intencionado foi o pároco, mas desconhecedor das forças e premências da Natureza, ou, sendo conhecedor, subestimador delas.

Virgínia foi-o enquanto pôde. Aos catorze anos partiu para Maputo com o pai da criança que levava na barriga. Depois dessa, teve outra e depois dessa está tendo outra aqui nesta cama onde se encontra deitada, abrindo as pernas ao mundo e esperando que a sogra lhe tire o filho do ventre. Estranhou, pois, as palavras da velha que, quando lhe tirou o filho e lho deu para o colo, disse:
-Toma, este é o primeiro.
-Primeiro?

E por ser o primeiro a ver a luz do sol nesse dia, Primeiro lhe chamou e ao que veio a seguir, com a lógica inquebrantável de quem vive a Natureza como sua casa de ser, Segundo lhe chamou. Primeiro cresceu um rapaz forte e bonito e fisicamente dotado. Tudo o que tivesse a ver com ferramentas, ar livre e futebol e fazer com as mãos era com ele. Ímpeto forte e palavra larga. Segundo cresceu um rapaz sereno, muito replexivo, fechado nos seus próprios pensamentos, muito dado às contas, às letras, aos livros. Tudo o que tivesse a ver com pensar, com palavras, esquemas e táticas e fazer com o cérebro era com ele. Força serena e gesto comedido.

Cresceram juntos, comeram o mesmo pão, a mesma manga, a mesma banana, o mesmo arroz. Eram iguais. Um rosto simpático, os dentes largos em cima e fininhos em baixo, as mãos longas e as pernas esguias. Adoeceram nas mesmas semanas, tiveram as mesmas faltas de apetite e os mesmos desejos vorazes de ananás polvilhado com açúcar. Foram cúmplices na escola, na rua e em casa e diziam os amigos e os familiares que só Virgínia, a mãe, os conseguia, de facto, diferenciar.
-Como faz dona Virgínia?
-Ora, olho para eles.
-Mas são iguais!
-Não são nada! Bem diferentes, até.
E depois testavam o saber da mãe:
-Qual é aquele ali?
-Aquele é Segundo.
E chamavam:
-Segundo!
E o rapaz virava-se.
-Xiii, dona Virgínia, como faz para saber?
-Já disse, olho.
-E o que vê diferente?
-Ora, Primeiro tem fogo e luz e movimento no corpo. Um sol que lhe sai dos olhos e ilumina o mundo. Segundo tem nuvens no olhar e um lago azul no corpo que ele empurra a custo.
-Xiii, dona Virgínia, isso não são coisas de ver.
-São sim, são coisas de uma mãe ver.

A areia branca da praia sob os pés, entra dois passos na água calma do Cuacua e fica com o rio pelo artelho, olha-o intenso, a luz da madrugada vem despontando por cima do azul transparente e límpido do Índico, a barriga redonda e grande, prestes a rebentar, sente falta do som da vela do dow ao vento, a água chapinhando o casco do barco, e diz para ele:
-Josué, leva-me no mar!
E ele levou, desceram com suavidade aqueles vinte quilómetros até ao grande oceano e assim que lá chegaram as ondas das águas que trazia no ventre sincronizaram-se com as do mar salgado, e foi sem destino e veio naquele bailado até à praia e quando chegou, sentou-se na areia e pariu. O sal da água ficou na pele da menina a que ela chamou de Estrela como a que estava semi-enterrada na areia onde o mar se vem deitar.

Ainda duas semanas não tinham passado, dormia ela com a criança em cima do peito, levava-a para todo o lado enrolada numa capulana que lhe passava por cima de um ombro, por baixo do outro e atava à frente, sob os seios enormes de leite de que ela, religiosamente, duas vezes por dia, tirava umas gotas e colocava no sexo da bebé, sem saber porque fazia aquilo, eram gestos que vinham de um tempo lá longe, antes de tudo o que ela conhecia, e Josué começou a querer partilhar o peito da mulher com Estrela, chegava-se a ela com o sexo empertigado e pedia, Dá para mim. Ela conseguiu escorraçá-lo durante uns dias, mas acabou cedendo nas intenções e, aproximadamente um ano depois de Estrela, nasceu Flora.
-Eh, mulher, só me dá meninas.
-Eh, homem, só me faz meninas.
Em Quelimane viviam poucos portugueses. A cidade era muito longe dos interesses. Eram meia dúzia de famílias e um viúvo que perdera a sua na guerra, mulher, filhos, irmãos, cunhados, sobrinhos, e resolveu cobrar à terra que levara os seus, a sua própria morte. Um homem austero e rigoroso, alto e fendido de rugas longas pelo rosto abaixo, que viu as meninas crescerem por ali com cestos de mangas à cabeça, caranguejos atados por cordéis, ananases pendurados em paus atravessados nos ombros e tudo o mais que duas crianças com pouco mais de dez anos pudessem tentar vender. O português nunca tinha tratado nenhum moçambicano pelo nome próprio. Usava tu para tudo. Resolveu mudar.
-Josué, essas meninas não vão à escola?
-Não tem como, senhor.
-Hão de ir. Manda lá para minha casa.
-Mas eu preciso…
-Eu pago.
E pagou. Pagou o tempo delas. Assim, Josué podia pagar a quem o ajudasse quando elas não estavam que era quase sempre pois que, embora haja notícias contrárias, a verdade é que a escola é coisa que requer muito tempo, muito trabalho e algum sofrimento. E pagou também as despesas com elas. E viu o seu investimento dar frutos. Mas não todos. Pouco antes de fazerem o exame da décima segunda classe, o português sentiu uma dor no peito, vazou mais um uísque para acalmar, recostou-se na cadeira e partiu deste mundo. Foi ter com a família que já lá estava.

Josué viu que as meninas tiveram boas notas. Agradeceu, no seu íntimo, ao português, e decidiu pô-las a trabalhar. Não foi bem sucedido na intenção. Por esses dias, apareceu em Quelimane um homem de fato escuro, pasta de cabedal castanho e papéis a saltar dela e a ditar a vida das pessoas. O português tinha morrido, mas continuava vivo. E esse homem foi batendo de porta em porta, em havendo porta para bater, ou chamando pelo nome das pessoas:
-Senhor Josué! Senhor Josué Nhangave!
-Josué Nhangave sou eu, o Senhor não mora aqui, está no céu.
-O senhor é pai das meninas Estrela e Flora Nhangave?
-Dessas e mais uns quantos que por aí andam.
-Temos de conversar.
-Ah sim? E porquê?
-O senhor Madeira…
-E quem é esse?
-O falecido.
-Ah, o português!
-O senhor Madeira.
-E quem é esse?
-O falecido.
-Ah, o português!
-O senhor Madeira.
-Madeira, agora que está num caixote, mas foi de carne e osso…
-Chamava-se Madeira.
-Por aqui toda a gente o chamava de português.
-Por ser de Portugal…
-Não. Por ser o nosso português de Portugal. O senhor também há de ser de Portugal e ainda não lhe chamei de português.
-Enfim, o senhor… o português deixou em testamento expressa a vontade de que meninas Estrela e Flora estudassem.
-E quem paga a vontade dele?
-O próprio.
-Mesmo depois de morto?
-Mesmo!
-Como assim?
-Pois, o dinheiro para a educação das meninas não lhe é entregue…
-Mas podia!
-Pois, mas o senhor Madeira, o português, deixou instruções precisas. Todos os meses se transfere uma importância para a conta das meninas…
-Conta? Senhor, a única conta que há cá em casa é a da mercearia e isso é porque a Faustina vende fiado.
-Senhor Josué, o importante é que o senhor saiba que o português me deixou a responsabilidade de gerir essa verba. Eu abrirei as contas para as meninas num banco, elas irão estudar e todos os meses eu faço as transferências. A única regra é que não podem reprovar, caso contrário, interrompem-se as transferências.
-Português sabido. E como é que o senhor sabe isso tudo? Acaso o português fala consigo do além?
-Não. Mas deixou tudo escrito. Há vários anos, de resto. Assim que as meninas passaram no exame da quarta classe.
-E não disse nada?
-Não sei. Pelos vistos, não.
-Porquê?
-Lá teria as suas razões…
-Português sabido! E elas vão estudar o quê?
-Elas devem saber a sua vocação.
-É?
-É!

E lá foram as duas para Maputo estudar contabilidade na Eduardo Mondlane e ainda o curso não estava acabado, já tinham propostas de trabalho que não puderam aceitar para não quebrar a regra do português defunto. Quando terminaram, a colocação foi rápida. Escolheram ambas o BCI. Podiam ter escolhido outra instituição, mas a farda do BCI, saia cinzenta, camisa laranja e uma chapinha com o nome do funcionário, fez a diferença. Estrela e Flora vivem bem. Ajudam os pais naquilo que podem e de quando em vez vão a Quelimane visitá-los, passear no rio Cuacua, tomar um banho de azul no mar, comer ananases irrepetíveis e a melhor mucapata do Universo. Da próxima vez que lá forem, levarão seus recentes namorados. Estrela namora com Primeiro e Flora com Segundo.

Tudo começou numa tarde de tédio. Primeiro via televisão. Segundo lia. O programa não era bom. O livro era técnico.
-Segundo…
-Sim, mano…
-Vamos sair.
-Onde?
-Vamos na Costa do Sol. Apanhamos um pouco de mar.
-Primeiro…
-Sim, mano…
-Sabe o que nos faz falta?
-O quê?
-Namoradas.
-Você não quer! Estou sempre a encontrar namoradas para nós e você não gosta de nenhuma.
-Primeiro, você não encontra namoradas, você providencia encontros fáceis com moças fáceis que têm dificuldade em pronunciar um dissílabo.
-Um quê?
-Vê? Vê? Nem você sabe o que é um dissílabo! A professora explicou.
-Quando?
-Na segunda classe!
-Xiii, mano, faz tempo, muitos anos, como é que eu ia lembrar?
-Eu lembro.
-Pois, mas você veio ao mundo para não esquecer nada.
-E você, Primeiro, veio ao mundo para quê?
-Para nos encontrar namoradas!
-E porque não encontra?
-Falta um plano.
-Não seja por isso.
Segundo puxou um caderno e traçou um plano original, tão original como o pecado na Terra. Iam andar com roupas de correr pela marginal acima e abaixo, para lá e para cá, e quando se cruzassem com duas amigas interessantes, seguiam-nas e metiam conversa invocando que tinham em comum o hábito de correr.
-Segundo…
-Sim, Primeiro…
-Você não tem o hábito de correr!
-E depois? Mero pormenor. Um detalhe… por uma namorada eu corro!
-Ela há de chegar láááááá na Aldeia dos Pescadores ainda você está no Naval.
-Primeiro, não brinque. Eu corro.
-Pronto, tudo bem. E quando vamos?
-Já?
-Já!

Primeiro não se enganou muito. Segundo era uma lástima na corrida. Ele ia e vinha, corria duzentos metros para lá e voltava para cá a buscar o irmão. Como quase sempre acontecera em toda a sua vida, vestiam de igual, ou quase igual, mas, não obstante a incrível semelhança física entre ambos, quem os olhasse de longe, havia de reparar na vitalidade com que um corria e na lentidão com que o outro se arrastava. Primeiro decidiu transformar os seus avanços em investidas exploratórias. Ele iria para a frente, procurava um par de moças interessantes e interessadas, voltaria correndo, preveniria Segundo para o encontro e exigia dele que produzisse, entretanto, aquelas frases geniais para captar a atenção das desconhecidas. Quando propôs isto ao irmão, a reação não podia ter sido melhor:
-Excelente ideia, Primeiro. Vá lá explorar que eu fico a congeminar frases fabulosas.

Estrela e Flora, como era hábito todas as manhãs e também ao fim-de-semana, vinham correndo pela marginal. Deixavam o carro no parque do Clube Naval, iam até à Costa do Sol e regressavam pelo mesmo caminho. Vinham já no último terço do percurso, quando se cruzou com elas um rapaz que ia em sentido contrário.
-Viu esse, Flora? Estava olhando para si.
-Eu acho que era para si, mana.
Ainda não tinham acabado de comentar a passagem dele, já ele estava regressando, ultrapassando-as.
-Flora…
-Sim, mana…
-Ou esse é Super Homem e foi lá na Costa do Sol e regressou em menos de um minuto, ou voltou por sua causa.
-Não me parece o Super Homem, Estrela, falta-lhe a capa. Mas foi por sua causa que ele voltou. Aposto que vai olhar para trás em menos de cinco segundos.
-Aposta fácil!
Enganaram-se as duas. O rapaz, não só não olhou para trás, como desapareceu no horizonte. Alguns momentos depois, viram-no voltar, mas trazia um igual ao seu lado.
-Flora…
-Sim, mana…
-Esse daí, se não é super homem, é milagreiro. Olha lá, ele foi um, vem dois.
-É, tem razão, Estrela, mas o clone dele é meio desajeitado a correr.
-É. Tão iguais e tão diferentes. Aposto que vão falar.
-Aposta fácil!
Eles passaram sem dizer nada.
-Como é, mana, não acertamos uma aposta com o Super Homem e o clone desajeitado?
Mas acertaram. Ainda mal tinham passado por elas, Primeiro e Segundo voltaram para trás.
-Segundo, agora precisamos da sua frase.
-Não se preocupe.
Os jovens correram, alcançaram-nas a custo, elas perceberam que eles se aproximavam, olharam para eles e Segundo, pleno de confiança, arriscou:
-Olá meninas, boa tarde, gostam de correr?
-Não. Fazemos isto por obrigação! Disse Estrela.
E arrancaram a correr, deixando-os para trás.
-Que coisa previsível!
-É mana, falta de originalidade.
Não tiveram tempo de comentar mais nada. Ouviram um estrondo e um grito e voltaram-se para trás.

Os irmãos tinham reagido de imediato trocando o passeio pela estrada por haver menos obstáculos e pessoas e acelerando o passo, Segundo, o desajeitado, tropeçou numa das inúmeras arcas congeladoras espalhadas ao longo da marginal repletas de Coca-Colas, Sprites, 2M, Manicas e tudo o que possa refrescar as agruras do calor à beira-mar, uma garrafa de Coca-Cola, dessas que ficam em cima das arcas anunciando o que por ali se vende, tombou e caiu ao chão, Segundo desviou-se dela e, ao fazer esse gesto, ficou mais dentro da estrada, vinha passando um chapa que, surpreendido pelo gesto súbito, não foi a tempo de emendar a rota e o espelho da Toyota Hiace embateu com estrondo nas costas de Segundo que se estatelou. Ficou de costas, a boca muito aberta da surpresa e os olhos a olharem o azul do céu como que a certificarem-se se era o céu dos vivos ou dos mortos. Primeiro acorreu de imediato e em pavor:
-Segundo, Segundo, meu irmão, você está bem? O que aconteceu?
-Acho que atropelei o chapa!
Estrela e Flora aproximaram-se. Flora, com a preocupação estampada no rosto, perguntou:
-Você caiu?
-Não. Estou aqui a admirar a vista!
Rebentaram todos numa gargalhada, mesmo atordoado. Segundo ripostara a tempo de fazer justiça ao que se havia passado há uns minutos atrás. Ela aconselhou:
-Vamos ao hospital!
-Segundo, ainda no chão, a recuperar lentamente todas as capacidades, não se conteve:
-Mano, não só chamei a atenção delas, como as fiz voltar para trás!
-Mas não era preciso quase morrer por isso!
Voltaram a rir e Estrela resolveu fazer as apresentações. Estendeu a mão e disse:
-Estrela.
-Primeiro.
-Primeiro o quê?
-Eu sou Primeiro.
-Estamos fazendo uma corrida?
-Não. Meu nome é Primeiro.
-Primeiro do que o meu?
-Xiii, sempre a mesma coisa! Eu me chamo Primeiro! Primeiro é o meu nome!
-Não diga! E o clone desajeitado é o…
-Segundo.
-Minha nossa! E tem um terceiro?
-É, tem… mas não se chama assim…
-Perderam a conta…
-Mais ou menos isso…
Flora interrompeu:
-Eu sou Flora e acho que devemos levar o seu irmão ao hospital.
Apanharam um táxi e foram. Não havia nada de mais. Ao cabo de umas horas de espera, já tinham conversado o suficiente para que a disposição de Segundo estivesse ótima e, a haver alguma coisa grave, já se teria anunciado. Como não anunciou, decidiram ir esperar para a esplanada do Mundusque é ali perto. E, ao fim da noite, percebia-se claramente que o caráter mais expansivo e resoluto de Estrela pendia para a determinação de Primeiro, enquanto que o recato e a prudência de Flora se inclinavam para o tipo reflexivo de Segundo. E os casais ficaram feitos. Seleção natural. E muito tempo assim duraram e durariam mais tempo ainda não tivessem eles decidido trocá-los!

Estrela está atravessada na cama com a cabeça assente numa mão e o cotovelo espetado no colchão. As longas pernas negras oferecem a sua beleza ímpar ao primeiro homem que entrar pela porta do quarto e a vir semi-nua, só com a lingerie estonteante. Esse homem será Primeiro. Chega do trabalho, coloca a chave na porta, entra, ela pressente-o e chama-o, ele sente o odor do incenso no ar, a tarde cai, há só dois ou três candeeiros de pé acesos, a casa está à meia luz, ele percebe, precipita-se para o quarto e quando a vê nem se apercebe que ela disse, Vem cá meu homem, vem ser o meu Primeiro, atira-se a ela à medida que se despede das roupas, beija-a avidamente na boca e incendeia os seios dela com a sua língua voraz e ardente, procura-lhe o ventre e lambe-o com volúpia, coloca-a de quatro, procura-lhe a carne rosada por entre o ébano da pele e quando a encontra, enterra-se nela, segura-lhe as ancas, movimenta-se em ritmo vigoroso, derrama-se nela e dez minutos depois adormece a seu lado.

Flora seria incapaz de esperar semi-nua em cima da cama por Segundo. Combinaram entre si que quem chegasse primeiro a casa adiantaria o jantar e é o que ela está fazendo. Segundo entra, pousa as chaves, vai à casa-de-banho, aproxima-se dela por trás e beija-lhe o pescoço. Trocam impressões sobre o dia de ambos, sentam-se na sala a ler um pouco e quando Flora pressente a hora de se irem deitar, levanta-se, vai à casa-de-banho fazer a sua higiene, veste o pijama e entra na cama. E é lá que está quando Segundo chega, poucos minutos depois. Deita-se, apaga a luz e começa a sua longa e demorada sinfonia. Dá-lhe beijinhos pequeninos atrás da orelha, depois beijos gordos e generosos no pescoço, as suas mãos percorrem-lhe o interior das coxas, a língua dele procura a dela e as mãos sobem aos seios que ele acaricia com suavidade, e beija-lhos, e deixa-os humedecidos, e desce ao ventre que beija devagarinho, e brinca com o sexo dela e segura-lhe uma mão e tocam-no juntos e quando ela já arqueia o corpo de desejo e solta pequenos gemidos, Segundo deita-se sobre Flora e penetra-a devagarinho e é devagarinho que fica fazendo amor com ela e fica cuidando do seu corpo de mulher jovem enquanto os minutos voam. É já tarde quando explodem em uníssono e os seus corpos vibram de êxtase. Depois, Segundo recosta-se na cama, acolhe a cabeça dela no seu ombro e pergunta:
-Gostou?
-Hum, hum…
E ficam conversando a intimidade até adormecerem nos braços um do outro.

Desde que não estivessem a correr, Primeiro e Segundo eram mesmo muito parecidos. O mesmo formato da cabeça, o mesmo olhar, o mesmo jeito de inclinar ligeiramente o tronco para a frente, as mesmas mãos largas e suaves, até a voz era praticamente igual. Quando estavam no trabalho, a caminho dele, num almoço de amigos, numa viagem de lazer, havia sempre alguém que, dirigindo-se a um deles, perguntava:
-E qual é você?
A verdade é que eles gostavam da confusão e encorajavam-na, ora usando as mesmas roupas, ora dizendo as mesmas frases, ora trocando papéis propositadamente para confundir as pessoas. Em pequenos pormenores do quotidiano, chegaram mesmo a reparar que até Estrela e Flora tinham momentos de hesitação. E foi por causa de uma dessas hesitações que tudo começou. Estrela aproximou-se de Segundo julgando que era Primeiro, abraçou-o por trás, beijou-lhe o pescoço e disse:
-Está tranquilo, meu bem?
-Muito tranquilo. Disse Segundo estremecendo.
-Espero que sim. Esta noite estou contando consigo.
Ele não lhe disse que era o irmão errado, não foi capaz. Mas contou a Primeiro:
-Mano, no outro dia sua namorada me abraçou e me beijou.
-Como?
-No pescoço.
-Não é isso, como é que ela fez isso?
-Ora, pensou que eu era você. Chamou-me Primeiro.
-E você aproveitou, seu safado!
-Não. Mas tive uma ideia.
-Você e as suas ideias…
-Mano, preste atenção. As relações sempre se desgastam, as pessoas sempre se cansam e as relações começam a ser vítimas da rotina e a definhar e depois morrem e há traições e problemas… ora, quem sabe se nós não temos aqui a solução… de vez em quando, sei lá, quando um de nós andasse num momento da relação mais aborrecido, podíamos trocar.
-Quê?! Você é maluco!
-Não concorda?
-Claro que concordo! Mas elas vão reparar.
-Não vão nada.
-Como não vão nada?
-Eu explico. No dia combinado, saímos de casa exatamente com a mesma roupa, meias, cuecas e perfume incluídos.
-Nós já usamos o mesmo perfume.
-Eu sei, foi só para avisar.
-E…
-E à noite cada um regressa para casa do outro. Só temos de partilhar alguma informação sobre elas, o que elas gostam, você sabe… no ato da intimidade, os planos do casal, do que elas andam a falar… que me diz?
-Que você é um maluco chapado! E um génio. Vamos lá trocar namoradas.
-Não, mano, não é trocar namoradas, é trocarmos um ao outro.
-E não é a mesma coisa?
-Tecnicamente não.
Nos dias que se seguiram, Primeiro e Segundo conversaram mais um com o outro do que com as próprias namoradas. A caminho do trabalho, no trabalho, pelo telefone, à noite, trocaram e-mails e lá se iam informando intensamente acerca dos hábitos delas. E assim se urdiu e preparou o plano. E foi como a seguir se conta que se pôs em prática.

Saíram de casa pela manhã. No trabalho trocaram as chaves dos carros e das casas e as carteiras com os documentos e quando a tarde caiu dirigiram-se para a sua escapadela amorosa de dissimulação.

Primeiro conhecia bem aquela entrada, aquelas escadas, aquele elevador que só parava nos pisos ímpares. O facto é que, quando os dois casais decidiram juntar-se, Primeiro e Estrela ficaram na flat que era delas e Segundo e Flora foram morar na flatque era dos rapazes. E é por isso que não há para ele qualquer efeito de estranhamento. O que está fazendo, fingindo, fez muitas vezes a sério. Mas não se engana, hoje leva um fogo no peito, uma palpitação e uma antecipação. Não pode negar, pelo menos a si próprio, que já tivera uns pensamentos atrevidos envolvendo a namorada do irmão. Ficara-se por aí, contudo. Ora, a ideia de Segundo viera reanimar esse desejo. Chave na porta, porta aberta, chaves no aparador, Boa noite, amor, casa-de-banho, cozinha, aproxima-se por trás e beija-a no pescoço, estremece, ela vira-se, olha-o nos olhos e diz, Bem-vindo, meu amor, e beija-o longamente. E enquanto o beijava, ele saboreava o beijo e repetia para si próprio, Devagar, devagar, devagar, nada de pressas. E controlou a sua voracidade. Por momentos. Jantaram e Primeiro esperou que ela se fosse deitar, mas sempre foi dizendo que estava cansado a ver se a apressava com subtileza. Não resultou. Flora estranhou que, nessa noite, ele visse televisão em vez de ler, ainda por cima canais de desporto, mas pensou que eram assim os homens, volúveis e instáveis. E tinha razão. Foi-se deitar. Fechou-se na cama após a higiene e pouco depois, Primeiro, feito Segundo, chegou ao pé dela e lembrou-se das palavras do irmão, Com calma, mano, muita calma, com carinho, com ternura, e pensou que seria assim, com carinho, ternura e calma. Acontece que, após os primeiros beijos no pescoço, depois de trocarem as línguas e assim que Flora lhe ofereceu os seios à visão e ao tato, Primeiro começou a arfar, lambuçou-lhos com vigor, abocanhou-lhe o sexo como se o fosse engolir, pô-la de quatro, segurou-a pelas ancas e cavalgou-a como num filme de cobóis e adormeceu dez minutos depois. Flora, surpresa, pensou que o seu gentil e amoroso namorado se tinha transformado numa locomotiva e, porque é mulher inteligente e sabida,  ocorreu-lhe que talvez ele estivesse tendo outras experiências e foi quando pensou nessa possibilidade que se lembrou, E se sou eu quem está tendo outras experiências?!

Segundo, já de si propenso aos nervos, estava mais nervoso do que nunca. Tremia das mãos e estremecia do coração. E levava aquela ideia colada na mente, Ser enérgico, ser enérgico, ser enérgico, você é que comanda. Chave na porta, dá meia volta, outra meia, ainda, cheira-lhe a caril de amendoim, entra e diz, Boa noite! Estrela apressa-se na resposta, Boa noite? Não tem beijo hoje, não? Claro que tem! Avança para ela que está de volta dos tachos, dá-lhe uma palmada no rabo com a convicção que consegue inventar, roda-a para si e beija-a longa e ternamente. Juntou alguma sofreguidão ao beijo. A suficiente para ela não desconfiar. Jantaram. Estiveram na sala. A certa altura, ela levantou-se e disse:
-Vou dormir. Você vem para o quarto?
-Claro. Claro que vou para o quarto. Me aguarde.
Ela estava a despir-se quando ele entrou e começou a despir-se também.
-Primeiro…
Fez-se um silêncio. A verdade é que Segundo não estava habituado a ser tratado por Primeiro. Estrela levantou a voz e ele acordou:
-Primeiro!
-Sim, amor…
-Então? Você não me vai atacar?
Outro silêncio. Apesar das conversas com o irmão para preparar este encontro, Segundo não sabia bem o aquilo queria dizer. Respondeu com uma pergunta:
-Atacar?
-Claro. Ser minha locomotiva. Arrasar este corpo de pecado…
E já não acabou a frase. Ele atirou-se a ela, beijou-a na boca, acariciou-lhe os seios desnudos com os lábios, com um puxão firme e seco arrancou-lhe as cuecas diminutas e atirou-a para cima da cama, mas todo aquele impulso frenético se acalmou assim que a viu de costas sobre os lençóis. Estrela era uma mulher bonita e pujante, uma fonte de prazer, e ele queria bebê-la, não secá-la, tomá-la gota a gota, não atacá-la, e quase sem se aperceber dobrou o seu corpo sobre o dela, beijou-lhe o pescoço, atrás das orelhas, passou-lhe uma mão pela testa e beijou-lhe as faces devagarinho, depois os lábios, as mãos dele procuraram uma floresta e encontraram um pequeno arbusto e deixou-se ficar a acariciá-lo e tocou-lhe os mamilos muito ao de leve com a língua e foi com ela que lhe incendiou o ventre e o sexo e quando entrou nela, já ela o estava ansiando. Estrela estranhou todo o delicioso tratamento, mas o que mais a espantou foi o facto de ele não ter caído para o lado a dormir. Deitou-se, recostou a cabeça dela no seu ombro e perguntou:
-Gostou?
-Hum, hum.

O dia amanheceu claro e brilhante, o sol nasceu lá longe, para lá da Xefina, emergiu do mar azul e pendurou-se no céu a iluminar Maputo. Quando se encontraram, nenhuma delas sabia se haveria de falar. Flora, por prudência e timidez. Estrela, por ter medo de estar com razão. Ela sabia que a obra de arte da noite anterior não fora da autoria de Primeiro, mas não se importaria de ser enganada outra vez. Acontece que o apelo fraterno foi mais forte. Segurou as mãos de Flora entre as suas e perguntou-lhe:
-Tudo bem consigo?
-Claro. E consigo?
-Tudo bem. Me diga, mana, como estava Segundo ontem?
-Estava… arrasador.
-Como?
-Não interessa… e como estava Primeiro?
-Normal. Tudo bem, Graças a Deus.
-Safada! Você gostou! O meu desajeitado é melhor do que a sua locomotiva!
-Ai mana, será que eles…
-Claro! Até uma cega via! Me diz como foi ele?
-Divinal. O melhor de sempre. Que sedução! Que carinho! Você ficou com o melhor dos dois nesse departamento. Quem diria que esse desajeitado a correr teria tanto jeitinho… e Primeiro, como foi?
-Tentou parecer-se com Segundo, mas acabou a atropelar-me.
-Mana Flora…
-Sim, Estrela…
-Devíamos estar zangadas com eles.
-E estamos!
-Então porque falamos com essa calma sobre o assunto? Nós dormimos com o namorado uma da outra!
-Sei lá. Acho que por duas razões. Primeiro porque isso é uma coisa que se espera dos gémeos, nossa, eles até as doenças partilham! E depois porque talvez também nós desejássemos essa troca secretamente.
-Você quer trocar comigo?
-Não! Eu referia-me a experimentar trocar, por uma vez. Sabe, Segundo é inconfundivelmente melhor amante, mas não me importo de ser atropelada uma vez por outra.
-É, acho que tem razão. Eu prefiro a energia de Primeiro, mas esse mel de Segundo, de vez em quando, para quebrar a rotina, cai muito bem!
-Mas… mana…
-Sim, Flora…
-Há um pormenor…
-Qual?
-Esses dois acham que nos enganaram.
-Você acha que eles pensam que nós não reparámos?
-Claro! Caso contrário teriam revelado.
-Xiii, safados! Como assim? Eles não são nem parecidos na cama.
-Nem um pouquinho. O que fazemos em relação a isso, Estrela?
-Xiii, nem sei… espere lá, esses dois podiam levar uma lição…
-Como assim?
-Me oiça com atenção…

Dois meses passaram até que o episódio da troca de namoradas se começou a esfumar no tempo e os rapazes baixaram a guarda, descansaram a desconfiança e as cautelas e pensaram que a troca tinha funcionado. E foi por essa altura que as mulheres de Quelimane resolveram dar uma lição aos homens de Maputo.

Primeiro vem cansado. Coloca a chave na porta e abre-a. Ao entrar, sente o cheiro da comida pairando no ar e a azáfama de um dia de trabalho começa a ser vencida pelo acolhimento do lar, apressa-se para a cozinha, quer os lábios de Estrela, e quando lá chega encontra Flora.
-Olá, você por aqui?
-Sim. A mana pediu. Coisa chata. Ela hoje vai ficar até muito tarde na agência. Talvez só chegue daqui a umas três ou quatro horas de tempo.
-Então? Algum azar?
-Não. É um inventário. Coisa séria. Têm de estar incontactáveis e tudo.
-E você?
-Deixei Segundo comendo. Ele vai dormir já, já, também está cansado e eu prometi à mana que tratava de si.
-De mim? Disse ele com a interrogação no olhar e a insegurança na voz.
-É, eu disse que vinha-lhe fazer o jantar, mas… – avançou para ele com olhar sorrindo, mordendo o lábio inferior, e as ancas baloiçando um pouco mais do que a conta – se você precisar algo mais é só dizer. Não quero que lhe falte nada… nadinha mesmo. E pousou-lhe um dedo sobre o nariz que deixou escorregar para os lábios dele.
-Mas… Flora, tenha calma, sua irmã, ela vai-se zangar… afinal, nós somos cunhados, quer dizer, uma espécie de cunhados…
-Ai é? E no outro dia quando você me atropelou nós éramos o quê?
-Quando eu o quê?
-Quando você entrou em minha casa, me beijou, me atropelou e me fez sua…
-Você sabe?
-claro que eu sei! Estrela não reparou, acho que seu irmão é melhor imitador. Acontece que eu, não só notei a diferença, como adorei… você é uma máquina sexual, uma bomba orgásmica!
-Ai sou?
-É! E eu quero disso! Muito. Todos os meses. Que estou a dizer? Eu quero você todas as semanas!
-Mas…
-Mas nada. Ou isso, ou conto para ela!
Beijou-o na boca enquanto lhe apertava o sexo mostrando-lhe quem estava no comando. Quando terminou o beijo, virou-lhe costas em direção à porta de saída e disse:
-Coma o seu jantar. A festa começa amanhã!

Segundo chegou a casa, nessa mesma noite. Chave na porta, o odor da comida a invadir-lhe o cérebro, levanta o nariz, inspira fundo o cheiro da sua casa e do seu jantar, sorri e fecha os olhos. Está assim quando ela se aproxima por trás, tapa-lhe os olhos com as mãos e diz:
-Xiiiiiiiiu!
Coloca-lhe uma venda, leva-o para o sofá, senta-o, faz-lhe uma massagem nos ombros e depois vem escancarar-se no colo dele, passa-lhe uma mão pelo sexo e beija-o longamente. Durante o beijo, ele estranhou alguma coisa, tirou a venda com brusquidão e:
-Estrela! Você?
-Porquê o estranhamento? Não lhe sou familiar?
-Como assim?
-Ora, como assim? Acha que eu não notei sua surpresa naquela noite?
-Notou?
-Claro! Você é um poço de mel. Sem fundo! Não há igual a você. Segundo, só no nome.
-E sua irmã? Deve estar a chegar…
-Não. Hoje está de inventário. Vem bem tarde… dá tempo para a gente combinar…
-Combinar o quê?
-Ora o quê? Quando nos vamos ver, onde nos vamos ver, quantas vezes nos vamos ver…
-Mas, Estrela, isso é impossível. Aquilo foi uma brincadeira. Uma vez sem exemplo.
-Pois olhe que, para mim, você foi exemplar! Flora nem notou a diferença.
-Não?
-Não.
-E agora?
-E agora eu estou viciada em seu mel, sua doçura, e vou querer ela para mim, para sempre.
-Sempre?
-Pois, quer dizer, para sempre também não. Todas as semanas!
-Como? Todas quê?
-Semanas.
-Mas… mas…
-Mas nada. Ou isso ou conto para ela.
Caiu sobre ele, beijou-o um beijo lânguido e demorado, encostou os seios aos nariz dele e, súbito, saiu de cima dele, pegou na mala e dirigiu-se para a porta.
-Xau, meu doce, até amanhã!
-Amanhã?
-Amanhã!

Foram vinte e quatro horas infernais. Nem Primeiro, nem Segundo sabiam se haveriam de dizer um ao outro, queriam estar com elas, mas não obrigados e, mais certo do que tudo, não podia permitir, nenhum deles, que a sua própria namorada soubesse que a sua irmã estava viciada e que tudo começara… ah… se arrependimento matasse! Passaram o dia taciturnos, a murmurar respostas desencontradas com as perguntas, a não ouvir o que lhes diziam os colegas e até os chefes, o que custou a Segundo a primeira reprimenda da sua vida profissional. As suas mentes vaguearam na indecisão, sem saber que opção tomar. A brincadeira da troca tinha-lhe saído cara, pensara cada um por si. Segundo foi o primeiro a decidir-se. Ligou a Estrela.
-Olá.
-Olá.
-Estrela, hoje não vou poder.
-Nem se atreva! Flora está aqui ao pé de mim. Quer que ela saiba?
-Não! Não! Quer dizer, não sei… mas não posso… não sei como iludir meu irmão, muito menos minha namorada… Estrela, me desculpe! Me desculpe! Eu imploro seu perdão! Foi uma brincadeira de mau gosto.
-Mau gosto? A mim, soube-me muito bem, cunhadinho…
-Fique séria, Estrela, por favor.
-Eu estou séria, machão, e você está onde eu queria! Me guarde. Vou-lhe dar um sinal ainda esta tarde.
E desligou-lhe o telefone na cara.

Primeiro aguentou-se um pouco mais. Quando resolveu ligar a Flora, tinha um plano. Não lhe apetecia bater em retirada ainda que lhe apetecesse retirar-se.
-Olá.
-Olá.
-Flora, meu amor, estamos combinados para hoje, certo?
Ela estremeceu, mas não se mostrou abalada:
-Claro que sim. Não falte!
-Pois… isto está um pouco complicado no trabalho, mas quero ver se não falho…
-Safado! Quer ver? Quer ver? Eu é que quero ver você nos meus braços, hoje! Ah, e… Primeiro…
-Sim…
-Descarte-se de seu irmão!
-Mas, Flora, o que você pede é impossível.
-Ou fica possível, ou conto para ela.
-Não. Isso não. Flora, me perdoe!
-Como? Não se está ouvindo bem, acho que não tem sinal…
-Perdão! Eu peço perdão. Me perdoe aquela brincadeira tola. Fomos um pouco longe de mais…
-Um pouco longe? Se bem me lembro, você foi bem fundo! E eu adorei. E agora quero mais!
-Flora…
-Me aguarde. Vou-lhe dar sinal ainda esta tarde.
E desligou-lhe o telefone na cara.

Poucos minutos depois estavam as duas mulheres de Quelimane na rua contando palavra por palavra as conversas ao telefone, as súplicas deles, e riam, riam como há muito não se lembravam de rir.
-Flora…
-Sim, mana…
-Que fazemos com esses dois?
-Tenho uma ideia…

Daí a momentos, cada um deles recebeu uma mensagem de SMS da cunhada combinando um copo no Mimmos da 24 de Julho. Elas foram juntas e estacionaram o carro no separador da avenida de frente para o restaurante e ficaram a vê-los chegar. Primeiro tinha-se descartado de Segundo, Tenho de ir ter com a minha dama. Segundo deixou-se descartar e considerou aquilo uma bênção dos céus. Ainda respondeu, Eu também tenho o que fazer lá em casa. Sabe como é, manutenção. Segundo chegou primeiro. Sentou-se e esperou por Estrela. Quando viu chegar Primeiro, ficou sem pinga de sangue.
-Mano, você aqui? E sua dama?
-E sua manutenção?
-Decidi parar aqui para uma geladinha
-É. E já não gosta de uma geladinha comigo?
-Gosto, mas você disse que ia para casa?
-E ia, mas não fui… oiça, Segundo, precisamos falar…
E ia continuar quando se aproximaram duas figuras femininas que não precisavam de apresentação.
-Podemos saber o que estão os senhores aqui a fazer?
-Ah… nós…
-Mana Flora, acho que estes dois devem estar a preparar alguma…
-É, mana Estrela, devem estar a pensar em engatar duas irmãs para depois as trocarem na cama!
-Flora, nós… eu…
-Cale-se! Mana Estrela, qual é o seu?
-Nem sei bem, mana Flora… acho que é esse machudo aí da esquerda, mas ultimamente isso varia com os dias.
-É? Consigo também?
-Verdade…
-Pois o meu devia ser aí o desajeitado jeitosinho da direita, mas ultimamente ele vira locomotiva de vez em quando…
-Meninas, por favor…
-Por favor? Você disse por favor? Não queria dizer outra coisa?
E eles curvaram-se, desculparam-se, desdobraram-se em explicações, que fora uma brincadeira, uma ideia maluca, uma coisa para não se repetir, e quando a situação roçava a humilhação, elas decidiram aceitar as desculpas, Flora dirigiu-se propositadamente a Primeiro e pegou-lhe por um braço, Estrela fez o mesmo com Segundo.
-Vamos, meninos. Para casa que se faz tarde!
Segundo ainda disse:
-Mas… nós estamos trocados!
-Não estão nada. Hoje fica assim!
-Hã?! Assim?! Vocês vão-nos trocar na cama outra vez?
-Cama? Quem falou em cama? Hoje, vocês vão cozinhar para nós!

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Crónicas de África – Tempestade

Crónicas de África – Tempestade

O dia amanheceu radioso, pelas seis da manhã, o sol sentia-se bem na pele e havia aquele esplendor luminoso da luz irradiada e aspergida pela Terra dos homens. Uma coisa que se aprende em África, rapidamente, é que a Natureza tem muita força. Desde as bactérias de uma alface por lavar que fazem percorrer o calvário da casa-de-banho vezes sem conta, passando pela pele de um peixe que não se deveria ter comido e que deixa o corpo pintado de encarnado e branco como um equipamento do Benfica, às enxurradas de vinte minutos de chuva que parecem querer lavar toda a superfície da Terra e, claro, ao fulgor de uma tempestade. A manhã aqueceu bem. Pela hora de almoço, estavam mais de trinta graus e foi por essa altura, também, que o ar deu em ficar meio húmido. Sentia-se o vapor de água na atmosfera. Pelo meio da tarde, levantou-se uma brisa leve e, ao longe, o céu, até então azul celeste, começou a pintar-se de um azul inox intenso. A conclusão foi certeira porque óbvia: vem lá borrasca! E se veio. O vento levantou-se, o capacete nublado cobriu a cidade que, dada a sua situação geográfica, quando é coberta por nuvens de tempestade, estas ficam muito baixas, muito próximas do solo. Os clarões de luz têm uma intensidade irrepetível e o som dos trovões é atroador, os vidros das janelas cantam e, com o tremor da trovoada, saltam bocadinhos de estuque que prendem os vidros das tais janelas e os alarmes dos carros dão em disparar feitos loucos como se alguém estivesse baloiçando as viaturas. A água chega de mansinho e em segundos as pingas da anunciação da chuvada se convertem em generosas e ruidosas bátegas. É um espetáculo fabuloso, belo, imponente e, ao mesmo tempo, a pôr em sentido a alma das gentes, mesmo daqueles que se dizem imunes a esses inconfessados temores.

Eu, sempre que chega um momento destes, colo-me ao vidro de uma janela como uma criança que vê televisão pela primeira vez  e deixo-me maravilhar pelo recorte da luz na escuridão.

Hoje trago-vos três momentos que captei esta noite da janela da minha sala. Uma foto entre clarões, ou seja, com a luz natural da noite que é quase nenhuma, um breu cerrado. Uma foto do auge de um clarão. A foto não tem nenhum tratamento. Aquela luz é toda do clarão do relâmpago. Sem corantes nem conservantes! Sim, há dias de sol menos luminosos! E, por fim, meia dúzia de segundos de filme do céu passando de negro a riscado pelos raios.


É assim, a Mãe Natureza, em Maputo!

 Foto entre relâmpagos com a luz natural da noite:

 Foto do clarão de um relâmpago:

 Os raios cortando o breu nos céus de Maputo:


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Hoje vi um escritor

Hoje vi um escritor. Às vezes vejo publicadores. Normalmente, os publicadores auto-intitulam-se de escritores e quando o fazem, nós percebemos que o não são. Era uma sessão solene com homenagens e figuras públicas e institucionais a emoldurarem o cenário onde se desenrolou a mesa redonda que nem reparei se era redonda mesmo ou só no nome. E os fatos e as gravatas e os perfumes e as palmas e os apertos de mão e as mãos no ar a pedir a palavra e as perguntas e as respostas a persegui-las. E o escritor, de sorriso cândido e palavra genuína disse Eu estou num processo de aprendizagem, na busca de um provável escritor em mim. E calou-se. E eu vi o escritor nele. E depois retomou a palavra e disse outros espantos, que tinha decalcado muitos textos dos outros, do José Craveirinha, dizia ele, lia os textos e decalcava a ver se ficava como ele e confessava o plágio e eu lembrava-me a mim mesmo que os romanos incentivavam isso, fomentavam o plágio dos bons autores como arte de aprender. E era a hora das receitas e eu com medo. Se ele me vem dizer em que posição se escreve um romance, quantas páginas se deve escrever por dia, com que braço, com que caderno, a que velocidade, eu levanto-me daqui e vou perder o tempo para outro lado, quem sabe, comer uma omeleta no Piri-piri. Mas ele calou-me a intenção. O escritor. Jovem. Humilde. Sabedor. E disse como quem se escusa de ensinar, ensinando, Às vezes aprendemos as técnicas inconscientemente. Como é verdade, jovem escritor. Como é verdade que tantas vezes é a escrita que nos ensina a escrever, que nos mostra a vida e o caminho das palavras. Como é verdade que às vezes acordamos para as palavras e elas já lá estão. Eu vejo o escritor como um parasita que se alimenta de leituras. Tens razão. E de gente. E movimentos. E de palavras ditas. E de vida e de tudo o que seja observável. Sabes, escritor, às vezes vou no carro a conduzir e a companheira vai falando, falando, desenhando a vida, planeando os gestos e depois pergunta-me a opinião e eu Hã?! e ela se zangando porque eu não estava a ouvir. Em que vais a pensar? Quer saber. Vou a escrever. E escrevo sem caneta nem papel, na cabeça, enquanto remexo no que vi, observei, em última análise, no que li. E tinhas de falar das técnicas e dos rituais. Pediram-te. E tu que não queres nada disso, tudo o que queres é escrever, disseste a outra verdade, Cada escritor inventa os seus rituais. Pois é. Uns andam de braço dado com a boémia, outros se levantam de madrugada, outros são obesos e sedentários, outros ainda correm e suam no ginásio, outros é quando chove, outros é nas férias, havia um que era de pé e outro que era nas costas desnudadas das amantes saciadas. E de ti sabemos o essencial proferido com as palavras simples e exatas. Sem receitas. Sem truques nem artifícios. Escrevo sob o signo da surpresa, da subversão e da loucura. E eu bebia-te as palavras, a simplicidade da presença afável e humilde em lições jovens de vida e de estar. Hoje vi um escritor, a metamorfose constante do homem que regurgita a vida para os outros e lha oferece limpa de si, cristalina e depurada. Crua.
jpv
Hoje, numa sessão do xxv Curso de Literatura em Língua Portuguesa promovido pelo Instituto Camões e pela Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo, ouvi e bebi as palavras de um jovem e promissor escritor moçambicano: Lucílio Manjate. A não perder o escritor que aí vem.

Lucílio Manjate


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A Publicidade Fantástica do Dr. Prince

[Clique na Imagem para Aumentar]

O que se passa com o Dr. Prince é estranho. É mesmo muito estranho. É quase tão estranho como a visão que Christine Lagarde tem da Constituição da República Portuguesa! Lá iremos.

Hoje, pela fresquinha, ali na Avenida Amílcar Cabral, deram-me o panfleto do Dr. Prince. É claro que o aceitei para colocar na secção “O Cantinho da Publicidade” que encontram aí mais abaixo. Mas fiquei, assim… a modos que desgostoso. O panfleto do Dr. Prince não tem erros ortográficos. Só bizarrias. Ora, toda a gente sabe que uma bizarria tem muito mais graça com um erro ortográfico a emoldurá-la. Enfim, prefiro os panfletos do “Caixodré”.

Em todo o caso, não pude deixar de reparar em algumas das maravilhas performativas do Dr. Prince. Assim, de repente, gosto em particular destas:

“Remova a mancha negra de suas mãos que continuamente tira o seu dinheiro”
Lembrei-me logo do Mancha Negra da Disney, mas o importante é informar o Dr. Prince que o problema não é a mancha negra, é o excesso de consumismo!

“Você precisa de um bebê e não pode ter?”
Ó Dr., então, o que é isto? Não me diga que também…

“Curar pessoas enfeitiçadas”
Então isso não será antes desenfeitiçar? Sei lá, curar e feitiço não me parecem jogadores da mesma equipa, está a ver?

“Você quer se casar com seu/sua amado/a?”
Então Dr., a fazer concorrência ao Registo Civil?

“Concluir trabalhos inacabados de outros médicos”
Tem razão, Dr., anda por aí muita incompetência mascarada. No outro dia, também veio cá a casa um canalizador e deixou o trabalho inacabado. O Dr. por acaso não tem essa especialidade, não?

“Pessoas com pressão arterial elevada, diabetes, também são bem-vindas”
Dr. Prince, meu caro, não sei se “bem-vindas” é o termo. Bem vindas, são as miúdas giras e saudáveis. Mas, olhe, adorei esta sua incursão pela medicina tradicional. Ah julgavam que isto era só esoterismos e feitiços e tal? Naaa… o Dr. Prince também baixa a pressão. Mai nada.

Pois é leitores e amigos, a publicidade fantástica veio para ficar. Quem tiver destas pérolas noutros pontos do mundo lusófono, bem podia mandar para o nosso e-mail e nós teríamos muito gosto em divulgar. MPMI também faz serviço público! É este: mailsparaaminhairma@gmail.com 

Boa Semana!
jpv
PS: Não me esqueci da Senhora Lagarde!


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Crónicas de África – Os Novos Chineses

Crónicas de África – Os Novos Chineses

Todos sabemos que o imenso poderio económico e financeiro da China começa a revelar-se e a ganhar proeminência internacional à medida que a Europa e os Estados Unidos são assolados por crises. Não espanta, pois, que os chineses invistam em mercados com grande potencial como é o caso de África. Ora, como esta gente faz o trabalho de casa e se prepara a sério para os desafios que tem de enfrentar, há uma imensa oferta de cursos de Língua Portuguesa nas universidades chinesas. E a razão está fácil de perceber. Se a ideia é entrar em África, então convém estar munido da mais importante das ferramentas. As línguas que aí se falam.

Aqui em Maputo veem-se muitos, mas não são os chineses a que estamos habituados. São diferentes.

Os chineses a que me habituei, por ler, por ouvir contar, por ver nos filmes e documentários, são pessoas que, independentemente de serem ricas ou pobres, e eram sobretudo pobres, eram muito discretas, deslizavam em passinhos curtos e silenciosos e falavam em palavras curtas e pouco sonorosas. Discretos, portanto. E contidos. Além disso, pessoas muito austeras, de poucos sorrisos e quase nenhuns risos. Isto pode estar tudo errado, mas é a imagem que tenho.

Depois, com o passar do tempo, surgiram outros chineses. Os das lojas e dos restaurantes, em Portugal. Esses falavam um pouco mais, trocavam os erres pelos eles, mas continuavam pouco sorridentes, quase só se viam nas ditas lojas e restaurantes, praticamente não se viam em locais públicos, permaneciam discretos e nada ostensivos de bens.

Em Maputo há uma nova casta de chineses. Em primeiro lugar, falam português com uma assinalável fluência, um sotaque muito treinado e uma amplitude vocabular invejável. Frequentam restaurantes e locais públicos, enchem as mesas de iguarias e canecas de cerveja, fumam demorados cigarros e charutos gordos, fazem-se transportar em veículos quatro por quatro de alta cilindrada e modelos recentes, trabalham como gestores de obras de construção civil seja de âmbito privado, seja público e falam alto, riem-se e brindam estalando as canecas estridentes da cerveja uma das outras.

Nós, portugueses, fazemos quase tudo isto. Mas nós somos mediterrânicos. Está na nossa matriz comportamental. A imagem que tinha dos chineses não era nada esta. Eu nem sabia que eles eram capazes de falar alto, quanto mais de saírem inebriados de um restaurante em conversas sonoras e gargalhadas soltas ao ar quente de África. Das duas uma: ou o continente vermelho muda as pessoas, ou há qualquer coisa, outrora adormecida, que anda a acordar nestes novos chineses. Como disse um amigo meu: Mao, mao!
jpv


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Citando Paulina Chiziane

Paulina Chiziane

Citando Paulina Chiziane

Paulina Chiziane não fala, conta histórias.

Conhecia-a recentemente num curso de formação sobre literatura organizado pelo Instituto Camões em Maputo.

Primeiro ouvia-a num breve agradecimento e esta noite numa longa e deliciosa entrevista magistralmente conduzida por Nelson Saúte.

Paulina vem da região de Gaza, cresceu nos subúrbios de Maputo e, reza a história, foi a primeira mulher moçambicana a publicar um romance. O que é curioso porque nega ser uma romancista, Nem sei o que isso é. Eu sou só uma contadora de histórias.

A autora impressiona pela atitude genuína, confrontadoramente genuína, na forma como assume o que não sabe, como admite que não sabe quem é porque ainda anda à procura da sua identidade. De palavra fácil e franca, esta mulher que se diz contadora de histórias e sabedora de nada, Eu desenrasco-me, falou da história e da cultura de moçambique, de religião, de paganismo, de poligamia, do desencontro da Lei com a Vida e, confessando-se questionadora, procurou incomodar o público o que, a espaços, conseguiu.

Muito simples no trato, é uma pessoa despojada de títulos e assunções precipitadas de mérito. Apenas gosta de escrever histórias e fá-lo com a naturalidade com que as vive. Como disse, Eu tenho milhões de histórias.

Estive a ouvi-la durante quase duas horas sem que desse pelo passar do tempo e, no fim, para os meus leitores, trago uma mão cheia de citações. Algumas frases são pérolas do conhecimento ontológico e antropológico urdidas pela mulher que nada sabe, mas tudo questiona. Aqui ficam, pois, em jeito de partilha. E, claro, aconselha-se a leitura dos seus livros que indicamos no final deste apontamento.

“Se Deus está em todo o lado, também está em África.”

“O Cristianismo que vem com o colonialismo, é um Cristianismo intolerante.”

“Em África, Deus é concreto. Na Europa, Deus é abstrato.”

“O que tenho feito com os meus livros é uma partilha.”

“As mulheres enfrentam sempre um estigma. Se o Mia escreve bonito sobre as mulheres ninguém lhe chama feminista.”

“Se emprestas roupa a quem tem frio, se dás comida a quem tem fome, porque não emprestas o teu marido por solidariedade?”

“As leis são só para dez por cento da população. A população urbana. E esquecem os noventa por cento de população rural.”

“As sociedades poligâmicas têm vantagens, mas as mulheres sofrem sempre.”

“O meu vício chama-se questionar, incomodar.”

“Na História, há um gajo que eu admiro. Eu gosto de Luís de Camões. Mas não pela mesma razão dos outros. Eu gosto dele porque ele não seguiu um caminho, ele abriu um caminho.”

“O africano, perante a crise, recorda-se das suas raízes.”

“Nós, africanos, estamos condenados a ser duais.”

“Questionem tudo o que vos oferecem como perfeito.”

“O colonialismo continua na cabeça desta gente maravilhosa que se diz independente. Independente de quê?”

—————————–

Algumas obras de Paulina Chiziane:

Balada de Amor ao Vento, 1990.
Ventos do Apocalipse, 1993.
O Sétimo Juramento, 2000.
Niketche: Uma História de Poligamia, 2002.
O Alegre Canto da Perdiz, 2008.
Na mão de Deus, 2012.
Por Quem Vibram os Tambores do Além, 2013.

jpv


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As Cores da Capulana – Amanhecer Índico

Amanhecer Índico

É um mar cinzento
Como o céu.
Uma linha definida
E distante.
Uma capulana ao vento
Ondulante,
Enquanto ela passa.
E uma outra com sacos à cabeça,
Sua sorte e sua desgraça.
E são umas pessoas lá longe,
Mar adentro,
Saudando a Deusa,
Banhando-se de sal e água
Como se aspergissem a vida
Aquém da tal linha definida.
São três aves rasando a água
Marinha.
É uma senhora de mala e bem vestida
Que caminha sozinha
Enquanto Deus a espera na igreja.
E é um homem de turbante,
Passo rápido e certo,
Desaparece num instante.
E é uma mulher vestida de desporto
Que passa correndo com sua cadela.
Uma leva música nos ouvidos,
E a outra, no pescoço, a trela.
E é um cão galgando as ondas
De felicidade,
Vai para a água entusiasmado
E volta carregado de verdade,
O amor incondicional,
Por seu dono amado.
E é um madeiro enterrado
Na areia,
Raiz antiga e secular
Onde os namorados
Se vêm sentar.
E há este mar
Sossegado e quente,
Pano de fundo da vida da gente.
E há estas palavras
Com que me debato e luto,
Junto à areia cúmplice
Da baía de Maputo.

jpv


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Crónicas de África – A Inigualável Gente de Moçambique

 

Crónicas de África – A Inigualável Gente de Moçambique

Só mesmo em Moçambique: regressámos há duas breves semanas e há já tanto para contar. Histórias com gente dentro.

Hoje, propositadamente, substituímos a habitual foto das “Crónicas de África” por essa que aí está e que retirámos da página Moz Maníacos no Facebook. Fizemo-lo porque estes sorrisos não os conhecemos em mais lado nenhum. São genuínos, transpiram a alegria verdadeira de quem não sabe ser de outra maneira. Há uma esperança no olhar de cada moçambicano que não sabemos de onde vem, mas que sabemos ser parte da identidade deste povo. E há também uma verdade transparente em cada pessoa, mesmo que essa verdade não nos agrade. Os moçambicanos são ímpares. Inigualáveis. São o que são, dizem o que têm a dizer, fazem o que têm a fazer, sempre com essa transparência expectável, sempre com um sorriso e uma alegria desconcertantes. Quatro breves apontamentos.

O Assalto.
Não vou entrar em pormenores. Não é isso que interessa. O que me interessa é a conclusão da história. Fui almoçar. Deixei uma pasta com um computador debaixo do banco do pendura. Claro que me tiraram a fechadura do carro, destrancaram a porta, abriram a mala, tiraram o computador, voltaram a fechar a mala, colocaram a fechadura no sítio e fecharam a porta. Quer dizer, toda a gente tem princípios, até um larápio de computadores. Se era para palmar o computador, não havia necessidade de estragar a viatura. Mai nada. Assim que chego a casa, estranho o facto da porta de trás estar a abrir mal, mas penso que se trata de uma avaria, a minha mulher sente a pasta mais leve, oh se estava(!), abre-a e computador viste-lo. Relaciono uma coisa com a outra, meto-me no carro, vou ao local onde tinha estacionado o carro para almoçar, chamo o arrumador a quem tinha pago para guardar o carro e nem lhe dou hipótese de argumentar, nem sequer lhe pergunto se sabe do computador, mostro-lhe o branco do olho e o ranger dos dentes e peço-lho de volta com a convicção firme de que ele o tinha e eu o queria. Resultou. Ele levou-me a quem o tinha que, perante argumentos similares, branco do olho e ranger de dentes, não hesitou em devolver-me o computador. A história acabaria aqui. Acontece que estamos em Moçambique, acontece que esta crónica teve uma introdução e é necessário que esta historieta seja coerente com ela. No momento em que me estende o computador embrulhado num saco preto, o larápio olha-me a medo e diz:
– Desculpa lá, boss.
Caros amigos e leitores, onde, em que outro lugar do mundo, é que um larápio devolve o produto do roubo e pede desculpa ao lesado?

Welcome Drink.
Um dos hipermercados a que vamos, também não há assim tantos, o Mica Premier, tem um bar com um longo balcão e umas mesinhas onde, por exemplo, se pode tomar o pequeno almoço. Uma vez por semana, ao sábado de manhã, costumo beber lá um café. Não é uma regra. É um hábito. Ora, com o café e a natural simpatia e abertura dos moçambicanos ajudando a isto o facto de, de vez em quando, eu vestir uma camisola do Benfica, os empregados foram metendo conversa, eu fui respondendo, criámos ali uma saudável picardia e umas palavras de saudação no início de cada fim de semana. Para mim, eram uma presença simpática a acordar-me o sábado. Para eles, pensei ser só mais um cliente. E até talvez seja, mas há algo especial nos moçambicanos: a forma generosa como reagem à simpatia. Um dia destes, penso que na sexta feira, passei por lá a beber um café antes de ir comprar não sei o quê para a despensa e eles vai de saírem para o lado de cá do balcão e distribuir demorados e apertados abraços, Então, porque nos abandonou tanto tempo? Estive de férias, fui ver o meu filho e a minha família. E encontrou tudo bem por lá? Graças a Deus. E vocês, estiveram bem por cá? E a conversa desenrolou-se e os abraços repetiram-se e eles renovaram as saudações e entretanto bebi o café e quando pedi para pagar eles disseram-me que pagavam eles, era uma Welcome Drink. Eu sei o preço do dinheiro para estas pessoas, por isso insisti para pagar até que um explicou. Nem pense nisso, hoje pagamos mesmo nós, é que pusemos um metical por dia de parte enquanto esteve fora para lhe poder pagar um café quando voltasse. E pronto. Lá segurei as emoções como pude, mas não há qualquer dúvida de que os meus companheiros de saudação matinal ao sábado e discussão dos lances mais duvidosos do futebol de fim de semana me cativaram, uma vez mais, com a sua alegria e a sua simpatia. Como eles se autoproclamam num cartaz, são mesmo capazes de um antendimento excepcionalmente super extraordinário! Mai nada!

É por isso que vale a pena!
Hoje vinha caminhando com a Paula, lado a lado, queimando umas calorias, como eu preciso, meu Deus, e cruzou-se um par de jovens connosco. Ouvimos, de passagem, a voz de um, em tom entusiasmado, revelando ao outro: Assim posso sonhar de duas maneiras! E pronto. Eis a súmula de tudo o que vale a pena nesta terra de oportunidades. Há desvantagens? Claro. Muitas. Mas há essa sensação preciosa que é a tangibilidade do sonho e da esperança. Sim, aqui pode-se sonhar. E, mais do que isso, podem concretizar-se sonhos. Os nossos e os de muita gente à nossa volta. É fundamentalmente por isso que esta terra vale pena!

O Outro Cão.
O nosso cão estava com o pelo demasiado grande. Tão grande que podiam advir-lhe uns incómodos. Ora, quando o mandei tosquiar e me perguntaram como queria o pelo, disse que queria o mais curto possível, nem mais, era o que faltava andar sempre a correr com o cão para o “cabeleireiro”. E o veterinário cumpriu a promessa. Deixei-o lá e quando o fui buscar já o guarda estava aqui a rondar o prédio. E a conversa que aconteceu, assim que saí do carro com o cão foi, mais ou menos, assim:
– Eh patrão, tem outro cão?
– Não, C., é o mesmo.
– Não pode. O outro tem o cabelo comprido.
– Não é outro. É o mesmo. Só que lhe mandei cortar o pelo.
Ele olhou demoradamente o cão e rematou:
– Tem a certeza?
– Tenho.
– É que parece mesmo outro.
– Mas é mesmo o mesmo.
– OK.
E abriu um sorriso confiando que eu estava mesmo certo de ser o mesmo cão. Não fosse a vida pregar alguma partida e surpreendi-me a olhar para o cão a verificar os traços. Era o mesmo. Pelo menos responde pelo mesmo nome!

Cada dia, uma aventura, uma surpresa. Umas boas. Outras más. Cada dia, esta terra e, sobretudo, esta gente com que me cruzo, vai entrando na minha vida e nos planos dos meus gestos. É uma terra fantástica. Diferente, em tudo, de tudo o que conheço. É uma gente de sonho e esperança. Inigualável.

jpv


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Crónicas de África – O Regresso

Crónicas de África – O Regresso

Maputo, 26 de agosto de 2013

De regresso a Moçambique. Uma multiplicidade de sentimentos e emoções cruzam-me a alma e trazem-me o peito no fio da navalha, entre a alegria e o aperto da saudade.

Antes de mais, quero pedir desculpa aos familiares e amigos que não consegui ver nestas férias. O tempo voou. Bastaria um só olá, um abraço, um beijo. Não foi possível porque não quisesse. Só porque não consegui. Dividido entre a família mais chegada e a necessidade de manutenção que um ano de ausência provoca numa casa, acabei não vendo todos. Em breve, será possível rever algumas destas pessoas que estão no meu coração.

Fizemos as viagens partindo de JoBurg. E a razão é simples. Menos de metade do preço. E conseguem-se trajetos de duração muito aceitável. Entre as 11 e as 13 horas de viagem. Ora, isto trazia um problema. Era preciso ligar Maputo a Joburg de carro. Cerca de 500Km. É aqui que entra o Y.R. que me foi apresentado, por quem havia de ser, pelo já aqui retratado M. O Y.R. é um moçambicano muçulmano que vive dos seus diversos, muitos, negócios, sendo o transporte de pessoas só mais um deles. Em viatura confortável, com condução muito segura, o Y.R. surpreende pela fluência do discurso e pelos muitos recursos que apresenta. Uma das coisas que apreciei nele, foi a calma e a tranquilidade com que enfrenta cada dificuldade. Nem a polícia, nem a fronteira chegam a ser problemas. Ele contorna com simpatia cada situação. E, claro, quando para numa qualquer portagem e saúda o/a portageiro/a com a frase “Have a sparkling day”, arranca-nos uma gargalhada. Colocou-nos no aeroporto e foi buscar-nos ao aeroporto com assinalável eficácia. Tema de conversa não podia faltar. Y.R. é um benfiquista tão apaixonado quanto eu. Vive o clube, a emoção do jogo, a superstição da roupa a vestir ou da posição dos comandos da TV quando o Benfica joga. Pediu-me para lhe trazer umas camisolas da Loja do Benfica, favor que fiz com toda a satisfação. Por outro lado, é um homem de Fé e leva esse assunto muito a sério, ainda assim, felizmente, fala dele com toda a naturalidade. E assim aprendi imenso sobre o islamismo e esclareci uma série de estereótipos que o tempo foi cristalizando. E quando chegou a minha vez, expliquei alguns aspetos do cristianismo com que o Y.R. estava menos familiarizado. Foi engraçado porque ele tinha todo o cuidado de parar para comermos e descansarmos e a única coisa que, desde o início, disse que tinha de fazer, era parar para fazer as suas orações. E assim foi. Moçambique na sua multiplicidade integradora de diferenças. Sem preconceitos. É um homem de família e um homem de bem. Foi a companhia ideal para ligar Maputo a Joburg.

O regresso surpreendeu-nos. Tínhamos lido e ouvido, ainda em Portugal, que o ambiente por aqui andava tenso. A verdade é que, felizmente para nós, os moçambicanos estão iguais a si próprios. Alegres e acolhedores. Os vizinhos receberam-nos com saudações calorosas, “Bem vindos!”, “Correu tudo bem do seu lado?”, “A viagem foi boa?”, “Ficamos felizes por terem regressado!”. Ora, que os vizinhos nos tivessem acolhido bem, foi muito bom, mas o que eu não estava mesmo à espera era de ser reconhecido pelo senhor que vende laranjas no semáforo da 24 de julho com a Amílcar Cabral, ou pela senhora que pesa a fruta no Mica… Rever os nossos primos foi importante e regressar ao local de trabalho e encontrar toda a gente com um ar fresco e bem disposto a tratar-nos como se estivéssemos naquela escola há vinte anos, também foi reconfortante.

E claro… há sempre aquela franqueza e aquela simplicidade deliciosamente desconcertantes. Foi preciso comprar um pequeno eletrodoméstico, um ferro de passar. Havia dois parecidos, quer dizer, iguais, mas com uma diferença de mil meticais (mais ou menos 25€). Chamámos uma funcionária da superfície comercial e perguntámos:
– Estes ferros parecem iguais, mas têm uma diferença de mil meticais, sabe dizer-me porquê?
Ela estranhou a pergunta, normalmente, por aqui, compra-se aquele de que se gosta mais. Uma questão de simpatia, amor à primeira vista, eu sei lá. Nós é que complicamos tudo o que é simples. E vai daí respondeu:
-Ora, servem os dois para passar.
Devemos ter feito um ar estranho, talvez insatisfeito com a resposta, então ela examinou os ferros e rematou o assunto de uma forma que só acho possível acontecer em Moçambique, uma ternura:
-Olhe, este aqui tem mais 100 watts. Sabe que mais? Isto serve é para passar a ferro, acho que 100 watts não valem mil meticais. Leve este. Ainda por cima, o que tem mais watts, gasta mais energia!
E não esteve com meias medidas, além de aconselhar, decidiu, porque a verdade é que agarrou na caixa do mais barato e pô-la nos nossos braços.

Atravessámos a avenida marginal, percorremos as capelinhas do costume, vimos as pessoas do costume e, de repente, a cidade vive de novo em nós. Pela frente, mais um ano de trabalho, numa terra inigualável. Moçambique acolhe-nos e nós deixamo-nos acolher. Regressámos há um par de dias e é como se nunca daqui tivéssemos saído!

jpv