Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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Histórias do Autocarro 28 – Pois Parece!

Pois parece!

Quem me conhece, sabe que eu sou uma pessoa razoável, multicultural e aberta, logo, nada sectária ou segregadora de realidades alienas à minha. Sou mais do tipo inclusivo do que discriminatório.

Feito o aviso, deixem-me lá reagir com naturalidade ao que vi um dia destes no 28.
O tipo não batia bem. Pronto, podem chamar-lhe outra coisa mas esta é a universal expressão que melhor se lhe aplica. Tinha mesmo qualquer coisa solta na caixa dos parafusos.

Quando entrou no 28 vinha a falar alto. Tossia. Era sobre política. Já não sei o que disse, mas esgalhou ali umas teorias financeiras para salvar o universo. Sentou-se. Tossia. Depois, sem aviso, e num tom de voz que se fazia ouvir em todo o autocarro, mudou de assunto. Começou a falar de fado. Quem era bom, quem era mau, quais os melhores fados. Tossia. E fazia perguntas a quem ia ao lado dele. Como não obtinha resposta, tossia e continuava a teorizar. De repente, sem que nada o fizesse prever, levantou-se e começou a cantar um fado. Arranhava-o bem alto e todo o 28 0 ouvia. “Que estranha forma de vida”. Irónico, pensei. Ele é que tinha uma estranha forma de vida. Mas não me incomodava. Excepto quando fazia de propósito para tossir para cima das pessoas. Só que, enquanto cantava, não havia tosse, só cantoria. E lá foi cantando e deslocando-se para o fundo do autocarro e quando lá chegou virou-se para a porta como quem vai sair e continuou cantando. Quando o autocarro começou a travagem de aproximação à paragem, o fadista parou subitamente de cantar, bateu com uma mão na testa e disse:
– Eh pá, parece que estou maluco. Não é aqui que eu quero sair!
E sentou-se de novo no banco.

jpv


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Histórias do Autocarro 28 – O Maluco

O Maluco

É jovem. Tem menos de 40 anos. É baixo, atarracado e forte. A proeminência que traz à sua frente e a que chama barriga quando lhe dá uma palmada a atestar que está cheia indica bons tratos e más escolhas. Veste um fato-de-treino azul com duas riscas brancas e nada disto faz dele maluco. Nem a forma como se movimenta porque anda pelo autocarro 28, da Portela para o Restelo ou ao contrário, como qualquer um de nós, os outros todos. Não fui eu que o baptizei de maluco do autocarro. A primeira vez que o vi estava eu a meio da viatura e, ainda ele entrava à porta, quando um passageiro ao meu lado disse em tom de desabafo:
– Lá vem o maluco do autocarro!

O problema dele é quando abre a boca. Acontece que foi precisamente por ter aberto a boca que resolvi escrever este texto. O maluco do autocarro diz palavras impronunciáveis, interrompe as frases, volta ao início, salta para outras ideias sem acabar as primeiras, enfim, o caos discursivo total. A juntar a isto, mistura vocabulário regular com vocabulário erudito e rebuscado sem que as frases façam sentido e, para cúmulo, introduz obscenidades no discurso como se estivesse dizendo umas palavras como outras quaisquer. E até talvez sejam.


Acontece que, no meio de um discurso imperceptível, faz parágrafos de perfeito inglês e quando digo perfeito, refiro-me à correcção vocabular e à estrutura frásica. Do mesmo modo, consegue também umas frases em português ou mistas, português e inglês, onde, no meio do caos, dos palavrões, da ausência de significados coerentes, produz um parágrafo correcto, uma ideia acertada. Ora, é uma dessas que aqui me traz hoje. É que não foi só um parágrafo acertado. Foi uma síntese de um complexo problema educacional que vivemos na sociedade moderna. O maluco do autocarro condensou num só parágrafo o que teses inteiras na área das ciências da educação ainda não conseguiram discernir.

Ia no 28 um grupo de jovens entre os 15 e os 17 anos. Alguns beijavam-se afanosamente querendo gastar os beijos todos que vinham com o bilhete do autocarro, outros diziam parvoíces propositadamente audíveis em toda a viatura e, no conjunto, faziam aquele alarido próprio da idade da acne. O maluco do autocarro contemplou-os, tirou-lhes as medidas, fez-lhes a raiz quadrada e, depois de uma série de frases palavrosas e imperceptíveis, disse:
– Sabem qual é o problema da juventude? O problema deles é que só querem computers mas depois não sabem fritar um ovo! Teoria? A teoria tenho-a eu toda, home, o que é preciso é a prática, é quem saiba fazer. ‘Tá tudo f…


E pronto. Engavetei. Levei para casa e se um dia vier a fazer uma tese de doutoramento em Ciências da Educação, fica aqui prometido que arranjo maneira de citar o maluco do autocarro. Excepto a parte do f…, claro!

jpv