Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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Mulheres de Quelimane, Homens de Maputo.

Histórias a Preto e Branco

Mulheres de Quelimane, Homens de Maputo.

A história conta-se em poucas palavras. Homens que nunca daqui saíram, mulheres que vieram de longe. Quelimane. Quem vem de Quelimane diz que é onde brotam os melhores ananases, onde ficam as praias mais tentadoras, onde nascem as mulheres mais dotadas e onde se cozinha a melhor mucapata de caranguejo que as gentes de Moçambique alguma vez provaram.

Chamaram-lhe Virgínia a conselho de um padre português que vivia em Inhambane desde antes de ter barba até a ter grisalha da velhice e amarelada dos cigarros vespertinos sugados debaixo de uma acácia sem idade. Dissera o pároco que o nome significava pureza, virgindade e que aquela menina deveria ser guardada para o Senhor, entregue às Carmelitas da Missão e criada com Avé Marias e Padre Nossos numa vida dedicada ao espírito e à Divindade. Bem intencionado foi o pároco, mas desconhecedor das forças e premências da Natureza, ou, sendo conhecedor, subestimador delas.

Virgínia foi-o enquanto pôde. Aos catorze anos partiu para Maputo com o pai da criança que levava na barriga. Depois dessa, teve outra e depois dessa está tendo outra aqui nesta cama onde se encontra deitada, abrindo as pernas ao mundo e esperando que a sogra lhe tire o filho do ventre. Estranhou, pois, as palavras da velha que, quando lhe tirou o filho e lho deu para o colo, disse:
-Toma, este é o primeiro.
-Primeiro?

E por ser o primeiro a ver a luz do sol nesse dia, Primeiro lhe chamou e ao que veio a seguir, com a lógica inquebrantável de quem vive a Natureza como sua casa de ser, Segundo lhe chamou. Primeiro cresceu um rapaz forte e bonito e fisicamente dotado. Tudo o que tivesse a ver com ferramentas, ar livre e futebol e fazer com as mãos era com ele. Ímpeto forte e palavra larga. Segundo cresceu um rapaz sereno, muito replexivo, fechado nos seus próprios pensamentos, muito dado às contas, às letras, aos livros. Tudo o que tivesse a ver com pensar, com palavras, esquemas e táticas e fazer com o cérebro era com ele. Força serena e gesto comedido.

Cresceram juntos, comeram o mesmo pão, a mesma manga, a mesma banana, o mesmo arroz. Eram iguais. Um rosto simpático, os dentes largos em cima e fininhos em baixo, as mãos longas e as pernas esguias. Adoeceram nas mesmas semanas, tiveram as mesmas faltas de apetite e os mesmos desejos vorazes de ananás polvilhado com açúcar. Foram cúmplices na escola, na rua e em casa e diziam os amigos e os familiares que só Virgínia, a mãe, os conseguia, de facto, diferenciar.
-Como faz dona Virgínia?
-Ora, olho para eles.
-Mas são iguais!
-Não são nada! Bem diferentes, até.
E depois testavam o saber da mãe:
-Qual é aquele ali?
-Aquele é Segundo.
E chamavam:
-Segundo!
E o rapaz virava-se.
-Xiii, dona Virgínia, como faz para saber?
-Já disse, olho.
-E o que vê diferente?
-Ora, Primeiro tem fogo e luz e movimento no corpo. Um sol que lhe sai dos olhos e ilumina o mundo. Segundo tem nuvens no olhar e um lago azul no corpo que ele empurra a custo.
-Xiii, dona Virgínia, isso não são coisas de ver.
-São sim, são coisas de uma mãe ver.

A areia branca da praia sob os pés, entra dois passos na água calma do Cuacua e fica com o rio pelo artelho, olha-o intenso, a luz da madrugada vem despontando por cima do azul transparente e límpido do Índico, a barriga redonda e grande, prestes a rebentar, sente falta do som da vela do dow ao vento, a água chapinhando o casco do barco, e diz para ele:
-Josué, leva-me no mar!
E ele levou, desceram com suavidade aqueles vinte quilómetros até ao grande oceano e assim que lá chegaram as ondas das águas que trazia no ventre sincronizaram-se com as do mar salgado, e foi sem destino e veio naquele bailado até à praia e quando chegou, sentou-se na areia e pariu. O sal da água ficou na pele da menina a que ela chamou de Estrela como a que estava semi-enterrada na areia onde o mar se vem deitar.

Ainda duas semanas não tinham passado, dormia ela com a criança em cima do peito, levava-a para todo o lado enrolada numa capulana que lhe passava por cima de um ombro, por baixo do outro e atava à frente, sob os seios enormes de leite de que ela, religiosamente, duas vezes por dia, tirava umas gotas e colocava no sexo da bebé, sem saber porque fazia aquilo, eram gestos que vinham de um tempo lá longe, antes de tudo o que ela conhecia, e Josué começou a querer partilhar o peito da mulher com Estrela, chegava-se a ela com o sexo empertigado e pedia, Dá para mim. Ela conseguiu escorraçá-lo durante uns dias, mas acabou cedendo nas intenções e, aproximadamente um ano depois de Estrela, nasceu Flora.
-Eh, mulher, só me dá meninas.
-Eh, homem, só me faz meninas.
Em Quelimane viviam poucos portugueses. A cidade era muito longe dos interesses. Eram meia dúzia de famílias e um viúvo que perdera a sua na guerra, mulher, filhos, irmãos, cunhados, sobrinhos, e resolveu cobrar à terra que levara os seus, a sua própria morte. Um homem austero e rigoroso, alto e fendido de rugas longas pelo rosto abaixo, que viu as meninas crescerem por ali com cestos de mangas à cabeça, caranguejos atados por cordéis, ananases pendurados em paus atravessados nos ombros e tudo o mais que duas crianças com pouco mais de dez anos pudessem tentar vender. O português nunca tinha tratado nenhum moçambicano pelo nome próprio. Usava tu para tudo. Resolveu mudar.
-Josué, essas meninas não vão à escola?
-Não tem como, senhor.
-Hão de ir. Manda lá para minha casa.
-Mas eu preciso…
-Eu pago.
E pagou. Pagou o tempo delas. Assim, Josué podia pagar a quem o ajudasse quando elas não estavam que era quase sempre pois que, embora haja notícias contrárias, a verdade é que a escola é coisa que requer muito tempo, muito trabalho e algum sofrimento. E pagou também as despesas com elas. E viu o seu investimento dar frutos. Mas não todos. Pouco antes de fazerem o exame da décima segunda classe, o português sentiu uma dor no peito, vazou mais um uísque para acalmar, recostou-se na cadeira e partiu deste mundo. Foi ter com a família que já lá estava.

Josué viu que as meninas tiveram boas notas. Agradeceu, no seu íntimo, ao português, e decidiu pô-las a trabalhar. Não foi bem sucedido na intenção. Por esses dias, apareceu em Quelimane um homem de fato escuro, pasta de cabedal castanho e papéis a saltar dela e a ditar a vida das pessoas. O português tinha morrido, mas continuava vivo. E esse homem foi batendo de porta em porta, em havendo porta para bater, ou chamando pelo nome das pessoas:
-Senhor Josué! Senhor Josué Nhangave!
-Josué Nhangave sou eu, o Senhor não mora aqui, está no céu.
-O senhor é pai das meninas Estrela e Flora Nhangave?
-Dessas e mais uns quantos que por aí andam.
-Temos de conversar.
-Ah sim? E porquê?
-O senhor Madeira…
-E quem é esse?
-O falecido.
-Ah, o português!
-O senhor Madeira.
-E quem é esse?
-O falecido.
-Ah, o português!
-O senhor Madeira.
-Madeira, agora que está num caixote, mas foi de carne e osso…
-Chamava-se Madeira.
-Por aqui toda a gente o chamava de português.
-Por ser de Portugal…
-Não. Por ser o nosso português de Portugal. O senhor também há de ser de Portugal e ainda não lhe chamei de português.
-Enfim, o senhor… o português deixou em testamento expressa a vontade de que meninas Estrela e Flora estudassem.
-E quem paga a vontade dele?
-O próprio.
-Mesmo depois de morto?
-Mesmo!
-Como assim?
-Pois, o dinheiro para a educação das meninas não lhe é entregue…
-Mas podia!
-Pois, mas o senhor Madeira, o português, deixou instruções precisas. Todos os meses se transfere uma importância para a conta das meninas…
-Conta? Senhor, a única conta que há cá em casa é a da mercearia e isso é porque a Faustina vende fiado.
-Senhor Josué, o importante é que o senhor saiba que o português me deixou a responsabilidade de gerir essa verba. Eu abrirei as contas para as meninas num banco, elas irão estudar e todos os meses eu faço as transferências. A única regra é que não podem reprovar, caso contrário, interrompem-se as transferências.
-Português sabido. E como é que o senhor sabe isso tudo? Acaso o português fala consigo do além?
-Não. Mas deixou tudo escrito. Há vários anos, de resto. Assim que as meninas passaram no exame da quarta classe.
-E não disse nada?
-Não sei. Pelos vistos, não.
-Porquê?
-Lá teria as suas razões…
-Português sabido! E elas vão estudar o quê?
-Elas devem saber a sua vocação.
-É?
-É!

E lá foram as duas para Maputo estudar contabilidade na Eduardo Mondlane e ainda o curso não estava acabado, já tinham propostas de trabalho que não puderam aceitar para não quebrar a regra do português defunto. Quando terminaram, a colocação foi rápida. Escolheram ambas o BCI. Podiam ter escolhido outra instituição, mas a farda do BCI, saia cinzenta, camisa laranja e uma chapinha com o nome do funcionário, fez a diferença. Estrela e Flora vivem bem. Ajudam os pais naquilo que podem e de quando em vez vão a Quelimane visitá-los, passear no rio Cuacua, tomar um banho de azul no mar, comer ananases irrepetíveis e a melhor mucapata do Universo. Da próxima vez que lá forem, levarão seus recentes namorados. Estrela namora com Primeiro e Flora com Segundo.

Tudo começou numa tarde de tédio. Primeiro via televisão. Segundo lia. O programa não era bom. O livro era técnico.
-Segundo…
-Sim, mano…
-Vamos sair.
-Onde?
-Vamos na Costa do Sol. Apanhamos um pouco de mar.
-Primeiro…
-Sim, mano…
-Sabe o que nos faz falta?
-O quê?
-Namoradas.
-Você não quer! Estou sempre a encontrar namoradas para nós e você não gosta de nenhuma.
-Primeiro, você não encontra namoradas, você providencia encontros fáceis com moças fáceis que têm dificuldade em pronunciar um dissílabo.
-Um quê?
-Vê? Vê? Nem você sabe o que é um dissílabo! A professora explicou.
-Quando?
-Na segunda classe!
-Xiii, mano, faz tempo, muitos anos, como é que eu ia lembrar?
-Eu lembro.
-Pois, mas você veio ao mundo para não esquecer nada.
-E você, Primeiro, veio ao mundo para quê?
-Para nos encontrar namoradas!
-E porque não encontra?
-Falta um plano.
-Não seja por isso.
Segundo puxou um caderno e traçou um plano original, tão original como o pecado na Terra. Iam andar com roupas de correr pela marginal acima e abaixo, para lá e para cá, e quando se cruzassem com duas amigas interessantes, seguiam-nas e metiam conversa invocando que tinham em comum o hábito de correr.
-Segundo…
-Sim, Primeiro…
-Você não tem o hábito de correr!
-E depois? Mero pormenor. Um detalhe… por uma namorada eu corro!
-Ela há de chegar láááááá na Aldeia dos Pescadores ainda você está no Naval.
-Primeiro, não brinque. Eu corro.
-Pronto, tudo bem. E quando vamos?
-Já?
-Já!

Primeiro não se enganou muito. Segundo era uma lástima na corrida. Ele ia e vinha, corria duzentos metros para lá e voltava para cá a buscar o irmão. Como quase sempre acontecera em toda a sua vida, vestiam de igual, ou quase igual, mas, não obstante a incrível semelhança física entre ambos, quem os olhasse de longe, havia de reparar na vitalidade com que um corria e na lentidão com que o outro se arrastava. Primeiro decidiu transformar os seus avanços em investidas exploratórias. Ele iria para a frente, procurava um par de moças interessantes e interessadas, voltaria correndo, preveniria Segundo para o encontro e exigia dele que produzisse, entretanto, aquelas frases geniais para captar a atenção das desconhecidas. Quando propôs isto ao irmão, a reação não podia ter sido melhor:
-Excelente ideia, Primeiro. Vá lá explorar que eu fico a congeminar frases fabulosas.

Estrela e Flora, como era hábito todas as manhãs e também ao fim-de-semana, vinham correndo pela marginal. Deixavam o carro no parque do Clube Naval, iam até à Costa do Sol e regressavam pelo mesmo caminho. Vinham já no último terço do percurso, quando se cruzou com elas um rapaz que ia em sentido contrário.
-Viu esse, Flora? Estava olhando para si.
-Eu acho que era para si, mana.
Ainda não tinham acabado de comentar a passagem dele, já ele estava regressando, ultrapassando-as.
-Flora…
-Sim, mana…
-Ou esse é Super Homem e foi lá na Costa do Sol e regressou em menos de um minuto, ou voltou por sua causa.
-Não me parece o Super Homem, Estrela, falta-lhe a capa. Mas foi por sua causa que ele voltou. Aposto que vai olhar para trás em menos de cinco segundos.
-Aposta fácil!
Enganaram-se as duas. O rapaz, não só não olhou para trás, como desapareceu no horizonte. Alguns momentos depois, viram-no voltar, mas trazia um igual ao seu lado.
-Flora…
-Sim, mana…
-Esse daí, se não é super homem, é milagreiro. Olha lá, ele foi um, vem dois.
-É, tem razão, Estrela, mas o clone dele é meio desajeitado a correr.
-É. Tão iguais e tão diferentes. Aposto que vão falar.
-Aposta fácil!
Eles passaram sem dizer nada.
-Como é, mana, não acertamos uma aposta com o Super Homem e o clone desajeitado?
Mas acertaram. Ainda mal tinham passado por elas, Primeiro e Segundo voltaram para trás.
-Segundo, agora precisamos da sua frase.
-Não se preocupe.
Os jovens correram, alcançaram-nas a custo, elas perceberam que eles se aproximavam, olharam para eles e Segundo, pleno de confiança, arriscou:
-Olá meninas, boa tarde, gostam de correr?
-Não. Fazemos isto por obrigação! Disse Estrela.
E arrancaram a correr, deixando-os para trás.
-Que coisa previsível!
-É mana, falta de originalidade.
Não tiveram tempo de comentar mais nada. Ouviram um estrondo e um grito e voltaram-se para trás.

Os irmãos tinham reagido de imediato trocando o passeio pela estrada por haver menos obstáculos e pessoas e acelerando o passo, Segundo, o desajeitado, tropeçou numa das inúmeras arcas congeladoras espalhadas ao longo da marginal repletas de Coca-Colas, Sprites, 2M, Manicas e tudo o que possa refrescar as agruras do calor à beira-mar, uma garrafa de Coca-Cola, dessas que ficam em cima das arcas anunciando o que por ali se vende, tombou e caiu ao chão, Segundo desviou-se dela e, ao fazer esse gesto, ficou mais dentro da estrada, vinha passando um chapa que, surpreendido pelo gesto súbito, não foi a tempo de emendar a rota e o espelho da Toyota Hiace embateu com estrondo nas costas de Segundo que se estatelou. Ficou de costas, a boca muito aberta da surpresa e os olhos a olharem o azul do céu como que a certificarem-se se era o céu dos vivos ou dos mortos. Primeiro acorreu de imediato e em pavor:
-Segundo, Segundo, meu irmão, você está bem? O que aconteceu?
-Acho que atropelei o chapa!
Estrela e Flora aproximaram-se. Flora, com a preocupação estampada no rosto, perguntou:
-Você caiu?
-Não. Estou aqui a admirar a vista!
Rebentaram todos numa gargalhada, mesmo atordoado. Segundo ripostara a tempo de fazer justiça ao que se havia passado há uns minutos atrás. Ela aconselhou:
-Vamos ao hospital!
-Segundo, ainda no chão, a recuperar lentamente todas as capacidades, não se conteve:
-Mano, não só chamei a atenção delas, como as fiz voltar para trás!
-Mas não era preciso quase morrer por isso!
Voltaram a rir e Estrela resolveu fazer as apresentações. Estendeu a mão e disse:
-Estrela.
-Primeiro.
-Primeiro o quê?
-Eu sou Primeiro.
-Estamos fazendo uma corrida?
-Não. Meu nome é Primeiro.
-Primeiro do que o meu?
-Xiii, sempre a mesma coisa! Eu me chamo Primeiro! Primeiro é o meu nome!
-Não diga! E o clone desajeitado é o…
-Segundo.
-Minha nossa! E tem um terceiro?
-É, tem… mas não se chama assim…
-Perderam a conta…
-Mais ou menos isso…
Flora interrompeu:
-Eu sou Flora e acho que devemos levar o seu irmão ao hospital.
Apanharam um táxi e foram. Não havia nada de mais. Ao cabo de umas horas de espera, já tinham conversado o suficiente para que a disposição de Segundo estivesse ótima e, a haver alguma coisa grave, já se teria anunciado. Como não anunciou, decidiram ir esperar para a esplanada do Mundusque é ali perto. E, ao fim da noite, percebia-se claramente que o caráter mais expansivo e resoluto de Estrela pendia para a determinação de Primeiro, enquanto que o recato e a prudência de Flora se inclinavam para o tipo reflexivo de Segundo. E os casais ficaram feitos. Seleção natural. E muito tempo assim duraram e durariam mais tempo ainda não tivessem eles decidido trocá-los!

Estrela está atravessada na cama com a cabeça assente numa mão e o cotovelo espetado no colchão. As longas pernas negras oferecem a sua beleza ímpar ao primeiro homem que entrar pela porta do quarto e a vir semi-nua, só com a lingerie estonteante. Esse homem será Primeiro. Chega do trabalho, coloca a chave na porta, entra, ela pressente-o e chama-o, ele sente o odor do incenso no ar, a tarde cai, há só dois ou três candeeiros de pé acesos, a casa está à meia luz, ele percebe, precipita-se para o quarto e quando a vê nem se apercebe que ela disse, Vem cá meu homem, vem ser o meu Primeiro, atira-se a ela à medida que se despede das roupas, beija-a avidamente na boca e incendeia os seios dela com a sua língua voraz e ardente, procura-lhe o ventre e lambe-o com volúpia, coloca-a de quatro, procura-lhe a carne rosada por entre o ébano da pele e quando a encontra, enterra-se nela, segura-lhe as ancas, movimenta-se em ritmo vigoroso, derrama-se nela e dez minutos depois adormece a seu lado.

Flora seria incapaz de esperar semi-nua em cima da cama por Segundo. Combinaram entre si que quem chegasse primeiro a casa adiantaria o jantar e é o que ela está fazendo. Segundo entra, pousa as chaves, vai à casa-de-banho, aproxima-se dela por trás e beija-lhe o pescoço. Trocam impressões sobre o dia de ambos, sentam-se na sala a ler um pouco e quando Flora pressente a hora de se irem deitar, levanta-se, vai à casa-de-banho fazer a sua higiene, veste o pijama e entra na cama. E é lá que está quando Segundo chega, poucos minutos depois. Deita-se, apaga a luz e começa a sua longa e demorada sinfonia. Dá-lhe beijinhos pequeninos atrás da orelha, depois beijos gordos e generosos no pescoço, as suas mãos percorrem-lhe o interior das coxas, a língua dele procura a dela e as mãos sobem aos seios que ele acaricia com suavidade, e beija-lhos, e deixa-os humedecidos, e desce ao ventre que beija devagarinho, e brinca com o sexo dela e segura-lhe uma mão e tocam-no juntos e quando ela já arqueia o corpo de desejo e solta pequenos gemidos, Segundo deita-se sobre Flora e penetra-a devagarinho e é devagarinho que fica fazendo amor com ela e fica cuidando do seu corpo de mulher jovem enquanto os minutos voam. É já tarde quando explodem em uníssono e os seus corpos vibram de êxtase. Depois, Segundo recosta-se na cama, acolhe a cabeça dela no seu ombro e pergunta:
-Gostou?
-Hum, hum…
E ficam conversando a intimidade até adormecerem nos braços um do outro.

Desde que não estivessem a correr, Primeiro e Segundo eram mesmo muito parecidos. O mesmo formato da cabeça, o mesmo olhar, o mesmo jeito de inclinar ligeiramente o tronco para a frente, as mesmas mãos largas e suaves, até a voz era praticamente igual. Quando estavam no trabalho, a caminho dele, num almoço de amigos, numa viagem de lazer, havia sempre alguém que, dirigindo-se a um deles, perguntava:
-E qual é você?
A verdade é que eles gostavam da confusão e encorajavam-na, ora usando as mesmas roupas, ora dizendo as mesmas frases, ora trocando papéis propositadamente para confundir as pessoas. Em pequenos pormenores do quotidiano, chegaram mesmo a reparar que até Estrela e Flora tinham momentos de hesitação. E foi por causa de uma dessas hesitações que tudo começou. Estrela aproximou-se de Segundo julgando que era Primeiro, abraçou-o por trás, beijou-lhe o pescoço e disse:
-Está tranquilo, meu bem?
-Muito tranquilo. Disse Segundo estremecendo.
-Espero que sim. Esta noite estou contando consigo.
Ele não lhe disse que era o irmão errado, não foi capaz. Mas contou a Primeiro:
-Mano, no outro dia sua namorada me abraçou e me beijou.
-Como?
-No pescoço.
-Não é isso, como é que ela fez isso?
-Ora, pensou que eu era você. Chamou-me Primeiro.
-E você aproveitou, seu safado!
-Não. Mas tive uma ideia.
-Você e as suas ideias…
-Mano, preste atenção. As relações sempre se desgastam, as pessoas sempre se cansam e as relações começam a ser vítimas da rotina e a definhar e depois morrem e há traições e problemas… ora, quem sabe se nós não temos aqui a solução… de vez em quando, sei lá, quando um de nós andasse num momento da relação mais aborrecido, podíamos trocar.
-Quê?! Você é maluco!
-Não concorda?
-Claro que concordo! Mas elas vão reparar.
-Não vão nada.
-Como não vão nada?
-Eu explico. No dia combinado, saímos de casa exatamente com a mesma roupa, meias, cuecas e perfume incluídos.
-Nós já usamos o mesmo perfume.
-Eu sei, foi só para avisar.
-E…
-E à noite cada um regressa para casa do outro. Só temos de partilhar alguma informação sobre elas, o que elas gostam, você sabe… no ato da intimidade, os planos do casal, do que elas andam a falar… que me diz?
-Que você é um maluco chapado! E um génio. Vamos lá trocar namoradas.
-Não, mano, não é trocar namoradas, é trocarmos um ao outro.
-E não é a mesma coisa?
-Tecnicamente não.
Nos dias que se seguiram, Primeiro e Segundo conversaram mais um com o outro do que com as próprias namoradas. A caminho do trabalho, no trabalho, pelo telefone, à noite, trocaram e-mails e lá se iam informando intensamente acerca dos hábitos delas. E assim se urdiu e preparou o plano. E foi como a seguir se conta que se pôs em prática.

Saíram de casa pela manhã. No trabalho trocaram as chaves dos carros e das casas e as carteiras com os documentos e quando a tarde caiu dirigiram-se para a sua escapadela amorosa de dissimulação.

Primeiro conhecia bem aquela entrada, aquelas escadas, aquele elevador que só parava nos pisos ímpares. O facto é que, quando os dois casais decidiram juntar-se, Primeiro e Estrela ficaram na flat que era delas e Segundo e Flora foram morar na flatque era dos rapazes. E é por isso que não há para ele qualquer efeito de estranhamento. O que está fazendo, fingindo, fez muitas vezes a sério. Mas não se engana, hoje leva um fogo no peito, uma palpitação e uma antecipação. Não pode negar, pelo menos a si próprio, que já tivera uns pensamentos atrevidos envolvendo a namorada do irmão. Ficara-se por aí, contudo. Ora, a ideia de Segundo viera reanimar esse desejo. Chave na porta, porta aberta, chaves no aparador, Boa noite, amor, casa-de-banho, cozinha, aproxima-se por trás e beija-a no pescoço, estremece, ela vira-se, olha-o nos olhos e diz, Bem-vindo, meu amor, e beija-o longamente. E enquanto o beijava, ele saboreava o beijo e repetia para si próprio, Devagar, devagar, devagar, nada de pressas. E controlou a sua voracidade. Por momentos. Jantaram e Primeiro esperou que ela se fosse deitar, mas sempre foi dizendo que estava cansado a ver se a apressava com subtileza. Não resultou. Flora estranhou que, nessa noite, ele visse televisão em vez de ler, ainda por cima canais de desporto, mas pensou que eram assim os homens, volúveis e instáveis. E tinha razão. Foi-se deitar. Fechou-se na cama após a higiene e pouco depois, Primeiro, feito Segundo, chegou ao pé dela e lembrou-se das palavras do irmão, Com calma, mano, muita calma, com carinho, com ternura, e pensou que seria assim, com carinho, ternura e calma. Acontece que, após os primeiros beijos no pescoço, depois de trocarem as línguas e assim que Flora lhe ofereceu os seios à visão e ao tato, Primeiro começou a arfar, lambuçou-lhos com vigor, abocanhou-lhe o sexo como se o fosse engolir, pô-la de quatro, segurou-a pelas ancas e cavalgou-a como num filme de cobóis e adormeceu dez minutos depois. Flora, surpresa, pensou que o seu gentil e amoroso namorado se tinha transformado numa locomotiva e, porque é mulher inteligente e sabida,  ocorreu-lhe que talvez ele estivesse tendo outras experiências e foi quando pensou nessa possibilidade que se lembrou, E se sou eu quem está tendo outras experiências?!

Segundo, já de si propenso aos nervos, estava mais nervoso do que nunca. Tremia das mãos e estremecia do coração. E levava aquela ideia colada na mente, Ser enérgico, ser enérgico, ser enérgico, você é que comanda. Chave na porta, dá meia volta, outra meia, ainda, cheira-lhe a caril de amendoim, entra e diz, Boa noite! Estrela apressa-se na resposta, Boa noite? Não tem beijo hoje, não? Claro que tem! Avança para ela que está de volta dos tachos, dá-lhe uma palmada no rabo com a convicção que consegue inventar, roda-a para si e beija-a longa e ternamente. Juntou alguma sofreguidão ao beijo. A suficiente para ela não desconfiar. Jantaram. Estiveram na sala. A certa altura, ela levantou-se e disse:
-Vou dormir. Você vem para o quarto?
-Claro. Claro que vou para o quarto. Me aguarde.
Ela estava a despir-se quando ele entrou e começou a despir-se também.
-Primeiro…
Fez-se um silêncio. A verdade é que Segundo não estava habituado a ser tratado por Primeiro. Estrela levantou a voz e ele acordou:
-Primeiro!
-Sim, amor…
-Então? Você não me vai atacar?
Outro silêncio. Apesar das conversas com o irmão para preparar este encontro, Segundo não sabia bem o aquilo queria dizer. Respondeu com uma pergunta:
-Atacar?
-Claro. Ser minha locomotiva. Arrasar este corpo de pecado…
E já não acabou a frase. Ele atirou-se a ela, beijou-a na boca, acariciou-lhe os seios desnudos com os lábios, com um puxão firme e seco arrancou-lhe as cuecas diminutas e atirou-a para cima da cama, mas todo aquele impulso frenético se acalmou assim que a viu de costas sobre os lençóis. Estrela era uma mulher bonita e pujante, uma fonte de prazer, e ele queria bebê-la, não secá-la, tomá-la gota a gota, não atacá-la, e quase sem se aperceber dobrou o seu corpo sobre o dela, beijou-lhe o pescoço, atrás das orelhas, passou-lhe uma mão pela testa e beijou-lhe as faces devagarinho, depois os lábios, as mãos dele procuraram uma floresta e encontraram um pequeno arbusto e deixou-se ficar a acariciá-lo e tocou-lhe os mamilos muito ao de leve com a língua e foi com ela que lhe incendiou o ventre e o sexo e quando entrou nela, já ela o estava ansiando. Estrela estranhou todo o delicioso tratamento, mas o que mais a espantou foi o facto de ele não ter caído para o lado a dormir. Deitou-se, recostou a cabeça dela no seu ombro e perguntou:
-Gostou?
-Hum, hum.

O dia amanheceu claro e brilhante, o sol nasceu lá longe, para lá da Xefina, emergiu do mar azul e pendurou-se no céu a iluminar Maputo. Quando se encontraram, nenhuma delas sabia se haveria de falar. Flora, por prudência e timidez. Estrela, por ter medo de estar com razão. Ela sabia que a obra de arte da noite anterior não fora da autoria de Primeiro, mas não se importaria de ser enganada outra vez. Acontece que o apelo fraterno foi mais forte. Segurou as mãos de Flora entre as suas e perguntou-lhe:
-Tudo bem consigo?
-Claro. E consigo?
-Tudo bem. Me diga, mana, como estava Segundo ontem?
-Estava… arrasador.
-Como?
-Não interessa… e como estava Primeiro?
-Normal. Tudo bem, Graças a Deus.
-Safada! Você gostou! O meu desajeitado é melhor do que a sua locomotiva!
-Ai mana, será que eles…
-Claro! Até uma cega via! Me diz como foi ele?
-Divinal. O melhor de sempre. Que sedução! Que carinho! Você ficou com o melhor dos dois nesse departamento. Quem diria que esse desajeitado a correr teria tanto jeitinho… e Primeiro, como foi?
-Tentou parecer-se com Segundo, mas acabou a atropelar-me.
-Mana Flora…
-Sim, Estrela…
-Devíamos estar zangadas com eles.
-E estamos!
-Então porque falamos com essa calma sobre o assunto? Nós dormimos com o namorado uma da outra!
-Sei lá. Acho que por duas razões. Primeiro porque isso é uma coisa que se espera dos gémeos, nossa, eles até as doenças partilham! E depois porque talvez também nós desejássemos essa troca secretamente.
-Você quer trocar comigo?
-Não! Eu referia-me a experimentar trocar, por uma vez. Sabe, Segundo é inconfundivelmente melhor amante, mas não me importo de ser atropelada uma vez por outra.
-É, acho que tem razão. Eu prefiro a energia de Primeiro, mas esse mel de Segundo, de vez em quando, para quebrar a rotina, cai muito bem!
-Mas… mana…
-Sim, Flora…
-Há um pormenor…
-Qual?
-Esses dois acham que nos enganaram.
-Você acha que eles pensam que nós não reparámos?
-Claro! Caso contrário teriam revelado.
-Xiii, safados! Como assim? Eles não são nem parecidos na cama.
-Nem um pouquinho. O que fazemos em relação a isso, Estrela?
-Xiii, nem sei… espere lá, esses dois podiam levar uma lição…
-Como assim?
-Me oiça com atenção…

Dois meses passaram até que o episódio da troca de namoradas se começou a esfumar no tempo e os rapazes baixaram a guarda, descansaram a desconfiança e as cautelas e pensaram que a troca tinha funcionado. E foi por essa altura que as mulheres de Quelimane resolveram dar uma lição aos homens de Maputo.

Primeiro vem cansado. Coloca a chave na porta e abre-a. Ao entrar, sente o cheiro da comida pairando no ar e a azáfama de um dia de trabalho começa a ser vencida pelo acolhimento do lar, apressa-se para a cozinha, quer os lábios de Estrela, e quando lá chega encontra Flora.
-Olá, você por aqui?
-Sim. A mana pediu. Coisa chata. Ela hoje vai ficar até muito tarde na agência. Talvez só chegue daqui a umas três ou quatro horas de tempo.
-Então? Algum azar?
-Não. É um inventário. Coisa séria. Têm de estar incontactáveis e tudo.
-E você?
-Deixei Segundo comendo. Ele vai dormir já, já, também está cansado e eu prometi à mana que tratava de si.
-De mim? Disse ele com a interrogação no olhar e a insegurança na voz.
-É, eu disse que vinha-lhe fazer o jantar, mas… – avançou para ele com olhar sorrindo, mordendo o lábio inferior, e as ancas baloiçando um pouco mais do que a conta – se você precisar algo mais é só dizer. Não quero que lhe falte nada… nadinha mesmo. E pousou-lhe um dedo sobre o nariz que deixou escorregar para os lábios dele.
-Mas… Flora, tenha calma, sua irmã, ela vai-se zangar… afinal, nós somos cunhados, quer dizer, uma espécie de cunhados…
-Ai é? E no outro dia quando você me atropelou nós éramos o quê?
-Quando eu o quê?
-Quando você entrou em minha casa, me beijou, me atropelou e me fez sua…
-Você sabe?
-claro que eu sei! Estrela não reparou, acho que seu irmão é melhor imitador. Acontece que eu, não só notei a diferença, como adorei… você é uma máquina sexual, uma bomba orgásmica!
-Ai sou?
-É! E eu quero disso! Muito. Todos os meses. Que estou a dizer? Eu quero você todas as semanas!
-Mas…
-Mas nada. Ou isso, ou conto para ela!
Beijou-o na boca enquanto lhe apertava o sexo mostrando-lhe quem estava no comando. Quando terminou o beijo, virou-lhe costas em direção à porta de saída e disse:
-Coma o seu jantar. A festa começa amanhã!

Segundo chegou a casa, nessa mesma noite. Chave na porta, o odor da comida a invadir-lhe o cérebro, levanta o nariz, inspira fundo o cheiro da sua casa e do seu jantar, sorri e fecha os olhos. Está assim quando ela se aproxima por trás, tapa-lhe os olhos com as mãos e diz:
-Xiiiiiiiiu!
Coloca-lhe uma venda, leva-o para o sofá, senta-o, faz-lhe uma massagem nos ombros e depois vem escancarar-se no colo dele, passa-lhe uma mão pelo sexo e beija-o longamente. Durante o beijo, ele estranhou alguma coisa, tirou a venda com brusquidão e:
-Estrela! Você?
-Porquê o estranhamento? Não lhe sou familiar?
-Como assim?
-Ora, como assim? Acha que eu não notei sua surpresa naquela noite?
-Notou?
-Claro! Você é um poço de mel. Sem fundo! Não há igual a você. Segundo, só no nome.
-E sua irmã? Deve estar a chegar…
-Não. Hoje está de inventário. Vem bem tarde… dá tempo para a gente combinar…
-Combinar o quê?
-Ora o quê? Quando nos vamos ver, onde nos vamos ver, quantas vezes nos vamos ver…
-Mas, Estrela, isso é impossível. Aquilo foi uma brincadeira. Uma vez sem exemplo.
-Pois olhe que, para mim, você foi exemplar! Flora nem notou a diferença.
-Não?
-Não.
-E agora?
-E agora eu estou viciada em seu mel, sua doçura, e vou querer ela para mim, para sempre.
-Sempre?
-Pois, quer dizer, para sempre também não. Todas as semanas!
-Como? Todas quê?
-Semanas.
-Mas… mas…
-Mas nada. Ou isso ou conto para ela.
Caiu sobre ele, beijou-o um beijo lânguido e demorado, encostou os seios aos nariz dele e, súbito, saiu de cima dele, pegou na mala e dirigiu-se para a porta.
-Xau, meu doce, até amanhã!
-Amanhã?
-Amanhã!

Foram vinte e quatro horas infernais. Nem Primeiro, nem Segundo sabiam se haveriam de dizer um ao outro, queriam estar com elas, mas não obrigados e, mais certo do que tudo, não podia permitir, nenhum deles, que a sua própria namorada soubesse que a sua irmã estava viciada e que tudo começara… ah… se arrependimento matasse! Passaram o dia taciturnos, a murmurar respostas desencontradas com as perguntas, a não ouvir o que lhes diziam os colegas e até os chefes, o que custou a Segundo a primeira reprimenda da sua vida profissional. As suas mentes vaguearam na indecisão, sem saber que opção tomar. A brincadeira da troca tinha-lhe saído cara, pensara cada um por si. Segundo foi o primeiro a decidir-se. Ligou a Estrela.
-Olá.
-Olá.
-Estrela, hoje não vou poder.
-Nem se atreva! Flora está aqui ao pé de mim. Quer que ela saiba?
-Não! Não! Quer dizer, não sei… mas não posso… não sei como iludir meu irmão, muito menos minha namorada… Estrela, me desculpe! Me desculpe! Eu imploro seu perdão! Foi uma brincadeira de mau gosto.
-Mau gosto? A mim, soube-me muito bem, cunhadinho…
-Fique séria, Estrela, por favor.
-Eu estou séria, machão, e você está onde eu queria! Me guarde. Vou-lhe dar um sinal ainda esta tarde.
E desligou-lhe o telefone na cara.

Primeiro aguentou-se um pouco mais. Quando resolveu ligar a Flora, tinha um plano. Não lhe apetecia bater em retirada ainda que lhe apetecesse retirar-se.
-Olá.
-Olá.
-Flora, meu amor, estamos combinados para hoje, certo?
Ela estremeceu, mas não se mostrou abalada:
-Claro que sim. Não falte!
-Pois… isto está um pouco complicado no trabalho, mas quero ver se não falho…
-Safado! Quer ver? Quer ver? Eu é que quero ver você nos meus braços, hoje! Ah, e… Primeiro…
-Sim…
-Descarte-se de seu irmão!
-Mas, Flora, o que você pede é impossível.
-Ou fica possível, ou conto para ela.
-Não. Isso não. Flora, me perdoe!
-Como? Não se está ouvindo bem, acho que não tem sinal…
-Perdão! Eu peço perdão. Me perdoe aquela brincadeira tola. Fomos um pouco longe de mais…
-Um pouco longe? Se bem me lembro, você foi bem fundo! E eu adorei. E agora quero mais!
-Flora…
-Me aguarde. Vou-lhe dar sinal ainda esta tarde.
E desligou-lhe o telefone na cara.

Poucos minutos depois estavam as duas mulheres de Quelimane na rua contando palavra por palavra as conversas ao telefone, as súplicas deles, e riam, riam como há muito não se lembravam de rir.
-Flora…
-Sim, mana…
-Que fazemos com esses dois?
-Tenho uma ideia…

Daí a momentos, cada um deles recebeu uma mensagem de SMS da cunhada combinando um copo no Mimmos da 24 de Julho. Elas foram juntas e estacionaram o carro no separador da avenida de frente para o restaurante e ficaram a vê-los chegar. Primeiro tinha-se descartado de Segundo, Tenho de ir ter com a minha dama. Segundo deixou-se descartar e considerou aquilo uma bênção dos céus. Ainda respondeu, Eu também tenho o que fazer lá em casa. Sabe como é, manutenção. Segundo chegou primeiro. Sentou-se e esperou por Estrela. Quando viu chegar Primeiro, ficou sem pinga de sangue.
-Mano, você aqui? E sua dama?
-E sua manutenção?
-Decidi parar aqui para uma geladinha
-É. E já não gosta de uma geladinha comigo?
-Gosto, mas você disse que ia para casa?
-E ia, mas não fui… oiça, Segundo, precisamos falar…
E ia continuar quando se aproximaram duas figuras femininas que não precisavam de apresentação.
-Podemos saber o que estão os senhores aqui a fazer?
-Ah… nós…
-Mana Flora, acho que estes dois devem estar a preparar alguma…
-É, mana Estrela, devem estar a pensar em engatar duas irmãs para depois as trocarem na cama!
-Flora, nós… eu…
-Cale-se! Mana Estrela, qual é o seu?
-Nem sei bem, mana Flora… acho que é esse machudo aí da esquerda, mas ultimamente isso varia com os dias.
-É? Consigo também?
-Verdade…
-Pois o meu devia ser aí o desajeitado jeitosinho da direita, mas ultimamente ele vira locomotiva de vez em quando…
-Meninas, por favor…
-Por favor? Você disse por favor? Não queria dizer outra coisa?
E eles curvaram-se, desculparam-se, desdobraram-se em explicações, que fora uma brincadeira, uma ideia maluca, uma coisa para não se repetir, e quando a situação roçava a humilhação, elas decidiram aceitar as desculpas, Flora dirigiu-se propositadamente a Primeiro e pegou-lhe por um braço, Estrela fez o mesmo com Segundo.
-Vamos, meninos. Para casa que se faz tarde!
Segundo ainda disse:
-Mas… nós estamos trocados!
-Não estão nada. Hoje fica assim!
-Hã?! Assim?! Vocês vão-nos trocar na cama outra vez?
-Cama? Quem falou em cama? Hoje, vocês vão cozinhar para nós!

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Só um cheirinho…

“A história conta-se em poucas palavras. Homens que nunca daqui saíram. Mulheres que vieram de longe. Quelimane. Quem vem de Quelimane diz que é onde nascem os melhores ananases, onde ficam as praias mais tentadoras, onde crescem as mulheres mais dotadas e onde se cozinha a melhor mucapata de caranguejo…”
Brevemente, neste blogue, um conto da série “Histórias a Preto e Branco”…


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Histórias a Preto e Branco – A Arte da Vida

Histórias a Preto e Branco

A Arte da Vida

É um homem robusto, tem o carvão na pele. Porque nasceu com África nas veias e porque trabalha nas minas. Vê pouco o céu. E quando o vê, normalmente é de noite. É um tipo atarracado, com uma estrutura óssea larga e rija como o ferro. Ganha pouco. Melhor que muitos. O problema não é esse. São os filhos. Ele tem vontades loucas no ventre. Sai da mina, cruza-se com as raparigas nas ruas e quando chega a casa, enterra o desespero em Recebida e faz-lhe filhos. Nem sabe bem quantos tem. Foram nascendo. Deus os trouxe e a alguns os levou. Agora mesmo, enquanto empurra um carro de mão carregado de material, sabe que ela deve estar-se aliviando de uma barriga do tamanho da lua. Os filhos saem de casa cedo. Aí pelos três anos já dançam nas ruas à espera que caia uma moeda de um passante que lhes ache gracinha. Não dá para compreender esses brancos. Lutam tanto pelo dinheiro e depois não o guardam. Jogam-no na rua a quem o pede. Ele não é assim, prefere gastá-lo em Manica fresquinha a escorregar pela goela abaixo e só não gasta mais porque Recebida precisa dele. A última vez foi para comprar uma esteira.
-Vou comprar uma esteira, Carvão.
-E para quê você quer mais uma esteira, Recebida?
-Ora, teu filho vem aí.
-Qual?
-Sozinho.
-Já temos um filho chamado Sozinho?
-Vamos ter…
-Ah… está falando dessa barriga aluada.
-Aluada?
-Sim… parece que engoliu uma lua.
-Mas não é uma lua que vai sair dessa barriga. É a sua semente crescida, Carvão.
-E porque lhe vai chamar Sozinho?
-Ora, porque vai nascer sozinho.
-Vai? Está a pedir-me que venha aqui ajudá-la?
-Xiiii, nessas alturas homem só estorva. Eu mesma faço tudo. Quando ele começar a me pedir para sair, eu aqueço uma água, coloco no alguidar, abro a esteira, me sento nela, me inclino para o lado e espero a sua chegada. Dessa vez serei só eu e ele. Os outros já vão andar nas ruas a semear vida e a colher o que Deus der…
-Recebida, você sabe mesmo ter um filho sozinha?
-Esse é o nono. Acho que já deu para aprender.
-Recebida, porque você compra sempre uma esteira nova para parir?
-Porque eu sei, Carvão, que essa é provavelmente a única coisa nova que vão ter na vida!

Recebida é mais alta do que Carvão. E sua estrutura é mais fina. Sua pele tem um tom mais suave. Mas ela não a pinta com o trabalho das minas. Planta couve, alface, tomate, pepino, arranja a terra, limpa as ervas, cuida da casa e quando amanhece vai vender no mercado de Ribáué. Hoje está sentada de lado numa esteira. E Sozinho está nascendo. Assim que o limpou, percebeu que era diferente dos outros. Atarracado como o pai, mas de traços elegantes como a mãe e, sobretudo, tranquilo. Nem chorou muito e logo se calou e se agarrou na mama. Com o passar do tempo se percebeu que tinha o olhar profundo como se quisesse ver as coisas para além delas próprias. E quando o tempo avançou, não saiu para as ruas, ficou ajudando a mãe com a horta. Gostava de mexer nas coisas, tocá-las, senti-las, perceber a textura, as formas, onde começavam e acabavam, e olhava, olhava, olhava como se quisesse engolir o mundo com os olhos. Às vezes ficava parado a olhar um tchova passando, outras vezes, a frente de uma casa, outras vezes, uma pessoa. E ia no mercado com a mãe vender e ficava olhando as roupas das pessoas, a forma como se movimentavam. Um dia, chegou um cliente para comprar pimentos e trazia pela mão uma criança que trazia pela trela um cão. Sozinho segredou no ouvido da mãe para que ninguém escutasse, não fosse ser pecado:
-Eu sei fazer aquilo.
-O qué?
-Eu sei fazer aquilo, minha mãe. Só não sei como. Eu sei aquelas formas e aquelas curvas.
-Tu estás maluco, menino?
-Não, mãe. Estou cheio de coisas na cabeça que querem sair.
Recebida quase desmaiou. Contou para a vizinha Problema que contou para seu marido, Pacífico, que pediu para ver o menino. E o analisou, e falou com ele e lhe perguntou de onde vinham aquelas ideias.
-Não sei. Nascem sozinhas na minha cabeça. Eu as tenho parido como minha mãe me pariu a mim. Sozinho. Sem ajuda.
Nos dias seguintes, Pacífico andou observando o comportamento do miúdo e uma noite bateu na porta de Carvão:
-Carvão, meu amigo, meu velho amigo, Recebida, minha vizinha, minha respeitável vizinha, eu tenho um diagnóstico. Esse filho de vocês não pode ir trabalhar nas minas como os irmãos. Não sei como você fez isso, Carvão, mas você semeou um artista e sua mulher o pariu.
-Um artista?!
-E dos bons. Assim como o Mestre Malangatana, como o Mestre Craveirinha, só não sei qual é a arte dele. Vocês sabem, os artistas são como os vulcões. Nós sabemos que estão lá, sabemos que vão explodir, só não sabemos quando nem como…
-E o que fazer?
-Posso aconselhar?
-Claro… tem cura?
-Naaa… a única cura é deixar brotar… mas pode-se procurar…
-Procurar o quê?
-O sentido da arte dentro dele..
-Fale claro, amigo Pacífico.
-Porque vocês não o levam para o Mestre Genuíno, o deixam por lá, a ver se alguma coisa daquilo o desperta, a ver se as ferramentas do Mestre lhe comunicam ideias e se as ideias dele querem sair com essas ferramentas…
-E não se paga?
-Genuíno é meu amigo de nascença, temos no corpo as mesmas marcas da guerra, é só pedir…
-Ficamos devendo-lhe esse favor…
-Devendo… eu que lhe devo por todas essas verduras e frutas que deixou no chão da minha porta todos esses anos. Estamos quase pagos.
-Quase?
-Sim, minha parte só estará paga se o diagnóstico estiver correto.

Genuíno tinha uma curva nas costas, como se toda a vida tivesse tido um peso forçando a cabeça a estar inclinada. E teve. O peso das ideias. Sentava-se num banco pequeno, colocava um pedaço de madeira entre os joelhos, pegava numa ferramenta e nascia uma zebra, um elefante, um crocodilo, um pássaro. Outras vezes, recebia encomendas mais utilitárias:
-Mestre Genuíno, dá para fazer uma cama, minha filha vai casar…
-Só se tiver arte nela.
-Pode ter.
E ele tirava as medidas, cortava o tabuado, e se dedicava a entalhar floreados e figuras na cabeceira e a tornear as pernas da cama. E eram mesas de cabeceira e cómodas e cadeiras e mesas de jantar e almoçar. Desde que pudesse levar arte… Genuíno olhou o miúdo Sozinho e gostou logo dele. Tinha a calma e a contemplação do artista. O miúdo, assim que entrou na oficina, sentiu o cheiro da madeira e da cera entrando-lhe pelas narinas, queria ver tudo e não conseguia, eram coisas demasiadas, mas uma coisa soube. Até esse dia tinha andado perdido. Meio nascido. E agora estava nascendo o que faltava, estava-se encontrando naquele cheiro de ideias paridas.
-Queres mexer nalguma coisa?
-Quero!
-Mexe.
Olhou as ferramentas, os pedaços de madeira, passou com a mão sentindo a textura da lenha, segurou num formão pequenino e num madeiro e iniciou de parir uma ideia. Era um homem com uma criança pela mão que tinha um cão pela trela. Mestre Genuíno sentenciou:
-Falta-lhe a técnica. Falta-lhe conhecer as ferramentas. Falta-lhe saber a arte do acabamento. Falta-lhe aprender muita coisa…
-Falta-me muita coisa. Quer dizer então que não sou artista…
-Pelo contrário. Tudo o que falta-lhe é muito pouco quando comparado com o que tem. Tem ideias que querem nascer. Pacífico diagnosticou bem. Como sempre. Devia ser médico de cabeças, esse lá.
O tempo passou. Passa sempre. Sozinho aprendeu as artes da madeira, as técnicas, o namoro das ideias, a forma mais apropriada de dar-lhes vida. Pagava ajudando nos trabalhos práticos de aprontar o tabuado de uma cama, as costas de um armário e quando era particularmente bem sucedido ou quando conseguia vender uma ideia em madeira, Mestre Genuíno oferecia-lhe uma ferramenta. Claro está que a porta do mestre passou a acordar os dias com pimentos, pepinos, tomates e verduras encostados. Não era um pagamento. Era uma troca. Ribáué foi encolhendo à medida que Sozinho foi crescendo. Ele queria mais e a terrinha tinha pouco para dar-lhe. Almejava o  mundo. Queria ver outras vidas, queria sentir o pulsar de outras gentes e precisava olhar o mar. Tudo junto numa palavra: Maputo! E foi. Dois anos juntando para a viagem. A mãe chorando duas perdas. A do filho que partia e a do sustento da casa desde que Carvão morrera trabalhando na mina. Sozinho confortou:
-E vou voltar para lhe levar comigo.
Foi uma viagem alucinada. Engavetado num chapa, entalado entre a generosidade das carnes de uma velha gorda e a janela da carrinha. Olhou tudo, viu tudo, comeu pouco, cheirou, sentiu. Quatro dias depois entraram em Maputo e Sozinho achou que estava noutro mundo. Que havia morrido como seu pai Carvão e tinha renascido nessa terra distante e louca. Tinha um saco consigo. E nele as ferramentas. Roupa, só a do corpo. E procurou onde dormir e procurou as oficinas da arte e não as havia. Só carpintarias de móveis. Ali, ao fundo da 24 de julho, junto à rotunda para a Matola. Começou por aí. Mas a arte corria no sangue e mesmo numa cama e numa mesa de cabeceira se mostrava ao mundo. Era outra perfeição, eram peças que contavam histórias. Passou a ser disputado e rápido conseguiu ter uma oficina pequenina só para si e um rapazinho, ajudante, trazendo as peças para a rua, pela manhã, chamando quando aparecia um cliente a enamorar-se do seu trabalho e a comprar-lhe uma peça, e a arrumar tudo de volta ao fim do dia. E expunha a arte na rua. E vendia. Um dia foi ver o mar. caminhou a avenida quase toda e depois apanhou uma chopela e disse para o condutor:
-Leva-me no mar.
Quando chegou à marginal e viu o sol rebrilhar na água desfazendo-se na areia, renasceu pela terceira vez na sua vida. Aquilo é que era arte. Era mais do que arte. Era um milagre do Universo. De novo as ideias lhe borbulhavam na cabeça e pediam para sair todas ao mesmo tempo. Sozinho concentrou-se numa imagem. Um pescador vinha saindo do mar, com água pela cintura, puxando a sua rede e na beira da praia dois meninos o esperavam de braços estendidos como que o chamando para o receber com a dádiva do pescado nas redes.

Chamava-se Estendido. Pescava desde que se conhecia. Assim que nascera, o mundo soubera-lhe a sal. Assim que ouvira, seu pai e seu avô lhe falaram do mar. Assim que andara, entrou pela água salgada dentro desafiando as ondas mansas da Macaneta. Nunca quis conhecer mundo. O mar bastava-lhe. Conversava com ele. Contava-lhe os pequenos truques que aprendia para o domar, confessava-lhe pormenores da sua vida doméstica e pedia-lhe que lhe trouxesse o peixe a tal parte à hora tal. E perguntavam-lhe:
-Estendido, como sabes sempre onde vai passar o peixe?
-Pergunto ao mar.
-E o mar diz-te? O mar fala contigo?
-Todos os dias.
-Tu emalucaste da cabeça, Estendido.
-Ah sim? Emaluquei? Então diz-me lá como sei sempre onde vai estar o peixe?
Nos dias em que não saía para o mar, Estendido sentava-se na areia, abria as pernas, colocava uma rede no meio e ia remendando, aperfeiçoando, e pensava no manuseio do barco e da vela e nos movimentos de puxar a rede. E quando cresceu e os amigos andavam espreitando as moças quando arredavam as capulanas para se aliviarem, ele continuava baloiçando no barco, ajudando o pai, conversando com ele e com o mar. E quando Deus quis levar o pai, ele continuou a entrar no barco, a desafiar sozinho o Índico azul, a pescar ao largo de Maputo, a desembarcar na praia da cidade para negociar o produto da pesca com os vendedores do mercado do peixe. Um dia, desses dias em que não saiu para o mar, Generosa veio ao seu encontro. Era pouco mais velha. Sabida, esperta e generosa na partilha da vida, mesmo a sua.
-Tu és bom.
-Não sei. Não sei o que é ser bom.
-Mas eu sei. O teu interesse é pelo mar, pelo peixe, pelos teus gestos. Devia haver mais como tu.
-E não há?
-Não sei. Eu só conheço-te…
Sentou-se ao lado dele. Colocou-lhe uma mão firme numa das coxas moldadas pelo trabalho no barco e continuou a frase suspensa…
-Podias fazer Estendidos e Estendidas em mim…
-Ora, eu não preciso de mulher. Eu não quero mulher.
-Mas o mundo precisa de ti, precisa de mais Estendidos…
-E porquê tu? Tu és generosa com todos…
-Porque eu te vi.
-Os outros também me veem.
-Naaa… os outros olham-te. Eu vejo-te a falar com o mar e acredito nessa conversa.
-Acreditas?
-Hum, hum…
-Mas eu não sei como fazer com mulher…
-É como um barco. Cada mulher tem ventos em si que lhe sopram a vontade e os gestos. Só tens de perceber essa ventania danada e orientar o barco da vida com ela. Sem contrariar de brusco para não partir, sem deixar correr desenfreada para não perder, e mantendo em forma, remendando a vela, cosendo a rede, tratando com o carinho de quem sabe que vai ser recompensado. Se falares comigo, como falas com o mar, eu vou-te responder como o mar.
-E os outros?
-Quais outros? Onde está Estendido e Generosa não cabe mais ninguém. Se me fizeres um filho aqui mesmo, na areia da praia, agora mesmo, neste instante, com o sal da tua pele no açúcar da minha, vais ver que ninguém vai vir aqui nesses momentos. Até os passarinhos vão voar longe.
Fez-se um silêncio. Estendido procurou os caranguejos na orla da rebentação. Nada. Nem umzinho desses todos que sempre andam por aí. Olhou nos olhos dela e os olhos dela conversaram com ele. E esse filho foi gerado ali mesmo. Chama-se Feito na Areia e já ajuda o pai na pescaria. Aprende rápido. Tem um irmão e uma irmã. Feito no Barco e Feita em Casa. Estendido nunca pensara que a vida poderia ser tão generosa com ele. Mas o advento de Generosa lhe trouxe milagres. A casa limpa, a roupa preparada, uma mulher para conversar nos dias em que não sai para o mar, umas coxas quentes e roliças a envolvê-lo quando o sangue aquece e a vida quer viver, um barco de vela enfunada para marear, uma rede para pescar e agora filhos para o ajudar. Estão crescendo fortes e saudáveis que dá gosto. Vai pescando ao largo de Maputo, lança rede, puxa rede, quando sai do mar, separa o pescado e dá as ordens:
-Feito na Areia leva esse no mercado e entrega para a peixeira Zubaida. O preço está feito. Traz o dinheiro. Feito no Barco, tenta vender esse aí na beira da estrada. Ata tudo com essa corda aí e pega pendurado pelo rabo. O preço é o de sempre.
E vende Peixe Papagaio, Vermelhão, Palmetas, Pargos e Chireuas. Quando aparece um Serra, leva para casa e entrega para Generosa.
-Para a mãe dos meus filhos!
-Quais?
-Como quais?
-Os Feitos ou os por fazer?
Mergulharam nos braços um do outro ali mesmo, na cozinha, o sal dele e o açúcar dela bailaram na tarde quente e húmida da Macaneta e quando a criança nasceu, o nome estava há muito escolhido. Por Fazer foi o quarto e último filho de Estendido e Generosa. Nada na vida dos outros lhe interessava, tão preenchido andava com a sua. Quase não os via. Mas no outro dia viu. Chegou à Macaneta mais cedo do que o costume e a cena era tão violenta que não pôde deixar de ver. Uma carrinha pick up branca deslocava-se na sua direção, vinda da praia, deslizava rápido e cuspia a areia do chão para o ar, lá dentro, um português gritando e gesticulando, dando murros no volante enquanto conduzia. A seu lado, uma mulher branca lavada em lágrimas, o horror espelhado na face, as mãos levantando-se tentando esconder a dor e chorava. Chorava tão alto que ele conseguia ouvi-la do lado de fora das janelas fechadas.  Quando acabou de ver,  sentiu-se feliz por ter a sua vida e não a dos outros. Nesse dia perdeu tempo olhando Generosa na cozinha, conversou com os filhos e deu-lhes conselhos para a vida. Deitou-se feliz e sereno e de manhã quando o seu barco saiu para o mar com dois jovens a manobrá-lo, o mundo não reparou que faltava Estendido nele. Só Generosa e os meninos sabiam. Ela perguntou-lhe:
-Não vais no mar, hoje, meu Estendido?
Ele não respondeu porque os falecidos não falam. Não pôde dizer-lhe que tinha vivido feliz, que tinha morrido feliz, que tinha morrido quando quisera e antes que alguém lhe pudesse estragar essa felicidade.  Não pôde dizer-lhe que não quereria, nunca, outra mulher, nem outros filhos, nem outra vida, não pôde dizer-lhe que morreu porque quis, para preservar a felicidade em vida. Não pôde dizer-lho, mas ela soube. Onde está Generosa e Estendido não cabe mais ninguém.

António Manuel Batista nasceu no Porto.  Ainda na barriga da mãe, anunciara ao que vinha. Cedo se sentiu a criança mexer e revoltava-se todos os dias e pontapeava a barriga redonda e empinada. Cresceu endiabrado. Participava em tudo o que era atividade, dava água pela barba aos professores, era dinâmico e irrequieto, impetuoso no gesto e vigoroso na vontade. Cedo se percebeu que não tinha pachorra para enamoramentos alongados e enfeitados com pormenores. Chegava ao pé das raparigas e dizia o que queria. Tinha a arte ludibriosa de ver vantagens em tudo, até numa negação, até numa derrota. Quis jogar à bola, mas cedo se percebeu que era indisciplinado. Andar à bofetada com colegas de equipa não era prática aconselhável ao sucesso no desporto. Cresceu entroncado, largo de costas e mãos amplas. Com facilidade lhe fugiam para a cara dos outros. E, contudo, tinha caráter. Sabia o que queria, quando queria, como queria e possuía a arte de descobrir como ter o que queria. Era de uma determinação férrea. Desconhecia por completo o que significava desistir. E explodia. Fosse em gestos de ternura, fosse em gritos autoritários e zangados. Quando percebeu que a escola iria ser um calvário, quis aprender algo prático, inscreveu-se num curso técnico-profissional de eletrotecnia e, assim que se apanhou com a habilitação na mão, começou a trabalhar que nem um louco. A carteira profissional chegou em pouco tempo e um emprego estável também. Não gostava de esperar que as coisas lhe acontecessem e assim que percebeu que a crise em Portugal o poderia prejudicar, assim que pressentiu a sombra do desemprego, tratou de se informar, de ver outras possibilidades. Um dia, estava a jantar com a sua doce Susana, e anunciou-lhe:
-Vamos para Moçambique!
-Hã? Estás-me a perguntar?
-Não. Estou-te a dizer.
-E já me perguntaste se eu queria?
-Se não quiseres, ficas.
Susana Vital era de Gaia. Vivia do outro lado do rio. Conheceu-o num torneio de futebol entre escolas. Quando lhe disseram que ela não era miúda para ele, António tomou-a para si em menos de um fósforo. Ela ainda resistiu. Percebeu aquela vertigem de inquietude e certa brusquidão no trato, mas admirou-lhe a coragem e a determinação. Apaixonou-se. Andaram namorando durante o tempo de escola até que ele decidiu casar e ter filhos. E teve. Dois. Um menino primeiro. Uma menina depois. Educava-os com veemência e um rigor exagerado que Susana atenuava com carinho e ternura. Amava-o a ponto de tudo. Tudo faria por ele como estava certa de que a dedicação que ele lhe demonstrava indicava que também António faria tudo por ela. E por isso aceitou ir para Moçambique. Três meses depois. António assim decidiu:
-Sei lá se aquilo é terra para ti. És flor de estufa como a tua mãe. Vou à frente. Arranjo casa. Preparo as coisas e depois segues para lá.
-Posso trabalhar… quero trabalhar…
-No início é melhor não. Temos de pensar nas crianças e é preciso alguém que cuide da casa. Quando assentarmos, trabalhas. Ganhas para as tuas coisas.
Quando Susana foi ter com ele, António tirou duas semanas de férias e mostrou-lhe Maputo, como é que a cidade funcionava, os costumes, as avenidas principais, onde ficavam as instituições. Tinha alugado uma vivenda na rua de França e contratara uma empregada e uma menina para a ajudar com os filhos. Na segunda semana levou-a Inhambane, mostrou-lhe a Praia da Barra, o Tofo, o Tofinho, a Praia dos Coqueiros. Na terceira semana divorciou-se dela. Por mais tempo que passe, por mais vida que viva, Susana não consegue esquecer-se desse dia. Já lá vão quatro anos. Tudo parece tão distante agora. Finalmente, olha para trás no tempo com alguma tranquilidade. A vida recomposta das coisas materiais e reequilibrada nos afetos. Os dos filhos e os desse homem tranquilo e pacífico que lhe entrou pela vida dentro da forma mais inesperada possível. Tudo parece tão distante… Lembra-se bem. António mostrara-lhe a cidade conduzindo frenético pelo trânsito de Maputo, levara-a ao Zambi, à Cristal, ao Mar na Brasa e depois foram a Inhambane. Ficaram na Casa do Capitão e ela queria um tempo para contemplar a baía dos flamingos e ele sempre inquieto a puxá-la para todo o lado. Dois dias depois de regressarem do passeio, levou-a à Macaneta. Atravessou a carrinha na jangada, conduziu pela areia e estacionou o carro junto à praia. Caminharam lado a lado com o mar a vir beijar-lhes os pés e quando ela se quis pendurar no pescoço dele para o beijar, ele segurou-lhe os braços e disse:
-Tu sabes que eu sou um tipo honesto. Não sou capaz de fingimentos. Tenho outra pessoa. Gosto dela. É irrequieta como eu. E gosta de mim. Eu sei que pode parecer-te repentino…
-Repentino? Tu achas que é o repente que me preocupa? Nós mudámos toda a nossa vida para esta terra! Os nossos filhos estão cá. Longe dos avós, estamos longe de tudo e de todos, eu mal me oriento na cidade, abdiquei de tudo por ti, por nós… e tu achas que me preocupa o repente… Antes fingisses, seu canalha! Antes fingisses e ao menos cuidasses da tua mulher e dos teus filhos!
Enfiaram-se na carrinha, ela ralhando com ele enquanto chorava convulsamente a sua desgraça, ele tentou acalmar-se, mas acabou exaltando-se com as acusações e breve começou a responder-lhes. Susana lembra-se com clareza da violência dessa discussão. Lembra-se das lágrimas lhe correrem pela face, lembra-se dos seus gritos, dos gritos dele, dos murros no volante e lembra-se do ar aterrorizado de um pescador, na beira da estrada, vendo-os passar com um peixe na mão. Na altura não soube o que era, nem isso interessava. Mais tarde, rememorando esses momentos de sofrimento e aprendizagem, iria jurar que era um peixe Serra. Quando a desgraça se abateu sobre si, procurou forças onde as não sabia ter. António tinha-lhe alugado um pequeno apartamento na Mao Tse Tung. Pagara três meses de renda para ela se recompor. Ela conseguiu trabalho, mas não com vencimento para sustentar aquela casa. Mudou-se para um apartamento mais pequenino nos prédios da Coop, dormiam em esteiras no chão cobertas com mantas e tapavam-se com lençóis. Deslocava-se a pé e no chapa. Mês a mês foi recuperando a força, reafirmando a dignidade e reconstruindo a vida. Primeiro, uma mesa para a cozinha, depois, pratos e talheres, depois, umas roupas de corpo. Não se importava de comprar nas calamidades. Mais tarde, já a vida lhe corria bem, e ainda lá ia. Ficara-lhe o hábito de caminhar por entre as pessoas na avenida da Guerra Popular. Depois, uns lençóis novos, depois, uma cama para as crianças, e material escolar, e uma visita ao médico num mês em que um problema de saúde lhe estragara as contas, e um frigorífico e um dia houve, dois anos depois, em que comprou uma televisão e fizeram uma festa.

A sua cama esperou quase três anos. E quando conseguiu dinheiro para ela, foi uma vitória. Como se oferecesse um presente de rainha a si mesma. Como se, erguendo o seu corpo da esteira para a cama, se levantasse do chão como no título do livro do escritor. Apanhou o chapa, levava um sorriso nos lábios, saiu na 24 de julho, mesmo ao pé dos vendedores de móveis junto à rotunda da Matola. Começou a ver camas e mesas de cabeceira e a avaliar o preço delas cotejando-o com o seu orçamento. Eram sólidas! E algumas com recorte interessante ainda que de acabamentos toscos. E deslocava-se tranquila, falando com os vendedores, tratando-os por tu. E encontrou uma que lhe pareceu diferente das outras. Era como se fosse mais do que uma cama. Era uma peça de madeira que queria contar uma história. Tinha arte. Divisavam-se figuras humanas por entre uma folhagem. Eram três casais. Um de jovens, um de adultos, um de idosos. Estava um miúdo junto à cama e ela perguntou:
-Quanto vale?
-Dez mil.
-É muito.
-Não tem desconto.
-Quem fez?
-Foi ele. Respondeu o miúdo apontando para o interior de uma pequena oficina.
Ela foi lá:
-Foste tu que fizeste?
-Fui.
-Está caro.
-Depende…
-De quê?
-De querer pagar só a cama ou a história com ela…
-É muito bonita, mas dez mil é muito.
-Quanto oferece?
-Sete e quinhentos.
-Está curto. Aumenta lá…
-Não tenho…
-Fazemos assim. Se adivinhar a história desses casais, pode levar por sete e quinhentos…
-Não são casais. É um casal partilhando a vida desde a juventude até à velhice. A Natureza é a harmonia dessa vida em conjunto…
-Xiii, não estou a lhe aguentar… pode levar…
-Toma. Estão aí oito mil.
-Eh, pensei que só tinha sete e quinhentos.
-Era margem de negócio para comprar uma cama, mas isso não é uma cama, é arte… entregas?
-Claro.

É um quarto pintado de branco. Tem uns cortinados em azul clarinho como o céu e, tratando-se de Moçambique, também como o mar. Tem pouca coisa. Uma cadeira, uma mesinha de cabeceira, uma cama com três casais envoltos em folhas a enleá-los, esculpidos na madeira sólida da cabeceira. Nessa cama está um colchão. Nesse colchão não tem lençóis. Não houve tempo. Tem só um corpo musculado e negro de um artista se entregando na carne branca de uma mulher renascida. Acaricia-lhe a pele como faz com a madeira quando lhe quer fazer nascer uma ideia. E ela mexe-se como se a ideia estivesse nascendo em si.
-Como te chamas. Sussurrou no ouvido dele.
-Sozinho. E sentiu-se nascer pela quarta vez na sua vida.

Ao fundo da cama tem uma mesinha pequenina e baixa. Em cima dela está uma escultura em madeira. Sozinho trouxe como presente para a mulher que sabe ler histórias nas imagens talhadas na lenha. É o mar rebentando devagarinho na areia, um pescador com ar feliz e realizado puxando sua rede com água pela cintura e dois meninos esperando por ele de braços estendidos.

jpv


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Histórias a Preto e Branco – Mulheres de Nampula

Histórias a Preto e Branco

Mulheres de Nampula

Eduardo Monteiro sobe a 24 de Julho no seu Toyota Prado de 2002. Bom carro. Pleno de força e resistência. Ideal para as ruas de Maputo. Claro está que gasta catorze litros aos cem, mas, desde que veio para aqui, não tem de preocupar-se com isso. Em Portugal, as coisas estavam para além de difíceis, praticamente no desemprego. Aqui, não só é um tipo ativo, como ganha bem e, sobretudo, vê o produto do seu trabalho ter consequências, ajudar as pessoas. Aqui, sente que pode fazer a diferença. Moçambique salvou-o. Não só da falência financeira. Isso era o menos. Salvou-lhe a alma. E isso não tem preço. Aqui controla, decide, põe, dispõe. Executa os projetos tal como os idealizou. Aqui, à noite, tem à sua espera as coxas quentes de Inesperada. Ou não. Que é de repentes, a moça. Tem vontades.

— P&B —

E lá vai conduzindo, finta um buraco aqui, ultrapassa um chapa ali, e a cabeça volta-lhe ao calor das coxas. Mas não às de Inesperada. Antes as de Felizarda. Essa mulher envolvente e escaldante que lhe tem ocupado os pensamentos todos. Se o pensar fosse um rio, essa mulher seria uma leoa sedenta bebendo o rio todo agachada na margem. O problema é que lá ao fundo, na foz, o mar está estranhando que lhe chegue tão pouca água. E o mar é Inesperada.

— P&B —

Muitas coisas se dizem sobre as mulheres de Nampula e, além dessas, outras tantas poderiam dizer-se. Que são autónomas, que são sedutoras, orgulhosas, que são determinadas, que têm nas ancas o meneio de quem peneira a farinha. Pois sim, tudo isso é verdade. Para elas e para mulheres de outras paragens. Ora, o que é seu, intrinsecamente seu, e, olhai lá, leitores, que isto disse-me uma mulher de Nampula, é que, em escolhendo o seu macho, em o trazendo para o seu redil, o seguram como mais nenhuma mulher é capaz de fazer. Para sempre. Até que queiram.

— P&B —

Empurram-no, afastam-no, deixam-no prisioneiro do desejo, depois chamam-no à mão e dão-lhe uma pequena ração. Nada que o satisfaça. Somente que o faça querer mais. E hão de servir-lhe o prato completo quando entenderem que o merece. E voltam ao início. Empurram-no, afastam-no… E este fluir das coisas vai bem e traz toda a gente feliz e no seu lugar até que apareça uma leoa Felizarda na margem sorvendo a água.

— P&B —

Certa noite, estava Eduardo desassossegado e vinha-lhe a inquietação de querer e não ter. Estava suspenso e louco de desejo. Inesperada sabe onde o tem e sabe que é nesse preciso momento que uma mulher agarra o seu macho, o segura até que esteja de novo saciado, aquietado e sem perigo de procurar a caça noutras paragens. Está, portanto, na altura de servir-lhe o prato completo. Ele acordou e sentiu ruído na casa, um restolhar distante e próximo, estendeu um braço e ao seu lado não estava ninguém. O que anda aquela mulher a fazer a pé às duas da manhã? Interrogou-se. Levantou-se. Caminhou estremunhado e deu consigo à porta da casa de banho. Havia uma banheira à esquerda continuando no sentido da porta e o que viu então nunca esquecerá. Inesperada estava de saltos altos, tinha uma camisa de dormir muito curtinha numa cor leve e com umas florzinhas cor de rosa estampadas, por baixo via-se o desenho da cueca diminuta e os seios generosos pendendo porque ela estava inclinada sobre a banheira. Tinha uma perna direita e a outra dobrada para trás pelo joelho com o longilíneo salto alto espetado no ar. Não se baixara, dobrara-se pela cintura e tinha o tronco muito direito pendendo sobre a banheira. Ele olhou o perfil dela, sensual, atraente, a acordá-lo do sono e a levantar em si todos os ânimos e esqueceu-se de tudo, nem foi capaz de dizer nada de jeito. Para justificar a sua presença ali, ainda balbuciou:
– Que estás a fazer?
– Ora, que pergunta é essa? Estou a lavar a banheira.
– A esta hora?
– Claro. De manhã o meu homem há de vir tomar o seu duche…
Esticou uma perna para o balde que, vá-se lá saber como, não estava ao seu alcance:
– Hás de dar-me esse balde. Estou a pedir…
– Sim, estás a pedir.
E não se lembra de mais nada. Em menos de um fósforo tinha-lhe as ancas entre as mãos e tomava-a para si. Percorreram o caminho dos gemidos lânguidos afogados no suor excitado e depois de diversas rodadas, acabaram brindando na cama em afagos e carícias de mel.
– Vais-me matar com tanta doçura, mulher.
– Sabes o que fazem as mulheres de Nampula quando são mães?
– Não…
– Depois que a criança nasce, durante um ano, uma vez por dia, derramam umas gotas do leite do seu seio no sexo do bebé.
– Para quê?
– Para que cresça com ele essa doçura que provaste ainda agora.
Quando adormeceram, Inesperada tinha de volta o seu homem e Eduardo Monteiro fazia comparações. Um dia recebera uma SMS de Felizarda:
– Podes me apanhar na OMM? Não tem chapa hoje.
– Estou a vir para aí.
– Maningue nice.
E foi buscá-la e deixá-la em casa e ela lhe disse para subir lá em cima e quando chegaram foi falando:
– Xiii, esse chão está mal…
E ficou dobrada sobre a esfregona fazendo movimentos lentos e bailados. Eduardo perdeu-se com ela, entornaram a água do balde e afogaram o desejo na tarde quente e húmida de Maputo. E agora comparava-as e sorria pensando que gostava dos hábitos de limpeza de Inesperada, sua companheira, e Felizarda, sua… amiga.

— P&B —

Como muitos portugueses que chegam a Maputo e são bafejados pela sorte feminina e moçambicana, Eduardo Monteiro sentia-se um macho pujante, um verdadeiro engatatão a quem as mulheres não resistiam. As portuguesas tinham-no rejeitado? Problema delas. Não sabem o que perdem. E via-se no papel de engatatão e gostava do que via. Uma ou outra vez, os colegas, sobretudo o Sousa que, desde que nascera, não tinha pastilhas nos travões da língua, avisaram-no, Vê lá se em vez de engatatão, não és engatado. Nessas alturas, costumava relembrar para si como as seduzira, assim como quem se assegura que ainda sabe o chão que pisa. E relembra que procurava um tinteiro para a impressora no Centro Comercial Maputo, quando viu pela primeira vez Inesperada e lhe lançou um olhar sedutor a que ela não resistiu. O que ele não relembra porque não pode é que, quando entrou no centro comercial, ela ia do outro lado da rua, viu-o, avaliou-o e resolveu entrar também. E relembra como sorriu, irresistível, a Felizarda no dia em que ela saiu do chapa e atravessou a rua à frente do four by four dele. O que ele não relembra porque não pode é que o chapa não parava ali e foi ela que convenceu o motorista a parar, saiu e se passarelou na frente do carro. Há muito que vinha reparando naquele homem, só, conduzindo o Prado. Eduardo não sabe porque não pode, mas ele é o engatatão engatado.

— P&B —

Voltemos ao início da história. Eduardo Monteiro sobe a 24 de Julho no seu Toyota Prado de 2002. Lembra-se de que precisa de falar ao Sousa, deita a mão ao bolso da camisa à procura do telemóvel. Nada. Nas calças. Nada. No porta luvas do carro. Nada. Exaspera. Chega ao escritório, vasculha tudo à procura do aparelhómetro e não se cansa de repetir:
– Eu não sou ninguém sem o meu telemóvel, estão lá todos os meus contactos!
E não disse, mas pensou, Incluindo o de Felizarda! E as mensagens? Meu Deus, se aquilo cai nas mãos erradas, estou tramado. Ligou para ele, à espera de o ouvir, foi ao carro a ver se o ouvia cantar. Nada. E nada. À noite, quando regressou a casa, não precisou de dois minutos para o encontrar adormecido na mesa de cabeceira. Perguntou, não porque precisasse da resposta, mas procurando uma confirmação de que estava tudo bem, de que aquele esquecimento não havia sido desastroso:
– Deixei o telemóvel em casa?
– Deixaste. Ficou na casa de banho. Deve lá ter ficado quando tomaste duche à hora de almoço. Pus na tua mesa de cabeceira.
E ele acalmou-se. Tudo parecia tranquilo e dentro da normalidade. Tinha várias chamadas não atendidas, incluindo a que fez do telefone do escritório. Tinha diversas mensagens por ler. Uma delas era de Felizarda, Te vejo amanhã? O chão está precisando uma levagem. A mensagem não havia sido aberta. Sorte. Uma tremenda sorte. Jantou. Inesperada teve o mesmo comportamento de sempre. Tudo normal, portanto.

— P&B —

O chapa, como quase sempre, como quase todos os chapas, ia cheio. Partira do Museu, dirigiu-se à rotunda da OMM e agora cruzava a Vladimir Lenine em direção à Praça dos Combatentes. Lá dentro, Felizarda, entre dois outros passageiros, ouviu o som inconfundível de uma SMS a chegar. Olhou o visor. era de Eduardo:
– Olá! Estava à espera que me desses um sinal.
– Pouco saldo.
– Vamos lavar o chão?
– O menino gostou! Hoje não vai dar. Podes-me ligar?
– Claro.
E, pouco depois, Felizarda ouviu o toque e atendeu. O que ouviu soou-lhe estranho. Tão estranho que demorou algum tempo a perceber o que se passava. Em primeiro lugar, quando atendeu, a voz que lhe respondeu era de mulher. Em segundo lugar, a voz parecia ecoar e vir de todos os lados à sua volta. Atendeu. Ouviu. E desligou:
– Olá, como vai o meu gato assanhado?
– Deve estar a trabalhar!
Esperou uns segundos e olhou em volta. Quando o seu pescoço se virou o suficiente para ver o banco lá de trás, uma mulher bem vestida, de olhar cintilante e um sorriso vitorioso nos lábios, disparou:
– Tu és de Nampula?
– Desculpa?! Não te conheço.
– Tens razão. Não me conheces. Mas devias conhecer. Afinal de contas andas a dormir com o meu homem.
– Eh! E eu lá durmo com homem de alguém?!
– Um homem só é de quem o segura. E tu andas a querer segurar o meu.
– Não sei do que falas.
– sabes, sabes. Olha, o teu telemóvel vai tocar.
Inesperada puxou do telemóvel de Eduardo e marcou o número de Felizarda. Ele tocou. Felizarda abriu o jogo. Não teve outro remédio. Inesperada explicou como, pelas mensagens, reconstituíra as passadas de Eduardo e da própria Felizarda. Conversaram toda a tarde. sem brigas. As brigas não ajudariam a resolver o problema. Felizarda quis saber, em particular, um pormenor:
– Eu sou de Nampula. Como soubeste isso?
– Está uma mensagem no telemóvel dele sobre lavar o chão… também andas peneirando as ancas na frente dele…

— P&B —

A conversa foi tensa. Prudente. Algum tempo passado, perceberam ambas que  ambas jogariam os seus trunfos. Inesperada percebeu que, seguindo esse caminho, uma das duas perderia sempre sendo que seria imprevisível qual delas seria. Fazendo justiça ao nome que lhe puseram, arriscou uma proposta inesperada:
– Olha, tu tens as tuas armas e podes-mo levar, mas eu jogarei sempre os meus trunfos. A minha mãe também peneirou como a tua. Sei esse movimento de cor. Está em mim. Nunca terás descanso se o levares e eu já o não tenho agora. E se o partilhássemos?
Felizarda calou-se por momentos. Hesitou. E depois respondeu e a sua resposta não sendo de sim, nem de não, já levava a intenção nela:
– Temos de combinar as coisas. Achas que ele deve saber?
– Por enquanto não! Vamos fazê-lo dançar um pouco, damos-lhe corda, deixamo-lo acreditar na sua própria mentira e um dia destes apanhamo-lo.
– Objetivo?
– O objetivo é não haver, nunca mais, nenhuma outra mulher. Nem mesmo de Nampula! Esse bode tem de ser seguro.
– Nem que seja pelos chifres!
– Nem que seja pelos chifres!

— P&B —

Eduardo andava feliz. Saltava das coxas de Inesperada para os braços de Felizarda e fazia uma ginástica de gestão do tempo que ultimamente lhe parecia mais fácil. Parecem combinadas, pensava ele. E estavam. Felizarda e Inesperada trocavam mensagens e acertavam entre si quem passava que tempo com ele. Sendo ponto assente que as noites estavam reservadas para Inesperada. E lá andavam passando o tempo a geri-lo. Uma tarde com esta, uma manhã com aquela, um almoço com uma, um jantar com outra. E contavam uma à outra as mentiras que ele ia inventando para estar com elas. E o facto é que Eduardo Monteiro, que julgavas geri-las, era magistralmente gerido por elas.

— P&B —

Um dia, por volta das dez da manhã, recebeu uma mensagem de Felizarda a que respondeu de imediato:
– Almoçamos? Gosto tanto daquela massada de garoupa com camarão da Cristal…
– Claro. Encontramo-nos lá às doze e trinta.
– Combinado.
– Combinado.
Quinze minutos volvidos, recebe nova mensagem, desta vez de Inesperada:
– Estou a fazer o arroz à zambeziana que tanto gostas. Espero por ti às doze e trinta.
Eduardo estremeceu. Logo agora que elas andavam tão convenientemente desencontradas, acontecera o que sempre tinha temido. Ponderou a situação. Fez as suas opções estratégicas e respondeu a Inesperada:
– Oh! Tenho pena, mas não posso. Reunião de trabalho muito importante.
Doeu-lhe ter de rejeitar o arroz à zambeziana, mas um homem tem de fazer certos sacrifícios. Quando entrou na Cristal, gostou de ver Felizarda. Estava bonita. Sensual. E tinham já feito o pedido, bebidas incluídas, quando Inesperada apareceu no restaurante e se aproximou da mesa onde estavam. Isso, ele já não gostou de ver, mas reagiu com sangue frio:
– Inesperada?! Apresento-te a senhora Felizarda, minha cliente. Senhora Felizarda, esta é Inesperada, uma amiga.
– Uma cliente?! Ai é isso que eu sou para ti? Não me lembro de ter-te pagado pelos teus serviços.
– Amiga?! E a mim apresentas-me como amiga?! Mlungo cubia cuaco! Olha aqui, menino, essa mulher vai ter-te quando eu não te quiser.
– E quando eu não te quiser, quem te vai ter é essa outra mulher! Cliente! Eu te dou a cliente! Não lavas o chão no próximo mês!
– Nem a banheira!

— P&B —

Eduardo foi confrontado com o que elas sabiam, com as suas mentiras e com a forma como o andavam a gerir. Percebeu como tinha sido engatatão engatado por três vezes. Primeiro por uma, depois por outra e por fim pelas duas. Sempre que fazia menção de defender-se, elas torpedeavam-no com argumentos. Percebeu que estava manietado. Inicialmente não entendeu aquela estranha união. A seu ver, o expectável é que se tivessem pegado as duas. Mas acabou por perceber que, precisamente por causa dessa estranha união, ele tinha andado completamente controlado. A proposta delas era simples, criar um regime de convivência a três, do conhecimento dos três, aceite pelos três, sem que se cruzassem as duas. O seu compromisso era exigido. Eduardo, preso num redil astuto de informação, aceitou e, ao aceitar, exalou uma expressão em jeito de desabafo:
– Mulheres!
Que elas corrigiram e acrescentaram de imediato e em coro:
– De Nampula!

jpv

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Nota do autor 1: O chapa é um meio de transporte semi-coletivo. Faz o serviço de um autocarro, mas consiste, normalmente, numa Toyota Hiace. Há milhares de chapas em Maputo e são fundamentais à vida da cidade.
Nota do autor 2: “Maningue nice” é uma expressão comum em Maputo e junta uma palavra de changana com outra de inglês significando “muito bom”, “muito fixe”.
Nota do autor 3: Em Maputo, um veículo todo o terreno é designado, muitas vezes, por “four by four”.
Nota do autor 4: A expressão, em changana, “Mlungo cubia cuaco” quer dizer “Branco dum raio” e constitui um insulto suave. Sendo certo que em Nampula não se fala changana, é um facto que a maioria das pessoas que vai viver para Maputo, portugueses incluídos, aprende expressões e formulações em changana. Não se estranhe, por isso, o uso desta expressão por Inesperada.
Agradecimento: o autor agradece a preciosa ajuda do RB e da VL que, de formas diferentes, inspiraram esta história.