Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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Histórias do Autocarro 28 – A Mulher que dizia Palavrões

A Mulher que dizia Palavrões

Não era preciso dirigir-lhe a palavra. Bastava olhar para ela ou, simplesmente, sorrir. Qualquer coisa constitui para si uma provocação como se todo o universo se tivesse reunido para conspirar contra si. A razão por que conto a sua história, narrativa breve e simples, tem a ver com um pormenor de linguagem. Ou melhor, dois. O primeiro é que tem o hábito de dizer que não vai dizer palavrões:
– Não me puxem pela língua… O que vale é que eu fui bem educada e não digo palavrões, senão…
O segundo é que depois de dizer que não vai dizer palavrões, solta-os de enfiada como se não houvesse amanhã ou fosse morrer engasgada com eles:
– Não me puxem pela língua… O que vale é que eu fui bem educada e não digo palavrões, senão mandava o estrangeirinho à merda ó o caralho. O cabrão deve julgar que é dono desta merda toda e a gente está aqui de cu para o ar p’ró servir.
Ora bem, não vos zangueis comigo, caros leitores, nem fiqueis mal impressionados. A verdade é que vos dei a versão suave e audível. A seguir ao estrangeiro zangou-se com um homem que lhe disse para não dizer palavrões, depois com uma senhora que se riu quando ouviu a segunda rodada e quando saiu do autocarro ainda ia a vociferar contra o mundo no mais agressivo vernáculo que se possa imaginar.
Uma coisa eu garanto, aquilo foi em crescendo, ou seja, sempre que se sentia provocada, a fiada vernácula era maior e menos audível…
Outra coisa eu garanto, a viagem foi diferente. Menos sisuda!

jpv


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O Clã do Comboio – Eh pá, deslarga-me!

Eh pá, deslarga-me!
É o mundo que temos. É a sociedade que temos. São os costumes que vamos tendo e a que nos vamos submetendo. A pequena conversa que vou transcrever-vos aconteceu pela manhã de uma segunda-feira sendo que havia estas caraterísticas: o primeiro interlocutor queria muito falar. Acordou activo e dinâmico. O segundo ainda estava no resto do fim-de-semana e queria mais dormir do que falar. Como eram amigos, teve de falar. Acontece que a sintonia era muito… assíntona!
——– Então, já foste ver o Continente?
——– Eu não. Quero lá saber disso.
——– Eh pá, é grande. Tem muita coisa.
——-Não são todos assim? Quando lá tiver alguma coisa para fazer, vou lá. De propósito não vou.
——– Eh pá, mas este está mesmo grande!
——– Pois…
——– Então e o Domingo, como foi?
——– Foi bom. Estive em casa a descansar. Andei por ali, vi televisão, estive com os miúdos. Nem saí de casa.
——– Eu fui ao Lidl!


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O Clã do Comboio – A Mulher Vampiro

A Mulher Vampiro
As pessoas com que entramos para o interregional das 7:18h. não são as mesmas com que saímos. Embora entremos sempre com as mesmas e saiamos sempre com as mesmas. Há vários dias para cá que sai em Santa Apolónia uma mulher vampiro que não sei onde entra.

O título do texto bem como a atribuição à senhora do epíteto “mulher vampiro” podem ser enganadores. Que eu saiba, a senhora não mordeu ninguém. Chamei-lhe assim porque ela retrata, mais do que isso, ela encarna, o aspecto destes vampiros do século XXI que nasceram na literatura romântico-negro-vampiresca que depois passou para o cinema e finalmente acabou nas telenovelas. Há vampiros bons, maus, galãs e heróis, vilãos e horríveis, criminosos e vítimas.

É todo um universo paralelo onde as personagens são como qualquer um de nós mais o pormenor de morderem pescoços e sugarem sangue. Ora, essa tribo tem também suas modas de vestir e pentear. A mulher vampiro foi assim chamada por via do aspecto que a seguir se descreve.

Antes de chegarmos a Santa Apolónia, ela dirige-se para a porta. Gosta de ser a primeira a sair. Sapatos pretos. calças de fazenda pretas ao longo das pernas. Uma camisola de lã preta e um casaco de grossa fazenda… preta. Acima de todo este negrume emerge uma face esguia e longa muito pálida, muito clara, onde brilham olhos intensamente azuis. O cabelo não é castanho nem ruivo. É comprido por cima dos ombros a descair para as costas e está pintado de uma cor fulva que faz lembrar uma labareda. E mais não sei. A não ser que podia estar num cartaz de cinema em vez de viajar no interregional das 7:18h.


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O Clã do Comboio – Perder o Comboio

Perder o Comboio.

Pois é. Acontece. É uma incrível sensação de impotência. E não falo de perder o comboio por meia hora. Falo-vos do seguinte.
Sexta-feira. Véspera de fim-de-semana. O trabalho complica-se um bocadinho. Nem penso no comboio. Quando acabo o que estou a fazer são 18:55h. Há um intercidades às 19:30h. Só falta ir da 24 de Julho até Santa Apolónia. Uma pessoa que tenha passe, como é o meu caso, paga só 4€ por um bilhete de intercidades. Vale a pena. A viagem demora menos. O autocarro chegou às 19:15h. Pensei que tinha perdido o comboio e tirei daí o sentido. Acontece que àquela hora não havia trânsito. Em várias paragens não havia ninguém a entrar nem a sair o que significou não parar. Chegámos ao Terreiro do Paço e são 19:25h. Telefono para casa a dizer que o perdi. Mas daí em diante o autocarro faz a marcha contínua quase sem parar. Só uma paragem na Casa do Conto. São 19:29h. e chegámos a Santa Apolónia. Atravesso a rua a correr. Tenho de comprar o bilhete. Há duas pessoas na fila. A primeira sai. Olho o comboio. Está lá! A segunda tira o bilhete. Ouço um sinal sonoro forte. Tenho o homem da biheteira a perguntar-me:
——– Diga…?
Olho o comboio. Está a deslizar.
——– Não é nada, obrigado.


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O Clã do Comboio – A Mulher que Sofria da Visícula

A Mulher que Sofria da Visícula

Por vezes gosto de escrever os textos limitando-me à reprodução do diálogo. E a razão é simples. A sua riqueza dispensa descrições. Ainda assim, é melhor dizer-vos como era esta senhora.
Uma saia de fazenda cinzenta abaixo do joelho, meias de lã grossa, o cabelo apanhado atrás com um tótó, um casaco castanho claro de fazenda grossa com botões em castanho escuro, óculos, um envelope grande com exames no colo e em cima dele uma mala preta enorme. E falava! Falava com as pessoas que estavam de frente para si como se as conhecesse e explicava-lhes coisas como se lhe tivessem perguntado. A determinada altura, alguém começou a responder-lhe mais para a senhora não parecer tão alucinada do que para saber coisas ou conversar com ela. O marido, pequenino, rosado e cheio, num fato cinzento onde mal cabia, ia sentado ao lado dela mas parecia não ter autorização para falar.
——– Vou ao médico, sabe. Estou muito doente. É a vesícula. Sofro muito da vesícula.
——– Leva exames…
——– Levo, são raios X.
——– À visícula…
——– Não, credo, não se fazem raios X à visícula. É ao torax. O médico diz que esta tosse é esquisita, mas não tenho nada nos pulmões. Tenho esta tosse desde miúda. Já a minha mãe a tinha. Foi de andar no campo. Mas eu sofro é da vesícula.
——– Já fez exames…
——– Já. Tantos! Olhe, ainda há duas semanas me picaram todinha. O médico diz que os ossos estão fracos. Falta de cálcio. Mas não pode ser. Eu sempre fui rija. Foi de ser criada no campo. Sabe, eu sofro muito é da vesícula.
——– Então e os exames?
——– Olhe, inda há pouco tempo fiz um taco. Parece que tenho qualquer coisa na cabeça. Mas não, eles sabem lá… sempre tive boa memória. As coisas que eu me lembro!
——– Mas já te vais esquecendo…
——– ‘Tá calado, homem, não serves p’ra nada. Já a minha mãe tinha boa memória. O meu problema é a vesícula.
——– Então, mas fez exames à visicula ou não?
——– Eu não! Nem preciso. Uma pessoa sente-se e sabe o que tem…
——– E o médico, o que diz da visícula?
——– Diz que não tenho nada, mas eles não percebem nada. Eles agora saem tão novinhos das universidades. Podem lá agora saber, não podem! Eu é que sei o que eu sofro com a vesícula. Trago aqui uma pontada há anos. Se ao menos algum médico me visse isto e me receitasse qualquer coisa… mas a gente às vezes vai ao médico e eles nem um comprimido p’rás dores receitam… não sabem nada.


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Histórias do Autocarro 28 – A vida dela em 20 minutos

A vida dela em 20 minutos

O autocarro 28 que liga o Restelo à Portela e volta anda a surpreender-me.

Será possível conhecer a vida privada e íntima de uma pessoa entre a Av. Infante Santo e Santa Apolónia num percurso que demora entre 20 e 30 minutos?

Claro que sim. Desta vez havia pouco trânsito, não chovia, logo, a coisa foi breve. Vinte minutinhos apenas. Tinha uma voz serena e um olhar tranquilo. O telemóvel pendurado ao pescoço, um fio para onde falava e outro com phones por onde ouvia. Assim que entrou, a geringonça apitou e a conversa começou. Falava olhando para a rua como se estivesse a conversar com o vidro. Não sei se chegou a aperceber-se de como se estava a expor, mas ficámos todos a saber o seguinte:

– Estado civil.
– O que pensa do ex-marido e família.
– De como o processou.
– Porque o processou.
– Que indeminização espera.
– Quantos filhos tem.
– Como se chamam.
– Porque não quer de novo homens na sua vida.
– Que companheiros tem.
– Como se encontra com eles.
– Onde se encontra com eles.
– Como se chama a pessoa que propicia os encontros.
– Onde vai estar no próximo fim-de-semana.
– Com quem vai estar no próximo fim-de-semana.
– O que pensa da vida.
– Como pensa que as pessoas se devem comportar umas com as outras.
– O que pensa da amizade e o que vale para si.

Tudo enquanto falava com, e cito, “O cota mais curtido que existe” que, também se soube, era seu tio e se chamava… sim ela disse!

jpv


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O Clã do Comboio – Onde é que ela mete aquilo tudo?

Só por doença, meu Deus, só por doença.
Era uma ave de arribação, ou seja, não tinha passe. Passageira pontual, muito provavelmente de ir ao médico. Fica desde já esclarecido que não vou gozar com a pessoa. Longe de mim. Só escrevo sobre ela porque me impressionou. Um destes dias, sentou-se à minha frente uma senhora pequenina, tão pequenina que, sentada no banco do comboio, mal chegava com os pés ao chão. Ao lado dela, a filha tomou também seu lugar. A senhora tinha o olhar meio revirado. Coloquei a música nos ouvidos e pensei: “Sem história”. Enganei-me.

Passados uns minutos, ainda o cheiro a Entroncamento devia ocupar o ar, ela começou a comer. Pacotes de açúcar. Não contei porque não estava à espera do que iria seguir-se mas, pelo baixo, engavetou aí uns dez! Ao mesmo tempo foi bebendo água. Quando pensei que a senhora tinha reposto os níveis de açúcar e tinha dado por terminada a “refeição”, atacou uma sandes de queijo que parecia maior do que as suas mãos conseguiam abarcar. Pronto, é de muito alimento, pensei. Só não sabia que ela ainda não ia a meio. Que me lembre e tentando repeitar a sequência, a senhora pequenina que bebia muita água ainda conseguiu engolir mais meia dúzia de pacotes de açúcar, um iogurte líquido, outra sandes XL e um saquinho de plástico cheio de rebuçados, caramelos e chocolates.

Não sei, sinceramente, não sei como é que uma pessoa que não chega com os pés ao chão no banco do comboio consegue enfiar tanta coisa goela abaixo. Logo pela manhã! Quando chegámos, a filha perguntou-lhe, Queres mais alguma coisa?
E eu pensei, Mas onde é que ela mete aquilo tudo?


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O Clã do Comboio – O Treinador

Eu acho que o fenómeno José Mourinho é interessante no sentido de que vai para além do futebol e contagia as grandes massas. Ora, sendo o comboio o manancial de vida que é, não podia, de maneira nenhuma, ficar imune a esse facto. Ainda não se joga à bola no interregional das 7:18h mas já se operam transferências de treinadores e jogadores.
O treinador é um tipo novo, nos seus trinta, moreno, alto e, pela expressão e pelas palavras que dela saem, diria que é um gozão ou, no mínimo, um tipo bem disposto.
A revelação deu-se ao telefone. Íamos todos em silêncio, ouviu-se uma estridência polifónica, ele atendeu e, quando menos se esperava, ali mesmo fez a sua transferência de clube, pôs o interlocutor a par da situação profissional dos outros treinadores da região, descreveu o seu próprio perfil de treinador, sinalizou os miúdos que mais lhe interessavam para certas posições e quando desligou o telefone, o panorama regional do futebol juvenil estava completamente alterado. Ou seja, o interregional das 7:18h também é um centro de decisão. É no que dá termos cá o Mourinho dos comboios!


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O Clã do Comboio – A Rapariga que Veste um Sorriso

Tal como todos os outros, é uma pessoa de hábitos. Normalmente veste calças de ganga de cós baixo e um cinto preto ou castanho, largo, encima essas mesmas calças. É larga de ancas e volumosa mas está longe da obesidade. Traz sempre uns óculos escuros daqueles que ocupam a face toda e quando entra no interregional das 7:18h tira-os e deixa transparecer o olhar meigo e tranquilo dos seus olhos cor de amêndoa. Normalmente veste casacos cintados. O cabelo castanho cai-lhe por cima dos ombros e completa o quadro de uma moça jovem vestida de forma prática mas elegante para cada dia de trabalho. A vestir daquela forma deve haver umas dezenas no comboio pelo que não foi essa a razão por que me detive nela.
A razão é simples.
É daquelas pessoas que acorda sempre feliz e sorridente e difunde essa luz e essa alegria à sua volta. Pela manhã, o clã tem a tendência para ir sossegado e quieto, excepto a rapariga que veste um sorriso. Cumprimenta quem se senta ao seu lado, fala com as pessoas, brinca com as crianças e, mais do que tudo, sorri.
Ela é das pessoas que se senta ao fundo da carruagem. Eu, ao meio. Já equacionei um dia destes ir ao fundo para vê-la sorrir mais de perto, mas, sabem como é, ando a ficar como o clã, um tipo de rituais e faz-me falta a companhia dos meus desconhecidos. Há, contudo, esta marca matinal da rapariga que veste um sorriso. Vê-la é como se fosse uma mensagem de esperança para o dia a viver. E isso é precioso. Espero, sinceramente, que continue a viajar na “minha” carruagem. É que assim até os dias de chuva brilham um bocadinho.


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O Clã do Comboio – Lezíria com Bruma e Antena ao Fundo

O interregional das 7:18h não é só virtudes. Às vezes pára. Pára e fica parado e não avisa quando vai retomar sua ruidosa rota. Os motivos são vários. Para passar outro comboio, para não se cruzar com outro comboio, por razões técnicas de diversa ordem, porque se apaga todo, vai abaixo e depois é o cabo dos trabalhos para retomar a marcha, e ainda por um outro e interessante motivo: pára sem sabermos o motivo!
Por vezes pára ali um pouco antes de Vila Franca de Xira e eu não me importo muito. Vê-se a lezíria, a bruma matinal sobre ela, o sol espelhando-se no rio langoroso e, ao fundo, uma antena. Nunca soube porque é que pára ali, nem tenho grande interesse em saber. Já tinha reparado na beleza da paisagem com a antena fina, esguia e altíssima emergindo da bruma. Era bonito. Mas era uma paisagem sem história.
Hoje ganhou vida.
O homem tinha, seguramente, mais de 60 anos. Forte. Com a barriga redonda e grande a denunciar petiscos bem comidos e melhor regados. A pele estava marcada pelo tempo e pelo trabalho e ele apoiava-se na bengala preta com a ponta de borracha e o cabo em forma de tê. De frente para ele sentou-se a esposa. Era a ruralidade em pessoa num banco de comboio. Não falavam. Nunca falaram ao longo da viagem excepto quando parámos junto à paisagem da lezíria com bruma e antena ao fundo. Ele olhou pela janela e tomou-lhe conta da face certa expressão saudosa de Não era bom mas quem dera lá voltar e ficou olhando, tamborilando os dedos no cabo da bengala e quando terminou de saciar a vista, disse num tom tranquilo de quem constata um facto e tem a missão cumprida:
– Quando foi o 25 de Abril, passei uma noite ao relento de guarda àquela antena.
As coisas que herdamos e nem damos conta! O sofrimento que foi preciso sofrer para aqui chegarmos. A vida que as coisas têm ou adquirem. Naquele momento, para além do respeito que me conquistou, aquele senhor de aspecto humilde e gasto alterou para sempre a minha percepção da lezíria com bruma e antena ao fundo um pouquinho antes de Vila Franca.