Category Archives: História
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A Mulher Vampiro Ataca de Novo.
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Histórias do Autocarro 28 – Elegância Enlatada

Elegância Enlatada
Sabem aquelas imagens onde está tudo certinho mas há qualquer coisa de errado e não sabemos bem o que é? Pois bem, vinha-me acontecendo um fenómeno semelhante no autocarro 28. Em meio de toda aquela normalidade laboral de pessoas vestidas para o trabalho com as faces da manhã que começa e do ponto que espera ser picado, no meio de todo este cinzento comum na vida da grande urbe, havia uma nota de cor.
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É magra. Alta. Tem a face fina e alongada. Os olhos brilham cor de amêndoa. O cabelo é loiro e liso. Normalmente trá-lo sobre os ombros. Por vezes apanha-o e fica com um ar mais “executivo”. Coloca sempre batôm e uma base na cara que lhe dá um aspecto cuidado e distinto. Passa uma sombra discreta nos olhos e arranja as sobrancelhas. Pinta as unhas. Veste calças vincadas e sapatos de verniz e um casaco comprido, preto, de onde emerge uma écharpe que traz ao pescoço. E coloca-se na fila do 28, entra com os outros todos e procura um assento nos primeiros bancos. Quando não o encontra vago, a sua elegância segue de pé, enlatada como todas as outras, presa ao varão com uma mão e do braço esticado pende uma mala a dar com os sapatos. E nada disto parece perturbá-la. Incorporou este ritual na sua elegância ou, se quiserem ver ao contrário, trouxe a sua elegância para os rituais de todos nós.
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É fresco vê-la. É agradável. Normalmente fica-se com a sensação de que a normalidade também pode ser colorida com a paleta da elegância e do bom gosto. E assim, o 28 fica mais completo, mais universal na sua passerelle de trabalhadores matinais em trânsito.
jpv
Histórias do Autocarro 28 – Pois Parece!

Pois parece!
Quem me conhece, sabe que eu sou uma pessoa razoável, multicultural e aberta, logo, nada sectária ou segregadora de realidades alienas à minha. Sou mais do tipo inclusivo do que discriminatório.
Feito o aviso, deixem-me lá reagir com naturalidade ao que vi um dia destes no 28.
O tipo não batia bem. Pronto, podem chamar-lhe outra coisa mas esta é a universal expressão que melhor se lhe aplica. Tinha mesmo qualquer coisa solta na caixa dos parafusos.
Quando entrou no 28 vinha a falar alto. Tossia. Era sobre política. Já não sei o que disse, mas esgalhou ali umas teorias financeiras para salvar o universo. Sentou-se. Tossia. Depois, sem aviso, e num tom de voz que se fazia ouvir em todo o autocarro, mudou de assunto. Começou a falar de fado. Quem era bom, quem era mau, quais os melhores fados. Tossia. E fazia perguntas a quem ia ao lado dele. Como não obtinha resposta, tossia e continuava a teorizar. De repente, sem que nada o fizesse prever, levantou-se e começou a cantar um fado. Arranhava-o bem alto e todo o 28 0 ouvia. “Que estranha forma de vida”. Irónico, pensei. Ele é que tinha uma estranha forma de vida. Mas não me incomodava. Excepto quando fazia de propósito para tossir para cima das pessoas. Só que, enquanto cantava, não havia tosse, só cantoria. E lá foi cantando e deslocando-se para o fundo do autocarro e quando lá chegou virou-se para a porta como quem vai sair e continuou cantando. Quando o autocarro começou a travagem de aproximação à paragem, o fadista parou subitamente de cantar, bateu com uma mão na testa e disse:
– Eh pá, parece que estou maluco. Não é aqui que eu quero sair!
E sentou-se de novo no banco.
jpv
O Clã do Comboio – O Casal Desigual
Ele é velho. Ela é nova. Ele é alto. Ela é baixa. Ele é grisalho. Ela tem o cabelo escuro. Ele tem pouco cabelo. Ela tem muito. Ele é mais para o magro. Ela é mais para o cheiinho. Ele é reservado. Ela é conversadeira. Ele tem o olhar cansado. Ela tem o olhar vivo. Ele dorme sempre. Ela nunca dorme.O Clã do Comboio – A Tia da Beatriz
——– Muito Obrigada!
——– Não tem de quê. Não é por si que estamos em crise. Aproveita a linha mesmo até ao fim…
——– Não é por isso. Tento cortá-la o menor número de vezes porque os remates dão muito trabalho.
E isto bastou para que nem eu ouvisse mais música, nem escrevesse mais uma linha, nem ela desse mais um ponto. Fomos conversando o caminho todo. Percebi que Beatriz era a sobrinha e percebi que a Tia da Beatriz bordava com gosto e dedicação e fazia-o porque a mãe lhe ensinara. E disse-o com naturalidade e assumiu isso na sua juventude. O seu código de estar não implicava que se identificasse com os outros jovens fazendo o que eles fazem. Podia ser só a Tia da Beatriz que borda com carinho para a sobrinha porque a mãe lhe ensinou e isso a faz feliz. E quando lhe disse que escreveria sobre ela mas não queria saber o seu nome porque para mim bastava que fosse a Tia da Beatriz, ela não reclamou nenhuma espécie de protagonismo e voltou a surpreender-me com a sua naturalidade:
——– Eu reparei que não quis perguntar e por isso não lho disse.
Eu sei que a Beatriz vai ter um saquinho da escola todo bonito com o nome bordado mas sei algo mais importante. A famíla da Tia da Beatriz deve estar orgulhosa dela porque não só assume a herança de simplicidade e dedicação que lhe deixaram, como já a está transmitindo à sobrinha. Não sei se virá aqui um dia ler o que escrevi sobre ela, mas se vier, o melhor que posso dizer da Tia da Beatriz é que todas as sobrinhas deviam ter uma tia assim.





