Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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Histórias do Autocarro 28 – Saciada

Saciada

Isto que agora se escreve não é bem uma história. É mais um apontamento. A coisa passou-se em fracções de segundo. Quer dizer, também não foram bem fracções de segundo. Foram uns instantes. Instantes curiosos e de tal forma interessantes que dariam um romance. Como não tenho tempo para o romance, fica o apontamento.

Ultimamente faço o percurso do autocarro 28, entre Santa Apolónia e o Cais do Sodré, de metro. Depois, num eléctrico ou num autocarro qualquer sigo até à Infante Santo. Apanho o primeiro que chegar. Torna-se mais rápido e diversificado e sempre obriga a algum exercício físico. O instante que vou contar-vos, passou-se no eléctrico 18 ainda não eram 9 da manhã.

Entrámos e o eléctrico ficou composto mas longe de estar a abarrotar. Isto é importante porque significa que o campo de visão e observação estava desimpedido. Num banco de dois lugares, daqueles que estão colocados lateralmente, ou seja, virados para o corredor do eléctrico, sentou-se uma moça. Era jovem. Muitíssimo atraente. Cabelos escuros, lisos e longos, pelo meio das costas. A tez clara e os olhos muito azuis. Tinha um discreto piercing num sobrolho e os lábios eram bem definidos, em V ao meio. Casaco de camurça e calças de ganga muito justas e coladas às pernas de formas sensuais. Os homens que entraram com ela repararam naquela beleza, mas, após a primeira espreitadela de relance, desviavam o olhar para não parecerem muito vorazes, nem estarem a incomodar a moça com olhares directos. De maneira que ia ali um ambiente de “quero mas não faço” que era absolutamente indisfarçável e um tanto constrangedor. Por motivos que davam uma tese, mas não aprofundaremos, nenhum homem se sentou ao lado dela. Fosse para não parecer atrevido, fosse porque uma beleza assim pode intimidar os mais ousados, ela seguiu sozinha até à primeira paragem depois do Cais do Sodré rodeada de homens que queriam olhar para ela mas não eram capazes de mais do que uns relances disfarçados.

Na paragem, entrou um jovem aí dos seus 30 anos, estatura mediana, cabelo escuro, curto, porte atlético comprovado pelos músculos que lhe moldavam as calças de ganga justas. Tinha um casaco preto de cabedal, cintado. Outros músculos se notavam bem colados às calças, com formas definidas e a prometer solidez. Eram os do rabo. O moço poisou um saco de desporto no chão e rodou sobre si para sentar-se no lugar vago ao lado da moça. Ora, quando rodou, houve ali uns instantes em que o seu atlético e firme rabo esteve de frente para a moça que olhava em frente, para um ponto indeterminado, como fazemos todos nestas situações. E foi aí que ela nos surpreendeu. Abandonou o olhar no vazio, fixou-o no rabo que rodava à sua frente, encheu a vista, tirou-lhe bem as medidas, e quando o rapaz já se sentava, ela fechou os olhos devagarinho e ao abri-los já tinha um sorriso nos lábios.

Os homens que tinham estado ali à volta a fingir que não a viam, a evitar olhar para ela, a lançar-lhe relances despercebidos, ficaram desarmados e a pensar em conjunto:
– Ora toma, a malta com pruridos e ela saciou-se!

jpv


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O Clã do Comboio – Liga ó tê Manel

Liga ó tê Manel

Os leitores sabem como gosto de transcrever uma boa conversa. Boa no sentido de interessante pelo seu curso, de genuína pela sua espontaneidade ou de rica pelo seu conteúdo. Esta é mais do primeiro tipo com laivos do segundo.
Vamos à circunstância e às personagens.
Dia de trabalho muito cansativo. Alma a precisar de descanso. O Andante do concerto nº 21 de Mozart no mp4 parece convidar para ser ouvido. Estava a desenrolar os auriculares para os colocar nos ouvidos quando elas entraram.

Eram três velhas gaiteiras, daquelas que, de vez em quando, arranjam uma doença suficientemente grave para irem a Lisboa fazer uns exames e deixar os maridos em casa com o comer num tacho para levar ao lume, mas não tão grave que as impeça de sair de casa às cinco da manhã e voltar às oito da noite com os exames feitos, a baixa pombalina toda palmilhada, as montras vistas e revistas, as lojas visitadas, as pastelarias provadas e toda a luz e cor e agitação da grande urbe a passar-lhes pela vista, a entrar-lhes na memória e a ser motivo de conversa para sempre. Cabelos arranjados, todas de óculos, muitas jóias ao pescoço e nos dedos e a pele indelevelmente marcada pelo amanho da terra, pelo agreste tempo passado no campo em cuidados e desvelos agrícolas.
Não vou identificá-las. Só acrescentar que era uma, unicamente uma, a que ia fazer exames. As outras eram acompanhantes na dor e na desgraça! Eu estava numa correnteza de três bancos. Elas chegaram, inspeccionaram-me com os olhos de alto a baixo, devem ter aprovado a companhia e uma delas disse:
– Ficamos aqui.
– Ficamos aqui.
– Pode ser, ficamos aqui.

Coloquei os auriculares sem música para poder ouvi-las sem lhes inibir o diálogo. Não me despertou interesse o conteúdo da conversa. Só a sua espontaneidade e a caótica sequência. Caótica para quem ia a ouvir porque elas entendiam-se bem entre si.

Interregional das 18:18, Santa Apolónia – Tomar.

– Ficamos aqui.
– Ficamos aqui.
– Pode ser, ficamos aqui.
– Fofinho!
– Achas?
– Acho
– Mas são estreitos.
– Cabemos bem.
– Liga ó tê Manel.
– Já ligo.
– Ligas quando?
– No Entroncamento.
– No Entroncamento?
– Sim, e ele vai-nos esperar à Lamarosa.
– Óvistes? Ela vai ligar ó Manel para nos ir buscar à Lamarosa. Olha lá, isto pára aonde?
– Vila Franca, Santarém, Entroncamento e Lamarosa.
– Passou-se bem…
– Muito bem!
– Bem melhor que estar em casa a aturá-los…
– E a fazer o comer.
– Foi bem bonito!
– Bem bonito!
– Olha lá, e os exames?
– Estão feitos. Agora é esperar.
– Mas sentes-te bem…
– Sinto… Gosto tanto de vir à baixa!
– A médica era simpática…
– Era…
– Só me incomoda este tempo…
– Tempo?
– Sim. Às seis horas é de noite.
– Tens razão, é uma confusão.
– Olha até o meu gato anda tonto. Nunca sabe que horas são e se ele é certinho com as horas…
– O teu gato sabe as horas?!
– Sempre soube. Mas neste tempo troca tudo. Às cinco da tarde está-me a querer entrar em casa para dormir.
– Liga ó tê Manel.
– Ainda é cedo.
– Que horas são?
– Ainda é antes de Santarém.
– Olha lá, onde é que isto pára?
– Santarém, Entroncamento e Lamarosa.
– Ah pois, ela disse que ligava ó Manel no Entroncamento.
– Olha lá, e quando é que fazes mais exames?
– Não sei bem, mas tem de ser breve…
– Então? Estás mal?
– Não, mas ela ficou de vir ver aquelas linhas…
– Quais linhas?
– As outras.
– Eh pá, aquela ali atrás não se cala.
– Pois não. Fala pelos cotovelos.
– Vai aqui este senhor a querer escrever a carta…
– Qual carta? Não vês que não é uma carta?
– Porquê?
– Porque vai a escrever num caderno.
– Falem baixo!
– Então?
– Ele pode ouvir…
– Naaa… leva aquela coisa da música nos ouvidos, aquilo não se ouve nada cá para fora.
– Olha lá…
– Sim…
– Já ligaste ó tê Manel?
– Não vês que não. Ela só lhe liga no Entroncamento…
– (…)
– Tô? Manel? Vai lá ter à estação, já vamos aqui quase no Entroncamento.
– (…)
– Sei lá eu. Tenho de esperar pelos resultados.
– (…)
– Vamos derreadinhas, aquilo é filas sem fim.
– Então? Ele vai lá?
– Vai. Que remédio tem ele!


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O Clã do Comboio – Luz

Luz.
Não me venham com teorias, a luz é a luz.
Os dias estão muito maiores. Já não é preciso chegarem as 7:30 para haver luz. A essa hora o dia já é claro. Quer isto dizer que toda a viagem no interregional das 7:18 é iluminada pelas cores e pelos matizes que a luz empresta à paisagem. Como a lezíria é bonita! Há espelhos de água e há nessa água o reflexo alaranjado e suave da aurora e há o limite das nuvens avivado em riscos definidos de luz e há vegetação a traçar recortes no horizonte.
A primeira consequência da chegada da luz é essa. É a paisagem que emerge do breu adormecido da noite e ganha cor e vida.
A outra consequência vê-se nas pessoas. Dormem. Claro que dormem. Andam cansados das rotinas, do trabalho, das mulheres, dos maridos, dos filhos, das contas, das obrigações, dos impostos, e dormem. Mas não é o mesmo dormir que era em Novembro ou Dezembro. Há mais olhos despertos. Mais pessoas olhando pela vidraça à procura de vida ou pasmando com ela. E há gestos. A carruagem já não é uma amálgama inerte de cabeças cambaleadas e adormecidas. Agora que veio a luz, há um mexer pequenino, gestos por si só insignificantes, mas que em conjunto fazem uma serena sinfonia de não querer ou não conseguir dormir.
É engraçado como as pessoas dormem com a luz artificial e estridente do comboio a dar-lhes na cara sem que esta as incomode, mas se inquietam com o despontar distante de uma aurora rosada.
E hoje veio o astro-rei despontando em bola de fogo.
Ave!


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O Clã do Comboio – O "Picas"

O “Picas”
Carinhosamente apelidado de “Picas”, o senhor revisor não é um homem como outro qualquer. É uma instituição.
Como todas as instituições, também o picas sofreu as consequências da evolução dos tempos e das tecnologias. A primeira grande diferença tem a ver com o aspecto. Antigamente, o picas vestia de cinzento e tinha um boné. E era uma entidade anónima. Hoje, continua a vestir de cinzento, mas o fato tem uns vivos verdes que combinam com a gravata e com a chapinha que traz ao peito com o seu nome. O picas deixou de ser anónimo. Agora tem nome ao peito. Para nós, isso interessa pouco porque, quando ele surge ao fundo da carruagem, a frase que se ouve é “Já lá vem o picas”.
Os picas agora têm atitude. Dão os bons-dias, as boas-tardes, as boas-noites e quando alguém vai a dormir, em vez de darem dois berros como antigamente, dão um toque suave no ombro e dizem, “Faz favor…”. Alguns fazem isto com naturalidade. Outros sorriem e vê-se que estão a gozar o momento ao jeito de “Já acordei mais um!” Há os picas altos, baixos, magros, gordos, novos, velhos e embora se esteja a promover a imagem do picas novo e elegante, com ar enxuto e competente, ainda persistem alguns, poucos, dos meus especimens preferidos. Eu gosto do picas baixinho, atarracado, gorducho, sem a gente perceber muito bem onde acaba a barriga e começam as pernas, coradinho e com o olhar desafiante como quem está à espera de um prevaricador para lhe assentar duas mãos abertas à moda antiga. Não sei como é que ele consegue, mas este tipo de picas tem sempre os colarinhos da camisa por cima da gola do casaco e, embora a gravata dele seja igual à dos outros, parece sempre que teve de sobreviver a um processo de maus-tratos para ali chegar.
Antigamente, o picas tinha duas ferramentas. Uma bolsa de cabedal à cintura para as moedas e um furador para picar os bilhetes. Ferramenta esta que, de resto, é a responsável pelo carinhoso apodo de “Picas”. Acontece que agora deram-lhes umas maquinetas cinzentas com um ecrã que parecem um multibanco portátil. Servem as ditas para verificar a validação dos bilhetes comprados em cartão com chip. Modernices. Embora haja cada vez menos bilhetes em papel, o certo é que ainda os há e por isso é vê-los passar nos corredores todos janotas, de fatinho de fazenda, chapinha na lapela, maquineta electrónica na mão e, a identificá-los, o picador enganchado no mindinho. É uma ternura!


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O Clã do Comboio – Reencontro

Reencontro
É oficial. estou velho. E gordo!

Apareceram na plataforma uns indivíduos novos. Novos na idade e novos no facto de não serem costumeiros na plataforma. Eram dois.
Um deles era baixo, tinha o cabelo comprido, arredondado à volta da cara e a dar-lhe por cima do ombro mas sem lhe tocar. O ar cansado, a barba por fazer. roupas práticas para o trabalho. O outro era alto. Barbinha feita e um ar menos cansado. Com entradas suficientes no couro cabeludo para dizermos que é careca ou para lá caminha. E lá entraram no interregional das 7:18 e lá foram a conversar um com o outro e com outras pessoas da carruagem. Sobretudo o baixinho da barba por fazer. Não os conheci nem os reconheci. Mas há um momento para tudo na vida e acontece que a determinada altura da conversa, o baixinho da barba por fazer abriu muito os olhos, fez um sorriso e abanou a cabeça num trejeito, assim como quem ajeita o cabelo sem lhe mexer. O sorriso, confesso, não lho conheci, mas o brilho no olhar e, sobretudo, o trejeito com a cabeça fizeram-me olhá-lo com mais atenção. Não precisei olhar muito. Tirei os phones dos ouvidos e disse-lhe:
– Bom dia.
Ele respondeu de forma muito educada e quase contrastante com o aspecto, numa voz suave e composta:
– Bom dia.
– Sabe, você foi meu aluno para aí há uns 20 anos.
– Acho que não. Não o reconheço.
– Eu sou professor em Alcanena.
– Eu nunca estudei em Alcanena.
– Peço desculpa, devo ter feito confusão.
E aqui fiz aquela figura ridícula que sempre fazemos quando confundimos alguém com outrem. A minha viagem estava condenada e a minha reputação de excelente memória tinha acabado de sofrer um duro golpe. Acontece que até à morte há esperança e o moço, conversador, quis acrescentar qualquer coisa ao diálogo como que a honrar as suas próprias memórias ou a buscar um laço entre nós que mantivesse a chama da conversa acesa:
– Não tenho nada a ver com Alcanena, excepto que conheço um professor de lá, um excelente professor, talvez o senhor o conheça, chama-se João Paulo Videira.
– O João Paulo Videira sou eu!
– Ena pá… é mesmo! Você está gordo! Nem o reconhecia. Mudou as feições.
– Já estive mais…
– Você foi meu professor em Constância!
– Isso foi há 18 anos. Não errei muito.
– Olhe aquele ali é o Tó.
– Pois é! Estou mesmo velho. Já tenho alunos carecas!
O Tó riu. Rimos todos. Lembro-me muito bem deles. O baixinho da barba por fazer na altura não tinha barba. Tinha uns 12 ou 13 anos. Era uma criança muito activa, irrequieta mesmo, mas nunca foi mal educado. Pelo contrário, era aquele tipo de miúdo cordato, extremamente educado, mas que não parava quieto. Já na altura balançava o corpo ao andar e fazia um trejeito com a cabeça para consertar o cabelo. Tinha um brilho no olhar que transparecia esperança e boa disposição.
O Tó, agora a caminhar para careca, era diferente. Sempre foi um miúdo mais tranquilo, mais pacato, de evitar confusões, mas sempre foi, também, mais teimoso. Convencê-lo de que tinha de contrariar-se era muito difícil.
E agora, já não são personagens antigas da minha memória. São dois homens a caminho do trabalho no interregional das 7:18.
Estou mesmo velho. E, pelos vistos, gordo!


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O Clã do Comboio – Não chores!

Não Chores!
Quando o InterCidades de Lisboa para o Porto parou em Vila Franca de Xira, estavam quatro na plataforma. Um idoso, uma mulher nos seus quarenta anos, um homem de idade similar e um menino com cerca de oito anos.
Aproximaram-se da porta do comboio, mas só o homem entrou. Não o vi. Só o ouvi. A eles, vi-os pela janela. Assim que o comboio engoliu o homem, ele deve ter-se virado para a rua, para um último olhar, um último adeus. A criança agarrou-se ao ventre da mãe, abraçou-a como que a pedir que não acontecesse o que estava para acontecer e começou a chorar baixinho. O homem, sem se importar que o ouvissem, gritava bem alto para a rua algo que se ouvia na carruagem toda:
– Não chores, meu filho, não chores!
Nunca falou com nenhum dos outros porque os outros, sendo crescidos, compreendiam o sacrifício da separação porque conseguiam ver para além dela. Mas a criança não.
O comboio arrancou e o homem continuou repetindo em voz alta e sem cessar:
– Não chores, meu filho, não chores!
Quando as portas se fecharam e as pessoas da rua deixaram de ver-se, o homem entrou na carruagem, procurou o seu lugar, atirou-se para cima do banco, suspirou fundo um suspiro de desespero e chorou.
E eu pensei:
– Não chores!


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O Clã do Comboio – O Rómingue

O Rómingue
Há já uns dias que não colhia nenhuma história e hoje apanhei duas. De maneira que são fresquinhas. Esta traduz uma fusão. A fusão cultural e linguística entre a mais profunda ruralidade e o mais recente cosmopolitismo tecnológico. A história é breve. Basta uma descrição e uma tentativa de reprodução de uma conversa de que só ouvi metade. Porquê? Simples. Foi ao telefone e não sei o que a pessoa do lado de lá do aparelhómetro disse.
Era uma mulher baixinha, muito coradinha, cabelito curto, voz trigueira de quem não cala resposta e roupas bem campestres preparadas para o frio. Botas de cano alto em camurça, gastas. Se não falasse como falou, diria que alguém do interior tinha ido ao médico e regressava a casa no InterCidades das 19:30h. Mas a conversa despistou essa possibilidade. Ela e os outros, para aí uns quatro, já contando com o marido, tinham acabado de chegar. E foi assim.
– Tou sim?
– (…)
– Sou. Estamos no treine. Aterrerizámos há pouco.
– (…)
– Em a gente chegando, vamos organizar a nossa vida.
– (…)
– Não senhor, a vida pode esperar.
– (…)
– Não senhor, a gente tem de organizar a nossa vida e visitar os parentes.
– (…)
– Sim, eu sei. É o do talho, não é? A gente aluga um carro de praça.
– (…)
– Não. Não atendi. É que o meu telefone tem uma coisa estúpida que é o rómingue. A gente até por atender paga. De lá para cá é 75 cêntimos mas de cá para lá é mesmo uma coisa estúpida.
– (…)
– É o rómingue.
– (…)
– Beijinhos p’ra vocês. Deus queira que corra tudo bem com o Toino.
– (…)
– Beijinhos p’ra vocês.
– (…)
– Beijinhos p’ra vocês.


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O Clã do Comboio – Julieta, porque é que não fazemos amor?

Julieta, porque é que não fazemos amor?
Não é possível ninguém dizer com rigor qual é a sua canção preferida ou a sua música preferida. Quando nos fazem esse tipo de pergunta, em vez de dizermos uma, respondemos com uma imensa listagem. E isso é normal. Dependendo do momento que estamos a viver e da nossa disposição, referimos temas mais tranquilos ou mais exuberantes, géneros mais clássicos ou mais revolucionários. E acontece isto porque a música é uma expressão da nossa alma.
Há, no entanto, um critério que restringe um bocadinho as nossas preferências. É o das músicas e/ou canções que nos marcaram.

Tinha eu 17 anos, estava no auge dos amores, dos sentimentos arrebatados, das paixões, das descobertas, das leituras marcantes, das mulheres para além das roupas, das tristezas profundas, dos desgostos de amor, das saídas à noite, das amizades para sempre, das ideias, dos planos para mudar o mundo, das escolhas que iriam afectar a minha vida para sempre, das borbulhas na cara, das causas e da ideia de que algo no Universo seria diferente por minha causa, quando um amigo me estendeu um par de cassetes e disse:
– Toma, vendo-tas baratas. Isto é do melhor que há. Ouve um bocadinho.
Corri a um gravador e ouvi. Ouvi e apaixonei-me. Aquilo era diferente daquele som tecno e formatado que inundava os anos oitenta. Aquilo era genuíno. Tinha poucas palavras, mas os instrumentos, sobretudo a guitarra, pareciam falar. E aquilo soava como se tivesse uma história e acordava em mim coisas boas. Comprei-as. Era um álbum todo gravado num concerto o que quer dizer que, além da música, eu ouvia a multidão exultante e a sua interacção com os músicos. Aquela música marcou-me de tal forma que nunca mais a deixei de ouvir. As cassetes passaram tantas vezes que acabaram por, literalmente, gastar-se. Mais tarde comprei o vinil e depois, quando surgiu a tecnologia digital, acabei por comprar os CDs que entretanto estão riscados de tanto uso. Ouço-os em casa, no carro, no computador, onde quer que esteja e possa. Depois, quando o vídeo se tornou mais portátil e de melhor qualidade ofereceram-me o DVD do concerto. E mais recentemente com o surgimento dos sistemas de armazenamento de massa, vulgo pen drive, leitores mp3 e mp4, arranjei o ficheiro com o concerto coloquei-o no meu leitor mp3 e volvidos 26 anos continuo a ouvir esta música como se fosse a primeira vez e de cada vez que a oiço sinto esperança e força e fé e volto a querer mudar o mundo e a fazer coisas geniais e a fazer a diferença e a tocar o Universo de bondade. É a minha música da manhã, da tarde, da noite, do levantar e do deitar. É a minha música de rir e de chorar, de pensar e de reflectir e também de brincar.

O colega que me vendeu as cassetes chamava-se José Sioga, morreu dois meses mais tarde num acidente de automóvel, mas deixou-me esta herança de vida. E eu fui ser feliz, fui namorar, fui casar, fui ter um filho e criá-lo, fui tirar um curso, fui ser professor, fui ser outras coisas, fui fazer um mestrado, fui ver a minha irmã crescer, fui ver o meu pai morrer, fui ver o meu filho fazer-se homem, fui celebrar-lhe os aniversários, fui marcar as férias com a minha mulher, fui construir uma casa, fui traçar um caminho de vida e sempre, mesmo sempre, em momentos de exultação e acabrunhamento, o meu som de fundo esteve lá a acompanhar-me, a ajudar-me a fazer de mim o homem que sou.

Ia aqui no interregional das 7:18, com seis ou sete pessoas à minha volta com música nos ouvidos, e ia a pensar o que é que estariam a ouvir e porquê. E, de repente, pensei nas minhas próprias motivações e na minha própria música e, como tantas vezes na minha vida, escrevi ao som dela. Só que, desta vez, escrevi também sobre ela…

Este Natal quis homenagear o jovem que me apresentou esta música e faleceu tragicamente dois meses depois. Faleceu mas continuou vivo. É que o simples facto de me ter apresentado o concerto “Alchemy Live” dos Dire Straits mudou por completo a minha existência. Não sei como teria sido a minha vida, mas sei, com a certeza do meu crer, que teria sido algo completamente diferente, infinitamente mais pobre.
E queria homenagear o Mark Knopfler e os Dire Straits por me terem transmitido essa energia e essa força e por terem sido o meu canal de contacto e comunicação com a Divindade ao longo dos últimos 26 anos.

Eu não sei o que é que os outros passageiros do interregional das 7:18 vão a ouvir, embora sinta essa curiosidade. Eu cá vou escrevendo enquanto a guitarra chora, suave e doce, e o Mark entoa:
– Juliet, why don’t we make love?


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Histórias do Autocarro 28 – Ai, desculpe, desculpe, desculpe…

Ai, desculpe, desculpe, desculpe…

De todas as histórias que escrevi até agora sobre o Clã do Comboio e o Autocarro 28, esta é a primeira que envolve contacto físico… à farta.

Importa saber entre quem foi o dito contacto. Ora, nem mais nem menos do que entre a minha pessoa e uma passageira… Para ser mais exacto, entre a passageira e eu que, na verdade, fui ampla e generosamente abraçado.

A história não se passou no 28, mas tudo começou com ele. Chegou depois! Em vez de se ir no 28 de Santa Apolónia à Infante Santo, pode apanhar-se um autocarro expresso, assim chamado porque só faz uma paragem, que vai de Santa Apolónia ao Cais do Sodré. Daí à Infante Santo qualquer um serve e há muitos. Em dias de muito movimento pode ser bem útil.

Um dia destes, apanhei o expresso e quando cheguei ao Cais do Sodré apareceu o eléctrico 15. E foi aí que a coisa se deu. Já quase não havia espaço, todos os lugares sentados e em pé estavam ocupados e as pessoas seguiam literalmente enlatadas. Lá encontrei um buraquinho e entrei julgando que era o último. Atrás de mim entrou uma moça que não sei como se conseguiu encaixar, sei, contudo, que entrou, apertou-se entre os que estavam e ficou… sem ter onde se agarrar. Era baixa, cabelo escuro, farto e encaracolado, olho castanho. Tinha um ar simpático e claramente envergonhado. Do pescoço para baixo não sei como era porque não dava para ver além do que estava atrás de mim.

Ora, o eléctrico pára de uma forma um bocadinho mais brusca do que o autocarro e quando o fez, logo na primeira paragem, a moça agarrou-se abraçando-me e como me viu olhar para trás por cima do ombro, disse:
– Ai, desculpe, desculpe, desculpe…
Eu desculpei. É, de resto, uma forma diferente de começar o dia. Um homem acorda, sai à rua e é generosamente abraçado por uma moça bonita. O dia não estava a começar mal, portanto. Ora, importa referir que os eléctricos não só travam, como arrancam. E quando arrancam produzem o mesmo esticão só que no sentido oposto. A moça, de equilíbrio perdido, agarrou-se de novo ao meu tronco, muito agarradinha e lá foi dizendo ruborizada, quase a explodir de vergonha:
– Ai, desculpe, desculpe, desculpe…
A bem dizer, não havia nada a desculpar. Homem que é homem, por vezes faz o serviço público de ajudar uma senhora em dificuldades. E não tem de ser velhinha! Acho que nas contas do Criador as boas acções praticadas com jovens bonitas também qualificam.

No meu caso, o Criador, sendo bom avaliador das humanas acções, deveria ter-me contabilizado na caderneta seis delas e a razão é fácil de perceber. Entre o Cais do Sodré e a Infante Santo há três paragens, Conde Barão, Santos e Cais da Rocha, pelo que a uma travagem e um arranque cada, resultou em seis generosos e intensos abraços sempre seguidos de Ai, desculpe, desculpe, desculpe…

Numa das vezes, ainda tentei pô-la à vontade e de bem com a consciência:
– Deixe lá, não se preocupe, eu vou partir do princípio de que não está a fazer de propósito!
– E não estou. Pode crer que não estou!
Aqui, neste exacto momento, o meu ego desfaleceu um bocadinho, mas logo despertou de novo. É que ela ainda não tinha acabado aquelas palavras e já estava dizendo estas outra vez:
– Ai, desculpe, desculpe, desculpe…
Verifiquei se ainda tinha a carteira e voltei a sorrir.

jpv


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O Clã do Comboio – A Face do Sono

A Face do Sono

À medida que vou viajando, os aspectos mais óbvios vão-se tornando comuns e o meu olho observador procura o menos comum. Não quer dizer que encontre aspectos menos interessantes, pelo contrário, só não estão visíveis a olho nu.

Algo que comecei por notar sem consciencializar, mas de que agora tenho a certeza constitui um fenómeno interessante é aquilo que chamei a face do sono.

Não sei se há alguma relação entre a nossa disposição, o nosso carácter, o estado da nossa alma e a forma como deixamos transparecer isso na face enquanto dormimos. Admito que haja. Tenho quase a certeza, empírica, de que há. E vem-me esta certeza de ter começado a “coleccionar” faces de pessoas que dormem no interregional das 7:18 entre Entroncamento e Lisboa.

É verdade, não dormimos todos da mesma maneira. E a diferença começa aí. Há os que se mantêm direitos e recostam a cabeça, há os que recostam o corpo todo, há os que se apoiam no braço do banco e tombam para a esquerda, há os que se encostam à janela e enquanto dormem vão dando pequenas e involuntárias cabeçadas no vidro, há os que encostam o queixo ao peito, tombam a cabeça para a frente e assim é que dormem, há os que dormem com música nos ouvidos e os que o fazem sem ela. E há os que têm o sono leve e vão dormitando e intermitentemente abrindo um olho para ver o ambiente do espaço, assim como há os que dormem a sono solto até ao destino. Tudo isto é interessante, mas nada comparável ao verdadeiro interesse: o da face do sono.

Um destes dias, entrei no comboio, sentei-me e sentou-se à minha frente uma pessoa daquelas que dormem sobre o queixo. E não pude deixar de reparar nela porque dormia profundamente mas a sua face estava sisuda, preocupada e, mais do que isso, sofrida. Diversas vezes tive a sensação de que ia chorar. Não aconteceu, mas juraria que esteve quase. Depois reparei que havia mais pessoas assim. Franzem as sobrancelhas enquanto dormem, cerram os dentes e os lábios, fecham os olhos com força e sofrem o sono. Outra categoria é a dos pensativos. Têm um sono sério, uma face fechada e sisuda. Não há ali sofrimento mas seriedade. Estes, normalmente, mantêm o corpo direito e recostam somente a cabeça.
Um dos grupos mais interessantes é o dos desleixados. Tudo é desorganização, até na forma como dormem. Encostam-se à janela, alguns colam-se literalmente a ela, e vão dormindo e cabeceando. Os braços caem desorganizados pelo corpo e transparecem indiferença. Alguns destes sorriem durante o sono. Mas, os mais engraçados, que até nem são a maioria, são os tranquilos. Estes tipos, não sei o que fazem na vida nem à vida, mas sei que poderia vir de lá o comboio que nada os acordaria! Recostam o corpo todo, alguns destes, além do corpo, também recostam a cabeça. Normalmente fecham a boca mas há, nesta categoria, os que vão dormindo como se estivessem para comer a carruagem, de boca escancarada. E o que os une é uma clara expressão de tranquilidade. Também entre estes há os que sorriem enquanto dormem profundamente. Só acordam no destino. Vá-se lá saber como sabem que chegaram, o certo é que sabem. São invejáveis. Até a dormir transparecem tranquilidade, como se nada fosse com eles..

E assim, à medida que a máquina rola e os solavancos se repetem e os sons se propagam, a face do sono viaja no interregional das 7:18 e por ela, vemos o que vai no mundo. A preocupação e o sofrimento, a seriedade, a desorganização e a tranquilidade de quem vai de Entroncamento a Santa Apolónia na mais absoluta paz do senhor. Todos têm algo em comum. Durmam como dormirem, estas pessoas têm de ter o nosso respeito porque ainda a noite banha a Terra já elas estão a trabalhar. A sono solto.