Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


Deixe um comentário

O Clã do Comboio – Manto Branco

Manto Branco
As pessoas que me conhecem sabem que eu sou um tipo inexoravelmente optimista. É como uma doença. Quase só consigo ver as coisas positivas da vida. A luz. A esperança. A bondade. A realização.
Isto para dizer que estou a escrever um apontamento positivo que começou num percalço. O interregional das 7:18, hoje, não foi às 7:18. Eram 7:25 quando a malta começou a esfregar as mãos, a bater com os pés no chão a ver se aqueciam, a olhar uns para os outros como quem pergunta, Atão mas isto não vem? Às 7:28 uma voz rouca no altifalante informou que chegaria às 7:34. Como as previsões em Portugal nunca falham, o comboio chegou às 7:46! Com 28 minutos de atraso, portanto. Como se não bastasse o incómodo do atraso, juntou-se-lhe um percurso penoso, repleto de paragens no meio do nada, ou melhor, no meio da lezíria, umas mais breves, outras mais longas.
Vamos, então, ao que isto teve de positivo. Para além das conversas dispersas a dizer mal da CP com claro efeito catártico na bílis colectiva, o mais interessante foi que, pela primeira vez desde 2 de Novembro último, quando comecei esta saga do comboio, foi possível cruzar toda a lezíria com luz do dia e emprenhar a vista da paisagem ribatejana. Oliveiras pontuais e olivais organizados, os campos de milho em repouso, as imensas vinhas com suas videiras de braços abertos e despidos, os canaviais, cursos de água, casinhas brancas e tratadas no meio do nada e, sobretudo, aquilo que me fascinou a alma, um amplo e silencioso manto branco de geada. O escuro da terra e o verde da vegetação deram lugar a uma imensidão branca de apaziguar corações. Antes e depois das nossas vidas, antes e depois do nosso tempo, haverá sempre um manto branco que nos cobre o espírito e nos conforta a existência.
Não. Não estou zangado com a CP. Estou agradecido, não sei se à CP, desconfio que não, pela paz hoje presenciada, pela simplicidade com que a mãe Natureza nos mostra que não precisamos de complicar a vida porque tudo começa e termina na tranquilidade de um manto branco.


2 comentários

O Clã do Comboio – Zzzzzzz…

Zzzzzzz…
Já um dia, não sei a que propósito, me tinha lembrado que isto poderia acontecer. Acontece que pensarmos na possibilidade é uma coisa, ter a realidade imaginada ao nosso lado é bem diferente.
Entrou. sentou-se ao meu lado. Tinha a barba por fazer num rosto simpático e disse umas coisas de circunstância sobre o atraso do comboio. Três minutos depois, dobrou o queixo sobre o peito, adormeceu profundamente e ressonava amplamente. Era tão audível que várias pessoas olharam para ele a ver se ele reparava que ia a incomodar. Claro que o gesto foi inútil porque o princípio do ressonar assenta no pressuposto do sono. E quem vai a dormir, não vê.
E pronto. Desta vez não foi um telemóvel, não foram três tipos a falar alto. Foi um homem a dormir e a ressonar sonoramente que estragou o sono dos outros. Quando acordou, olhou em volta, certificou-se de que estava tudo bem com o mundo, cruzou os braços e seguiu olhando a paisagem com o sono em dia!


Deixe um comentário

O Clã do Comboio – Prognósticos…

Prognósticos…
Ontem, 2 de Fevereiro de 2011, regressei a casa no interregional das 18:18. E colhi um apontamento que me escuso de comentar. Fico-me só pelo regozijo de o reproduzir.
Entraram dois amigos no Oriente e a conversa foi simples e breve:
– Então, vais ver o jogo?
– Vou. Vamos a casa do meu cunhado.
– E o que te parece?
– Eh pá, sei lá, eles estão melhor…
– Não estão nada pá, vão levar a dose da última vez!
Prognósticos!


2 comentários

O Clã do Comboio – Os Pré e os Conceitos

Os Pré e os Conceitos.
No desenrolar comum dos nossos dias vamos desenvolvendo ideias, opiniões e pareceres acerca do que nos rodeia e, no agir conjunto do nosso quotidiano criamos os nossos conceitos. Alguns ficam de tal forma cristalizados que nos habituamos a olhar para a realidade segundo eles. Nessa altura já não são conceitos. São preconceitos. E é exactamente aí que, por vezes, a vida nos surpreende. É quando estamos à espera de uma realização com uma certa forma, formato ou formatação, e algo ou alguém quebra o expectável.
É um rapaz. Não viaja todos os dias no interregional das 7:18, mas viaja várias vezes por semana. Gosta de ir para aquela zona da carruagem porque aí encontra mais espaço disponível. O seu aspecto é profundamente rural e até prosaico. Botas cardadas com aqueles atacadores amarelos que só nessas botas se encontram. Calças de ganga sem bainha feita. A substituí-la, uma pequena dobra nas extremidades. Camisola de gola alta, castanha, em lã grossa e um casaco de sebo também castanho. Tem as mãos largas e grossas preparadas para trabalhos duros como os do campo. E, sem estarem mal cuidadas, nota-se que não têm direito às bonomias dos cremes e dos ambientes protegidos. O cabelo curto e espetado no ar e, sempre que entra, olha para o reflexo no vidro e tenta, sem sucesso, penteá-lo com as mãos.
Senta-se. Começa por tirar um saco de plástico da mochila usada. Coloca o saco aberto no colo e, normalmente, bebe um sumo de frutas, come uma sandes, depois uma maçã, depois um citrino, laranja ou tangerina, e termina bebendo um golo de água. No final da refeição, arruma os despojos dentro do saco que ata e devolve à mochila.
E pronto. Aí tendes o vosso preconceito. Agora, falta conhecerdes a realidade.
No momento seguinte, tira da mochila uma pasta de plástico A4 com folhas. Coloca-a no colo onde ainda agora estivera o pequeno-almoço. Saca de uma pauta e escreve. Tal como eu escrevo palavras, ele serpenteia a pauta de colcheias, fusas, semi-fusas, tracinhos e bolinhas negras que a minha ignorância não serve para melhor descrição. Por vezes, está a escrever com a mão direita e com o polegar da mão esquerda vai dando pancadinhas na pasta como se estivesse a marcar o ritmo. Quando sai, no Oriente, Já leva escritas duas páginas de música.
E pronto, aí tendes o vosso conceito. A vossa realidade. A convivência sã entre as coisas do corpo e as do espírito. Entre a ruralidade e a arte divina da música. Aí tendes a vida na sua multiplicidade de realizações e no seu máximo esplendor.
Tudo enquanto o interregional das 7:18 liga o Entroncamento a Santa Apolónia.


Deixe um comentário

Histórias do Autocarro 28 – Coincidência

Coincidência

Nada disto se passou no autocarro. Só incluo o presente apontamento nesta secção porque o que aconteceu, não tendo sido no 28, decorre dele.

A vida na sua infinita diversidade revela-se, por vezes, um ciclo muito restrito de inter-relações humanas. E o mundo, sendo imenso, revela-se pequenino como a palma da mão.

Há quase dois meses escrevi uma história sobre uma anónima que viajava no 28. A semana passada voltei a vê-la na paragem do autocarro e, com a minha reconhecida afoiteza, disse-lhe:
– Bom dia, desculpe incomodá-la, escrevi um texto sobre si que pode encontrar em https://mailsparaaminhairma.wordpress.com na secção “Histórias do Autocarro 28”.
E fui à minha vida.

Nesta urbe imensa, trabalho com centenas de pessoas e o âmbito de alcance do meu trabalho estende-se por milhares de utentes.

Hoje, estava num evento que envolvia mais de duzentas pessoas. Entrei numa sala de conferências a certificar-me de pormenores de organização e, ao centro da sala, estava a minha anónima. A risada foi conjunta. O espanto foi mútuo.
– Como está?
– Bem, obrigada!
– Que faz por cá?
– Eu trabalho aqui.
– Eu vim cá hoje por causa do evento.

Outras simpáticas palavras de circunstância se trocaram, mas o que me ficou na retina, para além da sua inegável e confirmada elegância, foi a forma como o Universo brinca connosco. E nós a julgar que controlamos tudo!

jpv


Deixe um comentário

O Clã do Comboio – Fugaz

Olá estranha!
Não vens sempre. Talvez até nem apareças nunca mais e é por isso que vou reter-te nas malhas das palavras.
Mais de vinte. Menos de trinta. Alta. Os cabelos lisos e brilhantes, que apanhaste pouco depois, deixaram à vista dois brincos largos e rendilhados como os de uma sevilhana. A face rosada e os lábios carnudos. Tens aquelas mãos que assustam os homens. São finas e longas e amplas. E, sendo grandes, não perdem a elegância. Pelo contrário. Camisola preta de gola alta e manga comprida, colada ao corpo e por cima dela uma camisolinha de lã cinzenta com decote generoso e manguinhas curtas. Fica bonito o preto a emergir do cinza suave. O casaco preto de pele e pelos quentes e fofos que tiraste pouco depois de chegares completa o quadro monocromático de bom gosto. Botas de cabedal e cano alto subindo-te pelas pernas até ao joelho onde fazem uma aba. Dos joelhos até à camisola de lã só as meias. Estas que agora se usam que não são só meias mas também não chegam a calças. O gloss nos lábios dá-te um brilho agradável e sensual. Mas não és, sobretudo, sensual. És uma mulher elegante que vai para o trabalho na juventude da vida.
Leste. Era trabalho o que lias. Mas não estavas lendo, estavas fugindo de todos nós como que demarcando o teu espaço, o teu isolamento no meio da carruagem. Mas contigo isso não é possível. Uma mulher como tu não passa despercebida. E nem é por ser particularmente vistosa. É por ser natural e profundamente elegante.
Vieste fugaz e amanhã já não estarás. Mas isso que importa? Importa bem mais a imagem que nos deixaste colada no cérebro. Presença fugaz marcada fundo no recanto das fotografias que todas as mentes têm.
Há pessoas que dão mesmo sem se aperceberem. Há pessoas cuja presença permanece mesmo depois de terem partido. Tu és uma dessas anónimas que paira na ausência e para quem não temos nome mas gostaríamos de ter. Eu chamo-te deliciosamente Fugaz.


Deixe um comentário

O Clã do Comboio – A Troca

A Troca.

Este brevíssimo apontamento está destinado a constatar e a relatar de forma isenta, logo, sem quaisquer conclusões e muito menos juízos de valor precipitados, um ritual que observei esta semana na viagem de regresso a casa.
Peço-vos, por isso, que também não façam os tais juízos… precipitados.
O trabalho deu para tarde. Tive de apanhar um InterCidades depois das 20h. À minha frente, na outra fila, logo, na diagonal do campo de visão, ia um homem comum, com roupa comum, com um comportamento comum. Nada a registar. Notei, só, como facto a realçar, que nem sequer daria um apontamento, que levava uma enorme aliança de casamento, lisa e larga, brilhante e dourada, no dedo anelar. Até aqui, tudo bem.
Pouco antes de chegarmos ao Entroncamento, onde ele também saiu, tirou a carteira do bolso interior do casaco, abriu aquele compartimentozinho que se fecha com uma mola e onde se guardam as moedas, tirou a aliança do dedo e colocou-a lá dentro. E foi de lá, de junto das moedas, que retirou uma aliança igualzinha mas num tom diferente. Era acobreada. E colocou-a no dedo onde ainda agora estava a outra!
O que é que eu vos pedi?
Demasiado tarde!


2 comentários

O Clã do Comboio – Agradecimento

Agradecimento

Exmo. senhor Presidente do Conselho de Administração da CP.

Excelência, nós, abaixo signatados, vimos, mui humilde e pungentemente, agradecer a prontidão e a eficácia com que respondeu à solicitação feita.

Nem 24 horas, Excelência, nem 24 horas decorreram, nem o tempo do transcurso da orbe sobre si própria e temos de volta a luz às nossas vidas. Os rostos iluminaram-se, os sorrisos desenharam-se amplos, olhares de alegria cúmplice correram os ares e, se não houve vivas, houve pelo menos quem dissesse, no presente caso, o aluno do escritor, “A reclamação resultou!”.

Voltou o sentido e a orientação às nossas manhãs, a tela cinzenta que vivemos nos últimos dias é de novo aguarela colorida e a paz invadiu os nossos corações.

Excelência, queira considerar pretéritas as nossas reclamações e aceite nossa fidelidade comercial na continuidade no recurso aos excelsos serviços que a Companhia de V.Exa. presta como única forma de agradecimento ao nosso humilde alcance. A Mulher Vampiro está de volta e, para nós outros, signatários da presente e demais anónimos, a vida também.

De V. Exa.,
Com a mais elevada estima e consideração, subscrevem:
O escritor, o aluno dele, os três amigos que andam a combinar como salvar o mundo, o militar que sai em Vila Franca, o ceguinho que vê, a generalidade dos homens e mulheres que viajam na 6ª carruagem do interregional das 7:18.
Em 20 e picos de Janeiro mais um
Algures entre Entroncamento e Santa Apolónia


Deixe um comentário

O Clã do Comboio – Reclamação

Reclamação
Exmo. senhor Presidente do Conselho de Administração da CP
Nós, abaixo assinados, legítimos signatários da presente e mui nobre missiva, vimos, por este meio, apresentar a nossa reclamação e o nosso mais veemente protesto em relação à qualidade dos serviços prestados pela Companhia que V. Exa. dirige.
Não obstante a extraordinária qualidade das composições, não obstante o arzinho condicionado sempre ligado, não obstante a clara e resoluta competência dos “picas”, não obstante o serviço estar dotado de uma pontualidade de fazer inveja aos súbditos de Sua Majestade, a Rainha Mãe, carece o mesmo serviço de uma componente fundamental ao seu equilíbrio, à sua harmonia, ao seu bom-gosto e mesmo à composição imagética e odorífera do ambiente em que quotidianamente viajamos.
Deste modo, sem mais delongas nem escusas, vimos solicitar seja devolvida à 6ª carruagem do interregional das 7:18, primeiro banco da correnteza lateral, junto à primeira porta do lado direito para quem viaja de costas, a mui sensível e composta figura dessa moldura humana que, nos autos deste humilde escriba, dá pelo nome de Mulher Vampiro.
Excelência, os homens andam perdidos e as mulheres também. Eles, porque não têm para onde olhar e olhando colhem somente desilusão e elas porque lhes falta o divinal modelo para seguir e invejar.
Excelência, a desolação assola as carruagens e vai aqui uma sensação de perda e vazio que torna as nossas deslocações e os nossos dias de trabalho numa infinita e paupérrima tristeza.
Sabendo dos excelsos poderes que lhe assistem enquanto Presidente do Conselho de Administração, vimos rogar-lhe devolva a vida às nossas vidas, a inspiração às nossas musas, e mobilize todos os seus esforços no sentido de colmatar esta grave e insuportável falha.
De V. Exa.,
Com a mais elevada estima e consideração, subscrevem:
O escritor, o aluno dele, os três amigos que andam a combinar como salvar o mundo, o militar que sai em Vila Franca, o ceguinho que vê, a generalidade dos homens e mulheres que viajam na 6ª carruagem do interregional das 7:18.
Em 20 e picos de Janeiro
Algures entre Entroncamento e Santa Apolónia


2 comentários

Histórias do Autocarro 28 – Aconchego

Aconchego

Tal como a anterior, esta história também não é uma história. É um apontamento urbano. Nem indagaremos as razões, nem procuraremos explicações. Limitamo-nos a contar a história e cada leitor fará os seus próprios juízos.

Quando o autocarro 28 parou no Cais do Sodré, não ia muito cheio, mas nessa paragem abarrotou. As portas fecharam com custo. Não havia espaço entre as pessoas, excepto aquele mínimo para que não vamos abraçados uns aos outros. Ao meu lado ia um rapaz aí com os seus 35 anos com o braço no ar a segurar-se na pegadeira o que fazia com que o seu casaco, que não ia abotoado, ficasse com as abas a pender. Lá da frente aqui para trás, onde vamos, veio uma senhora com cerca de 50 anos, cabelo ruivo, arranjado e penteado, calças de sarja branca justas e botas de cano alto, abrindo caminho até chegar junto a nós. Passou por mim e anichou-se dentro das abas do casaco do rapaz, encostou muito o seu corpo ao dele e assim seguiram coladinhos um ao outro. E só não pode dizer-se que iam abraçados porque cada um deles tinha um braço no ar para se segurar e outro estendido com uma pasta na mão. O queixo dela ia por cima do ombro dele. Eu pensei, como outros devem ter pensado, que seriam namorados ou um casal de idades desiguais e que ela viera ao seu encontro. Só estranhámos que não se tivessem falado e que não se tivessem olhado. Ele tentou olhar para ela, mas ela ia com a cara de lado. E, à medida que o 28 evoluía no terreno, ela parecia entregar-se mais a ele, aconchegar-se no calor do seu corpo.

Numa paragem, conforme entrara, ela saiu. O rapaz olhou para nós muito corado e fosse porque tínhamos alguma interrogação no olhar, fosse por sentir necessidade de explicar-se, disse:
– Não a conheço de lado nenhum!
Alguém mais habituado a estas andanças advertiu:
– Veja lá se tem a carteira…
Ele abriu muito os olhos, fez um ar preocupadíssimo, como quem se lembra tarde demais que se esqueceu do fogão ligado, levou a mão ao bolso interior do casaco, fez um ar de alívio e disse:
– A carteira está cá.
Nesse momento, o tipo que o lembrara da carteira encerrou o assunto com piada:
– Deixe lá, foi só o aconchego!

jpv