Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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Creta 2010 – Diário de Bordo – 14

6/8/2010 – 18:14h. – Georgioupoli
Este foi, até agora, o dia mais cansativo desde que estamos na ilha. Visitámos a capital, Eráclio. Saímos de autocarro às seis da manhã e acabámos de chegar. Pensávamos que a viagem seria de três horas mas o autocarro das seis da manhã não faz paragens o que nos colocou em Eráclio às sete e meia.
A cidade decepcionou-me na medida em que, por ser a capital, é a mais descaracterizada. A única diferença entre estar ali e numa cidade portuguesa são os caracteres. Ainda assim, realço três aspectos: o porto veneziano, assim chamado porque rodeado a toda a volta por uma muralha veneziana, o museu de Cnossos onde finalmente pude ver ao vivo algumas das coisas que acompanharam a minha vida universitária há mais de vinte anos e, sobretudo, o mercado. Bem, há uma quarta que merece referência. A zona antiga e central da cidade tem alguns edifícios venezianos de uma beleza extraordinária.

O mercado de Eráclio não é num edifício fechado. Estende-se ao longo de uma rua inteira com bancadas de carne, peixe, frutas, legumes, queijos, cafés e produtos tradicionais. A rua fica praticamente coberta porque os toldos de um lado e de outro chegam praticamente ao meio.
Uma das paisagens mais interessantes da ilha vimo-la hoje. A uns cinco quilómetros da cidade, a meio de uma serra, vê-se toda a extensa baía de Eráclio e o casario que desce da montanha, pela costa, até ao mar.
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Pormenor cretense nº 1: Na ilha, só em Eráclio encontrámos um restaurante MacDonalds. Não usámos. Aqui não vale a pena porque é dos restaurantes mais caros que se encontra!
Pormenor cretense nº 2: Tomámos um café gelado e um capuccino no Starbucks. Preferimos casas tradicionais, não formatadas, mas era tão cedo que o Starbucks era praticamente a única casa aberta. Por todo o mundo, o Starbucks tem uma pequena caixa junto à caixa de pagamento de onde as pessoas podem tirar livremente moedas se lhes faltar uns trocos para completar o pagamento. Do mesmo modo, quando recebem trocos podem deixar algumas moedas de menor valor. É um sistema de entreajuda. Não é uma gorjeta. Os ingleses chamam-lhe “take a penny, leave a penny” que pode traduzir-se por “sirva-se de uns trocos, deixe uns trocos”. Ora, os gregos de Eráclio não estiveram com meias medidas e converteram aquilo numa caixa de gorjetas e o que lá estava escrito era “leave a tip”, “deixe uma gorjeta!” Como diria o ribatejano: “Mai nada!”

Pormenor cretense nº 3: Hoje tentei comprar em Eráclio uns cds para a máquina. Eu tenho uma dois em um. É uma máquina de filmar que grava em cd e, simultaneamente, uma máquina fotográfica que grava as fotos em cartão. Como não gosto de filmar, nunca trago cds, só cartões. Ora, o pessoal começou a dizer para eu comprar uns cds e filmar. Encontrei uma casa com um letreiro luminoso por cima da porta que tinha o símbolo da AGFA e dizia “Material Fotográfico”, também tinha um cartaz de colocar no chão com publicidade a produtos fotográficos. Quando lá entrei era… um supermercado que vendia tudo menos produtos fotográficos. A velhinha que lá estava explicou-me que compraram a loja assim, mudaram o negócio mas nunca tiraram os letreiros. E todos os dias põem o cartaz na rua!
Nota gastronómica atrasada: A comida destes tipos é tão boa quanto eu estou a engordar a olhos vistos! Ontem, já depois de ter escrito o resumo da visita a Rethimno, fomos jantar aqui em Georgioupoli a um local onde já nos vão conhecendo. A comida é muito boa, caseira, e as pessoas são muito simpáticas. É o Nostos. Como já experimentámos a gastronomia mais conhecida em diversas versões, o “tzatziki”, o “giros”, a “moussaka”, o “souvlaki”, a “loukanika xoriatika” (salsichas picantes com ervas aromáticas), o “guémistá”, a salada grega e a cretense, resolvemos aventurar-nos por pratos menos conhecidos dos turistas. E vai daí comemos “soutzoukakia”, carne picada feita em bolas em forma de ovo que é temperada com ervas aromáticas e refogada com pimentos, tomate e muita cebola. Come-se com batata frita e tzatziki. E comemos também “imam baildi” que são beringelas recheadas com couve, cenoura, tomate, pimento, malaguetas, muita cebola e queijo fetá. Primeiro é refogado e depois vai ao forno. Come-se com quê? Pois claro, batata frita e tzatziki.
Nota linguística humorada nº 1: como eu e a Paula somos formados em clássicas e estudámos grego antigo e literatura grega e como ainda leccionámos grego, servimo-nos de algumas semelhanças para facilitar a comunicação. Em primeiro lugar, não estranhamos o alfabeto o que é óptimo, em segundo lugar conhecemos muitas palavras e outras tiramos pelo sentido. Ora, tudo isto é muito lindo para ler instruções, menús, placas com nomes de localidades e outras coisas menores mas para a comunicação oral serve muito pouco porque as diferenças entre o grego antigo e o moderno são enormes. Por uma questão de respeito e também para nos integrarmos melhor, tentamos sempre falar grego.
Ora, ontem ao jantar pedimos, entre outras coisas, no melhor grego que conseguimos arranjar, uma “Coca-Cola grande”. Ficámos um bocadinho admirados quando a moça que nos estava a atender fez uma cara de grande espanto. E foi tal o espanto que resolveu deixar-se de brincadeiras em grego com os turistas armados em espertos e partiu para o inglês. A conversa que agora traduzo passou-se, portanto, em inglês.

– Tem a certeza de que quer isso?
– Sim, tenho.
– E o que é que quer mesmo?
– Quero uma Coca-Cola grande.
– Bem me parecia que alguma coisa estava errada!
– Como assim?
– Sabe o que acabou de pedir-me?
– Uma Coca-Cola grande!
– Não! Uma Coca-Cola com leite!

Depois da gargalhada geral, tirámos a confusão a limpo escrevendo na toalha de mesa. Aqui fica a confusão:

Nós dissemos “mia Coca-Cola mê gala, parakaló”
Devíamos ter dito “mia Coca-Cola mégala, parakaló”
Nota linguística humorada nº 2: um dia destes, estivemos a jantar num local onde gostamos de ir porque fazem um excelente “giros”. O Milos. Acontece que a moça que nos costuma atender, muito simpática, é búlgara, vive há dez anos em Creta para onde veio trabalhar mas não diz uma palavra em inglês. Ou melhor, diz três: “hello” e “thank you”. Nós, como já foi dito, lemos e percebemos algum grego mas falamos muito pouco. Quando lá vamos, abrimos a ementa e apontamos. Isso costuma resolver a coisa. Desta vez, contudo, precisávamos de dar uma ordem aos pratos. Este primeiro, aqueles depois. Foi exasperante e, ao mesmo tempo, cómico porque nem ela percebia o nosso inglês, nem nós o grego dela. Acontece que sempre que tentávamos dizer qual era o prato que queríamos primeiro, ela riscava-o da encomenda e perguntava com um gesto interrogativo qualquer coisa que devia ser “Então em vez deste vai ser qual?”
Então, tínhamos de repetir todo o pedido que ela voltava a escrever e quando tentávamos mudar outra vez a ordem aos pratos, ela riscava o primeiro e voltava a perguntar “Então e em vez deste?”
Parecia uma roda de malucos até que, no meio de explicações e contra-explicações, ouvimo-la dizer a palavra “proto”. E fez-se luz. A malta lembrou-se de proto-história e depois do significado de “proto” em grego: primeiro. Quando resolvemos isto, descobrimos que ainda faltava o resto do pedido! Vá de abrir ementas e apontar com o dedo que assim não falha.

Nota que não tem nada a ver com nada: desde que estou em Georgioupoli (uma semana), escrevi quatro capítulos de “De Negro Vestida”. E eram importantes! Necessitavam tranquilidade e força mental. Acho que encontrei ambas aqui!

Mercado de Eráclio
Mercado de Eráclio
Disco de Festo no Museu de Cnossos em Eráclio. Contém a escrita denominada de “Linear A”
Jarro em forma de cabeça de boi – Museu de Cnossos em Eráclio
Fresco conhecido como “O Príncipe dos Lírios” – Museu de Cnossos em Eráclio
Praça Central na zona antiga de Eráclio com fonte ao estilo veneziano
Edifício veneziano em Eráclio – serve agora como “Câmara Municipal”
Restaurante “Nostos” em Georgioupoli


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Creta 2010 – Diário de Bordo – 13

5/8/2010 – 13:29h. – Rethimno

Estamos na fortaleza de Rethimno, a terceira cidade de Creta. No túnel que lhe serve de entrada. Deve ser o único local fresco da cidade. Resolvi registar o momento porque nunca tinha presenciado o que aqui está a acontecer. Eu já ouvira o canto das cigarras outras vezes, na Grécia ouvem-se por todo o lado, mas nunca com esta intensidade e amplitude. O pátio interior da fortaleza está cheio de pinheiras, as cigarras instalam-se nelas aos milhares e cantam todas em uníssono pela hora do calor. É um som de tal forma intenso que, entre as árvores, as pessoas têm dificuldade em ouvir-se umas às outras.

A fortaleza tem uma vista belíssima para a cidade e para o mar. Chegámos de manhã bem cedo e andámos percorrendo as ruas. Tomámos o pequeno-almoço num bar que não é para turistas, entre velhotes que começam o dia com aguardente, vinho branco, pepino, azeitonas, tomate e, claro, queijo fetá.
Hoje era dia de mercado de rua. Visitámo-lo e não pude deixar de notar o quão semelhante é este mercado às feiras de rua que temos semanalmente pelas localidades do Ribatejo.

Aqui em Creta há o costume de fazer figuras com o pão. Pão em forma de pato, gato, golfinho, caracol e, o mais trabalhado, pão em forma de coroa de flores. Comemos um “pato”. Era bom. Mas, mesmo bom, era o pão com frutos secos.

Rethimno – porto interior

Rethimno – fortaleza

Rethimno – pátio interior da fortaleza

Rethimno – figuras em pão
Rethimno – vista da fortaleza
Rethimno


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Creta 2010 – Diário de Bordo – 12

3/8/2010 – 17:15h. – Georgioupoli

Acabámos de chegar. Hoje visitámos Xaniá. Saímos bem cedo de autocarro que é o transporte preferido pelos gregos e por isso o mais utilizado. Visitámos a igreja da cidade. Não me marcou como já tem acontecido com outros espaços religiosos. O que salta à vista e é o coração e o centro de toda esta cidade, a segunda maior de Creta, é o seu porto.
Há um porto exterior mais usado como marina para acolhimento de navios. Aí se destaca a extensa muralha por cima do mar até ao farol. E do farol tem-se uma vista lindíssima para o porto interior. Este está repleto de movimento com barcos com barcos com o fundo de vidro para observação da fauna marinha sempre a entrar e a sair carregados de turistas, lojas de recordações, decoração, livrarias, casas de café e restaurantes. Tudo num frenesim de oferta e procura com o intenso azul do mar como pano de fundo. Para trás da imensa meia-lua que é o porto interior fica um emaranhado de ruas pequeninas e estreitinhas com recantos, janelinhas e tabuletas de lojas com um traço típico e antigo. Algumas são tão estreitas que é possível, abrindo os braços, tocar ao mesmo tempo nos edifícios de ambos os lados da rua. E em todas estas ruinhas se abrem mais lojinhas, mais casas de café onde velhotes com o tempo todo pela frente bebem copos de água gelada e chávenas de café quente enquanto sorvem golfadas longas de cigarros suspensos em dedos rugosos e amarelecidos.

Visitámos o mercado e verificámos que o conceito é mais amplo que o nosso. Além do peixe, da carne e das frutas, eles têm pastelarias, bares, lojas de roupa, de cerâmica, de livros e, claro, casas de queijo. E têm também casas onde vendem mel e plantas apanhadas nas montanhas de Creta com as quais fazem chá. Neste mercado, os ruídos são idênticos aos nossos, mas os odores são mais intensos. e marcam mais fundo.

Hoje almocei “guémistá”. Eles cozem arroz com ervas aromáticas, depois recheiam tomates com esse arroz acrescentando ervas cruas, estufam os tomates recheados e servem com o maravilhoso tzatziki. É muito saboroso e não enche.
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Nota sobre costume grego 1: à medida que os dias passam, tenho vindo a reparar num costume muito próprio de Creta. Nos restaurantes quase não há oferta de sobremesa. Limitam-se a uns gelados e pronto. Primeiro estranhei, depois percebi porque era. Quando acabamos de comer, seja almoço ou jantar e pedimos a conta, eles trazem-na e, depois disso, o empregado ou o proprietário da casa trazem a sobremesa como oferta para mesa. É claro que não podemos escolher, mas é muito interessante reparar que eles fazem questão de trazer a conta para já não poderem alterá-la e assim evidenciarem que estão a fazer uma oferta. É mesmo uma atenção. Já nos ofereceram uma meloa descascada e partida, uma travessa com melancia, um gelado para cada um, um prato de figos e “Raki”que é uma aguardente tipicamente cretense que é suposto beber-se de “penalti” e cuja particularidade é não arder na garganta. Estes tipos não existem.

Nota sobre costume grego 2 (19:30): tinha acabado de escrever o comentário anterior e saímos à rua para comer um delicioso crepe com sumo de laranja natural no Eleanas Deli Bar onde somos sempre atendidos com extrema simpatia pelo Andreas. Tínhamos acabado e pedido a conta e ele veio oferecer-nos um prato com maçã cortada às fatias e um cacho de uvas. Disse-lhe que ele não existia por ser tão atencioso e ficámos conversando os dois sobre como é lamentável que as pessoas se estejam esquecendo de ser simpáticas umas com as outras. Ele defende esta simpatia como algo tipicamente cretense e eu tenho de concordar. “Efcharistós, Andreas” (Obrigado, Andreas).

Xaniá – recanto de rua
Xaniá – porto interior

Xaniá – farol

Xaniá – mercado

Xaniá – mercado

Xaniá – mercado


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Creta 2010 – Diário de Bordo – 11

2/8/2010 – 14:47h. – Georgioupoli

Hora da sesta. Definitivamente.
A Dona Antónia esteve cá hoje para fazer a limpeza e trocar lençóis e toalhas. Faz isto dia sim, dia não. Hoje cruzámo-nos e ela esteve simpática e conversadora como sempre. Queixou-se da exploração que os gregos vivem por parte dos seus próprios políticos e por parte do governo da senhora Merkl. Não gostam dela na Grécia.

Depois, a propósito dos alemães, a conversa voou para a 2ª guerra mundial. Nessa altura, o avô dela, um homem novo, fugiu para as montanhas com toda a população quando os alemães invadiram Georgioupoli e deixaram-nos sozinhos sem ninguém para combater. Um dia, às seis da tarde, desceram à vila de surpresa e roubaram uma enorme panela de latão que estava cheia de comida para os soldados. Dona Antónia diz com ironia que tem a panela no jardim com flores e quando a senhora Merkl vier cobrar as dívidas aos gregos, ela paga-lhe a sua parte devolvendo a panela! Relembrou, a este propósito, que a Grécia foi o único país envolvido na 2ª guerra mundial que não foi indemnizado. “É hora de começar a descontar nessa dívida dos alemães”, diz.

Contou, com o brilho no olhar, que a mãe dela tinha cerca de 17 anos na altura da guerra e queria casar mas não tinha vestido. Certo dia, em que os alemães largaram pára-quedistas, a população foi abatê-los a tiro antes de chegarem ao chão. Depois, com burros, trouxeram as botas dos mortos e os pára-quedas que tinham muito que se aproveitasse. Como eram feitos de seda pura e branca, o vestido de noiva da mãe dela foi feito com seda de pára-quedas.

Dois irmãos da mãe foram defender um aeroporto que estava a ser atacado e foram feitos prisioneiros. Os alemães cortaram-lhes longitudinalmente as solas dos pés com facas para eles não poderem andar e, como tal, fugir. A mãe dela pediu aos alemães para lhes levar roupa lavada. Foi autorizada. Quando ela chegou à prisão, eles vieram ter com ela de joelhos e a rastejar porque não podiam andar. Vestiram a roupa lavada, envolveram os pés com a roupa suja e fugiram para as montanhas correndo e cambaleando.

Como íamos almoçar, deixámos a Dona Antónia a acabar a limpeza. Quando regressámos, para além do apartamento limpo, estava na mesa da cozinha um pratinho com três fatias de bolo de chocolate que ela fizera. São assim, estes cretenses, uma simpatia e uma alegria de viver a emergir do sofrimento ainda vivo.
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Nota: hoje escrevi um capítulo de “De Negro Vestida”.

Georgioupoli

Georgioupoli

Georgioupoli


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Creta 2010 – Diário de Bordo – 10

1/8/2010 – 22:53h. – GeorgioupoliPreparo-me para dormir. E escrevo na cama. Isto de escrever está a tornar-se um vício. Hoje não estava para fazê-lo, mas ao fim da tarde fomos a pé até à capelinha branca no meio do mar e quis registar isso. A capela é dedicada São Nicolau (Agios Nicolaus) que é o padroeiro da ilha. O caminho é curto, cerca de trezentos metros, mas relativamente difícil porque é feito sobre rochas que não estão niveladas como se fosse preciso sofrer para lá chegar. Às vezes falam-me das águas marinhas das Caraíbas e do pacífico como sendo inigualáveis em cristalino e transparência. Afinal na nossa Europa também há disso. Há água do mar é tão cristalina que se vê o fundo com nitidez e os peixes e os caranguejos e os ouriços-do-mar.
Dentro da capelinha há umas imagens do santo que toda agente beija para depois se benzer. O benzer dos ortodoxos é um pouco diferente. Fazem um gesto cruzado, na diagonal, à frente do peito e ao terminar fazem um movimento como se atirassem alguma coisa para trás das costas.

O que achei interessante foi o fervor dos jovens. Aqui em Creta, os adolescentes e as crianças assumem os rituais com devoção e fervor. Não têm nenhuma espécie de vergonha dos seus rituais, bem pelo contrário. Incorporam-nos no seu quotidiano. Por exemplo, não há qualquer espécie de relação entre ser-se jovem e não ligar às coisas da igreja “porque isso é para velhos”. Bem pelo contrário. É muito frequente ver-se uma moça jovem, muito arranjada com roupa próprias da sua idade, ou um rapaz com um ar mais “metálico” ou “dread”, ou um grupo de jovens a passar na rua todos na galhofa e, ao passarem por uma igreja benzem-se de forma séria e depois continuam como se nada fosse, alguns entram beijam o santo e seguem à vidinha. Isto não é uma coisa pontual. Presencio isto a toda hora aqui na ilha e já era assim em Atenas. Eles são desinibidos e ostensivos na forma como assumem os seus rituais.

Quero registar outro aspecto. A genuína e exuberante simpatia dos cretenses. Não é uma coisa forçada, para turista ver. Eles são mesmo simpáticos e calorosos e desinibidamente tácteis. Já hoje, por duas vezes, pessoas que eu não conhecia de lado nenhum me deram uma palmada nas costas como forma de saudação e riram-se comigo. Eu sou assim e integrar-me-ia bem com esta gente, mas sei bem, por exemplo, o quanto me estranham em Portugal. Nós somos boa gente mas mais prudentes a ver no que a coisa dá, a dar tempo de conhecer as pessoas. Estes são mais espontâneos. Eu gosto das pessoas de riso fácil e franco. Os cretenses são assim.

Georgioupoli – Capela de São Nicolau
Georgioupoli – Capela de São Nicolau
Georgioupoli vista da Capela de São Nicolau


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Creta 2010 – Diário de Bordo – 9

31/7/2010 – 20:04h. – GeorgioupoliEstamos na praia, Sim, eu trago o caderninho para todo o lado. Até para a praia. Não tinha a intenção de escrever, mas experimentei agora um fenómeno que me obriga a uma nota. Acabei de sair do mar. Georgioupoli tem uma capelinha branca de formas arredondadas construída a uns trezentos metros da costa. À sua direita ficam as praias orientais, de água morna. À sua esquerda fica a praia ocidental. É nesta que estou.

A praia é grande e tem a particularidade de ter em cada extremidade um rio. Os dois desaguam aqui. A fauna é extraordinária e a pesca um modo de vida. Há pouco estivemos a conversar com um pelicano que estava na margem de um dos rios que é também a beira da estrada que dá para a praia. Até deixou fazer festinhas. Fingiu que reclamou mas não se mexeu de onde estava.

Vamos à curiosidade desta praia. A água do mar é quente por baixo, de um quente chuveiro, ou seja, mesmo muito quente, e fria, mesmo muito fria, por cima! Por outro lado, em baixo é muito salgada, até faz arder os olhos e por cima é doce, bebe-se como se fosse água de garrafa.
A mulher e o filho, que são os inteligentes da família, lá foram explicando cientificamente o fenómeno. Não me interessam muito as razões. Sei que é extraordinário boiar e ficar gelado, mergulhar e ficar completamente aquecido. É possível mergulhar e, a meio do caminho entre o topo frio e o fundo quente, parar, abrir os braços e as pernas e ficar a “planar” como os tipos que saltam dos aviões antes de abrirem os pára-quedas. Não se vai para baixo porque a água salgada e quente empurra para cima e não se vai para cima porque a água fria e doce empurra para baixo.

Ainda agora cheguei e a Natureza de Creta já me fez uma surpresa.

Georgioupoli – o azul intenso e cristalino da praia “quente e frio”

Georgioupoli – praia ocidental ou praia “quente e frio”

Georgioupoli – praia ocidental ou praia “quente e frio”

O pelicano de Georgioupoli e seu inseparável amigo, o cisne.


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Creta 2010 – Diário de Bordo – 8

31/7/2010 – 14:17h. – Georgioupoli

Estamos no apartamento que alugámos pela Internet. Eu dizia, meio a brincar, meio a sério, que o tipo tinha ficado com o sinal do aluguer mas nem ele nem a casa existiam. Quando chegámos. Identificámos a casa pela foto mas não estava ninguém nem ninguém atendeu o telefone. Nada de entrar em pânico, afinal eram sete da manhã. Fomos tomar o pequeno-almoço, café, pão de cereais, queijo fetá, pimentos, pepinos, tomate, sumo de laranja. Depois caminhámos pela praia e vimos que o mar é um caldo morno.

Quando contactámos o homem que alugou a casa, reparámos que ele não estava lá. Ele só coloca os anúncio na Internet e é genro da proprietária e gestora do apartamento, a Dona Antónia. É uma senhora muito simpática e hospitaleira. Fez questão de nos instalar bem, ofereceu-nos bolo que ela própria fizera e contou logo pormenores de toda a família, parentescos, datas de casamento e o facto de se considerarem uma família de malucos por serem fanáticos por futebol. O marido e o filho jogam em equipas diferentes, em Creta, e quando jogam um contra o outro não vão junto no mesmo carro e nesse dia não se falam. Quando a Grécia ganhou o campeonato europeu de futebol em Portugal, o filho foi a Lisboa ver a final e a Dona Antónia e o marido convidaram familiares e fizeram um petisco para verem o jogo da final. No fim, como ganharam, atiraram com a loiça toda pela janela fora. No dia seguinte, contou ela, teve de ir comprar pratos e copos porque não tinha nenhuns. A filha casou em Outubro passado e marcou a data do casamento de acordo com o calendário de jogos do Barcelona e claro a lua de mel foi nessa cidade e incluiu assistirem a dois jogos do Barça em Camp Nou.
O apartamento é muito confortável. Tem uma varanda e um jardim frondoso à volta e ouvem-se as cigarras pela hora do calor como é agora o caso.
Fomos ao supermercado. Comparámos preços e costumes e percebemos que os cretenses não estão tão formatados pelas regras da União europeia como nós. Não há grandes supermercados nem centros comerciais. Tudo são pequenos e médios comércios familiares e tradicionais a fazer lembrar o nosso país na década de setenta. Como acontecia em Portugal há uns anos, quando compramos pão, agarram nele com as mãos sem preconceitos nem pudores, sem luvas nem pinças, e sem estar o pão embalado. Não consta que andem a morrer por isso. Como disse a Paula, “Aqui ainda não chegou a ASAE!”
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Pormenor cretense nº1: fomos ver preços de alugueres de carros para andarmos pela ilha com mais mobilidade. Reparámos que o senhor estava muito simpático a fazer um grande desconto, mais concretamente, os preços da época baixa. Começámos a indagar porquê até porque ele foi muito prestável e ofereceu-se para arranjar UM(!) depósito de gasolina. Viemos a descobrir que seria a ÚNICA (!!!) gasolina a que teríamos direito porque há uma greve de camionistas e Creta está sem combustíveis!

Pormenor cretense nº2: Tal como aparecia na Internet, o apartamento é asseadíssimo, muito confortável e tem ar condicionado. O ar condicionado paga-se à parte! Seja. Vou dormir a sesta.

Georgioupoli
Georgioupoli

Georgioupoli
Georgioupoli
Georgioupoli


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Creta 2010 – Diário de Bordo – 7

30/7/2010 – 20:16h. – Porto do Pireu, a bordo do LATO.

O dia foi interessante e intenso. Claro que me apetece escrever já sobre o barco onde estou agora traçando estas linhas. Não por ser extraordinário, mas porque me surpreendeu. Afinal de contas trata-se de uma simples travessia… de 8 horas! Mas o dia não começou assim.
Como já conhecíamos Atenas, pela manhã fomos simplesmente passear, misturarmo-nos com as pessoas. Beber um sumo de laranja. Desenferrujar o grego com empregados de mesa e comerciantes simpáticos. Este turismo sem agenda tem piada. ficamos um bocadinho menos turistas de ver as vistas e mais de conhecer as gentes. O almoço teve uma inevitável salada grega, azeitonas, pepino, pimento, tomate, queijo fetá, azeite e orégãos. Teve também uma coisa deliciosa chamada tzatziki. É uma espécie de iogurte muito fresco mas não doce, é avinagrado, tem pepino e alho migados e um pouco de azeite. E comemos souvlaki, uma espécie de espetadas com salada. E comemos moussaka que é como se fosse uma lasanha mas em vez de massa é feita com puré de batata, pão, beringelas, courgettes e cenouras, tudo cortado a fazer um empadão. Bebi cerveja grega. É mais leve e menos saborosa que a nossa. Não bebi café. O café bebe-se em casas específicas para o efeito. Beber café num restaurante é pouco prudente. Normalmente não presta.
À tarde visitámos o novo museu da Acrópole. Já não é na Acrópole mas fica no bairro com esse nome e tem os achados da cidade sagrada. Está extraordinário. Foi concebido para simular o Partenon. A informação é acessível e não exaustiva, logo, não cansa. Tem muito vidro, no chão e nas paredes, por isso é muito luminoso. O chão de vidro no rés-do-chão permite ver as ruínas sobre as quais o museu foi construído. O vidro nos pisos superiores permite ver as pernas das incautas…
Desenharam uma varanda com esplanada o que faz do museu um espaço de estar mais do que de passar. É um museu confortável onde se pode beber um café com gelo!
O barco partia às 21h. Check-in às 20h. Como tenho sempre medo de chegar atrasado aos transportes, chegámos às 19h. para levantar os bilhetes. A primeira coisa que descobri foi que o barco só partiria às 21:30h! As minhas expectativas eram baixas. Não sei porquê, ou sei, desconfio sempre um bocadinho dos mediterrânicos. Somos boa gente. Até a arranjar problemas. Tínhamos comprado os bilhetes pela Internet, mas devido à crise, eu desconfiava que a companhia já tivesse falido. Imaginava, por outras razões, próprias do meu imaginário, um quarto com vinte e quatro camas onde nós os três teríamos de passar a noite a levar com o suor dos outros e, claro, onde teríamos de partilhar a casa-de-banho. Isto se não tivessem colocado vinte e cinco passageiros num quarto para vinte e quatro.
Ora, o atraso de meia hora e a imensa fila de gente à porta de um barco que por fora parecia um gigantesco e velho cacilheiro, não me faziam esperar um navio composto e muitíssimo confortável. Mas foi isso que encontrámos. Nunca a expressão “as aparências iludem” fez tanto sentido. Ao contrário!
[22:30h.]
Fiz um intervalo na escrita para jantar. A esta hora já rolamos no alto mar. Por bilhetes relativamente baratos, as minhas expectativas foram excedidas e o meu receio de entrar num ambiente dickensiano dissipou-se. Deram-nos um quarto com camas para os três, completamente equipado e com casa-de-banho privativa onde a água quente jorra abundante do chuveiro. Toalhas à discrição e música ambiente. Tomámos duche, fomos jantar e conhecer a cidade sobre as ondas. Um restaurante com ementa, um self-service, dois restaurantes de grelhados, diversos bares, lojas, caixas multibanco, piscina, discoteca, áreas e lazer com e sem televisão, área de acesso à Internet, agora não, obrigado.
Normalmente, os navios têm isto tudo. Já tinha tido a experiência de viajar num. Mas lembro-me de ter pago bem mais e sobretudo, não me lembro de, por fora, parecer uma gigantesca lata velha. Há um enorme contraste entre o exterior e o interior do Lato.
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Nota sociológica: reparei que no barco não há a mesma multiplicidade cultural da Praça Monastiraki. Aqui há sobretudo turistas europeus e gregos. E há gregos que vão trabalhar para a ilha. Mas há uma curiosa estratificação socio-financeira. Os que viajam e dormem em bancos de madeira no exterior, os que viajam e dormem em salas de estar onde se refugiam do exterior, os que trazem sacos-cama e dormem pelos corredores, os que viajam e dormem em bancos como os de avião que fazem cama ao recostarem, os que viajam em quartos interiores (nós), os que viajam em quartos com janelinha e os que viajam em quartos exteriores com varanda. Nós somos, de facto, todos iguais e sinto esta coisa estranha mas verdadeira que é não querer ter menos do que conquistei mas, ao mesmo tempo, não gostar que haja quem tenha menos.

Nota antes de dormir: estivemos um pedaço vendo e ouvindo o mar na noite. o branco da espuma cortando o breu. E o que me surpreendeu mais foi o vento da deslocação do barco que nos acariciava a face os corpos ser quente. Quente e acolhedor. Agora, enquanto escrevo e oiço uma musiquinha, sinto um suave balanço que embala mas não incomoda. Definitivamente, prefiro o barco ao avião! Isto é tão confortável que saí de casa há dois dias e só agora começo a relaxar. Acho que mereço. Amanhã acordamos em Creta. Boa noite.

Entrada do museu da Acrópole
Porto do Pireu
A chaminé do Lato


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Creta 2010 – Diário de Bordo – 6

30/7/2010 – 07:43h. Atenas

É um hotel de passagem. Limpo. Mas longe do luxo. contudo, foi um prémio acordar numa cama após uma noite bem dormida. De resto, acordar em Atenas é bom. É sempre bom.

Agora vamos ao pequeno-almoço, ou seja, queijo fetá, pimentos, pepino, tomates, ovos cozidos, café e sumo de laranja.

Temos um dia para estar na cidade dos deuses e o plano é simplesmente passear e usufruir. Às 21h. temos de apanhar o barco para o nosso destino: Creta.

Acrópole


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Creta 2010 – Diário de Bordo – 5

29/7/2010 – 20:03h. – Atenas

Praça Monastiraki. Este momento tem de ser registado. Cristalizado. Tem demasiadas coisas interessantes para que se perca na bruma da memória. O dia começou com pequeno-almoço em Lisboa. Teve almoço em Zurique. E termina com jantar em Atenas. Sandes de pataniscas de bacalhau confeccionadas na Zibreira são jantar em Atenas. Água, Coca-Cola, sumo de laranja. Sumo de laranja em grego é fácil de decorar. Diz-se “portucali”.
A Praça Monastiraki é o coração da cidade antiga. Está rodeada de ruas estreitinhas onde quase não se consegue passar por serem tantas as pessoas e por terem sido ocupadas pelos expositores dos comerciantes. Todas estas ruas e as gentes nelas desembocam na praça. Ouve-se falar português, espanhol, italiano, inglês, alemão, árabe, coisas que soam a nórdico e, sobretudo, ouve-se o doce e sibilino grego. Há brancos, pretos, amarelos, europeus, sul-americanos, indianos, africanos, libaneses, paquistaneses, cristãos católicos e ortodoxos e muçulmanos. Ainda agora passou aqui uma moça tão ocidental e europeia como qualquer rapariga de Torres Novas e atrás dela ia um homem antigo de barbas longas e longas vestes negras. A polícia ocupa o centro da praça e, num pacto tácito, retira-se e surgem os vendedores de lençol estendido no chão. Quando aqui chegámos, esbarrámos nas bancadas de fruta e comprámos uvas tintas e quentes como o ar de cá e jantámo-las com as sandes portuguesas.

E, num toque supremo da mais absoluta promiscuidade entre o religioso e o pagão, a praça tem, como o nome indica, um mosteiro ortodoxo vigiado lá do alto pelos deuses que habitam a Acrópole. Há músicas no ar e há, sobretudo, cheiros e odores diversos. Assim, de repente, cheira-me a kebab, a carne grelhada, a especiarias, a moussaka, a um intenso caril e a café. Peço um café grego que é aquecido num recipiente metálico com um cabo longo mergulhado em areia ardente. As pessoas sentam-se pelos muretes da praça e depois dispersam-se pelas esplanadas.
E penso em casa. E penso que às vezes dizemos ou ouvimos dizer que quem usa a Internet é um cidadão do mundo, um ser global e não posso deixar de pensar que estar na Praça Monastiraki num fim de tarde quente de Verão é que é, efectivamente, ser-se um cidadão do mundo. É ver, sentir, cheirar e provar a vida a sério, a vida que havia antes da mentira digital e aquela que continuará depois dela. A vida das pessoas de verdade.

Praça Monastiraki com Acrópole ao fundo
Praça Monastiraki

Cenas de violência em Atenas! – Praça Monastiraki

Praça Monastiraki

Ruas circundantes da Praça Monastiraki

Diverisdade étnica e cultural na Monastiraki

Diversidade étnica e cultural na Monastiraki

Estação do metro na Monastiraki