Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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Estórias ao Acaso: Noite Fria (XX)

Noite Fria (XX)

A noite aproxima-se rápida e fria e embora a luz do dia esteja ainda vencendo o braço de ferro com a noite, em breve sucumbirá e restará só o breu. E, para sermos mais correctos, a artificilidade luminosa da cidade com que nos vamos iludindo e fingindo que a noite não cairá jamais. Mas cai e absorve a vida e transforma-a em noite que é vida a da noite, também, mas roupada de outros gestos, de outros ritmos e rituais com outros actantes mesmo que as pessoas sejam as mesmas. Já o narrador desta estória e até um seu personagem se referiram à injustiça de termos tantas vidas passíveis de ser vividas e só podermos optar por uma. Parece-nos que o Divino poder e a criação Divina estiveram fazendo a noite para que nos outrássemos e vivessemos outros caminhos noutras personagens licitadas pela ausência de luz que mais não é que outra forma de luminosidade. Por prudência e porque consigo e à sua responsabilidade transporta valiosa e insubstitível carga, José António rodou o manípulo à direita do volante e acendeu os faróis projectando o espectro amarelecido no alcatrão. O carro não é luxuoso mas é digno. E, sobretudo, está muito bem conservado. Já não cheira a novo mas tem odores de pinhais artificiais pendurados no espelho retrovisor. O tecido dos bancos está impecável. Foi escovado meticulosamente no passado Domingo e sê-lo-á de novo amanhã pela manhãzinha. A seu lado, Maria de Fátima exibe uma saia curta por cima das meias de lã negra e espessa e veste uma camisola com uma enorme e empolada gola. Negra a Saia. Branca a camisola. Cobre tudo com um casaco comprido branco com golas fofas a exibir uma penugem dançante. Traz salto alto e uma bolsa de mão de lantejoulas a imitar o negrume da saia. Hoje é Sábado e Maria de Fátima vai sair com as amigas.

José António fez questão de a acompanhar. Não demonstrou qualquer desconfiança. Pelo contrário, foi pressuroso na forma como se ofereceu, para que estivesse ela à vontade para tomar uma bebida. Ele iria levá-la e buscá-la quando e onde entendesse. Um toque no telemóvel seria o sinal.

– Não é preciso. Nem dormes descansado. A Teresa traz-me a casa. Posso vir tarde…
– Não faz mal. Qualquer hora é uma boa hora para ver-te.

Ela está agora saindo do carro no local combinado e José António verifica aliviado que algumas amigas a esperam. Esticam-se e trocam um beijo rápido nos lábios. Ela pensa que pode estragar o baton, ele pensa que outros lábios a beijarão antes que volte a fazê-lo. Acena às amigas de Maria de Fátima e elas retribuem sorrindo e gritando alto “não te preocupes, nós tomamos conta dela!” como se houvesse alguém capaz de tal cometimento.

– Calculas a que horas te poderei vir buscar?
– Ó Zé Tó, tu e as horas. Hoje é girls night, sem horas. Sei lá, antes das duas não. Eu bem te disse que isto era desnecessário.
– Não faz mal. Desculpa-me a pergunta. Dá-me um toque quando quiseres e eu venho buscar-te.

José António deu o jantar aos miúdos, brincou com eles, viram televisão juntos, deu-lhes um leite quente e despediu-se deles com um beijo na testa quando os foi deitar. Passaram os programas de entertenimento, depois a longa metragem e adormeceu pouco depois de Antonio Banderas e Angelina Jolie terem feito amor tropical em pecado. Quando despertou eram já três e quinze. Precipitou-se para o telemóvel. Nem chamadas por atender, nem sms. Calçou-se, enfiou um casaco por cima do fato de treino e meteu-se no carro. Os despojos da noite e seus excessos marcavam presença nas ruas. Garrafas na beira do passeio. Um grupo de jovens falando alto e um deles abrindo os braços e correndo errante de olhos postos no céu negro enquanto gritava “Ó lua que vais tão alta…”. A cidade não estava desperta nem adormecida, estava regorgitando vida em copos semi-vazios e beatas pisadas com a ponta do sapato. Chegado ao local, José António não viu Maria de Fátima. Esperou um pouco e descobriu uma das amigas num grupo de gente conversando à porta de um pub. Conduziu devagar até lá. Parou. Baixou o vidro eléctrico e perguntou:
– Olá desde há bocado, viste a…
– Sim, foi com a Teresa, acho que a foi levar a tua casa. ‘Tás giro, tu…
– Obrigado! Pela informação, quero dizer…
Agora estava preocupado. Seguiu para casa. Ligou-lhe.
-“O número para o qual ligou encontra-se desligado”.

São quase cinco horas. José António está acordado na cama, enrolado nos lençóis e nos cobertores e ouve o som metálico da chave a encontrar a posição certa na fechadura. Os passos dela entram na casa e guiam-na para a cozinha primeiro, depois para o quarto onde se precipita para a casa-de-banho privada e quando se enfia na cama ouve a voz do marido:
– Não ligaste.
– Não foi preciso.
– A Teresa trouxe-te?
– Não. trouxe-me o Eduardo.
– E quem é o Eduardo?
– Um amigo. Mais um conhecido, de facto. Estive com elas primeiro e depois passei o resto da noite com ele.
– A fazer o quê?
– Com elas, a dançar.
– Não, com ele.
– Com ele, sexo!


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Estórias ao Acaso: Noite Fria (XIX)

Noite Fria (XIX)

José António Cruz da Silva reaprendeu a ser feliz. Têm as mulheres e os homens esta particular capacidade de apagar o sofrimento quando é demasiado intenso, ou de atenuá-lo. É assim como que uma anestesia para as vivências mais difíceis de suportar. Vem isto ao caso de José António porque não se esqueceu ele de ter encontrado sua mulher na cama de ambos visitada por um estranho em seu seu lugar, gemendo e entregando-se a outro. Não se esqueceu da noite fria e chuvosa em que caminhou perdido pelas ruas que tão bem conhece. Ia mais perdido nos pensamentos do que no traçado da cidade. E não se esqueceu, sobretudo isso, da profunda mágoa e do intenso sofrimento que sentiu nesse dia. Não esqueceu. Mas apartou. Funciona este fenómeno assim como quem põe de lado, no prato, os alimentos de que não gosta. Estão lá mas é como se não estivessem. A ferida de José António está aberta mas não sangra. Encontrou em si causas e razões para o comportamento reprovável da mulher e reprouvou-se, recriminou-se e decidiu mudar. Traz na mente aquela nuvem que de quando em vez o sobressalta na tranquilidade dos dias que vai vivendo acomodado. É como se fosse um relógio de corda que o vai acordando periodicamente para a realidade, olha lá José António, põe travão nessa pontinha de felicidade, não ta permitas, lembras-te o que ainda há pouco tempo te aconteceu? José António não te entusiasmes com a vida nem confies na tua mulher que quem o faz uma vez, mil o fará pois que quebrada está a fronteira, aberta está a caixa daquela a que chamaram Pandora. E assim vai vivendo de tranquilidade em tranquilidade, de sobressalto em sobressalto, confiando, desconfiando, amando, acompanhando os filhos, descontando no rosário da vida um dia de cada vez vivido no único universo que conhece e domina, o da sua família.

Aqui onde o vemos, está sentado à mesa da cozinha com a família. Maria de Fátima à sua frente na outra ponta, a pequena e franzina Alice à sua direita aceitando aviões-colher-de-sopa, vruuuummm, esta é pelo o papá, vruuuummm, esta é pelo mano… e à sua esquerda o pequeno, menos pequeno, é certo, Marco das conversas de bola na aventura dos recreios da vida, Marco de querer saber tudo acerca dos dinossauros. José António conversa com o filho, brinca com a filha, pisca um olho a Maria de Fátima, faz-lhe um sorriso doce e perscruta-lhe os desejos e as necessidades com o intuito genuíno de os satisfazer. Se lhe falta o pão, vai buscá-lo. Pôs a mesa, aqueceu o jantar, dá de comer aos miúdos, repara que o guardanapo dela está já usado por usado ter sido e vai buscar-lhe outro, traz uma faca para o queijo, limpa a boca à pequena Alice que está tentado comer sozinha, tira dois cafezinhos de uma maquineta a imitar aquela do anúncio mas mais barata, levanta a mesa, ajuda o filho com os trabalhos de casa, brinca com eles um pouco, conversa com Maria de Fátima acerca da novela por que finge interessar-se, ou se interessa não querendo mas sendo verdadeiro no seu propósito, veste o pijama aos miúdos, vai deitá-los com Maria de Fátima, conversa com ela acerca do dia que está terminando e quando vai deitar-se fará amor com ela se ela assim o quiser e caso não queira adormece cansado e insatisfeito mas realizado.

Desde que decidiu mudar, José António está empenhado em ser um marido melhor, um pai melhor, um homem melhor. Está mais presente, sempre presente, é atencioso, carinhoso, voluntarioso, sacrifica-se pequenos prazeres e rituais antigos e emprega em seu lugar toda a sua energia a realizar a felicidade da sua família.

José António anda exausto e não se sabe até quando aguentará este estado de coisas mas a sua determinação é total. E é na medida da realização das necessidades, das vontades e desejos daqueles a quem chama seus que este empregado da contabilidade se sente feliz. E é por sentir-se bem e realizado na realização dos outros que podemos dizer, como fizemos no início deste capítulo, que José António reaprendeu a ser feliz. Mas a vida é injusta ou, não sendo injusta é cruel ou, não sendo injusta nem cruel, é vida. E esta felicidade quem a sente, tanto quanto sabemos, é José António. E é perigoso sentirmo-nos felizes por nós e pelos outros. Essa felicidade que o atravessa a ele convicto que está da sua mudança não sabemos se é também de Maria de Fátima porque não lho perguntámos ainda nem ela no-lo disse de vontade própria. O marido não lho pergunta com medo da resposta. Prefere tentar adivinhá-la nos gestos dela. Percebeu que ela está mais tempo em casa, atrasa-se menos vezes no trabalho, sai menos com as amigas. E quando diz, determinada e firme, no sábado à tarde vou sair com uma amigas, pode ser? Ele dilacera-se por dentro do corpo e da alma, teme que as amigas o não sejam de facto mas prefere não viver esse lado da vida dela, deixá-lo ao largo da sua própria vida, e responde-lhe terno e atencioso, claro que sim, diverte-te, eu fico com os miúdos, temos muito com que nos distrair. Ela percebe a referência aos filhos. Emudece. Não se demove.

Os dias correm céleres e não sendo este casal feliz, não é infeliz também. Maria de Fátima estranhou tão profunda mudança de atitude e questionou-o. Ele atirou-lhe com uma justificação verdadeira para além da verdadeira razão que não podia revelar-lhe, que queria aproveitar mais a maravilhosa mulher que tinha, a fantástica família que tinha, que era uma felicidade viver assim, que se sentia feliz e realizado e a eles devia tudo e por isso os compensaria com o desvelo e a dedicação de que fosse capaz. Maria de Fátima não acreditou. Conhecia-o bem demais. conhecia-se bem demais. Sabia de si que era uma causadora de problemas e sabia dele que estava tentando resolver um problema. Por agora, decidiu acreditar.

Quando entraram na intimidade dos lencóis e ela o puxou para si, José António foi carinhoso e terno, desvendou o seu reportório de carícias e foi suave e delicado no momento em que os seus corpos se fundiram. José António esteve fazendo amor com Maria de Fátima. Ela teria preferido sexo. Impacientou-se, cravou-lhe as unhas nas nádegas e quis que ele a possuíse, que a tomasse com vigor e altivez masculina. Estiveram amando-se desencontrados e sempre que tal acontecia a nuvem negra dos receios de José António ocupava-lhe as ideias e enchia-lhe o peito e Maria de Fátima costumava pensar: “Sábado, vou sair com umas amigas!”


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Estórias ao Acaso: Noite Fria (XVIII)

Noite Fria (XVIII)

Não fora uma conversa. Tinha sido uma discussão longa e extenuante. Ao cabo da mesma, em meio da profusão confusa de ideias que se atropelavam na sua mente e de impulsos de sentir que lhe atravessavam o corpo, emergia uma sensação de dever cumprido, de liberdade, de tranquilidade. Não obstante os problemas que sabia ter pela frente, a vida apresentava-se-lhe como uma planura a percorrer de acordo, apenas, com os seus princípios e a sua vontade. Nunca fora um homem aprisionado mas hoje sentia-se mais livre. Os dados estavam, definitivamente, lançados.

Do emaranhado de argumentações, de tolerâncias, de intolerâncias, de momentos mais tranquilos na conversa e de outros bem agitados pela violência das palavras limpando as feridas e jogando ao mundo as incompreensões, uma frase, dita por si, o tinha mantido seguro do seu rumo, orientado nos seus propósitos:
– Porque eu amo outra mulher!

Até chegar ao momento em que proferiu esta frase, o percurso não fora fácil. Não tanto pela conversa com a sua mulher desta vida, mais pela conversa consigo próprio até conseguir justificar-se perante si, preparar-se, perceber as suas intenções e as razões por detrás delas.
Decidiu separar-se, divorciar-se. Ir em busca da outra felicidade. Daquela que era alimentada por uma chama verdadeira de verdadeiro amor. Decidiu depurar-se de ter, de possuir, das regras, do casamento. Decidiu simplificar a vida e os seus processos. Não fora fácil. Nada fácil. E sempre que equacionara os filhos, hesitara. Sabia exactamente o que estava em jogo como sabia que a sua vida não era má. Só não tinha a chama que o incendiara nos últimos tempos. O facto é que queria mais da vida e de uma relação do que a normalidade. Nem sequer sabia bem o que era a normalidade. Sabia que estava sendo derrotado pela rotina, sabia que não investiam em si nesta vida como ela o fazia na outra. Achou-se pensando que das duas uma: ou tinha a vida certa com as pessoas erradas ou estava vivendo a vida errada com as pessoas certas. Sobressaltou-o uma ideia peregrina de entre as outras que o habitavam de costume: de facto, não havia uma razão para se divorciar. Nada havia que pudesse apontar à sua vida feita das suas opções. Nenhuma desculpa encontraria para justificar uma tal ruptura e consciencializou que não era uma desculpa o que procurava. Isso seria desonesto. O que procurava era a razão intrínseca do seu querer, da sua vontade, para que não fossem só um querer e uma vontade. O que procurava era a Verdade e só a Verdade lhe interessava apresentar a quem precisava comunicar as suas decisões. E essa verdade era toda ela Amor, amar mais, com mais intensidade e dedicação e ser mais amado. A sua verdade era a sintonia percebida e vivida sem mais explicações. A sua verdade era acreditar que a vida deve ser vivida e consumida e amada pelas melhores razões e não somente pelas menos boas. A verdade era o direito a procurar, sempre, a felicidade absoluta.

Pensou demoradamente nos filhos. Curiosamente não se fixou no que poderiam pensar de si mas somente em pequenos pormenores. Nos progressos escolares do mais velho. Nos problemas de asma do mais novo. Jurou de si para consigo que seria um pai presente, que os acompanharia sempre e, por entre as turtuosas e lúcidas razões que o levavam a pensar que tudo em torno dos filhos apontava para caminhos que não o da ruptura, não deixou de acreditar que, como os pais querem a felicidade dos filhos, os filhos também deverão querer a dos pais. Que aprendessem consigo ao menos isso, a lutar pela felicidade, a ter a coragem de a abraçar se a vida os presentear com a oportunidade.
E foi essa verdade que fez a diferença na confrontação com a sua mulher:
– Porquê? Porquê isto agora? Explica-me… de onde vem essa decisão? O que te faz falta? Que não te dou eu? Que te passou pela cabeça… uma coisa destas, assim, sem razão… és um crápula!
– Porque eu amo outra mulher! Porque quero ter a coragem desse amor…
Naturalmente que ela se debateu, tentou inverter o rumo das decisões dele que lhe faziam cair aos pés um projecto de vida. Contudo, depois da resposta dele, da força da franqueza crua e cruel das palavras, ela percebeu que aquela razão sendo a menos material era a mais palpável, a única plausível no âmbito das suas vidas. E uma honestidade dessas torna-se irrefutável. Sabia, por mulher ser, que nada do que pudesse dizer alteraria o que ele sentia mesmo que alterasse o que ele pensava. Obrigá-lo a ficar não mudaria o estado das coisas, só o agravaria. Esta mulher que conhecemos pouco porque temos tido mais olhos para a outra é mãe, quer preservar os seus filhos, quer salvar a luz que trouxe ao mundo e preservaria o homem e o amor que tem por ele se pudesse fazê-lo. Se pudesse disputá-lo num campo onde brilhasse, ainda que trémula, qualquer centelha de esperança. O campo para onde ele levara a argumentação estava fora da sua capacidade de influência. Ela sabia que podia conquistá-lo no desejo, no sexo, no companheirismo, no seu amor por ele, mas não podia fazê-lo no amor dele por outra, sobretudo assumido, assim, claro e contundente. Percebeu-lhe a linha honesta e franca na abordagem e foi com a mesma franqueza e com a mesma honestidade que lhe respondeu:
– Quanto a isso nada posso fazer. Lamento que não tenhas pensado nessa possibilidade antes de te casar. Lamento que tudo tenha acontecido depois de dois filhos, tantos anos partilhados, tantas coisas boas e más, que as más não são menos valiosas do que as boas… lamento, mas não posso mais do que isso. Vai à tua vida, sê feliz. Não te vou facilitar o processo, nem a vida. Sabes isso?
– Sei, claro. Acusa-me do que quiseres. O que quer que seja devo tê-lo na consciência!

Até nisto ele a desarmara. Nem uma contrariedade. Nem quero isto ou aquilo, ou os miúdos assim ou assado… só a força serena de saber para onde ia. A mulher dele invejou-o. Inveja-se sempre uma pessoa que sabe de forma segura e inabalável o que quer e para onde vai. Estas pessoas não se contrariam, pensou, estas pessoas vêem-se passar…
Ele não está feliz mas está aliviado. E congratula-se por ter tomado uma decisão. Não tanto pela decisão em si porque era o que intimamente desejava, mas porque ela significava assumir as rédeas e o comando da sua vida. Há tanto tempo não sentia esta brisa livre passar-lhe pela face. A brisa de ter a liberdade de aprisionar-se no amor da mulher que verdadeiramente ama. A brisa que nos corta, fria, a ilusão do conforto e nos faz sentir confortáveis com o desconforto. Conhecia bem os problemas que o esperavam no processo de divórcio, ou talvez não, mas antecipava-os e tomara uma primeira decisão enquanto senhor e timoneiro da vulnerável nau do seu destino: não levaria nenhum destes problemas para a sua nova relação. Não lhe diria nada a ela enquanto não fosse completamente livre para dar-se por inteiro, entregar-se a quem o quer e espera, com a mente livre, o corpo preparado, e a vida desobstruída… Afinal de contas, quem esperou quinze anos, espera mais uns meses. A Fénix prepara-se para renascer!


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Estórias ao Acaso: Noite Fria (XVII)

Noite Fria (XVII)

Vertendo-se com frequência e facilidade as palavras em sentimentos, o que este homem mais sente é NÃO. Não à impossibilidade de um amor que o despertara para a vida. Não ao fim das palavras entre os amantes das palavras, pelas palavras, com as palavras. Não à forma absurda como se interrompeu uma noite de amor. Não à forma lúcida e racional com que ela pusera um fim ao que parecia não ter fim. Não.

E os dias foram-se sucedendo e com eles foi crescendo esta revolta surda e amordaçada de quem quer gritar um amor e tem de o calar. À medida que os dias passavam e com eles as pequenas coisas e os pequenos gestos que os preenchem se acumulavam foi desdenhando cada um deles, dos gestos e dos dias. Negou de si para consigo a aceitação daquela decisão. Planeou vezes sem conta falar com ela, fazer-lhe juras de amor, prometer-lhe uma vida, abdicar de tudo e ser só seu. Planeou. Mas não executou. Sempre que estas ideias lhe ocorriam seguia-se um sentimento de crime e impunidade se abandonasse a sua família, aquela que construíu com as suas próprias mãos e os gestos delas. Após a negação da morte daquele amor e daquela relação de entendimento e sintonia, veio um tempo em que decidiu aceitar que haviam na sua vida duas mulheres, duas paixões, duas dedicações que se lhe tinham atravessado no caminho em alturas distintas do seu curso. E constatou. Constatou as duas mulheres que amava, os seus odores perfumados distintos e insubstituíveis, os seus timbres de voz marcando presenças e tonalidades diferentes nos dias, as suas peles suaves, os seus olhares, os sorrisos, as roupas, as palavras, as cumplicidades e o calor terno dos lábios de ambas. Aceitou que tinha uma só vida mas que nessa vida haviam duas mulheres. Não se substituíam, nem tão pouco uma poderia ocupar o lugar da outra. As duas tinham um espaço próprio na sua alma e no seu peito.

Acontece que o tempo tem um efeito domador das vontades nos homens. E a distância é um bálsamo para a ausência. E ela, lá longe, guardava consigo as palavras que agora não trocava com ele. E ele percebeu. Percebeu e aceitou. À medida que foi retomando as rotinas desta vida aqui presente, aquele que havia sido um amor intenso e fulgurante começou a constituir-se bruma e névoa da memória. Ao cabo de uns meses, a custo de dor, que é pior do que cortar um membro isto de calar um amor, foi aceitando. Aceitou a distância. Aceitou a decisão dela. Nunca a compreendeu exactamente. Para ele, ter-se-ia reatado o caminho do amor e ter-se-ia feito um hino ao amor e à glória da entrega. Ele amaria lá e cá. Seria capaz de abarcar no mesmo peito dois amores diferentes. Mas soube aceitar. Soube respeitar a vulnerabilidade dela, compreendeu o seu ponto de vista e a sua atitude e amou-a mais por isso. E, ao mesmo tempo, foi reamando quem o amava nesta vida. Nunca se decidiu verdadeiramente por uma delas, das mulheres e das vidas com elas, mas a presença duma e a ausência da outra apagavam a ausente e reacendiam a presente.

Hoje, neste dia de sol promissor, decidiu oferecer-se um café numa esplanada onde estão as gentes contemplando o tempo que passa, sentando-se na tranquilidade da tarde e pensando que o Céu bem podia ser assim. E está neste passar dos tempos limpando os pensamentos excedentes do cérebro bem como os contactos inúteis do telemóvel quando redescobre uma mensagem: “Amo-te incondicionalmente e para sempre!” Ficou pensando que para sempre era um valor extremado e absoluto como o era também incondicionalmente. E ele que pensara que havia nas razões dela para o abandonar toda uma lógica, toda uma gestão de sentimentos, todo um sentido ético e moral, sobressaltou-se pensando que poderia ter-se tratado, só e sem mais, de um sacrifício na impossibilidade de uma realização. Ela tinha, como todas as mulheres, um apuradíssimo sentido de posse e preferia não ter aquele homem para si em medida nenhuma do que partilhá-lo. Esta hipótese acordou-lhe a imensidão do gesto dela. A grandiosidade do seu amor. O tempo que levara a perceber isto…

E, súbito, como se a sua mente tivesse escolhido aquela tarde de esplanada e café forte à luz de uma promessa solarenga para as revelações interiores no encontro de si em si, percebeu que ainda não tinha feito nada. Limitara-se a esperar que uma das suas vidas sucumbisse à outra. Não tinha havido da sua parte um gesto de coragem, uma decisão, um agarrar da vida. As mulheres que o rodeavam debatiam-se por si mais do que ele próprio. Constatou em nome da sua dignidade que a vida não consiste em esperar que a vida aconteça mas é, antes, determinada pelas nossas opções e actos. Havia pensado muita vez nas consequências dos seus actos em terceiros e deixara-se condicionar por isso. Faltava pensar em si próprio. No que queria. Convencera-se de que a lógica dela para o rejeitar era válida porque se acomodara e não se dera ao trabalho de perscrutar a sua própria lógica.

Tinha numa mão uma vida de partilha construída a dois, depois a três e por fim a quatro, uma família. E também uma rotina e muitos cansaços. Tinha na outra a promessa de um amor puro e dedicado, de uma força, de uma companhia. Não podia continuar a ignorar que havia duas vidas que o disputavam, nem podia continuar a adiar optar por uma delas.

Quando se levantou da esplanda e deixou umas moedas jazendo à volta da chávena do café e encarou a luz promissora da manhã, já sabia no seu íntimo o que ia fazer mesmo que a decisão ainda não tivesse chegado à superfície.


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Estórias ao Acaso: Noite Fria (XVI)

Noite Fria (XVI)

O silêncio é profundo. O ambiente é de trabalho concentrado e os diversos colegas que partilham o espaço não querem comprometer tal concentração. Paira no ar um silêncio de produção. E esta harmonia de fazer em conjunto e em conjunto feita é cortada pelo toque inevitável do telemóvel dele. Normalmente desligá-lo-ia sem hesitar, procuraria um lugar onde pudesse falar e ligava de volta a quem quer que fosse que lhe tivesse tocado à porta da vida. Desta vez, não pensou duas vezes, não esboçou gestos incertos, levou o telefone ao ouvido e atendeu-o. O nome dela brilhava no visor e aquela ligação era mais para si do que um telefonema. Era a vida a reconectar-se. Com o aparelho encostado ao ouvido foi-se retirando da sala de trabalho sob o olhar acusador dos presentes. Um deles chegou mesmo a abanar a cabeça em sinal de reprovação enquanto pensava se aquele tipo não sabia que havia modo silencioso. Acontece que há coisas mais fortes do que outras e este telefonema fá-lo-ia nem que tivesse de sacrificar a reputação no trabalho. Não foi preciso tanto e a conversa aconteceu na mesma e mais ou menos como a seguir se verá.

– Olá! Ainda bem que ligaste. Queria tanto falar contigo.
– Sim, temos muito para conversar. Também preciso muito falar contigo.
– Ouve, queria começar por pedir-te desculpa…
– Não faças isso. Não há desculpas a pedir. Pelo menos a mim. Olha, como está o teu filho?
– Está bem mas tinhas razão só nos despachámos do hospital no outro dia quase à hora de almoço e foi preciso levar o mais velho à escola e a farmácia e… Mas olha, não falemos disso. Temos tanta coisa para conversar. Aconteceram coisas tão bonitas…
– Sim, aconteceram. Mas também aconteceram algumas que me fizeram pensar muito.
– Eu sei, pensei nisso tudo e acho que temos de viver a vida… ela é tão curta e nós amamo-nos tanto. Amo-te muito.
– Também te amo muito. Sabes, estou a desviar-me um bocadinho daquilo que queria dizer-te…
– Sim… diz.
– Eu não queria falar contigo sobre nós ao telefone. Queria olhar-te nos olhos e queria que me olhasses nos olhos. Tu podes, sem te forçar a nada, vir até aqui para conversarmos um bocadinho?… não precisa ser hoje…
– Mas será!

O narrador desta estória está perturbado com o valor e com o poder das palavras. Quando lhe disse há pouco o que queria que narrasse ripostou-me que esses mesmos gestos já os narrara uma vez nesse mesmo cenário afirmando que eu, enquanto autor, me estava a repetir. Julgo, até, que insinuou que eu estava ficando senil. Foi então que lhe disse que seria tudo igual excepto as palavras e quando pediu que lhas revelasse para as poder narrar ripostou, sério, mas essas palavras mudam muito, mudam tudo. São outros gestos. E ali ficámos conversando, autor e narrador, sobre as palavras enquanto gestos, se não seriam o mais fundamental deles, o mais poderoso e, simultaneamente, o mais banal. Condordámos, inclusive, que a expressão olha para o que eu faço, não olhes para o que eu digo é absolutamente ridícula porquanto dizer é já fazer também.

Encontraram-se no mesmo local do primeiro reencontro, sensivelmente à mesma hora. O sol tinha menos força agora e o abraço que deram teve menos corpo, teve menos tempo, foi igualmente cúmplice. Não é que não sentissem o mesmo amor e a mesma paixão que sentiam então, acontece porém, que a mesma vida que os unira estava agora intrometendo-se entre eles. E um abraço longo, de total dádiva, de peito aberto e alma limpa não se dá quando há assuntos pendentes estorvando a clarividência da mente e a limpeza dos gestos. Os passos dos amantes aprendem os caminhos do amor e as suas passadas repetem-se e os corpos andam enquanto os amantes dizem as coisas que precisam dizer. Talvez por isso, ele e ela percorreram as mesmas ruas, junto aos mesmos prédios do mesmo lado do passeio e crê-se, até, que se tenham cruzado com a mesma velhinha. As palavras não foram as mesmas. Não foram o crescendo de emoção que haviam sido, não foram o exteriorizar de corações sobressaltados pela paixão nem levavam consigo o brilho que o olhar tivera então. Estas palavras que vão trocando agora são banalidades de como está o tempo, como vai o trabalho, estás bonita, bonito estás tu. Palavras que não dizendo nada tinham uma função. Adiavam as outras que haveriam de ser ditas quando pudessem olhar-se nos olhos.

Como se soubesse a cidade inteira que estes dois precisam conversar, o banco onde se haviam enroscado nas memórias gratas e sentidas do passado está livre. E é nele que se sentam. Não é um jardim rebrilhando a luz de um dia de Verão. Não tem essa alegria nem essa pujança mas a penumbra que se anuncia aos poucos dá-lhe um ambiente mais privado. Ali estão, olhos nos olhos, as mãos entregues umas nas outras, o olhar terno encontrando-se o amor, perscrutando-se as possibilidades e as impossibilidades. No peito dele cavalga um coração ansioso e expectante. Moram em si as esperanças todas. Pensou em tudo que precisava dizer-lhe para retomarem a rota do amor e da felicidade. Trata-se de uma expectativa peuril e masculina. Pueril porque encara cada situação como uma oportunidade para além de todas as contrariedades. Masculina porque, vencido o susto e a tormenta de uma noite perfeita desfeita pela evidência de não poder separar em si as duas vidas que tem, está já separando-as de novo.

– Meu amor, minha querida, queria tanto, precisava tanto dizer-te tantas coisas. A minha cabeça ferve, o meu coração bate louco. Fiz tanto para que estivessemos juntos, para que o amor que nos une se revelasse e depois…
– Espera! Deixa-me falar a mim hoje. Eu sei tudo o que te devo. Eu sei e relembro com um amor imenso todas as coisas extraordinárias que me fizeste sentir. Eu sei como te dedicaste a nós, ao nosso amor. Eu amo-te muito, mas hoje deixa-me falar primeiro. Sabes, quando uma mulher ama só o consegue fazer com dedicação total e total compromisso. Uma mulher que ama fá-lo na entrega absoluta do seu ser. É a única altura em que fica vulnerável. E não espera nada de volta. Dá por dar, porque é essa a sua condição. Mas só pode dar a um homem que seja seu, que lhe garanta a segurança do seu amor e que esteja disponível para retribuir-lhe. Eu não posso chamar-te meu, meu amor! Não posso mentir-me e dizer que temos um futuro juntos. Tu tens um futuro, tens uma vida e eu estou aqui e não vejo o meu futuro, nem vejo que vida seja esta em que te amo e não posso amar-te se um telefone tocar. Tu não és meu. Meu querido, eu sou mulher como a tua mulher e morro por dentro sempre que penso que podia estar no lugar dela e imagino o que desejaria que ela fizesse se estivesse no meu. Ela ama-te como eu te amo e penso até que não tem mais legitimidade do que eu para amar-te porque não há regras no amor, não há legitimidade para o que o nosso coração sente, mas ela tem a legitimidade de esperar por ti, de sentir a tua falta. Tem a legitimidade de chamar por ti quando precisar de ti. Ela tem a legitimidade de projectar a vossa vida e esperar que os vossos planos se cumpram no amor que se têm. Eu sei que estás dividido e, mais tarde ou mais cedo, terás de decidir-te mas eu não quero estar por perto quando o fizeres. Não quero determinar as tuas acções. Tens de ser livre para construir o teu caminho. A tua mulher é a tua mulher e eu amo-te e amei cada segundo que estivemos juntos, cada carícia, cada palavra, mas não consigo ser a outra, não consigo pensar na minha felicidade contruída sobre a infelicidade da tua mulher e dos teus filhos. Amo-te, não duvides nunca disso, não duvides nunca de todas as coisas que te disse, mas não posso amar-te. Quero-te mas não posso querer-te. Não assim. Se tivermos de ser um do outro, seremos, mas noutras circunstâncias, sem culpa, sem receio que uma voz metálica no outro lado do telefone estrague uma noite de amor porque não é legítima… Tens de ser livre para viver e amar. Tens de fazer as tuas escolhas e eu tenho de ter a mesma liberdade. Tenho de ter a dignidade de amar livremente. De amar plenamente. De amar tranquilamente.
– Mas, meu amor…
– Chiiiiiuuu! Disse ela baixinho, quase sussurrando, e foi apressando-se, carinhosa, em colocar-lhe um dedo nos lábios para o silenciar. Olhou-o ternamente e quando tirou o dedo dos lábios dele foi para colocar no seu lugar os seus próprios lábios e beijá-lo com ternura mas sem paixão.

Levantou-se e caminhou afastando-se dele, deixando-o nas suas costas enquanto as lágrimas se precipitavam no seu rosto…


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Estórias ao Acaso: Noite Fria (XV)

Noite Fria (XV)

Ela não sabe ao certo quantos metros andou que não têm os humanos como medir senão com instrumentos ou por cálculo que sempre falha na precisão. Instrumentos não os tinha consigo pois vinha de uma noite de amor e desilusão e não estava ali porque andasse a medir espaços. O cálculo estaria sempre perturbado por tudo o que lhe ia na mente. Sabe o narrador desta estória que andou uns quinhentos ou seiscentos metros. Sabe ela que andou muito. Não pelo espaço percorrido mas pelo tempo passado. Têm os humanos esta particularidade que é a de medir o espaço em tempo. Habilita-nos isso a avançar que a distância normalmente percorrida em dez minutos, ou pouco mais, levou desta vez uns bem medidos quarenta e cinco minutos de reflexão, pensamentos turtuosos, avanços, recuos, decisões, indecisões e uma profusão de ideias e impulsos de acção que disparavam nas mais diversificadas direcções do sentir. Por vezes, estando a mente mais perturbada, parava o corpo e ficava olhando o chão, fitando uma árvore, um prédio para os quais olhava mas na realidade não via. Diversos foram os momentos em que apontou a biqueira elegante do sapato ao chão e ficou traçando o mesmo círculo até se perder o pensamento que estava conversando consigo. Outra curiosa e humana particularidade é a de percorrer-se caminho e não saber depois o que se percorreu, é a de andar entre a gente e não ver ninguém. Não foram muitas as pessoas que se cruzaram consigo. Um casal jovem e apaixonado, vestido de negro e cabedal, correntes pendentes da roupa e um cão rafeiro que os seguia. Dois homens, um alto e forte e o outro forte e baixo, os dois fumando e falando de futebol, mulheres e marcas de carros. Passou ainda um casal de jovens, ele de corpo esguio e cabelo espetado no espaço a afirmar a sua diferença, o outro dos jovens, também ele, tinha uma face mais clara, um olhar mais tímido e falavam de música, da que gostavam e da que não gostavam, levavam as mãos unidas e trocavam beijos pequeninos e furtivos.

Nada disto ela poderá algum dia garantir que viu. Jurará mais facilmente que percorreu toda a distância da sua humilhação sozinha, jurará que não havia ninguém na cidade nessa noite fria.

Este não foi um caminho de alívio. Começou por andar, como disse, porque precisava e terminou percebendo que andar não bastava. Esta mulher jovem e bonita que aqui vemos, deambulando e parando e evitando o caminho de casa e da cama onde a solidão e o desespero acabarão por vencer, sente-se humilhada. Não lhe disse a ele, mas, no momento em que ele atendera a chamada que interrompeu o amar nocturno, sentiu medo da voz longínqua e metálica do outro lado do telefone. Não percebia as palavras, mas senti-as como facadas cravadas nas suas faltas, nos seus pecados. Sentia-as como o castigo que temera mas ignorara por amor. Sentiu-se como a criança que fora apanhada a meio da malandrice e a quem não resta senão encolher os ombros e olhar o chão. Estava, por isso, envergonhada. Envergonhada de usar uma liberdade que não era sua. Humilhada por não ter antecipado a vergonha. Por se ter roubado a si mesma e conscientemente a liberdade de responder, de reclamar, de exigir, este homem é meu porque o amo, porque o tenho para mim como me tem para si…

Quando entrou em casa sentiu-se uma estranha no seu próprio espaço porque nunca havia ali entrado tão vulnerável… que fazer agora? Aguardar um telefonema? Esperar que a vida resolva os problemas que eram seus por si criados? Não. Ao menos a dignidade de decidir as suas passadas. Com a coragem que lhe restava conseguiu emergir senhora de dois cenários, conseguiu configurar duas possibilidades de vida. Qualquer uma delas exigia que agisse. Digna e honesta. Ou lutaria por ele e usaria de todas as suas forças para que entrasse definitivamente na esfera da sua vida, ou o abandonaria à vida que o tinha preso oferecendo-lhe a liberdade absoluta de decisão. A primeira implicaria mais determinação, o assumir do curso da vida. O preço a pagar poderia ser elevado. Ninguém gosta de construir a sua felicidade em cima da infelicidade de outrém! A segunda seria mais cómoda na acção mas mais dolorosa porque é de dor que falamos quando alguém abdica de um amor! A segunda implicaria também que se afastasse porque não se dá liberdade a outrém interferindo no seu julgamento.

Esta mulher bonita e dilacerada que aqui vemos de roupão e cabelo molhado vem do duche. Tentou lavar a alma com água quente e shampô. Reconfortou o corpo. A mais não teve direito. Procurou a cama e fechou-se nela. Cobriu a cabeça na tentativa inglória de apagar o mundo à sua volta. Está enroscada, em posição fetal e, se pudesse e tivesse coragem para tanto, chamaria sua mãe e pediria um mimo, um carinho, uma palavra de perdão. Mas há coisas que passam o seu tempo na vida e deixam de poder pedir-se. Esta mulher que aqui vemos no breu dos lençóis cobrindo a sua existência e a vergonha dela está soluçando baixinho quase como se não sentisse no direito de chorar. Sente que, como Ícaro, desejou demais, quis o sol da vida e acabou vítima dessa ambição. Encolhe-se um pouco mais sobre si mesma. Parou o choro. Só conseguiu adormecer depois de decidir-se por uma das duas possibilidades de vida que encontrou. Decidiu viver e o critério seria a dignidade!


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Estórias ao Acaso: Noite Fria (XIV)

Noite Fria (XIV)

O Carro engole, veloz, os traços descontínuos que separam as vias. Ele desliza em excesso de velocidade. Sabe-o. Ignora-o. Vive uma vertigem de loucura e, súbito, a sua vida parece ter perdido importância. Mergulha na estrada nocturna direito à vida que o espera, que clama por ele e que o mata. A raiva que sente não é contra ninguém. Não é contra ela cujo semblante meigo e doce recorda em flashes que magoam a alma e apertam o peito. Não é contra a outra vida, nem ninguém nela. Percebe onde pertence, a quem pertence, percebe as suas responsabilidades e as prioridades a que obrigam. Percebe que a força da outra vida se sobrepõe e domina esta. Só não percebe porque tem de ser assim. Só não percebe porque nos dá Deus tantas vidas e nos obriga depois a escolher uma, a viver uma, amarrados a um percurso. A raiva que sente é contra esta impotência, é contra ter sabido que estas vidas haveriam de colidir, que uma decisão assim teria de ser tomada, e não poder salvá-las ambas, não poder vivê-las ambas. Recorda com carinho os momentos de amor que acabara de viver, o jantar, o mar, as carícias, o quase fazer amor que valeu por muitas vezes em que o ritual fora vivido sem chama. Recorda e revolta-se de novo. Este homem que aqui vai conduzindo um carro, conduzido pelos desencontros da vida, vive o que deve mas não vive o que quer e deixa para trás uma vida quebrada. Sente no peito um aperto, o aperto de saber que algo se quebrou. Consegue convencer-se de que lhe ligará, de que voltarão a fazer tudo de novo, de que recuperarão a aura e a energia de amar que pairou naquela noite perfumada de velas e mar. Mas sente um aperto no peito e identifica-o. É o receio, o medo de que algo se tenha quebrado para sempre. Não sabe porquê mas teme-o.

À medida que a estrada sucumbe à sua passagem e o espaço que o separa de quem o espera se encurta consegue lembrar-se dos últimos momentos com ela, das últimas palavras que trocaram.

– Tenho de ir!
– É grave?
– É um dos miúdos. Está no hospital. Teve uma crise…
– Não te expliques. Vai. Precisam de ti…
– Sim, há coisas a tratar. Numa situação destas uma só pessoa é pouco.
– Sim calculo,vai…
– Podíamos fazer uma coisa, eu deixo-te no hotel, fazes o check in e esperas por mim. Regresso esta noite, quando muito de madrugada e podíamos…
– Não penses nisso. Não me peças isso. Agora não te peço nada, estás preocupado, é natural. Mas peço-te que amanhã ou um dia destes penses em mim, em como me sinto, assim, embaraçada, envergonhada. Isto acabaria por acontecer e sentiria sempre a humilhação de não poder reclamar para mim uma pessoa que amo tanto. Mas o facto é que não posso… a sério, vai…
– Deixa-me ao menos levar-te a casa.
– A casa, não, deixa-me uns bons metros antes para eu poder andar, preciso de andar.
– Obrigado. Amo-te!
– Também te amo!

Quando ela pronunciou estas palavras de amor, ainda eram palavras verdadeiras mas já não eram palavras abertas à vida e prenhes de esperança. Eram um epílogo. Ficou a uns bons quinhentos metros de casa e caminhou. Não temeu a cidade nocturna. Não sentiu o frio. Perdeu-se numa profunda conversa com a sua consciência. Precisava perceber o que acontecera, precisava situar-se e não sabia qual, mas sabia que precisava tomar uma decisão…


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Estórias ao Acaso: Noite Fria (XIII)

Noite Fria (XIII)

Ela era uma mulher de mar. Tranquila e serena como só o mar. Agreste e revolta como só o mar. Firme. E, sobretudo, de uma alma imensa mergulhada na tranquilidade que soube conquistar à vida. Tinha no andar o ondular suave de certos mares e tinha no olhar o horizonte dele!

– Claro que sim. Vamos ver o mar.
A viagem durou poucos minutos. Ou, pelo menos, poucos lhes pareceram. No caminho, ele foi tocando a mão que ela abandonara no regaço. E estiveram brincando, mais do que conversando. E as palavras que trocaram foram sobre o jantar, primeiro, como tinha constituído um momento belo e intenso, uma harmonia de estarem juntos. Depois falaram do mar como se antecipassem vê-lo. E andaram vagueando nas palavras, trocando ideias com elas e trocando-as a elas pelas ideias até que o mar se anunciou. Primeiro, pela força do som que estremece a terra. Depois, pelo branco da espuma a encristar a ondulação atlântica.

Quedaram-se sentados, recostados nos seus bancos, de mão dada, só. Sendo que dar as mãos e estar em harmonia não é coisa pouca nem com pouco se faz ou desfaz. E ali ficaram longos minutos contemplando a sequência irregular das batidas com que o mar vai castigando a areia. Os seus pensamentos separaram-se por momentos e enquanto ela imaginava a felicidade que seria ter este homem só para si, ele estava já fazendo amor com ela na bruma espessa da imaginação. E surpreendeu-se imaginando que estava com ela estando com ela. Os seus pensamentos reuniram-se de novo num ponto comum. Nenhum se movia, nenhum articulava uma palavra que fosse, nem pareciam pestanejar olhando o negrume do oceano nocturno cortado pelo brilho alvo na crista das ondas e desejaram ambos que aquele momento cristalizasse. Que parasse já o Universo porque a vida estava vivida. Ela, ou o que dela merecia ser vivido. Ficaram desejando o fim para que aquela noite fria de contemplar o oceano no calor das mãos dadas fosse a sua eternidade.

E aconteceu aquele acontecer entre as gentes, quando estão juntas e em silêncio, que é o silêncio não poder durar sempre e ser interrompido, em simultâneo, pelos dois. Não que quisessem falar um por cima do outro, ou primeiro do que o outro, mas porque até no estender do silêncio à luz da palavra articulada estavam em uníssono:
– Sabes que…
– Queria…
– Sim, diz…
– Não, tu primeiro…
– Seja, um de nós terá de dizer primeiro: queria que a vida parasse agora e restasse em nós só a memória desta noite.
– Sabes que não me importava de morrer já, se a morte fosse prolongar este momento pelos tempos todos.

Mais não disseram porque mais não precisava ser dito. Os amantes das palavras, pelas palavras, com as palavras calaram as palavras. Inclinaram-se um para o outro e foram percorrendo o caminho do desejo até que estivesse eliminado qualquer espaço entre si. Juntaram os lábios num beijo suave de aqui me tens, sou tua, aqui estou, sou teu. E abraçaram-se como se conseguem abraçar os amantes no espaço exíguo de um carro.
– Somos loucos!
– Pois somos. Saudavelmente loucos!

Ele inventou algum espaço mais entre o volante e o banco puxando-o para trás. Recostou-se e poisou o seu cotovelo na porta
desenhando um triângulo com o braço.

E foi nesse recanto, entre o coração e o braço dele que ela foi encostar a cabeleira farta anichando-se no seu colo. E ali, de frente para o mar, esqueceram-se do quarto. Tapou-lhe as formas delicadas do corpo com o sobretudo e deixou as mãos navegarem o seu corpo por baixo do vestido. Beijaram-se. Continuaram a beijar-se. Acariciou-lhe os seios e acabou beijando-os também. Só não viu que eram rosados porque a noite escondia esse segredo. E que não escondesse, não veria na mesma porque tem os olhos fechados. Basta-lhe o tacto, o odor e o retorno dos movimentos dela. A Natureza viu a intimidade dos gestos crescer e juntou à discrição do breu nocturno o embaciado dos vidros. Num puxão seco e forte, rompeu-lhe a tira frágil da lingerie e acariciou-lhe o calor húmido do sexo. Ela ajeitou-se no espaço, entregando-se à carícia. A noite corria perfeita. Estava perfeita. Os amantes das palavras, pelas palavras, com as palavras inauguram outras linguagens e exploram universos onde as palavras sabem a pouco. E estão neste afã dedicado e ferveroso quando um ruído abafado e artificial corta o silêncio e o murmurar sensual que o enfeitava. Um telefone, por prudência ligado, por artificial ilusão de privacidade deixado em modo de vibrar, vibrou. Era o dele. A outra vida estava ao telefone. Ela endireita-se no seu banco, ajeita as roupas e recompõe a figura como se a voz que do outro lado clama “Estou? Quem fala? És tu?” estivesse ali batendo na janela do carro tentando ver para além do embaciado. Sentiu-se violada na sua privacidade e, ao mesmo tempo, sem direito a ela! Ele compôs mais a voz do que o resto, que as mãos dela também haviam feito despojos de amar, e saíu do carro como que a querer separar os dois mundos, as duas vidas. Como que a querer preservar esta da intromissão invasiva da outra:

– Disse para me ligares só em caso de urgência… O quê? Quando? Sim, claro. Para já!

Regressa ao carro e ainda não chora por fora mas traz já o peito despedaçado, a alma desiludida. Ainda não teve tempo para nada senão para reagir à presença da outra vida nesta, ainda não consegue vislumbrar o dia perfeito e a perfeita noite desfazendo-se debaixo dos pés e sente já um corte profundo, uma ausência, uma lástima. Reentra no carro, senta-se. Olha em frente o mar esbracejando e sacudindo, com violência, a areia. Respira fundo. Encontra coragem para encará-la nos olhos e diz num tom de voz controlado e sério:
-Tenho de ir!


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Estórias ao Acaso: Noite Fria (XII)

Noite Fria (XII)

Por razões que nunca procurou perceber, ele empenhou-se mais no jantar do que no resto da noite.

Colocou toda a paixão de que era capaz na escolha do restaurante. Lugar tranquilo, urbano mas longe da centralidade ruidosa da cidade. Distinto. Reservou a mesa. Deu instruções precisas acerca de como a queria colocada. As velas, o frappé de pé, uma série de indicações desnecessárias que o pessoal do restaurante aceitou com benevolência e que, para eles, seria o repetir dos mesmos gestos de todos os dias. Para ele, seria mais do que uma refeição: um hino ao amor e à dedicação. E flores na mesa. Queria flores na mesa. Seleccionou da carta para aquele dia os pratos que lhe pareceram mais adequados ao carácter dela. E, se algo houve de extraordinário da sua parte na preparação do jantar das suas vidas, foi que nem por um segundo, nem por uma vez só, ele pensou em si, no seu gosto, nas suas opções. Aquele conjunto de tarefas e decisões para preparar o jantar em que celebrariam o seu amor foi toda uma dádiva.

Escolheu um hotel perto dali para que pudessem caminhar entre o restaurante e o quarto e a conversa seria a preparação do que havia de seguir-se, o amor primeiro antes do outro, os preliminares dos amantes das palavras, pelas palavras, com as palavras. Fez questão que fosse digno mas não se aprimorou nos requintes. Aquele seria um espaço para a conversa dos corpos, que falassem, pois, sem muitas ajudas nem acessórios.

O dia correu veloz e miudinho. As coisas importantes pareciam-lhe banais, as banais dispensáveis. A sua ansiedade transportou-o diversas vezes ao local onde haveria de estar esta noite. Preparou frases, discursos, tiradas românticas e sérias e só mais tarde se aperceberia de que quando os amantes amam nada disso é necessário.

Ela está sentada à sua secretária de trabalho com um sorriso nos lábios. Sabe, de certo, que ele se esforça e, ao contrário dele, está tranquila. Quando uma mulher decide entregar-se, quando decide colocar a sua vida nas mãos do homem que ama, o mundo fica harmonioso e a força da decisão dota-a de firmeza e tranquilidade. O problema é chegar a decidir. Uma vez dado esse passo, resta abraçar a vida e nisso as mulheres são ímpares. Atravessou-a, ao longo do dia, um sentimento de alegria e segurança. Dedicou-se às pequenas tarefas como se fossem importantes e tratou as importantes com a atenção que mereciam. Não se preparou. Vinha preparando-se há quinze anos e esse tempo bastara-lhe.

A sala tem as luzes eléctricas propositadamente suavizadas e emerge o tom amarelecido das velas cujo odor cruza o espaço e predispõe as mentes para o coração. As flores são brancas e frescas. Alguém as salpicou porque estão orvalhadas e as gotículas de água rebrilham a luz envelhecida que os envolve. Além deste que nos interessa, estão por aí mais uns quantos casais, vários deles igualmente apaixonados. Nota-se no brilho do olhar, na abertura do rosto, no toque suave das mãos. É isso que ele está fazendo. Tem uma mão estendida sobre a mesa e brinca com os dedos frágeis dela. Ela trouxe um vestido preto, com um decote discreto e todo folhado. Dá-lhe mais volume do que realmente tem mas, sobretudo, confere leveza ao negro. Não tem jóias. Nem delas precisaria. As jóias que ela usa para embelezar-lhe a figura são as palavras bailando-lhe nos lábios, acariciando-lhe o coração, musicando-lhe a existência. E é por isso que ele está feliz.

À excepção de uma frase dela, mais adiante revelada, não nos interessa muito o que disseram os amantes das palavras, pelas palavras, com as palavras. Interessa-nos como o disseram. O tom da voz dele foi sempre pausado e ligeiramente grave. Ela foi mais límpida na voz e informal na atitude. Riu diversas vezes e depois olhou em volta como uma menina traquina que acabou de fazer alguma. Estava provocando-o. Ele aderiu e brincou também… Não fizeram juras de amor. Essas estavam feitas e não careciam repetição. Ficaram elogiando-se mutuamente as virtudes que é virtude da paixão esconder os defeitos aos olhos dos amantes.

Conversaram muito e francamente. Construíram, ou melhor, solidificaram ali uma relação de amizade com aquela consciência que os humanos vão tendo de que os amantes crescem nos alicerces da amizade. E o mais extraordinário foi revelarem-se pormenores inéditos das suas vidas, gostos, pequenos pecados, rotinas, algumas alegrias e uma ou outra tristeza que qualquer um deles fez questão de atenuar.

Estavam saindo, inspirando o ar frio da noite, dando o corpo ao negro véu que todos os dias se abate sobre esta nossa Terra. Estavam preparando-se para continuar a amar-se com outras linguagens quando ela falou perguntando e surpreendendo:
– Levas-me a ver o mar?


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Estórias ao Acaso: Noite Fria (XI)

Noite Fria (XI)

Ela tem o corpo delgado desnudado das roupas e dos preconceitos. Está deitada olhando o seu amante reclinado sobre si. Ele está deitado de lado com uma perna encolhida fazendo um triângulo. Essa perna assenta no ventre dela. Ele tem uma mão suportando a cabeça e o cotovelo fincado no colchão. Olha-a nos olhos. A mão que tem livre acaricia-lhe, despudorada, a seda do sexo. Vai-lhe beijando as faces e os seios e o corpo todo. E está nesta dedicação de gestos e ternuras que os amantes trocam, contemplando o inimitável sorriso dela quando ouve ao fundo uma voz da outra vida:
– Vais acordar ou não? Olha que te atrasas!
Abre os olhos, sobressaltado, e exclama entre dentes ensonados: “estava a sonhar com ela!”
– Estavas o quê? A sonhar com quem?
– Nada, nada. Estava a sonhar e acordei sobressaltado. Acho que era com a minha mãe.
Mentiu. De novo, como já lhe acontecera antes, se apercebeu da proximidade daquelas vidas, da impossibilidade de ambas serem vividas num mesmo momento por um mesmo homem.

Não queria deixar arrefecer aquele milagre de amor. Ela trabalhava longe, é certo, mas este amor que lhe invade o peito e a mente não conhece essas barreiras que atropelam os outros humanos. Pôs-se ao caminho, articulou uma desculpa para não regressar cedo. Algo relacionado com o trabalho. Está de frente para o local de trabalho dela. Um imponente edifício público. Agarra no telemóvel e liga.

– Estou?
– Sim, sou eu…
– Que surpresa agradável. Tudo bem contigo?
– Tudo. desde que esteja a falar contigo, está tudo bem. Olha, vais almoçar onde?
– Sei lá, aqui perto do meu trabalho. Estou muito cansada hoje. Tem sido um dia terrível. E tu, onde estás?
– Aqui!
– Aqui? Aqui, onde?
– À porta do teu trabalho. Hoje pensei fazer-te uma surpresa… E as flores? Devias ver as flores que aqui tenho… Enfim, pensei que podíamos almoçar num local tranquilo, só os dois…
Fez-se um pequeno silêncio enquanto ela se beliscava a ver se acreditava. Foi um pouco longo, daí que ele tenha retomado:
– Sim? Ainda aí estás? Abusei? Não podes?
– Calma, calma… Estou aqui. Não abusaste. Posso e amei a tua surpresa. Acho que nem acredito que estás aí fora…


À saida do local de trabalho dela há uma escadaria imensa que tem uma vista ampla sobre a paisagem urbana circundante. Normalmente, quando acaba um turno e conquista o direito de respirar a rua, costuma ficar uns minutinhos parada, contemplando as gentes que passam lá em baixo, na rua, imaginando-lhes as vidas. Ali vai um pai de três filhos, aquela é professora e o dia correu-lhe bem, aquela vem de visitar uma tia distante, aquele acabou de fazer amor com uma senhora viúva que gosta de dizer às vizinhas, entre dentes, que ele é seu amante. E fica desfiando este rosário de vidas até que encontra coragem para ser mais uma vida entre as outras e desce a escada. Hoje, é diferente. Hoje a sua vida não é uma vida. É a vida. Hoje sabe ao que vai. Pára no alto das escadas a agradecer o banho de luz, olha o horizonte e fica vendo o homem lá em baixo que tem os crisântemos na mão. Parece um adolescente sorrindo ao futuro, crédulo de si, incrédulo da fortuna, esperando que ela surja para a confirmar.

Hoje demorou-se menos tempo no cimo da escadaria. Desceu-a correndo e saltitando até se enroscar nos braços dele. Beijaram-se longamente. Ela entregando-se totalmente ao homem que a recebe. Ele recebendo-a toda nos seus braços como um prémio de vida! Não quis saber, naquele momento, da outra vida. Não temeu ser visto. Quase o desejou, até! Tinham terminado o beijo, sentiam ainda nos lábios, os lábios um do outro quando começaram de novo a amar-se com as palavras.

– Toma, são para ti. Entrei numa florista e comprei as mais bonitas que lá havia.
– Sabes que flores são essas?
– Como assim? São flores, são coloridas, são as mais bonitas que encontrei… Porquê? As flores definem-se? Isto são mais do que flores? São mais do que o amor que te tenho?
– Não, tens razão! Não interessam para nada os rótulos que as pessoas colocam à vida desde que seja vivida no amor e na entrega que nos temos. Nem sabes como estou feliz. É uma surpresa formidável. Desejei tanto ver-te hoje e quis Deus ou o destino que isso acontecesse… Tu adivinhas-me!
– Eu completo-me contigo. E sendo tu a minha completude, eu terei de ser a tua. É natural, por isso, que conversemos para além das palavras. Que a sintonia emane do amor, mais do que das palavras!
– É tão bom ouvir-te! Poucas vezes na vida me senti tão feliz, tão mulher, tão amada…
– Sim…
– E desejada. Eu sei que me desejas. Sinto-o. Quero mergulhar-te nos olhos e dizer-te, olhando-te, que também te desejo. Anseio esse momento… combinemo-lo.

Combinaram-no. Jantariam juntos na semana seguinte e nenhum voltaria à casa onde normalmente fica e a que chama sua… Dos pormenores encarregou-se ele. Quando o dia combinado acordou, julgaram ambos que tinham renascido para a vida e declararam-se viver aquele dia como se fosse o primeiro…