Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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Calma, calma, é já a seguir!

Caros leitores,
muitos de vós têm enviado mensagens de correio electrónico a perguntar quando é que publico o capítulo seguinte de “Estórias ao Acaso: Noite Fria” e se, eventualmente, já teria acabado a narrativa.

Por partes.
Não acabou ainda. Estamos na fase final mas ainda com algumas surpresas que incluem, por exemplo, personagens novas!!! Acontece que a vida pessoal e, sobretudo, a profissional deste autor tem estado muito atarefada neste arranque de ano civil e segundo período lectivo o que dificulta o processo de escrita que requer imensa concentração. Por outro lado, o atraso também se deve ao esforço extra que exige o “atar das pontas” no final da narrativa para tudo bater certinho…

Digamos que, nas próximas 48 horas surge o próximo capítulo.

Aproveito para agradecer todas as mensagens de motivação e incentivo que me vão dando por mail ou pessoalmente.

Um abraço e um excelente 2010… com tudo de bom incluindo muitas leituras.

João Paulo Videira


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Estórias ao Acaso: Noite Fria (XXIX)

Noite Fria (XXIX)

Há coisas que vêm de dentro. Há estados de alma que nos habitam e contaminam o que nos circunda. O dia é de sol enfeitado por uma brisa suave. Não fosse o calendário ser de dias curtos e frios e julgaríamos estar na Primavera. Mas este dia poderia ser de chuva miúda, de águas torrenciais, de ventos ciclónicos, granizo, neve, cinzento e sombrio ou qualquer outra manifestação climatérica que a Natureza decidisse que, à volta de Maria de Fátima, haveria sempre luz e sol e brilho.

Saíu há pouco do hotel e ainda sente o toque do rapaz musculado na sua carne, ainda ouve o seu murmurar sensual, ainda sente a sua respiração junto ao pescoço e, contudo, já o esqueceu. Caminha feliz e inconsciente pela rua. Está entregue só a si, às suas opções e aos seus caprichos e vive confortável com isso. É estranha esta felicidade de quem se limita a vivê-la sem saber de onde vem e porque vem. Ou a única. Cremos mesmo que, no momento em que soubesse por que era feliz, Maria de Fátima deixaria de sê-lo. Reside na espontaneidade do que sente não interrogado nem perscrutado pela consciência este caminhar ditoso pela rua. Há no rosto de Maria de Fátima uma alegria específica e definida. A alegria da liberdade que veio até si. Maria de Fátima conhece bem o seu corpo e os desejos dele e, mais do que isso, sabe como satisfazê-lo. Assume a sua condição e vive a verdade dela. Em si nunca haverá uma luta entre o corpo e a mente porque estará esta sempre servindo aquele. Sem remorsos. As suas opções são simples. Usufrui da vida como ela se lhe apresenta e afasta o complexo de si como quem afasta um mau presságio.

As mentes mais elaboradas e a habituadas a esquadrinhar no comportamento humano os pecados e os castigos para eles, distantes, por natureza, da matriz de Maria de Fátima, encontram-lhe com facilidade o vício e a imoralidade triunfando sobre o caminho difícil da virtude moral. Acontece, porém, que não haverá, nunca, culpa nem imoralidade onde vive a inconsciência e a inocência. Esta mulher é promíscua mas não o sabe. Apenas conhece de si que é como é, que gosta do que gosta, que vive como sabe. Essa é a sua verdade e a sua religião e vive de acordo com elas. Se há crime nesta mulher, não pode haver castigo para ele porque é um crime sem culpa. Maria de Fátima tem a coragem dos seus defeitos e das suas virtudes e é genuína nos seus gestos. Teve a força e a clarividência de mostrar a José António que a sua vida em conjunto não era o caminho de nenhum dos dois. Mostrou-lhe o dele e assumiu o seu. Decidiu bem porque decidiu abraçar a vida em harmonia com a sua natureza.

Maria de Fátima tinha um compromisso. Foi com os filhos ao cinema. Eram desenhos animados, pipocas e coca-cola. Foi a tarde perfeita para as crianças e a mãe delas. Hoje é dia de jantarem os miúdos com José António. Maria de Fátima entrega-os ao pai ao fim da tarde, sem rancor, cumprindo o estipulado e depois irá jantar com um amigo. Não sabe no que dará a noite mas não perde tempo a pensar nisso. Será o que for. Dará o que der. Não teme nem hesita. A vida é bela, é única, é sua e está só à espera de ser vivida…

Quando Maria de Fátima mergulha na noite, pode ser a mais inconsciente das criaturas que a habitam mas é também a mais segura.


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Estórias ao Acaso: Noite Fria (XXVIII)

Noite Fria (XXVIII)

Uma cama de hotel digno mas sem luxos. Um utilitário. Lençóis brancos. Ar aquecido. Roupa masculina e feminina serpenteando o chão e os móveis deixando-nos saber que a entrada no quarto fora arfada e fugosa. Um corpo viril e suado, com claros sinais de estar em boa forma adquirida no ginásio está deitado na cama com as mãos presas à cabeceira com um par de algemas. O rapaz geme de prazer como se quisesse conter a explosão que vai seguir-se mas não fosse capaz. Em cima de si balança-se, em ritmo certo e crescente, um corpo feminino esguio e, contudo, sólido. Está encaixada no sexo erecto dele, projecta para a frente um braço e assenta a mão no peito dele e deixa para trás o outro braço cuja mão assenta numa coxa musculada do jovem suado. E movimenta-se em cima dele provocando e esperando a alegria da explosão quente que acolherá dentro de si.

O que tinha de acontecer, aconteceu e ela tomba a cabeça para trás e fica saboreando o momento de prazer. Maria de Fátima está saciada e tem um compromisso. Levanta-se devagar e deixa o seu jovem musculado companheiro algemado à cama.
– Não vais deixar-me aqui, pois não?
– Por acaso vou.
– ‘Tás maluca?!
– Calma, não é para sempre. É só enquanto tomo um duche.
– Tu és louca?!
– Não. Apenas não quero que me agarres com as tuas tentadoras mãos porque tenho de estar a horas noutro local…

O duche foi rápido. Cumpriu a higiénica função e mais não lhe foi exigido. Maria de Fátima vem saindo da casa-de-banho envolta numa toalha branca justa ao corpo, presa por cima dos seios, realçando-lhe as formas e sacode os cabelos molhados com uma mão enquanto agita a cabeça. O rapaz está dormitando na letargia que sempre ataca quem acabou de dar o suor e o sémen. O corpo escorregou e estendeu-se totalmente e os braços ficaram pendurados das algemas. Ela veste-se, rápida. Não veste as cuecas pretas e deposita-lhas no ventre. Como que a não querer entranhar-se do suor dele, beija-o na testa e abre-lhe as algemas. Ele pressente-a e pergunta:
– Amas-me?
– Amo. Muito.

Sai do quarto composta, fecha a porta nas suas costas, ergue os ombros e olha a vida em frente e quando começa a atravessar o corredor em direcção ao elevador diz alto para poder ouvir-se a si própria:
– A ti, e a todos os outros!


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Estórias ao Acaso: Noite Fria (XXVII)

Noite Fria (XXVII)

A casa onde mora o desiludido amante das palavras, com as palavras, pelas palavras, está impecavelmente arrumada. Como se este homem estivesse à espera de alguém para jantar. A sala onde o vemos agora junto a uma janela contemplando o exterior tem um aspecto austero. Móveis, só os necessários. Objectos em cima deles, ainda menos do que isso e os que se vêem estão organizados como se houvesse uma ordem geométrica a presidir à sua disposição. A noite cai fria e, se há um convidado esta noite, não deve estar atrasado porque não dá este homem quaisquer sinais de impaciência ou, sequer, de uma espera mais sofrida. Está de pé, olhando a rua com as mãos atrás das costas. Está só. Por fora e por dentro. Sente a solidão profunda de quem caminhou um caminho sozinho e não encontrou o que procurava. Só um beco sem saída. Só o desengano. Só o desespero. O desespero de quem se perde para a vida sem, ao menos, ter a desculpa de ter sido enganado no percurso a seguir. Nada disso. Cada passada fora dada com a força das suas convicções, com a fé e o crer de quem ama e crê que é amado. E deixou um rasto de sofrimento e erros que o envergonham. Como pôde enganar-se daquela forma? Desperdiçou uma família em busca de uma quimera e quando lá chegou não encontrou uma nem outra. Só o desespero e a solidão dos seus erros. Só uma vida errada. Percebe, agora, a sua ambição, o excesso dela. Percebe agora que desafiou os deuses mais do que poderia suportar. Quis mais, além do muito que tinha ainda que não se apercebesse o quanto esse muito significava. Quis viver duas vidas no espaço de uma. Quis poder o que os homens não podem. E foi amado. Pelos filhos. Pela mulher. Por ela. Mas à vida, não nos cabe controlá-la. Só vivê-la. Uma vez. E o seu excesso, a sua “hybris” fora castigada. E sabe que não se assumem responsabilidades só porque alguém diz Eu assumo as responsabilidades. Assumem-se quando alguém paga o preço dos seus actos e sofre as consequências deles. Não conhece este homem o preço a pagar pela família que destruíu mas descobri-lo-á em si.

A neblina que há uns dias lhe toldava o olhar e o pensamento foi-se desvanecendo aos poucos e na medida exacta da compreensão dos seus actos e da amplitude das consequências deles. Está tranquilo e tem no olhar essa calma e essa serenidade que invadem os homens que encontraram em si a solução para os problemas por si causados. Já não é tempo de tragédia que tragédia foi o desmoronar das vidas que o rodeavam. Já não é tempo de sentir-se encurralado nem envergonhado porque encontrou, já, a saída e a forma de resgatar a sua honra e a sua dignidade.

Volta as costas à janela por onde olhava a rua sem a ver, só para entreter a vista enquanto pensava, e dirige-se para este sofá de um lugar só. É aqui que costuma ler. É aqui que costuma entregar-se ao pensamento e à televisão, agora desligada, e é aqui que tantas vezes costuma adormecer. Enterra-se no sofá e deixa-se absorver pelo seu conforto como se nada mais houvesse na vida que valesse a pena ser vivido.

A convidada da noite entrou na casa. Veio silenciosa e fria. Não necessitou bater à porta nem que lha abrissem e não quis ser apresentada. Nem precisava. A esta casa não veio porque assim o tivesse decidido. Veio porque fora convidada.

Este homem que aqui vemos enterrado no seu sofá, no universo da sua sala e da sua intimidade tem um braço sobre o colo e o outro descaído e abandonado para fora da poltrona. Adormeceu, já, pela última vez e dentro de momentos estará frio.

Ao lado do sofá confortável está uma mesinha de chá e em cima dela um frasco de comprimidos vazio do seu conteúdo. O frasco não está tombado, nem há comprimidos derramados o que pode induzir leituras diversas sendo a mais segura a convicção dos gestos de quem os praticou. Aqui há-de chegar um homem diplomado de médico e há-de escrever o óbito e a causa dele. E aí figurará a morte causada por ingestão indevida e excessiva de um químico não prescrito e cuja identificação em nada acrescenta a esta estória. Nada mais errado que andamos nós, pequenos humanos, atribuindo aos instrumentos as causas sendo estas de outra ordem. Mais certo estaria o médico que escrevesse no óbito Este homem morreu de amar e não ser amado, morreu de desgosto pungente, agonizou em desespero e vergonha pelos seus actos. Mas vemos isto, sabemos isto e continuamos a dizer que a causa da morte foram os comprimidos, o veneno, o laço na corda, no cinto, a ponta da faca, o comboio que passava… e teimamos no erro e sempre que o fazemos perdemos uma oportunidade de tentar perceber onde radica a causa. Que solidão é esta que nos traz morrendo a vida mergulhados em desespero?!

Os serviços fúnebres terminaram há momentos. O cemitério encontra-se quase deserto de lágrimas e sussuros. Restam alguns amigos mais íntimos que vão encolhendo os ombros, enfiando as mãos nos bolsos das calças e afastando-se lentamente do local onde o deixaram, só, para a eternidade. Outros abanam as cabeças em sinal negativo como que dizendo que não à inevitabilidade da morte. Junto à sepultura recente restam duas silhuetas femininas, de negro vestidas. Uma mulher informou outra e as duas estiveram presentes e aqui estão olhando o chão. Não se falaram que nada havia para dizer. Vieram ambas retribuir crisântemos. Flores que ele oferecia para as fazer sorrir e que agora marcam a sua despedida em silêncio. Tem este estranho poder a morte que é o de separar os mortos dos vivos e unir os vivos aos vivos. É como se o seu peso e a sua força exigisse que sejamos mais do que a nossa individualidade para podermos enfrentá-la.

Lá fora, José António espera no carro e quando ela chega e entra na viatura, ele faz-lhe uma festa terna na face e beija-a suavemente nos lábios.

– Gostavas muito deste teu amigo…
– Muito! Mesmo muito. Posso mesmo dizer que foi mais do que um amigo.


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Estórias ao Acaso: Noite Fria (XXVI)

Noite Fria (XXVI)

É interessante como o mundo à nossa volta nunca é o que é mas somente como o vemos. Todas as vivências, todas as manhãs, todas as tardes e as noites todas, todas as paisagens, sejam rurais ou urbanas sejam, todas as gentes que passam e ficam, todos os edifícios, todas as árvores, o sol todo e toda a chuva, as ruas todas, os caminhos todos, os veículos e os animais todos não são, nunca, o que são. São sempre como os vemos. E vemo-los sempre como estamos vivendo, filtrados pelo olhar que temos nesse dia, nessa hora, nesse momento exacto.

Este homem que aqui vemos está cego. Não vê. Olha, mas não vê. Tem um telemóvel na mão. Os braços estão caídos. Ficou olhando o mesmo ponto inexacto que estava fitando enquanto falava ao telefone e não mais tirou de lá os olhos. Não que não queira. Só não consegue. E ficou, assim, inerte, olhando o vazio, mudo e quieto no meio da cidade que passa por si, que rodopia à sua volta. Ficou entre as vozes e os ruídos e as buzinas e as sirenes das ambulâncias que passam como se lá estivesse só o corpo vazio de si que o resto não sabemos nós nem o próprio onde pára.

Há pessoas estudadas, com muitos anos de livros complexos repletos de gravuras legendadas que chamariam a este estado de choque. Não lhe chamaremos nós nada que não temos competência para tanto mas aspectos há em que somos os únicos habilitados a prestar informação qualificada. Sabemos, por exemplo, que estranhou ele os traseuntes olhando-o como se tivesse algo de errado. E tinha. E talvez por isso iniciou-se em si o despertar. Tão célere quanto doloroso. Vai despertando e os sons vão entrando em si e começa a reposicionar-se no universo. Onde está, como está, porque está. E, em simultâneo, é assaltado pela consciencialização do que acaba de acontecer-lhe. Cai em si. Reconhece, num vortex de sofrimento e incredulidade, a loucura que cometeu, a porta da desgraça que abriu. Como fora igénuo e, pior, muito pior, incauto. Interroga-se porque não a interrompeu, Que dizes tu? Estou livre para ser teu. Quero que sejas minha. Abandonei uma mulher que me ama e amo, um par de filhos, uma vida… tudo por ti e agora dizes-me que tens um companheiro tranquilo? Onde estão as tuas promessas de amor? Mas não disse nada e agora percebe as razões. Foi uma inacção que se apoderou de si porque fora apanhado de surpresa, porque não se espera da pessoa a quem se entrega a vida que nos diga que não a quer mais. É como se não tivesse acreditado no que ouvia. E foi um respeito e uma dignidade. Não se discute nem regateia a liberdade de outrém fazer as suas opções e escolher os seus caminhos quando vimos de fazer o mesmo. Não se determina para os outros a liberdade que se reclama para nós: a de amar.

Em meio desde acordar para a dor, em meio deste sofrimento profundo que ainda não percebe bem, só sente, cujas consequências ainda não consegue perceber, perguntou-se quem seria aquele José António tranquilo e dedicado que a fazia feliz e o matava a si por dentro, lhe destruía a vida sem saber… E como quase acontece sempre que perguntamos algo, este homem já a tinha a resposta consigo. E a resposta que encontrava em si é que não seria importante quem era o dedicado e gentil namorado dela mas quem ele próprio não conseguira ser ou deixara de ser. Não conseguira ser um amante dedicado e exclusivo, não conseguira entregar a sua existência à mulher que lha pedira e sonhara, erradamente, que o poderia fazer. Não conseguira ser um José António gentil e presente e abdicara de ser a única coisa que conseguira ser até ao momento: um marido e um pai. Deixara de ser o que aprendera a ser ao longo de uma vida. E em meio deste ser e não ser perdera as duas vidas. Uma, porque não era sua. A outra porque, sendo sua, a rejeitara.

A trágica ironia da existência oferecera-lhe duas vidas. Cegara-o. E fizera-o perder ambas. E sentia-se agora engolido por uma solidão súbita, uma sensação de estar já pagando o preço da sua imprudência e da sua ambição. E, num momento breve de clarividência, viu-se protagonista da tragédia humana. Uma certeza, ainda envolta na neblina incerta do choque e do pensamento, parecia crescer em si. Havia entrado neste palco pelo seu próprio pé e pela sua própria vontade e teriam de ser a sua própria vontade e o seu próprio pé a tirá-lo dele.


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Estórias ao Acaso: Noite Fria (XXV)

Noite Fria (XXV)

-Estou sim?
– Boa tarde meu amor!
– Olá, como estás?
– Estou bem, muito bem. Feliz. Sobretudo por estar a falar contigo.
– Bem… estás mesmo satisfeito. Nota-se no que dizes, como dizes. Fico muito feliz por ti. Mas a que se deve tão boa disposição?
– A muitas coisas… mas disso não queria falar já…
– Ah, não foi esse o motivo do teu telefonema?…
– Sim e não.
-Então?
– Sim… e podemos falar disso depois. Não, porque estou a telefonar-te para te convidar para jantarmos juntos. Podíamos escolher um local simpático, até já pensei onde poderia ser, tu conheces-me, sempre a preparar tudo, mas só se concordares, claro. Depois púnhamos a conversa em dia, retomávamos o fio à meada… afinal de contas tínhamos entre nós uma coisa tão bonita, não queria chamar-lhe relação, que foi interrompida de forma um tanto brusca e acho que isso não é justo. Quer dizer, eu compreendo tudo o que sentiste e disseste na altura mas era algo tão bonito e nada como um jantar, já sem ser a quente, com outra calma, para analisarmos a situação, para conversarmos, enfim, reatar alguns laços.
– É muito querido da tua parte o convite mas… sabes… tenho andado com a agenda um tanto preenchida. Quer dizer, entre nós não há essa coisa da agenda mas tenho andado bastante ocupada.
– Como assim?!
– Olha, vou ser honesta e sincera contigo porque sei que farias o mesmo comigo. Eu sofri muito com o que nos aconteceu…
– Claro…
– Sim, deixa-me continuar… e senti-me muito mal com o papel que desempenhei em toda esta situação. Não foi nada agradável para mim e, ao mesmo tempo, imaginei-me do outro lado da situação e não gostaria que mulher alguma me fizesse o mesmo. Não vou dizer que te esqueci. Nada disso. Bem tentei mas as coisas não são assim tão fáceis. Não consegui. Contentei-me com o meu quotidiano tranquilo e silenciosamente sofrido. O tempo foi passando, os meses… Meu Deus, como o tempo voa! Enfim, recentemente conheci um homem que não tem a tua energia, não tem a tua presença mas faz-me sentir muito bem, muito tranquila e, em certos momentos, até me faz sentir feliz. E sei que é meu. Às vezes chamo-lhe meu só para saborear a sensação. As coisas têm corrido bem… … … não dizes nada?
– Fico muito feliz por ti. Como sempre te disse, tu mereces o melhor do mundo. Eu quis dar-to!
– Eu sei. Mas não podes. Repara, tu tens a tua família, sempre tiveste, sempre a adoraste e eu não queria construir a minha felicidade sobre a infelicidade de outrém. Tu sabes… e depois este meu doce namorado é um excelente companheiro e estou certa de que descobriremos os caminhos do amor e do fulgor.
– Como é que ele se chama? Posso saber?
– Podes. Não é que não possas mas estava à espera que me perguntasses outras coisas sobre ele. Bem, eu conto-te na mesma, afinal é o que os amigos fazem uns com os outros… a menos que não queiras saber…
– Claro que quero!
– Cá vai: tem um trabalho humilde, é distribuidor de roupas de uma lavandaria, é muito diligente no trabalho, muito cumpridor. É divorciado. Recentemente divorciado. Sofreu imenso com o processo. Ele gostava imenso da ex-mulher mas não resultou. Acho que temos isso em comum: as feridas. É sereno, tranquilo. Quando falo, ouve-me de facto. É gentil e meigo. Vê lá tu que ainda é daqueles que me puxa a cadeira quando me levanto da mesa.
– Esses estão em extinção!
– Pois estão! E eu encontrei logo dois – tu também me puxavas a cadeira – mas este pode ser meu! Quanto ao que menos importa mas parece interessar-te, chama-se José António.
– Desejo-te muitas felicidades.
– Obrigada. E tu? Como vais? Olha a oferta para o jantar continua de pé? É que podemos jantar na mesma, os amigos jantam juntos, certo? Só que agora talvez não seja a melhor altura…
– Claro que podemos. Eu depois ligo-te. Eu vou indo bem, Senti saudades tuas, só isso.
– Também tenho pensado em ti mas estou a tentar ter uma vida… compreendes?
– Claro que sim. Espero que consigas e sejas feliz.
– O mesmo para ti. Gosto muito de ti.
– Eu também… um beijo.
– Beijo… e dá notícias…
– Darei.


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Estórias ao Acaso: Noite Fria (XXIV)

Noite Fria (XXIV)

– Porque eu amo outra mulher!

Repetira firme e sincero no dia em que se separara da outra vida e da sua mulher para ganhar o direito a ser plenamente feliz. Sabia, com a ansiedade de uma criança que abre o embrulho para ver o brinquedo, que muito havia ainda a fazer e a viver até poder usufruir da felicidade que está construindo mas tinha esperado o tempo necessário para ganhar esse direito.

Tal como a sua mulher prometera, o processo não tinha sido nada fácil. Sempre dentro dos limites exigíveis da educação e até da cooperação mas lutado e suado cada cêntimo, cada dia com os filhos, cada obrigação e cada direito. Não o moviam as questões financeiras mas a sua mulher, ferida na dignidade e na desilusão de não poder lutar por ele nem pela sua vida, tornara-se exigente e até cruel na forma como disputaram o divórcio.

Por tudo isso, o processo fora longo, demorado e sofrido. Quase um ano passara desde o dia em que decidira cortar com a outa vida e anunciar tal decisão de peito aberto, franco e corajoso à mulher com que tinha vivido uma quase vida. Tudo para ser livre e viver pleno e inteiro de si. O dia dessa libertação chegou.

Sai do tribunal, passa pela colunata, atravessa o átrio exterior e assoma à escadaria imensa onde já vimos assomar outras personagens desta estória num dia de sol tépido. Os dias frios deram lugar aos amenos e estes aos quentes e estes de novo aos frios e hoje, sob uma chuva miúda e gelada, este homem que é amante das palavras pelas palavras com as palavras está livre para ser amante pleno de corpo e alma entregues àquela que o espera. Talvez por isso, talvez por ter-se sacrificado ao silêncio até ao momento em pudesse entregar-se a ela e recebê-la sem culpas nem desculpas nos seus braços, nunca se havia lembrado dela desta forma viva e profunda como a recorda agora, aqui, ao cimo da escadaria do tribunal que se prepara para descer e mergulhar no anonimato da vida.

À medida que vence a escadaria ajudado por todos os santos, sobe o ritmo no seu peito marcado pelo entusiasmo. Já sabe o que vai fazer. Vai entregar-se à mulher que verdadeiramente ama e com ela construir uma vida. A vida. Comove-se e uma lágrima surpreende-lhe a caminhada. Pode bem confundir-se com um pingo de chuva que tenha fintado o chapéu negro e largo, de varetas abertas e ponta metálica espetada para o céu. Não sabe como vai fazer e diverte-se escolhendo a melhor forma, a que lhe der mais prazer, a que a surpreender mais. Terá de ser mágica. Lembrou-se de repetir o jantar interrompido. O mesmo local, os mesmos adereços e um final diferente. Desistiu da ideia por lhe encontrar um vago sabor aziago, um vago pressentimento a desgraça. Pensou telefonar-lhe e contar-lhe tudo e surupreendeu-se sorrindo de si mesmo e da ideia de comunicar a grande viragem, a grande mudança de rumo, por telefone. Liga uma pessoa o aparelho e depois do Estou sim, quem fala? Sou eu. Ah, olá, como vais? Bem e tu? despejar através do metálico do aparelho com eventuais faltas de rede, quebras de bateria e outros inconvenientes que a tecnologia encontra para nos desorientar, as palavras mais importantes da vida de um homem, vem ser minha, já posso ser teu. Vem amar-me às claras, de face erguida perante o mundo sem contas a dar, sem nada a recear, pareceu-lhe pouco apropriado. A importância do momento e do que se lhe seguirá justificavam que fosse dito pelas palavras ao alcance do olhar porque, no dizer das gentes, o olhar não mente. Além disso haveria o tacto, dedos entrelaçados em mãos ávidas de amar. E haveria os perfumes, os jeitos e os trejeitos que o corpo encontra para enfeitar e explicar o que vai meio-dito nas palavras. Nada disso poderia ser feito pelo telefone. Telefonar-lhe-ia, sim, mas para convidá-la para jantar. Descartada a repetição da noite de amor interrompido por lhe parecer a ambiência romântica demasiado pesada e festiva para um jantar que marcava um tempo de silêncio e distância, decidiu-se por algo mais simples, um pouco austero, até. Um espaço e uma refeição que marcassem a tristeza da distância e da ausência que agora terminavam. Um espaço e uma refeição com a sobriedade de quem vem de estar só. E depois, então, revelar-lhe-ia o porquê do seu silêncio, as mudanças que fizera, a libertação da outra vida, a disponibilidade para estarem juntos e unidos num só percurso. O percurso de realizarem o seu amor nos pensamentos, nas palavras e nos actos. Já fizera, mesmo, projectos que lhe apresentaria para se entreterem conversando-os, decidindo-os, vivendo-os. Onde viverem, como viverem, que opções para a casa, para os rituais, para a partilha… seria, para o final da noite, a festa da entrega e da comunhão. Desta vez, por curioso que pareça ao leitor, este homem que aqui vemos a caminho de ser feliz não pensou em sexo. Não pensou na carne tão ocupado estava com as coisas do espírito.

À medida que o recorte imponente do tribunal desaparecia atrás de si e do entusiasmo que levava no peito, foi ficando mais seguro, com o rosto mais aberto e levava consigo, já, a felicidade que queria partilhar com ela. Foi automático o gesto de pegar no telemóvel e digitar o número a que resistira tantas vezes. Agora, contudo, não havia dúvidas que estas cederam o espaço à firmeza de um amor limpo. Alguns toques insuportáveis de chamar e depois, como por magia, a explosão da voz doce dela, do timbre meigo, e um festival de sentimentos dançou no seu peito, bailou no seu olhar e fê-lo acreditar que o mundo era um local bom para se estar. O melhor de todos.

– Estou sim?
– Boa tarde meu amor!


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Estórias ao Acaso: Noite Fria (XXIII)

Noite Fria (XXIII)

Isto é a cozinha. Parece um campo de batalha. Uma enorme caixa de pizza envelhecida, com a gordura seca e as migalhas sobrantes enrijecidas pelo tempo, é o que mais se aproxima de uma toalha. Há canecas de loiça vazias de leite com café ressequido e copos com cascas de fruta dentro. A paisagem está condimentada por diversos recipientes de alumínio de refeições rápidas e nutritivas, mais rápidas do que nutritivas, cozinhadas em três minutos, vazias, semi-vazias e quase cheias, abandonadas à impessoalidade do sabor, ou falta dele, apodrecidas. Há restos de pão que não foi abençoado numa refeição e talheres pegajosos em latas de atum vazias. E há babéis de loiça amontoada em desalinho crescente buscando o céu e esperando a humana mão que não aparece. O frigorífico, se o abríssemos, seria um deserto de ideias. Uns quantos iogurtes com prazo ultrapassado, um pacote de manteiga meio gasto e já sem tampa e um pacote de leite magro aberto e quase cheio. A verdura não conhece para aqui o caminho. À medida que abandonamos a cozinha em direcção ao quarto, a paisagem muda e não muda. Muda porque se alteram os adereços, menos culinários ou comestíveis, e mais de vestir e despir que não andam os humanos outra coisa fazendo a vida toda que não seja vestir-se e despir-se das roupas, das máscaras e dos preconceitos. Não muda porque o caos é o mesmo. Jazem calças pelo chão e pela cama e em cima de uma cadeira ao fundo daquela. E há meias de calçar os pés inteiros espalhadas por todo o lado. E camisas e gravatas e cuecas e camisolas interiores e tudo em desalinho e desacerto buscando uma ordem longe dela. E o rasto da comida chegou até aqui. Um pacote de bolachas aberto e já só com restos visitado por um outro de leite com chocolate onde já não está o leite nem o chocolate estão enfeitando a mesa-de-cabeceira. Na casa-de-banho a tampa da sanita está levantada e um fio de pasta dos dentes escorre pelo lavatório e há um copinho para a escova mas esta saíu em romaria e perdeu-se, algures, no lava-loiça da cozinha entre uma caneca de leite quente e um telemóvel que tocava. E há nesta casa que não é um lar uma sala que é sala e escritório também. A televisão emite uma luz trémula mas não tem som. Há papéis por cima da mesa rectangular, pequena e frágil, comprada às postas numa grande superfície e montada pelo próprio com a ajuda de um manual de instruções impresso em papel reciclável cujo conteudo é atravessado por uma confrangedora infantilidade e pela imbecilidade descontextualizada de serem instruções de lá, onde se pariu a mesa, para aqui, onde se há-de montar e comer sobre ela e deixá-la morrer num contentor verde com as iniciais do município. Sobre esta mesa divagam impressos de ordem diversa, contas por pagar, panfletos promocionais que anunciam costoletas do lombo na frente e televisores no verso, extractos de conta sendo que o que está por cima dos demais tem na primeira linha um número mais volumoso que vai depois decrescendo até se converter noutro número volumoso mas desta vez com um sinal de menos a antecipá-lo. E há, para mal do habitante deste espaço, uma nota indemnizatória de despedimento com um valor semelhante ao que encima o extracto de conta. Feneceu nessa mesa, há muito, um computador portátil, de tampa fechada enfeitada com rodelas de suor dos copos que aí estiveram poisados. O ar é pesado e espesso e atravessado pela nicotina expirada de cigarros nacionais de que encontramos um pacote amarrotado no chão, aos pés da mesa, por vazio estar e ter perdido a sua desutilidade. E há jornais diversos abertos nas páginas dos classificados com rodelas azuis de esferográficas publicitárias e mal escreventes circundando alguns anúncios. E por toda a casa está espalhada pelo chão angústia e pendurado ao abandono em costas de cadeiras que fazem conjunto com a mesa anda o desespero. Vagueia pelo chão a desorientação, um estar perdido sabendo-se onde se está. E mais do que tudo e em todos os recantos desta casa mal cuidada há solidão. A solidão profunda de um homem que há meia dúzia de meses era pai e marido e trabalhador e estava vivo para a vida e agora a morre todos os dias lentamente, desempregado, fugindo aos fins-de-semana com os miúdos por não saber dar-lhes o que queria e gostava, por não saber cuidar deles, e descasado com a única mulher com que saberia estar casado.

José António é hoje menos do que a sombra do homem que foi. A vida é demasiado grande para si. Não tem braços suficientes para abraçá-la sozinho nem horizonte na mente para que os olhos vejam para além do que olham. À medida que o quotidiano foi fazendo exigências, este homem foi-se perdendo nelas, na sua incapacidade para fazer-lhes frente. José António precisa de dar e não tem a quem, precisa de receber e não tem de quem. Precisa ser guia e não tem quem guiar, precisa ser guiado e não tem quem o guie. Este homem anda amputado de corpo e alma porque não veio ao mundo para vivê-lo sozinho. Lembra-se bem da sua determinação de tomar o rumo da vida quando inspirou o sol tépido à saída do tribunal na manhã em que se divorciou. Mas a solidão matou-lhe todas as intenções. Está abandonado. José António parecia alimentar a vida que tinha e afinal não só a alimentava como se alimentava dela. E está vivendo a decandência profissional, financeira, emocional, familiar e está morrendo a vida e continua procurando em si as forças e as soluções. Precisava ser um exemplo para os filhos e encontra-se evitando-os porque nem para si é exemplo, porque é o primeiro a não acreditar em si.

Tão precária é a condição das gentes e tantas forças as gentes parecem ter. E parece até que quanto mais se sofreu, quanto mais frágil e fragilizado e vulnerável se esteve mais forte e resistente se vem a ser. José António está sentado numa cadeira ao lado da mesa de que falámos ainda agora, tem um cotovelo sobre ela. Está nú. Tem frio. Em cima da mesa, ao seu lado, junto ao braço que aí poisou, descansa o que resta de uma cerveja que foi fresca há uns dias. Pende o pescoço para a frente. Desacredita e desespera e olha o chão. E no chão está um talão de lavandaria. Tem qualquer coisa agrafada. Estende a mão sem curiosidade que não fosse a de saber só por saber, só porque a vida o tinha trazido até ali e quer ver o que está agrafado ao talão de quatro euros e oitenta e sete cêntimos. São dois papelinhos. Um oferece a limpeza de uma peça em gastos superiores a dez euros e o outro, mais colorido e em papel de qualidade um pouco melhor, tem em letras gordas a frase Venha trabalhar connosco!


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Estórias ao Acaso: Noite Fria (XXII)

Noite Fria (XXII)

A manhã vai a meio e, contudo, muitas vidas se decidiram, já. O dia está limpo e o sol inunda os espaços e as pessoas semeando a fé de que um tempo menos frio virá. Nem sempre as personagens desta estória têm seus humores de acordo com o tempo que vai lá fora. É o que acontece neste momento em que a luz tépida promete vida e renascer de vontades e empreitadas e cometimentos e, no entanto, para José António e Maria de Fátima é o fim.

O tribunal tem uma fachada neoclássica e uma imponente colunata antecipa um amplo espaço antes das escadarias que trazem as pessoas à casa da justiça ou as devolvem à vida. José António e Maria de Fátima estão voltando à vida. Têm o edifício imponente nas suas costas e pela frente o sol brilhando nas suas faces. O que por lá se disse por vontade própria ou obrigação do momento está dito e teve os efeitos que deveria ter. Foi simples. Quase não teria sido preciso lá ir não fossem as naturais divisões materiais do que em espírito estava unido e em espírito se desuniu provocando depois a réplica divisória nas coisas mais pequenas. Um outro assunto obrigou à visita à casa da justiça. É que este casamento e o divórcio que nele nasceu obrigaram a dividir o que não é divisível. Os filhos. José António, numa conversa de ambos sobre este incontornável problema, ainda esboçou um gesto, uma vontade, uma intenção de ficar com eles. Maria de Fátima não reagiu mal. Notou com agrado que perdera o marido mas os filhos não perderiam o pai, contudo, não permitiu que a vontade caminhasse para esperança. Com carinho lhe foi dizendo que o problema dele não seria tomar conta dos filhos mas tomar conta de si próprio. Ofereceu-se mesmo para lhe tratar das roupas durante os primeiros tempos. Nem lhe perguntou se ficaria por perto. Sabia que sim. José António era daquelas pessoas que não voam para longe. Assimilam hábitos seguros e com segurança e diligência os vão repetindo e é isso a sua vida. Sem sobressaltos. Não se espera destas almas o rasgo de imaginação, o risco e a aventura mas pode esperar-se a firmeza, a constância e a fidelidade no carácter. Percebeu nessa altura que no departamento da culinária estava autónomo como estaria nas limpezas mas não fazia a mínima ideia de como tratar da roupa. A de cama, a de vestir, a de higiene. Claro que se desembaraçaria mas envolver crianças pequenas nas suas experiências fê-lo pensar. Por outro lado, Maria de Fátima era quem conversava com a professora do Marco e não saberia gerir essa parte da vida. Acomodou-se. Tivesse ela os defeitos que tivesse, nunca descuidara os filhos. Aceitou. Debateram,depois, a regulação parental, quantos jantares por semana, quantos fins-de-semana por mês, quantos dias nas férias, com quem se passa o Natal, o Fim de Ano, a Páscoa, o aniversário do Pai, o da Mãe, o das crianças, a que horas buscá-los e a que horas entregá-los, a pensão de alimentação e as outras despesas de que não queriam fugir mas que não desejavam suportar sozinhos. Quando terminaram esta fase da discussão com o natural envolvimento dos advogados, José António percebeu que se estava separando mas não divorciando. Em havendo filhos, não há divórcio. Há vidas que seguem caminhos separados mas os seus sangues correrão juntos, feitos um naquelas crianças e os seus quotidianos estarão unidos para sempre a menos que algum abdique que é coisa que nenhum destes dois vai fazer.

Vêm saindo lado a lado e não se olham. Ela olha em frente, ele cola os olhos no chão. Estão agora de frente para o sol olhando o mundo com olhos novos. Trazem na face lições diferentes do passado e diferentes projectos e perspectivas para o futuro. São engraçados, os humanos, por vezes parecem estar vivendo as mesmas experiências e não estão porque as experiências são muito mais aquilo que se passa dentro de cada um do que os acontecimentos cá fora. E dentro de cada um tudo tem o impacto e a amplitude e a perspectiva que cada um lhe dá. Andamos caminhando lado a lado como vêm estes dois saindo do tribunal mas caminhamos caminhos diferentes. Maria de Fátima não vem sorrindo, vem meio-sorrindo que é o meio-sorriso o esgar que fica entre o rosto sério que vem de tratar sérias coisas e o rosto sorridente à vida que se espraia à sua frente. A sua face vem aberta, límpida e o olhar reflecte o brilho do sol. Maria de Fátima lamenta a perda de um homem e uma vida mas sabe que conquistou a liberdade de viver a sua natureza em verdade. Em verdade será! José António traz o mundo às costas. A sua face transmite pesar e o seu corpo dobrado também. Os olhos não reflectem o sol mas somente as nuvens que agora se não vêem mas o habitam por dentro. Este homem tinha uma vida, perdeu-a e ainda não sabe como viver outra. Sobretudo não sabe como viver entre duas vidas. Ergueu os ombros e levantou o olhar e decidiu que em seis meses seria outro homem, vivendo autónomo e livre. Tudo o que deixara de viver por amor a outrém, viverá por amor a si. Não sabe onde, mas quer encontrar as forças, o engenho, quer reagir, sabe que existe a pessoa que o merece e procurá-la-á porque não sabe, não pode e não quer viver sozinho. dedicar-se-á aos filhos, ao trabalho. Terá um hobbie. Ocupará o seu tempo, cuidará da casa e sobretudo, viverá os seus princípios igual a si próprio e sem a nuvem da mentira pairando por perto.


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Estórias ao Acaso: Noite Fria (XXI)

Noite Fria (XXI)

A imprevisibilidade é um traço humano que, por ser o que é, temos intensa dificuldade em perceber. Porque está uma mulher vivendo uma vida vinte anos inteiros dela e depois decide parar de súbito sem aviso? Porque está um homem fazendo o seu trabalho décadas a fio, partilhando sucessos e insucessos com os seus companheiros e, de repente, apanha um avião e vai para o outro lado do mundo começar tudo de novo? Porque está um casal fazendo amor e ela pára e diz não posso continuar e sai correndo para não mais voltar? Porque está um homem sendo honesto uma vida inteira construindo a sua imagem e o seu universo de relações com base nessa atitude e depois desaparece porque foi preso por fraude? Porque está uma mulher amando o seu marido e os seus amantes e vivendo na mentira a sua verdade e, uma noite, chegada a casa e entrada na cama, se farta, despe as máscaras todas e assume-se como é e enfrenta o que vier? Talvez não haja resposta, ou talvez a resposta seja tão simples e óbvia que se torne difícil vislumbrá-la. Sendo a vida tão maravilhosamente diversa e oferecendo tantas oportunidades e caminhos, é natural que indo um homem por um caminho há muito tempo, caminhando em calçado confortável sobre piso bem tratado, com o sol brilhando e a brisa correndo e havendo fontes pela beira da estrada, olhe para o lado e veja um carreiro pedregoso, enfeitado pela sinuosidade vertiginosa das curvas apertadas e precipitadas no vazio e se sinta atraído. Não que vá para melhor. Sabe-o porque está vendo onde vai e vendo está o que o espera. Mas vai para diferente e isso basta-lhe. É abismo mas é atracção. É pior, mas é muito melhor do que passar pela vida e sentir que foi desperdiçada. Este narrador que está com os leitores partilhando o curso desta estória habita num autor que conheceu um homem sábio. Tinha a quarta classe. E um dia disse que mais valia arrependermo-nos dos erros cometidos do que olharmos para trás e arrependermo-nos de não ter vivido. Os erros reparam-se. A vida não se recupera. Que saudades daquela sabedoria tranquila!

Por razões que em breve perceberemos, Maria de Fátima está a mudar o curso da sua existência. Que é o que fazem constantemente todos os humanos. Trocam os caminhos que percorrem uns pelos outros, uns com os outros e vão dando, recebendo, trocando a existência, tentando ficar. Mas não ficam. Partem todos.

José António está atónito. Percebeu em três palavras que todos os seus esforços tinham sido em vão. Percebeu que a sua mulher não era sua, pensou que era de outro. Enganou-se. E desejou, naquele momento desejou com todas as suas forças que atrás daquela revelação cruel houvesse dignidade. Não o esperava mas desejou-o intensamente. Podia tê-lo esperado. O que Maria de Fátima vai dizer-lhe magoá-lo-á como nunca fora magoado antes. Destruirá a esperança ténue que lhe habitava os dias de que o seu universo podia recompor-se. Mas será um discurso frontal, sincero e digno. A verdade, tantas vezes arredada dos seus gestos e das suas palavras, estará presente e será o fio condutor do que tem para dizer-lhe. Esta é uma verdade dura e talvez por isso não possa mais ficar contida nem escondida porque a mentira anda amordaçando uma verdade que é a própria natureza de Maria de Fátima. E a natureza das gentes mascara-se, esconde-se, oculta-se, mas não se amordaça que um dia chega sempre em que irrompe de onde estava e se apresenta ao mundo para ser o que é.
– Mas… minha querida…
– Não me chames isso. Não to mereço e sabe-lo. Minto-te amiúde e sabe-lo também. E não me revelas que sabes. E ganhas vantagem com uma mentira também. Não é mais nem menos grave. É outra mentira. Não me perguntes como sei que sabes porque não tenho resposta para essa pergunta. Não é nada que tenha visto ou ouvido. Simplesmente sei. Sei porque ages de modo diferente. Sei porque ninguém é assim tão bom e tão magnânimo que não esteja sacrificando algo, calando e amordaçando algo. Não tenho provas, não sei como sabes mas sei que sabes e sei que preferia que batesses com as portas, que ralhasses, que me acusasses e reclamasses os teus direitos de marido… Não fazê-lo é como se abdicasses de mim. É como se os teus gestos, ainda que magnânimos, fossem só em nome de ti e dos teus princípios e não me levassem em conta. Não podes anular-me nem viver por mim o que tem de ser vivido por nós. E esse é o teu erro e como temos errado os dois sei que meu erro tem sido deixar-te errar na ilusão de que esta relação pode resultar, de que não está já morta quando morta está há muito.
– Desde quando?!
– Desde sempre. Porque é desde sempre que me não possuis. Eu quero que me tomes nos teus braços e me comandes. Eu quero que me empurres para cama onde cais sobre mim e me tomas quer queira quer não porque no meu íntimo quero-te sempre. Não me entendas mal. Eu amo que me ames. Mas há um excesso no teu respeito, no teu cuidado e no teu desvelo que me faz sentir amada mas não desejada. E uma mulher tem de ser desejada. Eu não sou a tua boneca, eu sou uma mulher inteira e se me queres tens de saber ter-me por inteira!

Ele estava ouvindo uma mulher que não conhecia e estava já pensando que nunca quisera conhecer, que nunca lhe dera uma oportunidade de revelar-se, que presumira e induzira os seus comportamentos, que a aprisionara em vez de a libertar e por isso acaba de perdê-la. E como gostaria de a ter possuído. Como gostaria de ter tido a coragem das loucuras e das regras quebradas. Mas não teve e paga agora o preço dessa cobardia.

Maria de Fátima tinha sido educada mas impetuosa, firme e seca. Não ignorou o olhar amortecido de José António. A forma como se curvou perante as suas palavras e as aceitou carregando, já, o seu peso nas suas costas dobradas. Estava para alongar-se no ímpeto mas percebeu que ele não resistiria muito mais. Viu o seu marido indefeso, culpado na inocência e inverteu as suas intenções. Está agora passando-lhe uma mão fechada em concha pelo rosto como quem acaricia uma criança perdida e oferece-lhe palavras claras e meigas.

– Meu querido José António, como gosto de ti. Como te amo. E como não posso viver contigo. Não és tu Zé Tó. Sou eu, é a minha natureza. Eu vivo a vertigem da carne e da posse. Eu amo no sexo e no corpo. E sinto nesse prazer as emoções todas e aí me realizo mulher e me sinto inteira. Eu não tenho outro homem porque sendo de todos a nenhum pertenço. Meu querido, a minha natureza faz-te sofrer porque me não realizas nem completas e porque sofres as minhas faltas, as minhas ausências e as minhas mentiras. Meu amor, tu tens virtudes extraordinárias que eu não compreendo, que lamentavelmente não valorizo nem sei aproveitar. Tu mereces encontrar quem te valorize, quem te estime, quem te queira… Tu mereces viver em paz e em verdade a tua natureza e eu quero viver em verdade a minha. Tu precisas encontrar a coragem de cortar-me de ti. E se a não encontrares, eu divorcio-te de mim!

José António franziu o sobrolho estranhando a frase como se o seu sentido lhe estivesse escapando ao entendimento mas ela nem o deixou respirar e atalhou:

– Sim, meu amor, à falta de coragem tua, eu divorcio-te de mim! Era o que tu já devias ter feito porque não há sacrifício que valha a tua vida. Tu és um homem bom, o melhor dos maridos e o mais dedicado dos pais. Mas não és…
– Homem para ti!
– Se o quiseres dizer assim… talvez não seja eu mulher para ti. Te não mereça. Só sei que há entre nós um oceano de vidas e vontades e desejos e tendências e visões e loucuras. E nenhum de nós tem como cruzar esse mar de distâncias.

Pela segunda vez na mesma noite José António está espantado. Não consegue hostilizá-la. Não consegue detestá-la. Queria, mas não consegue. Ainda que lhe custe, José António reconhece a coragem e a força da mulher que tem ao pé de si e sabendo, já, que não a quer para sua mulher não pode deixar de sentir-se confortável por ser Maria de Fátima a mãe de seus filhos. E deseja que uma tal verticalidade seja hereditária.

Maria de Fátima olha-o e tem no olhar a ternura e tem no peito a dor de ter perdido um homem de que sentirá falta nas noites sozinhas e frias, nos dias perdidos, nas horas difíceis. Mas não continuará a mentir-se a vida. E agora está fazendo nova festa na sua face. José António coloca-lhe uma mão na cintura e encosta a sua cabeça no peito dela. Abraçam-se ficam assim entregues à sua perdição, à sua solidão, tentado encurtar as distâncias. E quase sem querer, ele olha-a e ia beijá-la na face quando ela se volta para ele e os seus lábios não se tocam mas passam perto uns dos outros, o suficiente para que pressentissem o calor. Agora tocam-se voluntariamente e estão beijando-se devagarinho. E vão fazendo tudo de devagarinho, colocando suavidade em cada gesto de amar. As roupas tombam no chão e ele ama-a e ela deixa-se amar. Quando terminaram os gestos da entrega ele anichou-se nos braços dela e nos cabelos dela e no peito dela e respirou-lhe o corpo sorvendo o ar. Ela acariciou-lhe a nuca e brincou com os cabelos finos dele. Estavam nesta letargia de amar quando ele se levantou nú, foi ao roupeiro, tirou um pijama e uma almofada e abandonou o quarto.

Maria de Fátima e José António tinham-se amado de despedir. Tinham partido um do outro sabendo que não podiam ser um do outro e sabendo também que seriam sempre um do outro. Quando a manhã acordou, saiu para a rua um homem resignado e decidido a tratar da sua vida. A tomar-lhe as rédeas e o comando. Só não sabia como.