Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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Curtas do Metro – Desculpe?

Desculpe?

9 horas. Estação do Metro de Baixa-Chiado à espera de composição para o Cais do Sodré.
Entro numa carruagem razoavelmente composta sem estar atulhada. Atrás de mim entram seis japoneses. Três casais em idade de reforma. Estranhei o facto de estar a acontecer uma desgraça com uma dimensão tremenda no Japão e andarem ali aquelas pessoas alegremente em férias. Claro que, depois, racionalizei: a vida continua.
Os três homens tinham casacos de penas e calçavam sapatilhas com meias brancas. As três mulheres tinham chapéus redondos enterrados na cabeça com uma aba que, à frente, estava dobrada para cima. Os seis tinham máquinas fotográficas ao pescoço. A mim, calhou-me a Nikon. O Metro arrancou, uma das senhoras não se tinha agarrado, caiu para cima de mim mas não chegou a tocar-me porque me enfiou com a longa objectiva da Nikon no bucho.
Olhou para mim com um ar de japonesa comprometida e disse qualquer coisa que soou assim:
– Shin-shoé.
Sorri um sorriso amarelo de quem acabou de levar com uma objectiva no estômago. A senhora encolheu os ombros. Eu também. E pronto, lá aprendi como se diz “desculpe” em japonês. Ou foi isso, ou foi outra coisa qualquer!

jpv


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Histórias do Autocarro 28 – Ai, desculpe, desculpe, desculpe…

Ai, desculpe, desculpe, desculpe…

De todas as histórias que escrevi até agora sobre o Clã do Comboio e o Autocarro 28, esta é a primeira que envolve contacto físico… à farta.

Importa saber entre quem foi o dito contacto. Ora, nem mais nem menos do que entre a minha pessoa e uma passageira… Para ser mais exacto, entre a passageira e eu que, na verdade, fui ampla e generosamente abraçado.

A história não se passou no 28, mas tudo começou com ele. Chegou depois! Em vez de se ir no 28 de Santa Apolónia à Infante Santo, pode apanhar-se um autocarro expresso, assim chamado porque só faz uma paragem, que vai de Santa Apolónia ao Cais do Sodré. Daí à Infante Santo qualquer um serve e há muitos. Em dias de muito movimento pode ser bem útil.

Um dia destes, apanhei o expresso e quando cheguei ao Cais do Sodré apareceu o eléctrico 15. E foi aí que a coisa se deu. Já quase não havia espaço, todos os lugares sentados e em pé estavam ocupados e as pessoas seguiam literalmente enlatadas. Lá encontrei um buraquinho e entrei julgando que era o último. Atrás de mim entrou uma moça que não sei como se conseguiu encaixar, sei, contudo, que entrou, apertou-se entre os que estavam e ficou… sem ter onde se agarrar. Era baixa, cabelo escuro, farto e encaracolado, olho castanho. Tinha um ar simpático e claramente envergonhado. Do pescoço para baixo não sei como era porque não dava para ver além do que estava atrás de mim.

Ora, o eléctrico pára de uma forma um bocadinho mais brusca do que o autocarro e quando o fez, logo na primeira paragem, a moça agarrou-se abraçando-me e como me viu olhar para trás por cima do ombro, disse:
– Ai, desculpe, desculpe, desculpe…
Eu desculpei. É, de resto, uma forma diferente de começar o dia. Um homem acorda, sai à rua e é generosamente abraçado por uma moça bonita. O dia não estava a começar mal, portanto. Ora, importa referir que os eléctricos não só travam, como arrancam. E quando arrancam produzem o mesmo esticão só que no sentido oposto. A moça, de equilíbrio perdido, agarrou-se de novo ao meu tronco, muito agarradinha e lá foi dizendo ruborizada, quase a explodir de vergonha:
– Ai, desculpe, desculpe, desculpe…
A bem dizer, não havia nada a desculpar. Homem que é homem, por vezes faz o serviço público de ajudar uma senhora em dificuldades. E não tem de ser velhinha! Acho que nas contas do Criador as boas acções praticadas com jovens bonitas também qualificam.

No meu caso, o Criador, sendo bom avaliador das humanas acções, deveria ter-me contabilizado na caderneta seis delas e a razão é fácil de perceber. Entre o Cais do Sodré e a Infante Santo há três paragens, Conde Barão, Santos e Cais da Rocha, pelo que a uma travagem e um arranque cada, resultou em seis generosos e intensos abraços sempre seguidos de Ai, desculpe, desculpe, desculpe…

Numa das vezes, ainda tentei pô-la à vontade e de bem com a consciência:
– Deixe lá, não se preocupe, eu vou partir do princípio de que não está a fazer de propósito!
– E não estou. Pode crer que não estou!
Aqui, neste exacto momento, o meu ego desfaleceu um bocadinho, mas logo despertou de novo. É que ela ainda não tinha acabado aquelas palavras e já estava dizendo estas outra vez:
– Ai, desculpe, desculpe, desculpe…
Verifiquei se ainda tinha a carteira e voltei a sorrir.

jpv