Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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Curtas do Metro – Desculpe?

Desculpe?

9 horas. Estação do Metro de Baixa-Chiado à espera de composição para o Cais do Sodré.
Entro numa carruagem razoavelmente composta sem estar atulhada. Atrás de mim entram seis japoneses. Três casais em idade de reforma. Estranhei o facto de estar a acontecer uma desgraça com uma dimensão tremenda no Japão e andarem ali aquelas pessoas alegremente em férias. Claro que, depois, racionalizei: a vida continua.
Os três homens tinham casacos de penas e calçavam sapatilhas com meias brancas. As três mulheres tinham chapéus redondos enterrados na cabeça com uma aba que, à frente, estava dobrada para cima. Os seis tinham máquinas fotográficas ao pescoço. A mim, calhou-me a Nikon. O Metro arrancou, uma das senhoras não se tinha agarrado, caiu para cima de mim mas não chegou a tocar-me porque me enfiou com a longa objectiva da Nikon no bucho.
Olhou para mim com um ar de japonesa comprometida e disse qualquer coisa que soou assim:
– Shin-shoé.
Sorri um sorriso amarelo de quem acabou de levar com uma objectiva no estômago. A senhora encolheu os ombros. Eu também. E pronto, lá aprendi como se diz “desculpe” em japonês. Ou foi isso, ou foi outra coisa qualquer!

jpv


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Curtas do Metro – O Infinito

O Infinito.

Estação dos Restauradores.
Estou a chegar. Vou caminhando devagar ao longo da plataforma. Sigo pelo centro. Nem chegado à linha, nem chegado à parede. Do meu lado direito, do lado da parede, está um casal jovem. Ambos com roupas, atitude e aspecto que indiciam os seus dezassete anos, não mais. Há cabelos desalinhados e piercings de sobrolho e estão carinhosamente de mãos dadas, virados para a linha. Do meu lado esquerdo, junto à linha, vem caminhando na minha direcção uma mulher jovem, muito sensual, muito atraente, muito… tudo, nos seus vinte e picos anos, blusa justa, casaco curto, mini-saia, meias coladas às pernas e sapatos de salto muito alto.
Quase que estivemos todos em paralelo porque quando passei junto do casal, a moça atraente tinha acabado de se cruzar comigo. E foi aí que a coisa se deu.
A rapariga do piercing puxou a mão que tinha solta atrás, tomou balanço, e enfiou um valente estalo de palma aberta na cara do namorado. Ele ficou meio assarapantado com a surpresa, piscou os olhos e mexeu a face como que a recolocar as carnes esbofeteadas no sítio e quando se sentiu recomposto, disse:
– O que é que foi? Estava só a olhar para o infinito!
– Eu dou-te o infinito!
Estas duas falas davam uma tese, mas eu não vou escrevê-la porque a secção se chama “Curtas do Metro”, contudo, sempre acrescento que, mesmo tendo em conta a violência do chapadão, eu, que também ia a olhar para o infinito, acho que aquele infinito vale a finitude de um estalo!


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Curtas do Metro – O Balde

O Balde

Ao longo da plataforma que dá acesso às carruagens e já à beira dela, há uma enorme linha amarela que marca a distância de segurança. Enquanto esperam, as pessoas não devem ultrapassar essa linha.

Normalmente, as pessoas esperam em aglomerados distanciados uns dos outros por alguns metros. Colocam-se onde prevêem que vai parar a porta que lhes interessa. O interesse, no caso do Metro, é diferente do do comboio. Não tem a ver com caras familiares nem rotinas, tem a ver com a proximidade dessa porta em relação à saída na estação de destino. Por exemplo, na estação de Baixa-Chiado, quem entrar e viajar nas últimas carruagens, ao sair no Cais do Sodré, fica mais próximo das escadas e dos controladores de saída, logo, não leva com filas.

Um dia destes, precisamente em Baixa-Chiado, estava um enorme balde branco opaco com uma tampa verde em cima da linha amarela. Aparentemente só, sem ninguém próximo ou a reclamar a sua pertença. As pessoas desviavam-se dele passavam de largo e olhavam umas para as outras a ver se pertencia a alguém mas todas pareciam negar a posse. E foi-se gerando um ambiente de desconfiança. Nas nossas cabeças, entre outras, iam algumas perguntas. De quem era o balde? O que tinha lá dentro? O que estava ali a fazer?
Gerou-se um círculo de gente à volta do balde mas à distância porque toda a gente se foi afastando. E ali estava, sozinho, no vazio, aquilo que fora em tempos um balde de tinta, agora com suspeitoso conteúdo e suspeitosa função.

Quando o Metro chegou, nem de propósito, uma porta parou de frente para o balde. Quem saiu, olhou desconfiado, desviou-se e foi à sua vida. Alguns olharam para trás. Nesse momento, surge do longo banco de pedra ao correr da plataforma uma senhora anafada que trazia na pele as cores e os calores de África, aproximou-se do balde junto à porta deserta, pegou-lhe, olhou para trás, encarou a multidão curiosa e desconfiada e, antes de mergulhar na carruagem, disse em sotaque tropical com ar de gozo, à laia de “já enganei mais um”:
– É peixe!

jpv


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Curtas do Metro – O Significado

[Pensei muito se deveria, ou não, iniciar uma secção sobre as minhas viagens no Metro. Há mais de um mês que faço o percurso Santa Apolónia – 24 de Julho e volta em regime misto. Metade autocarro, metade Metro. Torna-se mais rápido, mais confortável e as mudanças de transporte obrigam-me a fazer exercício físico. Ora, acontece que, no Metro, quase não há histórias e a razão é simples: os percursos são muito rápidos, o tempo em trânsito é muito fugaz para que algo de significativo aconteça. Hoje, contudo, aconteceu uma breve e curta história que merece ser contada e é por isso que inicio esta secção. Chama-se “Curtas” porque as histórias serão forçosamente breves e chama-se “do Metro” por razões óbvias. Se nunca mais acontecer outra, paciência, ficamo-nos por esta. De resto, Mails para a minha Irmã só tem a ganhar com a diversidade de secções e motivos de publicação. Boas leituras e… vamos lá à primeira Curta do Metro.]

O Significado.

Entrei. Havia muita gente, mas não estava “à pinha”. Encostei as costas ao varão e virei-me de frente para o sentido em que o Metro ia avançar. Assim, o varão amparava-me as costas no momento do arranque. No último instante, já as portas estavam a apitar, entrou de salto uma mulher nos seus quarenta, não muito bonita nos meus critérios de beleza, mas bem arranjada. Calças de ganga justas, uma blusa encarnada e, por cima, um colete em pele de coelho ou imitação da dita. Cabelo arranjado. Quando entrou, abriu um desses jornais gratuitos, pôs-se a ler e não se agarrou a nenhum varão vertical, nem horizontal (por cima dos bancos), nem a uma pegadeira do tecto. Ficou de pé de frente para mim. A ler o jornal. Eu estranhei que não se agarrasse, mas pressupus que tivesse bom poder de “fixação”. Pressupus mal.

Quando o Metro arrancou, ela foi projectada pelo impulso para cima de mim, agarrou-se ao varão onde eu tinha as costas dando-me um forte e apertado abraço que me colou as costelas ao varão e me tirou, momentaneamente, o ar. Até aqui, isto é esquisito, mas acontece todos os dias no Metro. O que ela disse a seguir é que me intrigou. De tal forma que tive de responder-lhe.

Enquanto recuava e me soltava do seu apertado abraço, perguntou:
– Acha que este encontrão significa alguma coisa?
– Acho. Significa que tem de se agarrar!

jpv