Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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Curtas do Metro – Nega

Nega

Em casa pediram:
– Se hoje viesses um bocadinho mais cedo, jantávamos todos juntos. O miúdo* está cá, mas logo à noite já vai embora.
– Está bem, vou tentar.

Tentar ir mais cedo é viajar no interregional das 17:18 para estar em casa por volta das 19:15.
Saí do trabalho, cheguei ao Cais do Sodré com tempo, segui para a Baixa/Chiado onde cheguei também com tempo. Só um breve trajecto até Santa Apolónia me separa do comboio e do tal jantar em família. Na estação de Baixa/Chiado, o painel electrónico de letras deslizantes avisa:

“A circulação está interrompida por motivo de avaria em comboio. Tentaremos retomar num período inferior a 15 minutos.”

Podem ter tentado, mas não conseguiram. Cheguei tarde. Foi uma nega do Metro de Lisboa!

jpv

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*A última vez que contei, o miúdo tinha 20 anos!


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Curtas do Metro – Headphones Girl

Headphones Girl

Um dia, sem querer, dei-lhe uma pancada com o braço na cabeça. Ia-lhe desmontando os headphones. Ela reclamou qualquer coisa em inglês e eu pedi-lhe desculpa AQUI e dei-lhe um cartão com o endereço do blogue.
Passou a cumprimentar-me. Entretanto, vá se lá saber por via de que voltas, a vida trocou-nos o passo e nunca mais nos vimos.
Hoje, ia a subir as escadas rolantes da estação do Metro do Cais do Sodré, ela passou por mim vinda de trás, abriu um sorriso imenso e disse cristalina e bem audível:
– Olá!
– Olá para ti também!
E foi à sua vida, a rapariga com os headphones.

jpv


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Curtas do Metro – Assim Não Dá

Assim Não Dá

O Cais do Sodré é uma estação terminal. Querendo isto dizer que qualquer composição que ali chegue não vai mais para a frente porque não há mais para onde ir, logo, a malta tem de obrigatoriamente sair. A história que a seguir se conta só faz sentido à luz desse pressuposto!

8:50 de um dia de trabalho. o Metro chega ao Cais do Sodré. À medida que abranda a marcha, as pessoas dirigem-se para as portas de saída. Quando pára, a maioria dos passageiros está aglomerada junto às portas. Ao contrário do que costuma acontecer, do que é suposto acontecer e do que tem mesmo de acontecer, as portas não abrem. As pessoas fazem um compasso de espera. Olham-se com aquele ar condescendente do género “Neste país funciona tudo mal porque é que isto havia de funcionar bem”. Cria-se uma certa expectativa. E estamos neste silêncio, com as portas fechadas, quando uma voz feminina, doce e suave, anuncia gentilemente no sistema de som da composição:
Cais do Sodré. Estação terminal. Pede-se aos senhores passageiros o favor de saírem do comboio.
Um senhor de cabelo branco e pouca paciência respondeu à sensual gravação como se ela pudesse ouvir:
– Já saía, já…
A menina da gravação respondeu-lhe como se ele não tivesse ouvido bem:
Cais do Sodré. Estação terminal. Pede-se aos senhores passageiros o favor de saírem do comboio.
O homem exasperou. Então estavam a mandá-lo sair e não lhe abriam a porta e voltou a responder à gravação gentil:
-Se me abrires a porta…
Não há mal que sempre dure, nem bem que não se acabe. As portas acabaram por abrir-se e, já íamos na plataforma a caminho das escadas, quando voltámos a ouvir:
Cais do Sodré. Estação terminal. Pede-se aos senhores passageiros o favor de saírem do comboio.
– Se te calasses…

jpv


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Curtas do Metro – 3 em 1

3 em 1

Quem usa o Metro de Lisboa sabe que a verificação de título válido para o transporte, bilhete, passe ou outro é feita através de uns controladores automáticos. A coisa funciona de forma simples e célere. Aproximamo-nos do controlador, colocamos o título sobre o leitor, as portas automáticas abrem-se, nós passamos e elas fecham-se imediatamente nas nossas costas. Por razões de segurança e rapidez, o processo de abertura e fechamento das portas é muito rápido e dá para que passe somente uma pessoa. Por vezes, vê-se um segundo ir à boleia. Coloca-se atrás de um estranho, o dito estranho abre a porta com o seu título e o “pendura” passa juntinho a ele.
O que vi hoje foi um bocadinho mais engenhoso. Três pessoas colocaram-se de frente para a porta automática, o mais encostadas possível a ela e uns aos outros. O último dos três colocou o título no suporte magnético, as portas abriram-se e eles empurraram-se e passaram os três com um só título. Em tempos de crise, é o que se chama uma poupança 3 em 1!

jpv


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Curtas do Metro – A Chegada dos Veraneantes

A Chegada dos Veraneantes

Final de tarde de um dos primeiros dias de Primavera a sério. O sol brilhou todo o dia e ainda está intenso. Pela primeira vez este ano, os termómetros marcaram mais de 25º. Apesar disso, a temperatura geral ainda não subiu muito. Acontece que vivemos num país mediterrânico e estamos talhados para receber o sol. Assim que desponta, mudam-se atitudes, comportamentos e roupas. É todo um folclore.

Ao chegar à estação de Baixa/Chiado vindo do Cais do Sodré, mudo de plataforma para a direcção Santa Apolónia. Enquanto desço as escadas, sinto alguém atrás de mim pelo meu lado direito. Espreito pelo canto do olho e espanto-me ao ver umas pernas de homem nuas. E pareceram-me uns calções de banho, mas desconfiei. Afinal de contas, estávamos numa estação do Metro. Atrasei um bocadinho o passo. O rapaz passou por mim. Chinelos de enfiar no dedo, amarelos. Calções de banho, tipo bermudas, em azul e rosa bebé. Uma T-shirt cinzenta e, ao ombro, uma toalha de banho. Quando chegou à plataforma depois de descer as escadas, dirigiu-se para o longo banco de pedra, estendeu a toalha nele e deitou-se ao comprido como se estivesse a apanhar banhos de sol. A única diferença é que estava no túnel do metro!

Eu sei que a chegada da Primavera muda comportamentos, mas isto foi mais do que um comportamento a mudar, foi o sol primaveril a fritar cérebros, foi o anúncio oficial da chegada dos veraneantes!

jpv


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Curtas do Metro – Mamadu

Mamadu

Como já repararam, a Curta do Metro de hoje não tem a tradicional imagem da composição mas sim este simpático papelinho que me foi gentilmente oferecido à entrada do Metro do Cais do Sodré, assim como quem me salva a vida.

O nome, só por si, é sugestivo. Os erros ortográficos são poucos quando comparado o papelinho com os da concorrência, mas o que efectivamente atrai no Professor Mamadu é a extensa lista de especialidades. O tipo tem de ser um génio. Ele tem de ser o Cristiano Ronaldo da Astrologia e da Vidência. Mais ou menos o mesmo que termos um médico que seja psiquiatra, otorrino, cardiologista, andrologista, sexólogo, psicólogo, conselheiro matrimonial, economista e padre! Com a vantagem de só se pagar no fim dos resultados. Depois, tem uma excelente ideia para acabar com as filas de espera nos nossos hospitais. Nem sei como é que os sucessivos governos ainda não se lembraram disso: a malta é muita? Consulta-se por carta, onde é que está o problema. Professor Mamadu, por e-mail também serve ou isso das novas tecnologias interfere?

Aqui, no Mails para a minha Irmã, não costumamos fazer publicidade porque não somos uma agência dessa arte, contudo, abrimos umas excepções gratuitas porque quem merece, merece! O nome está mesmo a dizer tudo… ma… ma… du!

jpv


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Curtas do Metro – Saciado

Saciado

A moça tinha aí uns dezoito ou dezanove anos. Era alta e esguia, o cabelo pintado de loiro, uma camisola de lã preta, botas da tropa enormes e umas meias pretas que lhe subiam pelas pernas acima até à mini-saia. A mini-saia tinha três características. Era verde exército. Tinha bolsos a toda a volta da cintura a imitar os que se vêem nos fatos dos militares. Era curta. Exígua. Tão curta que mais parecia um cinto. Eu fiquei de pé junto às portas. Ela foi-se sentar. Sentou-se de costas para mim, ao pé da janela, logo, eu não conseguia vê-la, mas não era difícil imaginar que, com uma saia tão curta, sentada, o pano não era suficiente para tapar o que quer que fosse. Por isso, fiz uma dupla aposta comigo mesmo. Apostei que, na próxima estação, um homem ia sentar-se de frente para ela e não ia resistir a contemplar o que a saia curta não tapava. Meu dito, meu feito. Entrou um homem com fato de fazenda azul-escuro e gravata. Tinha um casaco comprido e impermeável por cima do fato. A primeira parte da aposta estava ganha. Agora, só faltava que ele olhasse. Eu sabia que ele ia fazê-lo, só não sabia como ia fazê-lo. Sentou-se. Olhou de relance. Nem parou a vista. Volvidos uns segundos, voltou a olhar de relance. Olhou uma terceira vez, mas, desta vez, demorou-se um pouco mais e deve ter gostado porque olhou uma quarta vez. Demorou-se mais. Ficou com o olhar fixo e, no meu conceito de perceber as coisas, estava a exagerar um bocadinho. Cada vez demorava menos a voltar a olhar e cada vez se demorava mais no olhar. Ainda se saciou mais duas ou três longas vezes.

Saímos os três. Já nem olhei para a moça. Ele tinha-a visto toda! Achei piada porque mudei de Metro e fiquei à espera, sentado no banco de pedra ao longo da plataforma. O Metro do outro lado da linha chegou primeiro e vi a moça entrar através dos vidros da carruagem. Entrou e sentou-se. E adivinhem quem se sentou de frente para ela? Não queriam mais nada, não?! Foi uma senhora qualquer que ainda não tinha entrado nesta história! Mas lá que o homem do fato e do impermeável seguiu saciado… lá isso seguiu!

jpv


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Curtas do Metro – Multiculturalidade de Mãos Dadas

Multiculturalidade de Mãos Dadas

Cada uma das situações que observei hoje, separadamente, não tem nada de extraordinário. O interessante é que todas estas pessoas se cruzaram comigo no mesmo dia e no Metro.

8:55 – Estação do Metro de Baixa/Chiado
Ele já vinha no Metro. Ela entrou comigo. Ele tinha pele preta. De um preto cerrado de onde emergiam as unhas claras que ainda pareciam mais claras por via do contraste com as mãos. Estava agarrado a uma pegadeira do tecto. Ela era muito branca, quase pálida. A carruagem vinha cheia, mas não insuportável, contudo, ela não hesitou, quando chegou a altura de agarrar-se, colocou a sua mão branca em cima da mão preta dele. Quando saíram, separaram-se. Não se conheciam. Tinham dados as mãos por conveniência na segurança.

17:58 – Estação do Metro do Cais do Sodré
Quando cheguei, elas já lá estavam. Uma de fato de treino. A outra com calças de malha e uma camisola de lã às riscas. Estavam lado a lado, de frente para a linha, de mãos dadas. As palmas claras das mãos pretas entregavam-se com generosidade e carinho. Trocaram um beijo discreto nos lábios e desapareceram na composição quando as portas se abriram.

18:12 – Estação do Metro de Baixa/Chiado
Estou sentado no longo banco de pedra de frente para a linha e paralelo a ela. Dois rapazes descem as escadas ao fundo e encaminham-se para aqui. Os dois têm a pele clara. Um deles está com calças de ganga, um casaco de penas e traz botas de montanha. O outro veste um fato-de-treino branco com vivos lilás. O primeiro tem a barba por fazer. O segundo tem a barba feita e o cabelo muito bem penteado. Vêm de mãos dadas. Aproximam-se e sentam-se, encostados e cúmplices, à espera do Metro.

18:18 – Estação do Metro de Santa Apolónia
Vamos em corrida acelerada, galgando degraus da escada que desagua rios de gente junto à linha do comboio e vamos em busca de um interregional que já perdemos mas ainda não sabemos. São os dois brancos. Ele e ela. Os dois têm porte atlético e roupas práticas. E correm ofegantes, subindo os degraus dois a dois, mas nunca se largam. Correm de mãos dadas. Lá em cima vêem, como eu vejo, o interregional a deslizar ao fundo. Nada a fazer. Perdeu-se. Respiram fundo e beijam-se suavemente nos lábios.

Hoje, foi o dia da multiculturalidade ir de mãos dadas nas curtas viagens do Metro de Lisboa.

jpv


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Curtas do Metro – Pequeno-Almoço

Pequeno-Almoço

Um dia destes, de manhã, duas amigas iam sentadas de frente uma para a outra. Uma estaria a meio dos quarenta e a outra caminhava, grisalha, para os cinquenta. Esta, tirou da mala uma bisnaga de creme para amaciar as mãos, espalhou um bocadinho numa mão e depois começou a esfregá-las. Antes de colocar a tampa na bisnaga, disse:
– Mesmo quando ponho isto, tenho sempre as mãos tão ásperas. Queres um bocadinho?
– Não, obrigada. Já tomei o pequeno-almoço!

jpv


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Curtas do Metro – Está Cá?

Está Cá?

Os tempos são o que são. Os costumes mudam com eles. E estes são tempos de tecnologias. Um dia destes, chegou-me por e-mail um daqueles PowerPoints que ninguém abre mas todos conhecem e trazia a história do pai que chama o filho para jantar via e-mail, estando ele no andar de cima da mesma casa. Achei aquilo exagerado, mas depois do que assisti hoje no Metro, resolvi reconsiderar.

Uma estava sentada. Teria aí uns dezassete anos e vestia as roupas e as cores da sua idade. A outra ia de pé com roupas e cores para a mesma idade. A que ia sentada viu a que ia de pé junto à porta. A que ia de pé não viu a que ia sentada. É importante que se esclareça que não distavam uma da outra mais do que dois metros. Estavam a um passo uma da outra!

A que ia sentada sacou do telemóvel, marcou um número e esperou. Tocou uma música metálica e a que ia de pé tirou o seu telemóvel da mala e atendeu:
– Está lá?
– Olá!
– Olá!
– Olha, senta-te aqui ao pé de mim.
A que ia de pé olhou em volta, detectou a outra, olharam-se mutuamente e ela disse num tom de voz que tanto se ouvia dentro como fora da maquineta:
– Ah, estás aí!
– Estou.
– Bom dia.
– Bom dia.
Trocaram um beijinho e depois desligaram os telemóveis.

jpv