Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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Curtas do Metro – Reminiscências do Padre Borga

Reminiscências do Padre Borga

Hoje, quando cheguei ao trabalho por volta das 9h da manhã e fui cumprimentar a minha equipa de sala em sala como sempre faço, ia cantarolando, sem me aperceber, uma cantiga do Padre Borga. Sim, aquele padre do Entroncamento que grava discos e aparece na televisão. Era uma coisa de que não conheço bem a letra, mas cuja melodia fica facilmente no ouvido: Tenho a mão na mão do meu Senhor da Galileia…
E, de repente, parei e perguntei a mim mesmo: Mas porque carga de água é que eu estou a cantarolar uma cantiga do Borga? Em pensamento nunca digo Padre. Tentei consciencializar. E consegui.

Entrei no Metro pouco depois das 8:40. Era o trajecto Baixa/Chiado – Cais do Sodré. A carruagem estava muito cheia junto às portas. Dirigi-me para o meio do corredor. Segurei-me ao varão horizontal de um banco. Ela tinha uma idade respeitosa. Os cinquenta já lá iam, por certo. Talvez até os sessenta. Nunca olhei para ela, mas pelo reflexo do vidro pude reparar que era uma mulher muito bem posta, com poucas rugas. O cabelo um pouco ralo. Ia de pé ao meu lado e segurou-se ao mesmo varão que eu. A sua mão, que não ficou a mais de um dedo de distância da minha, rápido deslizou e se encostou. Senti-lhe o calor. Pelo reflexo do vidro vi que olhava muito para mim. Tive o cuidado de não olhar de volta e fui fugindo com a mão, mas a dela foi-se sempre encostando. Até que cheguei ao fim do varão. A mão dela encostou-se e depois, sabendo que a minha estava encurralada, agarrou-ma completamente. E ficou ali, com a sua mão aberta envolvendo a minha. Eu estava indeciso entre o direito de não querer ser agarrado por uma estranha e o facto de não querer parecer rude ou discriminatório por tirar a minha mão daquele aperto forçado. Olhei de novo pelo reflexo do vidro. Ela continuava a olhar-me. Quando chegámos ao Cais do Sodré, eu saí, ela também. Nunca mais a vi. Era cedo. Estava bem disposto e não me apetecia interpretar aquilo. Veio-me à cabeça a cantiga do Borga em reminiscência longínqua, mas presente e, agora que penso nisso, acho que a cantei desde o Cais do Sodré até à 24 de Julho, elevador acima e depois no corredor onde me surpreendi cantarolando Tenho a mão na mão do meu Senhor da Galileia…

jpv


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Curtas do Metro – Não Mexas Nisso, Pá!

Não Mexas Nisso, Pá!

Estação de Baixa/Chiado, sentido Santa Apolónia.
Mais uma vez saí tarde do trabalho. São mais ou menos 20:30h. Venho a chegar à plataforma. Acabei agora mesmo de descer as escadas que lhe dão acesso. Do outro lado da linha, no sentido Amadora-Este, vinda do cimo das escadas, oiço uma voz feminina que grita de forma bem audível e em tom zangado, muito zangado:
– Não mexas nisso, pá!

Olho para trás no sentido do som e vejo um corpo de homem bem constituído, a rondar os quarenta anos, a voar e a rebolar escada abaixo até se estatelar no patamar intermédio com um estrondo surdo. Com ele rebolou uma mochila e um saco de papel que acabaram junto ao corpo. O homem ficou caído, imóvel. Uma rapariga de mini-saia azul-escura e uma blusa às riscas desce a escada. Ao lado dela vem um rapaz musculado com calças de ganga e uma t-shirt cinzenta. Apressa o passo. Quando passa junto do homem estatelado, o rapaz coloca o dedo em riste, baixa-se e grita-lhe:
– Nunca mais mexes no que não é teu!

Os dois acabaram de descer as escadas tranquilamente. Algumas pessoas rodearam o homem caído. Uma levantou-lhe um braço, mas ele não reagiu. O meu Metro chegou. Entrei, espreitei pelo vidro e vi o homem levantar-se amparado à parede. Parecia apontar no sentido do casal. O meu Metro arrancou. Troquei umas palavras de circunstância com uma senhora, mas nenhum de nós sabia mais do que isto. Gritos, um corpo caindo escada abaixo, mais gritos.

jpv


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Curtas do Metro – Incógnita

Incógnita

Entre o Cais do Sodré e a Baixa/Chiado pouco depois das 18h.
Um casal em pé, lado a lado, encostado às costas de um banco do Metro. São ambos altos. Ele é um pouco obeso, calças de ganga, pólo encarnado, casaco de ganga, sapatos de vela castanhos. Ar abatido, barba por fazer, óculos redondos daqueles sem aro à volta da lente. Ela é um pouco obesa, chinelos de enfiar no dedo, calças leves, de linho verde, blusa preta colada às curvas cheiinhas da barriga e por cima um casaquinho do mesmo linho verde das calças.

O presente texto foi escrito por via das poucas, mas perturbantes palavras que trocaram um com o outro. Começou ela:
– Vais para casa?
– Não.
– Então?
– Oh, o que é que eu vou fazer para casa? Não está lá ninguém à minha espera! E tu?
– Também não.
– Então?
– A mesma coisa!
Fez-se um silêncio longo até que ela o quebrou:
– Olha lá…
– Sim…
– Porque é que a gente se divorciou?
– Sei lá!

O Metro parou. Tive de sair e não pude ouvir mais. Nem era preciso, a incógnita estava lançada.

jpv


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Curtas do Metro – Lapsus Linguae

Lapsus Linguae

8:4o da manhã. Esperamos o Metro para o Cais do Sodré. Chega. Ao entrarmos, o baralho de gente que esperava entra e distribui-se. Como estamos todos à procura de um espaço onde possamos seguir de pé, nem olhamos uns para os outros. Só quando estamos lá dentro é que olhamos uns para os outros. Desta vez calhou-me um 13 no totobola, um poker de mão. Entro na carruagem, dirijo-me à porta oposta que está fechada, sou apertado pela multidão, levanto a cabeça e vejo quem está em volta. À minha direita uma moça muito interessante, formas muito bem definidas, pernas altas e redondas e peito muito generoso. Tem meias de vidro, calções brancos curtos, um casaco de cabedal lilás e o cabelo castanho encaracolado e com madeixas loiras. Pintou as unhas de azul. À minha esquerda uma moça um pouco mais magra mas cujas formas são igualmente perfeitas. Calças de sarja pretas, blusa com decote em vê às listas horizontais verdes clarinhas e brancas, sapatos lisos, cabelo preto liso e compriso, óculos rectangulares muito sensuais e um olhar castanho e doce. À minha frente a mais velha e generosa das três. Túnica branca colada aos seios redondos e generosos, calças de malha pretas coladas ao corpo, cabelo escuro e olhos muito bem definidos por um lápis firme. Era a mais velha, mas não era a menos interessante. E ali fico eu, entalado entre a visão do paraíso e a tentação do inferno. Tento desviar o olhar, mas não é fácil. Para onde quer que olhe há uma mulher atraente. A curta viagem chega ao fim. As portas abrem-se. Todos saímos. Ao sairmos, um homem pequenino, anafadinho, enfiado numas calças de ganga, numa camisa às riscas azuis e brancas fininhas e num casaco de cabedal coçado pelo tempo e pelo uso, vira-se para mim e diz:

– Ó chefe, hã, você ia bem tóreado!
– Toureado? Quer dizer torneado, rodeado…
– Ó isso!

jpv


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Curtas do Metro – Perdida

Perdida

Esta “Curta” esteve para chamar-se “Capuchinho Vermelho”. Acontece que a pessoa sobre quem vou escrever, sendo absolutamente igual e invocativa do Capuchinho Vermelho, não tem nada de Capuchinho Vermelho. Eu sei, parece confuso. Mas não é. O Capuchinho Vermelho era uma jovem com um vestidinho, um capuchinho vermelho, um andar saltitante, uma cestinha na mão e um ar inocente e perdido.

A pessoa que encontrei, de Capuchinho Vermelho, só tinha o ar inocente e perdido que, a avaliar pela invocação que logo se formou na minha cabeça, devem ser os aspectos mais importantes daquela personagem. Vejamos. Tinha os olhos azuis e cintilantes, uma tez muito alva, vestia um vestidinho cor-de-rosa com folhos pelo joelho e os mesmo folhos por cima do peito onde o vestido terminava pois era, como dizem as senhoras, um “cai-cai”. Não tinha uma capa com capuz, mas um casaquinho branco de malha. Usava umas pérolas singelas nas orelhas. O seu andar saltitante não era porque fosse aos saltinhos, mas porque tinha umas sandálias muito altas que lhe davam um caminhar desequilibrado. E transportava, de facto, algo na mão, mas não era uma cestinha para levar à avozinha. Era uma mala preta com rodinhas dessas que se arrojam pelo chão. Ou seja, o meu Capuchinho Vermelho tinha tudo para o ser e tudo lhe faltava para que o fosse. Contudo, tinha o essencial. Um olhar admirado e perdido e um ar cândido e inocente.

Claro que, assim que a vi na estação de Baixa/Chiado, quis escrever sobre ela, mas, durante toda a viagem até Santa Apolónia, ela não me deu nenhuma razão para que o fizesse e, como os leitores sabem, as “Curtas do Metro” são histórias, não são meras descrições. E foi então que toda a minha sorte, o meu positivismo e a minha protecção divina funcionaram. Aconteceu algo de absolutamente extraordinário. O Metro parou em Santa Apolónia e como se trata de uma estação terminal toda a gente sai. Sai porque não há mais e sai porque é obrigatório sair do comboio nas estações terminais. Mas ela ficou sentada como que a tentar perceber porque é que todos saíam, depois ficou olhando o desenho das linhas como que à procura de uma resposta. E não saía. Eu percebi que ia haver coisa e atrasei um bocadinho o passo. Ela lá se resolveu a sair. Foi a última. E cá fora continuou a olhar para cima e para as paredes com ar inocente e perdido. Quase não andava. Eu esperei e perguntei:
– Precisa de ajuda?
– Sim, por favor. Estamos onde?
– Em Santa Apolónia.
– Mas isto não é a linha azul?
– É.
E a frase que disse a seguir justificou este texto. Foi fantasticamente reveladora. Ela era mesmo o Capuchinho Vermelho! Sabem o que disse? Disse-me para onde queria ir:
– Ah! Eu queria ir para o Jardim Zoológico.
Eu ainda lhe respondi:
– Pois. É na linha azul, mas na outra ponta da linha!
Saquei do mapa do Metro e mostrei-lhe que ela tinha de andar sete paragens na direcção oposta.

Ela agradeceu e desapareceu dentro da carruagem com a cestinha, o andar incerto, o ar cândido e inocente e o olhar perdido a caminho do Lobo Mau! Ou não!

jpv


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Curtas do Metro – "Sandui-Chita"

“Sandui-Chita”

Não é bem uma curta do Metro. É mais à porta do Metro.
E também não é uma história. É só um apontamento.

Na estação do Cais do Sodré há um pequeno bar, daqueles feitos em materiais pré-fabricados, fica ali na confluência da saída do comboio, do barco e das escadas rolantes do Metro. Conclusão: tem muito boa frequência. Servem cafés, meias-de-leite, galões, bolos, sandes, croissans, chás, enfim, pequenos-almoços e refeições ligeiras. Chama-se “Sandui-Chita“.

Em Lisboa deve haver centenas de pequenos bares destes o que não justifica esta curta do Metro. O que a justifica então? Dois aspectos. A eficiência das senhoras que servem e a extrema simpatia do senhor que está na caixa. Ele é daquelas pessoas que marca a diferença porque faz das pequenas coisas, coisas especiais. Uma pessoa chega ali pouco depois das 8:30 da manhã, pede um café duplo e uma merenda, ele tem dúzias de merendas num tabuleiro, todas quentinhas porque acabadas de fazer, mas é bem capaz de dizer “Sai um café duplo e uma merenda quentinha bem especial para este senhor que está cheio de fome!” E aquela merenda deixa de ser mais uma em vinte e passa a ser a especial merenda quentinha. Tenho reparado que, das pessoas de circunstância, ele vai observando os hábitos de consumo das que lá vão passando mais vezes e quando faz os pedidos invoca a particularidade de cada um. Ora, no meio da turba de milhares de pessoas que chegam, que partem, que passam, nós deixamos de ser mais um e passamos a ser aquele, o tal, o da merenda especial.

Esta atenção e este cuidado merecem uma referência neste cantinho. Porquê? Óbvio. Porque vivemos tempos de impessoalidade e agressividade e no “Sandui-Chita” somos todos especiais e com especial simpatia tratados! Com merendas quentinhas!

jpv


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Curtas do Metro – Separados

Separados

18:01h. Estação do Cais do Sodré na direcção Santa Apolónia.
O Metro está parado fazendo um compasso de espera antes de se pôr em marcha. Está cheio. Não cabe nem mais uma pessoa. Ou melhor, vai caber mais uma. Duas é que não. Chegou um jovem casal de namorados, a rondar os 17, 18 anos. Ele entra, o alarme de fechamento de portas soa, ela não entra, ele estende-lhe a mão, ela estende-lhe a mão, depois encolhe-a, ela não entra, seria difícil, mas não impossível, ele não sai.

E é isto que eu não percebo. Isto e o que se passou a seguir.

Ela acenou-lhe e fez uma cara triste. Ele acenou-lhe e riu-se. Mas, afinal, o tipo estava a rir-se de quê?

jpv


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Curtas do Metro – Passa! Passa!

Passa! Passa!

Fim de dia. Chego a Santa Apolónia. Saio do Metro. Não vejo ninguém conhecido nem nada interessante. Quando me aproximo do controlador magnético para passar o meu cartão, quem é que está mesmo à minha frente nos seus característicos trajes negros? A Mulher Vampiro!

O cartão dela não quer abrir a porta. Coloco-me atrás dela, passo o meu cartão, a porta abre e eu digo:
– Passa! Passa!

Ela passou e eu logo atrás dela. Os dois duma vez. Já do outro lado, rimos a bom rir. Tinha sido o nosso pecado, a nossa pequena irreverência do quotidiano:
– Olhe lá, sabe que uma vez por mês é preciso pagar o passe?
– Engraçadinho!

jpv


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Curtas do Metro – The F Word

The F Word

Cais do Sodré. Caminhamos para os controladores. Atrás de mim vêm duas vozes novas, bem dispostas e bem falantes, falando de compras e tratando-se por “amiga”. Passam-me. Vão com calções brancos de sarja, camisolas de cavas, uma castanha e outra verde-escuro. Usam sandálias. Têm um aspecto elegante e polido e, na minha avaliação, educado.

Ao passar pelo controlador, ultrapasso-as. Depois do controlador volto a ouvi-las atrás de mim. Estamos ao cimo das escadas. O Metro está lá em baixo e elas dizem:
– Corre, corre, ainda o apanhamos.
– Achas? Vamos lá!

Os alarmes de fecho de portas soam. É a partida. Para qualquer um de nós é impossível apanhá-lo e elas dizem uma a seguir à outra:
– F***-se!
– Que se F**a!

Moral da história: erros de avaliação!

jpv


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Curtas do Metro – Tentativa de Assassinato por Esmagamento

Tentativa de Assassinato por Esmagamento

Manhã muito bem disposta. Conversa animada entre a saída do comboio e a entrada no Metro. Vou eu, o RB e a Mulher Vampiro*. De repente, quando nada o fazia prever, sem motivo aparente, a Mulher Vampiro atira-se violentamente para cima de um simpático e incauto passageiro que fica esmagado entre a figura negra e sólida da Mulher Vampiro e as costas do banco. Por momentos, pensei que ia mordê-lo no pescoço!
Ela reequilibrou-se como pôde e nós, como bons cavalheiros, pedimos desculpa ao senhor em nome dela. Fizemos ali um bocado de conversa a ver se ele percebia que ela não era má pessoa. enfim, teve um momento de excesso… ou de fraqueza! Viro-me para o RB e digo:
– Achas que foi de propósito?
– Não. Desequilibrou-se com o arranque do Metro.
– Ah, pois. És capaz de ter razão!

Demos um cartão do blogue ao passageiro que, quando saiu, levava um ar bem disposto. Ou isso, ou estava aliviado por se ver livre da fúria da Mulher Vampiro!

jpv

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*Para quem a não conhece aqui das Curtas do Metro, trata-se de uma personagem do Clã do Comboio. Para a conhecer melhor, clique aqui.