Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


Deixe um comentário

Pedido de Desculpas

Contra o que é habitual, a crónica que publiquei ontem, independentemente do valor que possa ter, tinha demasiadas gralhas. E é por isso que venho pedir-vos desculpa.

A verdade é que sei a apetência que os leitores têm demonstrado por estas crónicas e sabia também que, por motivos de trabalho, já há alguns dias que não publicava nada. Logo, em vez das três revisões habituais, só fiz uma, para além de que fiz a publicação já muito tarde e depois de um dia muito intenso no trabalho. Ora, o resultado foi o que se viu.


Entretanto está tudo corrigido, claro.


Obrigado.

jpv


7 comentários

Crónicas de África – Outras Coisas do Quotidiano

Outras Coisas do Quotidiano

Maputo, 27 de outubro de 2012

É natural que, quando chegamos a um local desconhecido, seja de visita, seja em trabalho, tenhamos um olhar mais luminoso e complacente por não termos experimentado as rotinas e as agruras do mesmo. Eu penso que tenho, nos dias que correm, esse olhar em relação a Maputo. Parece-me, contudo, que não é uma perspetiva menos válida. É a perspetiva do momento e, por isso mesmo, para que se rememore mais adiante na linha dos dias passados, importa registá-la aqui.

Miúdos na Rua
Há nesta cidade um delicioso pormenor de que me não lembrava de assistir desde criança. Miúdos na rua. Magotes deles correndo e brincando e empurrando-se e jogando a bola na estrada, pelas ruas menos movimentadas, e em brincadeiras entusiasmadas pelos quintais, nas traseiras das casas. Não me refiro a crianças na escola, ou em família, ou numa festa de um amigo. Falo daquelas tardes infindáveis em que o tempo era todo nosso para o quisessemos e o que queríamos era brincar e crescer juntos. Essa liberdade primeira e genuína perde-se com o tempo e, em algumas sociedades, morre sufocada em regras. Em Maputo há uma música vespertina que nos embala à hora do lanche: os miúdos em correrias e gritarias entusiasmadas pela brincadeira. Sem esquemas de segurança, nem pessoas a guardá-los, nem escolas a prendê-los para serem livres. Só miúdos. Na rua.

O Chão
Um outro aspeto muito interessante que, curiosamente, me transporta também para a minha meninice, é a relação dos moçambicanos com o chão. É curioso que, em Portugal, e não só, há uma estratégia pedagógica no ensino pré-escolar a que convencionou chamar-se “tapete”. E, nesse momento, educadoras e crianças estão ao mesmo nível. O do chão. Mas é só aí. No resto do nosso quotidiano, parecemos querer erguer-nos acima do chão. Ora, os moçambicanos não parecem ter essa veleidade e interiorizaram que o chão é mais do que a casa dos nossos pés. É a casa da nossa vida. Sentam-se no chão para venderem o que tiverem para vender, sentam-se no chão esperando uns pelos outros, sentam-se no chão para descansar, e, no merecido intervalo do almoço, deitam-se no chão. É comum ver homens deitados no chão junto à sua venda ou no intervalo do trabalho ou no fim de um excesso de cerveja. Não se escondem. Num relvado, num passeio, às vezes com os pés na estrada, outras vezes com o corpo semi-coberto por um carro estacionado, entregam-no à terra, ao cimento, à pedra, à relva, à erva, a qualquer que seja a cobertura e esperam, descansam, dormem… Talvez seja uma vida chã. Talvez seja a consciência intuída de que o chão é o céu dos homens. Talvez seja uma sábia perceção de que é esse o nosso lugar. Não sei exatamente o que é. Mas sei que se sentem à vontade no chão.

Armas na Cidade
Viver em Maputo é também aprendermos a interiorizar a presença das armas. A cidade está repleta de armas de fogo pesadas. Nada daquelas pistolinhas de trazer à cintura como usam as forças de segurança em Portugal. Na capital moçambicana, seja um militar, seja um polícia municipal, seja um segurança de um banco, ou mesmo de um hipermercado, os agentes da autoridade e da segurança estão sempre armados com armas de canos serrados ou com espingardas de cano longo ou ainda com metralhadoras. Ao princípio estranhamos um arsenal tão pesado a cada esquina, a cada porta, depois vamo-nos habituando a conviver com ele e já não estranhamos quando alguém nos pede os documentos e traz ao colo uma arma pesada, capaz de estragos significativos.

Modernices
Já aqui tenho contado, a propósito das assimetrias desta cidade, alguns pormenores de tecnologia avançada a ser utilizada em Maputo. Um dos bancos locais está agora a lançar um produto muito interessante. Chama-se Conta Móvel e consiste na substituição do cartão de débito pelo telemóvel. Uma vez feita a ativação da Conta Móvel pela primeira vez, pode transferir-se dinheiro para o telemóvel. Depois, numa máquina ATM, insere-se o número do dito telemóvel, o PIN de segurança e já está, pode levantar-se o dinheirinho. Dá jeito para quando nos esquecemos do cartão e para ter o dinheiro distribuído por diversos meios de acesso, não vá o diabo tecê-las! Modernices…

IDE

Hoje foi o dia do IDE. Trata-se de uma festa religiosa muçulmana que assinala, salvo erro, o fim da peregrinação a Meca. É um momento de alegria e agradecimento. O interessante é que o IDE é universal, ou seja, é celebrado por muçulmanos em todo o mundo. Em Portugal, naturalmente, quase não dou por esta celebração, mas estas são terras com cheiro a Oriente e com uma forte multiculturalidade. Tão forte, que foi decretada, pelo Governo, tolerância de ponto para os trabalhadores muçulmanos. E, também na escola, se sentiu a ausência de uma parte da nossa comunidade de aprendentes, os alunos que estavam celebrando o IDE.


O quotidiano, em Maputo, é diferente, mas não é diferente por uma grande razão, é diferente por todas estas que se juntam e fazem da vida aqui um passar do tempo bailado ao som das brincadeiras dos miúdos.
jpv


8 comentários

Crónicas de África – Mais Coisas do Quotidiano

Mais Coisas do Quotidiano

Maputo, 22 de outubro de 2012

Hei de
Eu não sei como é que os moçambicanos escrevem a terceira pessoa do singular do presente do indicativo do verbo haver, se hei-de, à moda antiga, se hei de, à modinha, mas sei que usam esta expressão com muita frequência e significados diferentes consoante o verbo que lhe juntarem. É impossível passar um dia em Maputo sem nos cruzarmos com o hei de. Por exemplo, se perguntarmos a alguém, Fazes-me isso? Ele pode responder hei de fazer ou hei de ver. Se disser hei de fazer, isso quer dizer que já decidiu fazer, só não se sabe quando fará. Se responder hei de ver, isso quer dizer que ele ainda há de decidir se vai fazer e só depois há de fazer. Da mesma forma, se perguntarmos a alguém, Mas vens ou não vens?, ele pode responder hei de vir ou hei de chegar. Hei de chegar é bom sinal, quer dizer que está a caminho, vai demorar cerca de uma hora, sejamos otimistas. Se ele disser hei de vir, a coisa é complicada, ele sabe que virá, mas não tem a certeza quando. Nestes casos, pode-se esperar duas a quatro horas, um dia, ou várias semanas. Mas virá! Um canalizador disse-me há três semanas hei de vir e ainda não veio. Parece que vem hoje!

Estou a chegar
Os moçambicanos são deliciosamente perifrásticos. É quase como se dizer um sim ou um não diretos fosse demasiado brusco e pudesse chocar ou ofender o interlocutor. Assim, se nos disserem, Assim não há de ser, quer dizer que não vai acontecer, façam-se os esforços que se fizerem, o solicitado está para além da capacidade de realização de quem disse a frase. O pior mesmo é quando aparece o verbo estar como auxiliar. Por exemplo, se alguém nos disser, Estou a chegar, que é para mim a mais emblemática das expressões que usam o verbo estar como auxiliar, isso não quer dizer que ele está a chegar, isso só quer dizer que o processo da chegada dele está em curso. Ora, daí até o vermos podem distar medidas de tempo diversas, minutos, horas, dias, semanas… Outro exemplo interessante é o Estou a ir lá. Se pedimos a alguém um serviço que implica ir a algum lado e ele diz essa frase, isso não quer dizer que ele já está a caminho, só quer dizer que decidiu ir. Quando irá é outra conversa… Quando é que se deve ter medo? É simples, se ouvirem alguém dizer-vos a frase Tem problema, fujam e procurem outra solução. Vocês não querem entrar nesse problema e a razão é simples: não tem saída!

Bom Descanso
Esta é uma frase deliciosa. Em Moçambique preza-se muito o descanso, não só o próprio como o dos outros. Assim, no final de um dia ou de uma semana, ninguém diz Até amanhã porque isso é estar a invocar o dia seguinte passando por cima de um momento crucial, o descanso. O mesmo com o final de semana. Ouve-se dizer Bom fim-de-semana, mas é muito mais comum e agradável ouvir dizer Bom Descanso! As pessoas sabem que vamos descansar e querem que isso corra bem. 

Dar sinal
Não é avançar com uma porção de dinheiro para garantir um serviço! Se alguém nos diz, Vou-te dar sinal, quer dizer que, à hora combinada, vai-te dar um toque de telemóvel e desligar para tu ligares de volta. Isto quer dizer que ele não tem saldo ou decidiu que tu tens mais saldo do que ele!

Dá-me crédito
Esta é uma expressão muito engraçada porque não quer dizer nada do que a frase expressa. Em primeiro lugar, nesta frase o dá-me não está a pedir que o outro dê algo, mas sim que venda. E o crédito não é confiança, nem é bancário, é somente uns minutos de telefone. Assim, quando se quer comprar uns minutos de telefone, abordamos o vendedor de rua, devidamente identificado por um colete da companhia telefónica de que somos clientes, e dizemos, Dá-me crédito, e ele vende-nos uma raspadinha com n meticais de chamadas!

Humidade
Para além do calor, que é uma constante, a humidade relativa do ar é sempre muito elevada em Maputo. Ontem estiveram cerca de 30ºc, mas a humidade do ar esteve nos 98%, ou seja, passei o dia inteiro a suar mesmo quando não estava a fazer nada. A pele fica hidratada e escorregadia como se tivessemos um creme gordo posto. O exmplo mais engraçado que posso dar-vos acerca da humidade do ar em Maputo tem a ver com o papel da impressora. Seja dia de sol ou chuva o papel está sempre húmido ao tato e se o deixamos no tabuleiro da impressora fica deformado porque, devido à humidade, não se tem direito.

Autorrádio
Agora escreve-se assim. O meu, como já referi antes, vinha com o carro que veio do Japão por mão de um paquistanês que só falava inglês e mo vendeu, a mim, que nasci em África e sou português. Ora, os japoneses não querem saber disso para nada e mandaram o livro de instruções em japonês. Isso e o painel do autorrádio que, como se vê pela imagem, é muito fácil de utilizar. Tem lá tudo escrito! 

E por hoje é tudo. Se estiverem a gostar destas crónicas, não se preocupem, hei de fazer mais!

———————–jpv———————–

Painel do meu autorrádio: Está simples de ver!


8 comentários

Crónicas de África – Rápido e Intenso

Rápido e Intenso

Maputo, 19 de outubro de 2012

Quando vos escrevo, ainda se veem os relâmpagos ao longe, já envergonhados, e os trovões são só um sobressalto distante. Chove pouco. Nem parece que há poucos minutos esteve aqui o inferno.

O dia foi cansativo, muito trabalhos, algumas mudanças para gerir e o nosso corpo vinha pedindo tréguas, a cabeça cansada e muita fome. A Paula sugeriu um franguinho no Piri-Piri. Bora lá! Quando saímos do carro, a noite estava quente, um calor noturno a rondar os 30º. E havia no ar uma humidade que se sentia na pele. O vento não se mostrava. Era, por isso, uma noite calma, quente e húmida. Ficámos na esplanada e quando já estávamos a acabar a refeição, levantou-se um vento forte e repentino de fazer voar os guardanapos de papel, levantar as toalhas das mesas, as saias das senhoras que se seguravam a elas como podiam, os cabelos desalinhados, folhas pelo ar e súbito uma bátega de água forte e certa. Pagámos e fugimos para casa. Assim que chegámos, o céu rebentou num clamor de assustar. Os relâmpagos eram tantos que não acabavam uns para logo se verem os flashes dos outros, nem eram a seguir uns aos outros, eram em simultâneo. E, sobretudo, eram de uma claridade intensa e muito próxima. Os trovões eram mais espaçados, mas de uma força assustadora, tudo parecia tremer e alguns quase faziam acreditar que o céu se estava a rasgar, tal a a intensidade e a proximidade do som. A chuva continuou certa e encheu as ruas. Subiu do chão um profundo e inconfundível cheiro a terra molhada. E tudo isto demorou meia hora. Agora, restam só resquícios longínquos do poder que há pouco se mostrou sobre Maputo. Rápido e intenso. Durante a tempestade o R. ligou-me. Também está a chover aí? Sim, bastante, isto é forte! Forte? Ainda não viste forte. Isto é médio!

———————-jpv———————-


5 comentários

Crónicas de África – Coisas do Quotidiano

Coisas do Quotidiano

Maputo, 16 de outubro de 2012

Esta semana fui, pela primeira vez, assaltado em Maputo. Quer dizer, eu não fui assaltado. Enfim, não sei bem. Um roubo, acho, é quando a gente não vê porque não está presente, 
isso também pode ser um furto. Um assalto é quando a gente vê mas, mesmo assim, tem de entregar o bem que vai ser roubado. Eu explico. Eu estava lá e estava a olhar, mas não vi. Ninguém falou comigo. Logo, acho que isto foi um misto de roubo e assalto. A verdade é que um arrumador ofereceu-me um lugar de estacionamento e eu não aceitei porque quis ficar mais perto do restaurante onde ia almoçar. E fiquei. Fiquei tão perto que, da esplanada onde estava, via bem o carro. Ele lá estava a brilhar de lavadinho. E fui sempre olhando, sempre atento sem lhe tirar o olho de cima. Quando cheguei ao carro, para meu espanto, o espelho retrovisor do lado direito, aquele que estava mesmo de frente para mim, tinha… voado! Devia ter aceitado a oferta do arrumador! Perguntei onde poderia arranjar um. Disseram-me para ir ao mercado da Estrela. Ora, aqui, as pessoas têm o hábito de gravar a matrícula dos carros nas diversas peças, espelhos, faróis da frente, luzes traseiras, vidros das portas e tudo o mais que lhes vem à cabeça. No caso daqueles piscas laterais muito pequeninos, como não há muito espaço para gravar a matrícula, colocam umas tiras de metal por cima deles. Como é que agarram as tiras de metal? Simples. Furam a chapa do carro e enfiam-lhe com dois rebites… É lindo de morrer, ver um tipo que acabou de comprar um carro, voluntariamente mandá-lo furar… hahahaha… eu adoro esta cidade. Como precisava de um espelho e queria gravar umas partes do carro, lá fui ao mercado da Estrela. São duas ruas repletas de bancadas com acessórios automóveis, chaves de rodas, macacos, limpa-pára-brisas, triângulos, capôts, jantes, pneus, pára-choques, emblemas, espelhos, vidros, portas, tudo, tudo, rigorosamente tudo, vendido no meio da rua. Além dos acessórios, também há serviços, por exemplo, lavagem, polimento da chapa, dos faróis, enfim, é um não mais acabar de oferta. Assim que cheguei, mesmo antes de parar o carro, começaram a fazer-me sinais e a oferecer-me coisas. Quando parei, o carro foi cercado por mais de dez rapazes a oferecerem todo o tipo de acessórios e serviços. Saí, disse do que andava à procura e em cinco minutos apareceu um espelho do modelo que eu queria e aplicaram-no logo no sítio, perguntei se gravavam, claro que sim, pedi para gravarem a matrícula nos espelhos e nos faróis da frente e para porem umas tiras de metal nos piscas laterais. A primeira coisa que me disseram quando fechámos negócio foi, Abra aí o capôt! Eu estranhei. Por que raio é que eles querem que eu abra o capôt. E perguntei, Olha lá, para que é que queres o capôt aberto? É a bateria! Nem mais nem ontem, além de pagar o serviço, ainda forneci a energia. As máquinas de gravar que eles usam, assim como os berbequins, são elétricas, eles cortam as fichas dessas ferramentas, colocam uns bornes de agarrar nas baterias e o cliente fornece a energia. Mai nada! Quando o tipo acabou de gravar disse, com um sorriso nos lábios, Já se acabou o pão do ladrão! Estive à conversa com eles e ainda que admita que o ambiente, para quem ali chega, possa ser um pouco intimidador, a verdade é que não passam de uns rapazotes simpáticos e bem dispostos à espera de fazer algum negócio e é possível trocar umas gargalhadas com eles, aliás, em Maputo, a gargalhada está barata, toda a gente tem várias para dar! Um colega disse-me, Foste à Estrela? Não é qualquer um! Mas eu gostei, até estou a pensar lá voltar porque preciso de um macaco em condições, isso e umas escovas para o limpa-pára-brisas.

Outro fenómeno interessante foi a reação das pessoas à chuva. Quando chove, Maputo fica repleta de pequenas e grandes lagoas em todas as ruas e avenidas porque o sistema de escoamento está a precisar de ser revisto. Mas os habitantes não se atrapalham nada, como a água é quente e vai secar daí a nada, em vez de se protegerem muito, desprotegem-se! Pois, puxam as saias, elas, dobram as calças, eles, e enfiam uns chinelos. Depois… depois andam pelas ruas como se a água lá não estivesse. E não vi ninguém a morrer com um ataque de pés molhados!

Outro fenómeno interessante teve a ver com o serviço de costura. Fomos a uma enorme loja de tecidos que, assinale-se, são um dos poucos produtos mais baratos do que em Portugal, e a oferta era tremenda. Corredores e corredores com rolos de tecido e dezenas de empregados disponíveis para ajudar. Ajudar e fazer negócio! Ah pois é! Durante o processo de escolha e compra dos tecidos é comum os empregados oferecerem, eles próprios, os serviços de costura. O E. fez isso connosco. Precisa de coser? Eu coso para si. Tu ou é um serviço aqui da casa? A casa não tem esse serviço, quem cose sou eu mesmo. Tu ou a tua mãe? Ele riu-se com vontade e respondeu, Eu mesmo! E pronto. Comprámos o tecido e ele fez os cortinados. O E. não tem mais de vinte anos. O interessante é que ele próprio comprou aos colegas, em nosso nome, os acessórios, sei lá, ganchos e coisas do género. Ou seja, a casa não se importa que os empregados façam negócio paralelo porque é da maneira que vende mais! Tenho ou não tenho razão para estar a adorar esta terra? É tudo tão simples! Tão verdadeiro.

O trânsito em Maputo é caótico, mas há muito poucos acidentes. É raro ver-se um. A condução é muito instintiva, passa quem passa, às vezes passa quem chega, enfim, tudo muito a olho e tudo muito por intuição. Andava com isto na cabeça a tentar perceber o porquê quando, numa conversa de amigos, se me fez luz. Aqui, como em Portugal, é obrigatório ter seguro, mas a polícia raramente pergunta por ele. E a razão é simples, a polícia quer saber se estamos bem e, eventualmente, dos documentos do carro e dos selos dos impostos, aqui paga-se imposto de circulação e imposto de radiofonia, mas não se interessa muito pelo seguro porque isso é uma coisa que se ativa quando se precisa. E quando é que se precisa? Quando se tem um acidente! Ora, é um facto comummente conhecido que, em Maputo, há uma percentagem muito significativa de veículos que não têm seguro. Isto, só por si, torna a condução mais cautelosa. Obviamente que quem não tem seguro não se quer ver envolvido num acidente!

Recentemente, deparei-me com um exemplo da alegria e da boa disposição que caraterizam este povo. Num supermercado, há um sistema interno de “competição” entre as diversas equipas de funcionários. Aqueles que colecionarem mais pedrinhas azuis que o supermercado disponibiliza aos clientes têm prémios de simpatia no atendimento. Então, eles têm a liberdade de solicitar aos clientes que se sentiram simpaticamente atendidos, uma pedrinha para a coleção. Os do bar tinham escrito uma coisa do tipo, “Caro Cliente, se ficar maravilhado pelo atendimento excepcionalmente excelente…” enfim, arrancaram-me logo um sorriso!

E termino a crónica de hoje com um pormenor tipicamente moçambicano. Um pequeno apontamento que diz bem da simpatia e da alegria destas gentes. Comprámos um despertador com rádio porque gostamos de acordar com música e ouvir as notícias da manhã e a meteorologia e etc e tal… Sintonizámo-lo numa rádio moçambicana, claro. Em Portugal, há aqueles programas matinais em que as pessoas podem telefonar para participar. Normalmente são perguntas a troco de prémios para quem acerte nas repostas ou são fóruns de discussão com temas da atualidade. Pois, aqui em Maputo há uma rádio que, pela manhã, abre a antena aos seus ouvintes só para eles poderem dizer bom dia a alguém! A coisa fica assim, Bom dia, como se chama? Eu sou o Castigo! Castigo e quer dizer bom dia para quem? Eu quero dizer bom dia para a minha dama! E pronto, cada um diz bom dia a uma pessoa dos seus afetos e o prémio é só isso mesmo, essa alegria e essa boa disposição publicamente partilhada. Claro que se eu tivesse outro filho, evitaria chamar-lhe Castigo, mas isso são pormenores de gosto!
jpv
———————–
Algumas imagens relacionadas com esta crónica:

Maravilhoso, excelso e excepcionalmente excelente pedido de uma pedrinha azul!

Exemplo de um retrovisor com a matrícula gravada para evitar tentações.

Exemplo de proteção de um pisca lateral!


5 comentários

Crónicas de África – O Pão que o Africano Amassou

O Pão que o Africano Amassou

Maputo, 12 de outubro de 2012

Não será extensa, esta crónica. Mas quero-a intensa. E por isso começo com uma frase curta e objetiva que contém em si todo o propósito da crónica: o pão aqui é fabuloso!

Mastigar o pão que o moçambicano amassou faz-me ter saudades. Saudades da inocência, saudades do genuíno, saudades de antes dos fingimentos, saudades de não ouvir falar de globalização, saudades de não haver desculpas para piorar a qualidade de vida sob o pretexto de que se está a melhorar.

E porque é melhor o pão aqui?
Em primeiro lugar não precisam de lhe chamar caseiro, para ser caseiro. Não lhe chamam nada. É pão e pronto. Depois, porque sabe a pão. Ou seja, a farinha misturada com água e uma pitada de sal. Os pães, aqui, sejam papo-secos, bolas, pregos (compridos), pães de leite ou arrufadas, são enormes. Um papo-seco enche uma mão e, imagine-se, é pesado! Tem imenso miolo branquinho e fofinho e é um pão muito guloso!

O segredo é simples, eu já perguntei, o pão aqui faz-se com três ingredientes: farinha, água e sal! No caso das arrufadas e dos pães de leite, juntam também leite, ovos e açúcar. Quer isto dizer que o pão moçambicano não leva melhoradores nem conservantes e como ninguém tentou melhorar o quer já era bom, bom ficou! Como ninguém tentou conservar um alimento que se vai consumir no próprio dia, ele está naturalmente conservado. E o pão aqui não é sujeito a análises químicas rigorosas, com senhores de bata branca a inspecionarem. Nada disso. É feito por padeiros! Vejam lá ao que isto chegou, o pão moçambicano é feito por padeiros! Sim, esses de camisolas de mangas cavas que passam a noite acordados e se deitam de manhã! Ora, ninguém vem controlar o tamanho do pão, nem o peso, nem a cor, nem a textura nem que químicos deve levar para ser mais seguro o consumo no interesse do próprio consumidor. Enfim, o pão que o africano amassou é genuíno, é verdadeiro, é simples como as coisas simples, come-se por gula só com manteiga, é fofinho, tem miolinho, e leva só o que é preciso para fazer pão. E querem os amigos leitores rir-se? Sendo Maputo uma cidade caríssima, onde quase tudo custa os olhos da cara, um desses pães, papo-seco chamado, pesado, enorme, a saber mesmo a pãozinho, um desses que no fim de comer só apetece comer outro, custa 3 meticais que é mais ou menos, 8 cêntimos de 1€.

Isto leva-me a pensar que, às vezes, na ânsia de melhorarmos, de fazermos mais e mais seguro, nós acabamos criando novas necessidades, novos e desnecessários custos para o utente que são nichos de mercado para quem se aproveita disso e acabamos estragando tudo. 

E agora, caros leitores, se me dão licença, vou-me retirar ali para a cozinha a ver se faço uma sandocha deliciosa. Lá fora, chove, cá dentro, haverá café quente e pão com manteiga. Simples, não?
jpv


2 comentários

Crónicas de África – Índico Maravilhoso

Crónicas de África – Índico Maravilhoso

Maputo, 7 de outubro de 2012

Nunca gostei muito de praia. Sempre amei o mar como uma extensão de mim. A misteriosa. Às 17:30 do dia 5 de outubro parecia ter vivido três dias num. Se me tivesse deitado naquele momento, tinha adormecido até ao outro dia, mas foi preciso adiar a hora do sono. Ainda havia muito para experimentar.Preparámos um saco de roupa e uma caixa com mantimentos. Tinham-nos dito, Para onde vamos há excelentes condições mas não há comida. Atestei o depósito e a conselho do Marco levei um JerryCan com 20l extra. Às 8:30 enfiámos os carros no ferry e atravessámos de Maputo para Catemba. Assim que o carro saiu do barco, o asfalto desapareceu. Verificámos a pressão dos pneus e o Marco aconselhou, Põe isso em 4×4 porque daqui em diante é só terra e areia. Seguimos para Sul. A primeira parte do percurso foi em terra batida semeada de buracos por todo o lado. Passámos por uma carrinha avariada que tinha como sinalização de veículo imobilizado uns ramos de árvore atrás e à frente. Um pouco mais à frente, a polícia mandou-nos parar, perguntaram-nos se íamos passear e se estava tudo bem. Respondemos que sim às duas perguntas. O senhor está com aquelas pessoas que vão na carrinha ali à frente? Estou sim. Então boa viagem. Obrigado. Estava prestes a arrancar e o polícia disse para a Paula, Mamã tens aí uma garrafa de água? Tenho sim. E demos-lha antes de seguir. A polícia aqui sabe que os locais são inóspitos e que os caminhos são tortuosos, logo, a maioria dos auto-stop são de caráter pedagógico. Só querem saber se estamos bem, se a viagem está a correr bem. Isso, para eles, é mais importante do que a papelada. Por vezes, pedem água e compreende-se porque são largados no meio de nada ao calor e têm de aí ficar horas a fio. Os condutores são a sua companhia e a fonte de água fresca. Entrámos na área da Reserva de Elefantes de Maputo mas não vimos nenhum. Em contrapartida, deparámo-nos com diversas manadas de vacas que tivemos de contornar porque elas, simplesmente não saem do caminho. Depois veio o asfalto. Quer dizer, o que sobra dele. O Marco parou para avisar, Agora temos aqui um bocado de asfalto. Acontece que os buracos eram tantos e tão grandes que raramente andávamos 100m sem parar para contornar um. Decidi seguir a maior parte do trajeto pela berma de terra. Asfalto é que não! Ao cabo de duas horas tínhamos andado 65km. Seguiu-se um troço de areia direito e largo, mais um pouco de asfalto e, por fim, uma picada de areia muito funda a exigir as mudanças baixas por diversas vezes. O carro portou-se muito bem. Tem força, é ágil e não aconteceu o que eu mais temia: não sobreaqueceu. Ao cabo de 130km e mais de quatro horas de caminho, chegámos à Ponta Malongane. Estava cansado e só me apetecia dormir. Não sabia que o melhor estava para vir. O lodge Tartaruga Marítima é um dos muitos que há por aqui, consiste num conjunto de cabanas construídas em madeira e canvas (um tecido muito mais resistente do que o pano e muito mais fresco do que a lona), colocadas no meio das árvores como se fizessem parte da paisagem. As camas são muito confortáveis e estão protegidas por mosquiteiros. Somos constantemente visitados por macacos que tanto andam nas árvores, como fazem correrias loucas por cima das cabanas. O lodge tem uma área de restauração comum onde há frigoríficos, fogões, grelhadores, lava-loiças, armários, amplas mesas, sofás confortáveis e todos os requisitos para guardarmos e confecionarmos os nossos alimentos e estarmos confortáveis. Os funcionários do lodge mantêm o local limpíssimo. A vista para o Oceano Índico, por cima das árvores, é de cortar a respiração. O acesso às cabanas e à praia faz-se por um passadiço de madeira que há por todo o lodge. Antes de entrar no mar pensei, É a primeira vez que vou dar um mergulho no Índico! O Marco avisou, Está fria! Mas a verdade é que a água do mar estava cálida, uma temperatura morna e convidativa, um azul esmeralda intenso a entrar pelos olhos e a preencher todos os recantos da alma. E um cristalino de ver a nossa própria sombra no fundo do oceano. O areal é de uma extensão a perder de vista e toda a praia está povoada de colónias de caranguejos que abrem buracos na areia para se esconderem. Se estivermos sentados numa toalha muito quietinhos, eles começam a surgir à nossa volta, a um simples palmo de distância. A primeira coisa que fazem é limpar os olhos e deslocam-se a uma velocidade incrível. No dia seguinte ao almoço reparámos que, ao longe, já perto da linha do horizonte, havia jatos de água que pareciam emergir do próprio mar. Era uma colónia de baleias das muitas que por ali habitam. À noite fomos à praia e presenciámos um fenómeno muito interessante. À medida que caminhávamos, acendiam-se pequenos pontos de luz na areia que tínhamos acabado de pisar. Pegadas de luz… uma fantástica luminescência noturna no imenso areal da Ponta Malongane.

Como eu e a Paula tínhamos muito trabalho para fazer, preparar aulas, reuniões e fazer materiais, decidimos sair no domingo de manhã bem cedo e deixámos os primos para trás com os miúdos para aproveitarem mais um bocadinho. O Marco emprestou um GPS, uma pá, uma catana e um kit de primeiros socorros. O GPS deu imenso jeito. Do resto, felizmente, não precisámos. Cruzámos-nos com fauna diversa. Um lagarto de proporções enormes, cerca de 1m de comprimento e 30cm de diâmetro que ficou parado no meio da estrada a olhar para nós, uma manada de vacas à briga umas com as outras, tivemos de esperar que desocupassem a estrada para podermos passar, macacos atrevidos a atravessar a estrada à frente do carro e um fabuloso bando de galinhas selvagens muito azuis e com uma popa preta na cabeça. Chegámos cedo, antes de almoço, banhos e trabalho e as baterias completamente recarregadas, as da mente que o corpo pede uma boa noite de sono. O Índico é maravilhoso, a viagem comporta riscos mais ou menos controlados, mas é fantástica e esta terra, sejam quais forem os passos que dêmos, parece reservar-nos surpresas e emoções a cada momento. 
jpv


10 comentários

Crónicas de África – O meu Aniversário com o Povo Moçambicano

O meu Aniversário com o Povo Moçambicano

Maputo, 4 de outubro de 2012

Não é segredo. Faço hoje 45 anos. Vim a fazê-los em condições bem diferentes do que imaginaria, por exemplo, o ano passado. A última vez que fiz anos em África foi há 38 anos na terra em que nasci, Gabela, Angola.

Vivo um sentimento de reencontro e completude, um ciclo que se fecha e uma perspetiva que se abre. Saudades do filho e da família, mas o olhar em frente. Aos 45 anos estou a tentar reinventar a vida, repercorrer trilhos e caminhos, lavar a alma, adoçar o coração. É boa terra para isso, Moçambique. Uma terra de gente doce e simpática. Ando há uns dias para escrever sobre os moçambicanos, mas não tenho tido um motivo para começar. Hoje há um extraordinário motivo. Moçambique e eu temos algo em comum. Uma celebração no dia de hoje. Aqui, o dia 4 de outubro é feriado. É o dia da Paz porque foi neste dia que se assinaram os acordos que garantiram esse bem precioso. E começo por aí. Se há algo que carateriza os moçambicanos, novos e idosos, homens e mulheres, mais ou menos cultos, é o apreço e a valorização da Paz como um bem a manter. É fácil, em qualquer conversa, um moçambicano, derivar para a Paz e defender a sua conquista e a sua preservação. Os moçambicanos falam da Paz com carinho. Hoje ao sair de casa pela manhã cruzei-me com uma senhora que disse como quem anuncia a boa nova, Feliz dia da Paz. Feliz dia da Paz, respondemos comovidos à sua prece.

Outra caraterística deste povo é a hospitalidade e a alegria. Um dia destes, entrei num supermercado e um funcionário disse, Bom dia, eu respondi, Bom dia como estás? Estou feliiiz… Felicidade também para ti. E sorriu genuíno como se fosse essa a sua essência. Aqui, têm o costume de tratar as mulheres por mamã e os homens por papá. A como estás a vender as bananas? A 25 meticais, papá! À saída dos supermercados, é preciso mostrar os recibos de pagamento e, se nos for solicitado, as compras. Quem faz esse serviço são funcionários do supermercado ou seguranças. Esta semana presenciámos um contraste vertiginoso entre o aspeto de um homem e a sua alegre essência moçambicana. Era um segurança a solicitar os recibos das compras. Tinha uma farda azul, um cinto encarnado, botas da tropa, um cacetete e uma pistola no coldre. A Paula disse, Bom dia, como estás? Estou feliiiz, um bom dia para a mamã também! E sorriu um sorriso aberto do tamanho do Universo. Como povo, não são nada stressados, pelo contrário, um dia de cada vez, uma coisa de cada vez, é o seu lema. Quando vens? Hei de vir! Quando fazes? Hei de fazer! E vêm e fazem, só não stressam com isso. E essa tranquilidade passa a quem contacta com eles. Têm uma naturalidade confrangedora na atitude, para os moçambicanos, as coisas são o que são, sem véus nem fingimentos. Um dia destes perguntei ao canalizador:
– Então, já fizeste? 
– Ainda!
– Ainda? Ainda quê?
– Ora, não se diz ainda sim!
Toma e embrulha!
São pessoas disponíveis, claro que têm interesses e o sentido do negócio, mas prestam-se a ajudar antes de mais e, mesmo quando negoceiam, ainda que o façam com malandrice, fazem-no sempre com boa disposição. Os moçambicanos sofreram muito. Têm agora oportunidade de reconstruir o seu país e estão a fazê-lo com tranquilidade e um sorriso nos lábios. E claro, sabem que precisam de ajuda e por isso desenvolveram um sentido de inclusão com particular enfoque nos portugueses. É claro que uma grande cidade como Maputo tem zonas e horas do dia em que pode ser perigoso passar, mas isso acontece em qualquer grande cidade. Na generalidade, o ambiente é seguro, as pessoas são afáveis e a verdade é que, estando longe da família, sinto que vim fazer 45 anos a casa!

Hoje demos um passeio de carro pela cidade. Sim, já temos carro. Se tinha sido interessante um português alugar casa a um muçulmano em África, imaginem um português a comprar um carro japonês a um paquistanês que só fala inglês em África! Pois, o tal do melting pot é aqui! Aqui se vive uma mescla cultural quotidiana, rua a rua. O vendedor foi o Atif. No dia seguinte a ter-me mostrado o carro e tendo ele ficado a considerar uma contraproposta de valor que lhe fiz, telefonou-me e disse, Good morning, brother, you go see car? Claro que não lhe podia falar um inglês correto, senão começava uma conserva de surdos, então, mentalmente pedi desculpas a todos os meus professores de inglês e respondi bem alto, I go see car after lunch! Às tantas, reparei que o carro não tinha macaco e se tivesse um furo estava enrascado, ele viu que eu reparei e disse, juro que disse, a seguinte frase, No problem, I give macaco! Larguei a rir, I give macaco é inimitável. O Atif começou também a rir, olhou para a Paula e disse, good car for mamã go shoping! A sério, foi delicioso. Fechámos negócio e a nossa qualidade de vida aumentou substancialmente porque em Maputo, como já antes se escreveu, a mobilidade é fundamental e a melhor forma de a ter é com viatura própria. O Atif ainda tentou gabar o auto-rádio que era bom para a mamã ouvir música, mas eu disse-lhe que os botões estavam todos em japonês e ele calou-se, não fosse estragar o negócio. É giro porque os botões não têm os sinais internacionais de play, pause, etc… têm só carateres japoneses, os botões e o livro de instruções, enfim, pormenores sem importância nenhuma, em Maputo, um carro automático serve para acelerar e ir em frente… mais ou menos em frente!

Convidámos os primos Marco e Sandrine e o tio Zé (que não pôde vir porque vai viajar) e fomos almoçar ao rodízio. Correram carnes deliciosas, muqueca de peixe, sobremesas supremas e umas cervejinhas geladas e terminámos a tarde a planear uma passeata…

Há pormenores da vida aqui que são muito difíceis, mas na generalidade, o projeto vale muito a pena porque este é um país em crescimento, com potencialidades tremendas, com pessoas alegres e sorridentes, que nos interpelam na rua com simpatia para um cumprimento. E há esperança. Sim, posso dizer que em Moçambique há esperança e essa esperança, tão pouco palpável em tese, sente-se no quotidiano e muda-nos a perspetiva de vida.

À sexta-feira à tarde, ao longo da avenida marginal da Costa do Sol, com palmeiras e outras árvores marcando o traçado bordejado pelo mar, eles começam a chegar em carros e carrinhas, as malas térmicas estendem-se ao longo da avenida prenhes de sumos e cerveja, a mais popular chama-se “Laurentina”, mas eu gosto mais da “2M”, eles estacionam os carros e ligam os rádios no máximo e riem e cantam e dançam e bebem e há vida e festa e sensualidade no ar. É difícil cruzar a avenida ao fim-de-semana. Porque há festa. E a razão não é outra que estarem as pessoas vivas e ser fim-de-semana. Esta celebração da vida só termina ao final de domingo. No dia seguinte, inicia-se uma semana mais, sem stress.

Nos últimos anos, sempre que fiz anos, senti o peso deles. Este ano fiz menos um. Na cabeça, que é onde mais conta! E, sim, tenho saudades. Se não tivesse, não era português!
jpv


7 comentários

Crónicas de África – Preçário

Preçário

Maputo, 27 de setembro de 2012

Maputo é uma cidade cara. Não é, pelo que me contam, como Luanda, mas, mesmo assim, é uma cidade cara.

Quando um europeu chega à cidade, apercebe-se de que há coisas muito acessíveis, mas aprende pela carteira que a generalidade dos produtos é muito cara quando comparada com os preços praticados na Europa e, em particular, em Portugal.

Numa primeira impressão, em traço largo e impreciso, parece-me que os automóveis usados, na sua maioria importados do Japão, a mão-de-obra, nomeadamente, as empregadas domésticas, e o peixe são produtos e serviços muito acessíveis. Um jipe Toyota RAV4 com dez anos custa entre 5000 e 6000 euros, 1kg de camarão grande custa entre 3 e 4,5 euros e com cerca de 90 euros paga-se a mão-de-obra de uma empregada doméstica para um mês. Outra coisa substancialmente mais barata do que em Portugal são as chamadas telefónicas internas, ou seja, nacionais. Um minuto custa cerca de sete cêntimos e há imensos pacotes de 100, 200 e 500 minutos grátis. A coisa funciona assim: na compra de 500 meticais (15 euros) de chamadas, dão-te mais 500 minutos nessa rede.

E as rosas acabam aí… tudo o resto, que é a maioria das coisas, é a preços exorbitantes. Não quero fazer uma lista de compras. Seria despropositado e maçador. Farei, somente, o registo dos preços que me impressionaram mais. Vamos, então, ao preçário. Podem fazer-se compras em diversos locais. Nos hipermercados parecidos com os europeus, estes são fora da cidade, têm uma oferta muito diversificada e são caríssimos porque os produtos são importados, na sua maioria, da África do Sul. Nos supermercados dentro da cidade. Estes são mais pequenos e são uma reprodução exata dos nossos supermercados dos anos 70 e 80, com as mercadorias pelo chão, os preços marcados à mão e um balcão a servir de charcutaria. São bem mais baratos e têm muitos produtos portugueses. Nos mercados e nas vendas de rua. Nestes locais é possível comprar tudo, frutas, legumes, batatas, citrinos, água, peixe, etc… São os locais de venda mais baratos, mas é indispensável ter uma balança própria e andar com ela na mala. Há umas de pendurar os sacos que são pequenas e os vendedores não se importam que usemos. Nestes locais, o mais aconselhável é levar notas separadas nos bolsos e só mostrar uma de  cada vez. Os eletrodomésticos são caríssimos. Um microondas de linha branca que se compra em Portugal com 30 ou 40 euros, aqui custa entre 100 e 150€. Todos os metais e alumínios como, por exemplo, as panelas e os talheres são artigos de luxo. Um jogo de 7 panelas, qualidade mediana, custa entre 200 e 300 euros. Um jogo de 6 garfos, 6 facas e 6 colheres de qualidade média/baixa custa entre 24 e 40 euros! Uma forma para bolos, pequena, para fazer um bolo para duas pessoas, custa 12€! A carne, meu Deus, a carne é caríssima! O fiambre anda entre os 15 e os 30 euros/kg. Um frango com 700 gramas custa entre 6 e 9 euros. Há muito pouca carne de porco e a generalidade da carne de vaca ou borrego também é muito cara. Todos os plásticos são ao preço do ouro. Um simples balde do lixo pode custar 9€ ou mais. Um cesto standard para a roupa suja, em plástico, custa qualquer coisa como 15€. A água e a luz são caríssimas, em contrapartida, o gasóleo é a 1€, ou seja, menos 0,50€ do que em Portugal. O fornecimento de água é eficaz, mas o sistema é curioso. A água pública não tem pressão para servir as casas. Então todas as casas têm um tanque ao nível do solo que é abastecido automaticamente de madrugada. Depois as pessoas têm uma bomba de pressão que manda a água para depósitos no telhado e nos terraços das casa, por fim, segue desses depósitos para as torneiras com a força da… gravidade! Mai nada! O certo é que funciona…


O que me parece mais avisado é fazer um mix. Temos de recorrer aos hipermercados de importação para adquirir certos bens, mas é interessante e mais acessível irmo-nos misturando e consumindo nos supermercados da cidade e nas vendas de rua. Sempre fui adepto de aderir aos costumes das terras que visitava. Como, desta vez, não é uma visita, mas uma estadia, acho que não tenho outra solução senão entranhar a vida daqui, mas isso é o que dá mais prazer!


Se sobre esta matéria, sempre tão apetecível e interessante que é o custo de vida em Maputo, 
tiverem dúvidas, coloquem-nas nos comentários que eu responderei com prazer… se souber…

jpv


4 comentários

Crónicas de África – Um Dia com M.


Um Dia com M.

M. é um muçulmano, casado, pai de duas meninas aos vinte e seis anos e um tipo intrinsecamente honesto. É também intrinsecamente negociante. E como sabe que um negócio atrai outro, nunca prejudica nem engana quem lhe compra bens ou produtos. Só transaciona material que ele próprio certifica como sendo de qualidade. Claro que se lhe dás mais do que as coisas valem, esse é um problema teu.

Aluguei-lhe uma casa em Maputo. É o meu senhorio, portanto. Um dia destes, por via da legalização e assinatura do contrato, passámos um dia quase inteiro juntos no carro dele. Era o M., eu, a minha mulher e a mãe dele que ele trata por mamã. É impressionante como muda de registo, ora está a falar em tom malandro e sério a fazer um negócio ao telefone, ora põe o tom mais meigo que pode ouvir-se a um homem e diz, Cuidado, mamã, aí tem água! Foi possível e muito interessante conversar com ele acerca de esquemas de negócio, de negócios propriamente ditos, de como conseguir as coisas mais facilmente, de princípios, de valores, da nossa postura perante a vida, de religião. Um dia, a todos os títulos interessante. M. é moçambicano. Sempre aqui viveu, embora tenha viajado, conhecido e trabalhado em outros países, como por exemplo, Angola e Paquistão. Veste a sua túnica, entra no carro, coloca o telemóvel no colo e passa o dia a resolver problemas às pessoas. O telemóvel é o meu escritório, diz com entusiasmo.

No espaço de um dia, alugou-me a casa, fomos às finanças e ao notário, fez diversos negócios para reparação de i-pods e telemóveis, Gosto mais de trabalhar com software do que com hardware, tem menos riscos. Quando lhe disse que ia precisar de carro, atalhou logo, Queres de cá ou importado? Se quiseres importado, também te importo? Não tens net? Olha, a oferta melhor é da empresa xis, eu trato-te disso. Impressora? Diz lá que marca queres? E o modelo? De repente, ele estava a parar em locais onde apanhava telemóveis que ia entregar no dia seguinte, as pessoas confiam nele, sabem que vai devolver arranjado. Desbloqueou-me o meu telefone português. Ao passarmos por uma rua, disse-me, Estás a ver aquele carro branco? Estou. Está a ser roubado. Depois dos nossos primos e dos seus ensinamentos, foi muito interessante conhecer o M. e toda a sua capacidade para se movimentar e negociar na grande cidade. Está sempre ativo e atento e o negócio corre-lhe nas veias. M., esse parking é exclusivo. Vamos ver… Estacionou lá, claro! Sem problemas. O M. tem uma dicção perfeita e uma agilidade de raciocínio invejável e sabe alterar o registo do discurso de acordo com o seu interlocutor. É absolutamente educado comigo, é meigo com a mãe e quando se aproxima de um cliente pode dizer com um tom muito cool e integrado, Oi mano, qual é o teu problema? Às tantas reclamei, M., duas horas para abrir uma conta?! Não estranhes, é por isso que isto é Moçambique! Não sei como será o futuro, não sou adivinho, para já, tudo isto se revela surpreendentemente tentador! Se eu podia viver em Maputo sem o M.? Poder, podia, mas não era a mesma coisa! Hahahaha…
jpv