Contra o que é habitual, a crónica que publiquei ontem, independentemente do valor que possa ter, tinha demasiadas gralhas. E é por isso que venho pedir-vos desculpa.
A verdade é que sei a apetência que os leitores têm demonstrado por estas crónicas e sabia também que, por motivos de trabalho, já há alguns dias que não publicava nada. Logo, em vez das três revisões habituais, só fiz uma, para além de que fiz a publicação já muito tarde e depois de um dia muito intenso no trabalho. Ora, o resultado foi o que se viu.
Entretanto está tudo corrigido, claro.
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Crónicas de África – Outras Coisas do Quotidiano
Maputo, 27 de outubro de 2012
É natural que, quando chegamos a um local desconhecido, seja de visita, seja em trabalho, tenhamos um olhar mais luminoso e complacente por não termos experimentado as rotinas e as agruras do mesmo. Eu penso que tenho, nos dias que correm, esse olhar em relação a Maputo. Parece-me, contudo, que não é uma perspetiva menos válida. É a perspetiva do momento e, por isso mesmo, para que se rememore mais adiante na linha dos dias passados, importa registá-la aqui.
Miúdos na Rua
O Chão
Armas na Cidade
Modernices
IDE
Hoje foi o dia do IDE. Trata-se de uma festa religiosa muçulmana que assinala, salvo erro, o fim da peregrinação a Meca. É um momento de alegria e agradecimento. O interessante é que o IDE é universal, ou seja, é celebrado por muçulmanos em todo o mundo. Em Portugal, naturalmente, quase não dou por esta celebração, mas estas são terras com cheiro a Oriente e com uma forte multiculturalidade. Tão forte, que foi decretada, pelo Governo, tolerância de ponto para os trabalhadores muçulmanos. E, também na escola, se sentiu a ausência de uma parte da nossa comunidade de aprendentes, os alunos que estavam celebrando o IDE.
O quotidiano, em Maputo, é diferente, mas não é diferente por uma grande razão, é diferente por todas estas que se juntam e fazem da vida aqui um passar do tempo bailado ao som das brincadeiras dos miúdos.
Crónicas de África – Mais Coisas do Quotidiano
Maputo, 22 de outubro de 2012
Estou a chegar
Dar sinal
Dá-me crédito
Humidade
Crónicas de África – Rápido e Intenso
Maputo, 19 de outubro de 2012
O dia foi cansativo, muito trabalhos, algumas mudanças para gerir e o nosso corpo vinha pedindo tréguas, a cabeça cansada e muita fome. A Paula sugeriu um franguinho no Piri-Piri. Bora lá! Quando saímos do carro, a noite estava quente, um calor noturno a rondar os 30º. E havia no ar uma humidade que se sentia na pele. O vento não se mostrava. Era, por isso, uma noite calma, quente e húmida. Ficámos na esplanada e quando já estávamos a acabar a refeição, levantou-se um vento forte e repentino de fazer voar os guardanapos de papel, levantar as toalhas das mesas, as saias das senhoras que se seguravam a elas como podiam, os cabelos desalinhados, folhas pelo ar e súbito uma bátega de água forte e certa. Pagámos e fugimos para casa. Assim que chegámos, o céu rebentou num clamor de assustar. Os relâmpagos eram tantos que não acabavam uns para logo se verem os flashes dos outros, nem eram a seguir uns aos outros, eram em simultâneo. E, sobretudo, eram de uma claridade intensa e muito próxima. Os trovões eram mais espaçados, mas de uma força assustadora, tudo parecia tremer e alguns quase faziam acreditar que o céu se estava a rasgar, tal a a intensidade e a proximidade do som. A chuva continuou certa e encheu as ruas. Subiu do chão um profundo e inconfundível cheiro a terra molhada. E tudo isto demorou meia hora. Agora, restam só resquícios longínquos do poder que há pouco se mostrou sobre Maputo. Rápido e intenso. Durante a tempestade o R. ligou-me. Também está a chover aí? Sim, bastante, isto é forte! Forte? Ainda não viste forte. Isto é médio!
Crónicas de África – Coisas do Quotidiano
Esta semana fui, pela primeira vez, assaltado em Maputo. Quer dizer, eu não fui assaltado. Enfim, não sei bem. Um roubo, acho, é quando a gente não vê porque não está presente, isso também pode ser um furto. Um assalto é quando a gente vê mas, mesmo assim, tem de entregar o bem que vai ser roubado. Eu explico. Eu estava lá e estava a olhar, mas não vi. Ninguém falou comigo. Logo, acho que isto foi um misto de roubo e assalto. A verdade é que um arrumador ofereceu-me um lugar de estacionamento e eu não aceitei porque quis ficar mais perto do restaurante onde ia almoçar. E fiquei. Fiquei tão perto que, da esplanada onde estava, via bem o carro. Ele lá estava a brilhar de lavadinho. E fui sempre olhando, sempre atento sem lhe tirar o olho de cima. Quando cheguei ao carro, para meu espanto, o espelho retrovisor do lado direito, aquele que estava mesmo de frente para mim, tinha… voado! Devia ter aceitado a oferta do arrumador! Perguntei onde poderia arranjar um. Disseram-me para ir ao mercado da Estrela. Ora, aqui, as pessoas têm o hábito de gravar a matrícula dos carros nas diversas peças, espelhos, faróis da frente, luzes traseiras, vidros das portas e tudo o mais que lhes vem à cabeça. No caso daqueles piscas laterais muito pequeninos, como não há muito espaço para gravar a matrícula, colocam umas tiras de metal por cima deles. Como é que agarram as tiras de metal? Simples. Furam a chapa do carro e enfiam-lhe com dois rebites… É lindo de morrer, ver um tipo que acabou de comprar um carro, voluntariamente mandá-lo furar… hahahaha… eu adoro esta cidade. Como precisava de um espelho e queria gravar umas partes do carro, lá fui ao mercado da Estrela. São duas ruas repletas de bancadas com acessórios automóveis, chaves de rodas, macacos, limpa-pára-brisas, triângulos, capôts, jantes, pneus, pára-choques, emblemas, espelhos, vidros, portas, tudo, tudo, rigorosamente tudo, vendido no meio da rua. Além dos acessórios, também há serviços, por exemplo, lavagem, polimento da chapa, dos faróis, enfim, é um não mais acabar de oferta. Assim que cheguei, mesmo antes de parar o carro, começaram a fazer-me sinais e a oferecer-me coisas. Quando parei, o carro foi cercado por mais de dez rapazes a oferecerem todo o tipo de acessórios e serviços. Saí, disse do que andava à procura e em cinco minutos apareceu um espelho do modelo que eu queria e aplicaram-no logo no sítio, perguntei se gravavam, claro que sim, pedi para gravarem a matrícula nos espelhos e nos faróis da frente e para porem umas tiras de metal nos piscas laterais. A primeira coisa que me disseram quando fechámos negócio foi, Abra aí o capôt! Eu estranhei. Por que raio é que eles querem que eu abra o capôt. E perguntei, Olha lá, para que é que queres o capôt aberto? É a bateria! Nem mais nem ontem, além de pagar o serviço, ainda forneci a energia. As máquinas de gravar que eles usam, assim como os berbequins, são elétricas, eles cortam as fichas dessas ferramentas, colocam uns bornes de agarrar nas baterias e o cliente fornece a energia. Mai nada! Quando o tipo acabou de gravar disse, com um sorriso nos lábios, Já se acabou o pão do ladrão! Estive à conversa com eles e ainda que admita que o ambiente, para quem ali chega, possa ser um pouco intimidador, a verdade é que não passam de uns rapazotes simpáticos e bem dispostos à espera de fazer algum negócio e é possível trocar umas gargalhadas com eles, aliás, em Maputo, a gargalhada está barata, toda a gente tem várias para dar! Um colega disse-me, Foste à Estrela? Não é qualquer um! Mas eu gostei, até estou a pensar lá voltar porque preciso de um macaco em condições, isso e umas escovas para o limpa-pára-brisas.
Recentemente, deparei-me com um exemplo da alegria e da boa disposição que caraterizam este povo. Num supermercado, há um sistema interno de “competição” entre as diversas equipas de funcionários. Aqueles que colecionarem mais pedrinhas azuis que o supermercado disponibiliza aos clientes têm prémios de simpatia no atendimento. Então, eles têm a liberdade de solicitar aos clientes que se sentiram simpaticamente atendidos, uma pedrinha para a coleção. Os do bar tinham escrito uma coisa do tipo, “Caro Cliente, se ficar maravilhado pelo atendimento excepcionalmente excelente…” enfim, arrancaram-me logo um sorriso!
Crónicas de África – O Pão que o Africano Amassou
Maputo, 12 de outubro de 2012
Não será extensa, esta crónica. Mas quero-a intensa. E por isso começo com uma frase curta e objetiva que contém em si todo o propósito da crónica: o pão aqui é fabuloso!
Mastigar o pão que o moçambicano amassou faz-me ter saudades. Saudades da inocência, saudades do genuíno, saudades de antes dos fingimentos, saudades de não ouvir falar de globalização, saudades de não haver desculpas para piorar a qualidade de vida sob o pretexto de que se está a melhorar.
E porque é melhor o pão aqui?
O segredo é simples, eu já perguntei, o pão aqui faz-se com três ingredientes: farinha, água e sal! No caso das arrufadas e dos pães de leite, juntam também leite, ovos e açúcar. Quer isto dizer que o pão moçambicano não leva melhoradores nem conservantes e como ninguém tentou melhorar o quer já era bom, bom ficou! Como ninguém tentou conservar um alimento que se vai consumir no próprio dia, ele está naturalmente conservado. E o pão aqui não é sujeito a análises químicas rigorosas, com senhores de bata branca a inspecionarem. Nada disso. É feito por padeiros! Vejam lá ao que isto chegou, o pão moçambicano é feito por padeiros! Sim, esses de camisolas de mangas cavas que passam a noite acordados e se deitam de manhã! Ora, ninguém vem controlar o tamanho do pão, nem o peso, nem a cor, nem a textura nem que químicos deve levar para ser mais seguro o consumo no interesse do próprio consumidor. Enfim, o pão que o africano amassou é genuíno, é verdadeiro, é simples como as coisas simples, come-se por gula só com manteiga, é fofinho, tem miolinho, e leva só o que é preciso para fazer pão. E querem os amigos leitores rir-se? Sendo Maputo uma cidade caríssima, onde quase tudo custa os olhos da cara, um desses pães, papo-seco chamado, pesado, enorme, a saber mesmo a pãozinho, um desses que no fim de comer só apetece comer outro, custa 3 meticais que é mais ou menos, 8 cêntimos de 1€.
Isto leva-me a pensar que, às vezes, na ânsia de melhorarmos, de fazermos mais e mais seguro, nós acabamos criando novas necessidades, novos e desnecessários custos para o utente que são nichos de mercado para quem se aproveita disso e acabamos estragando tudo.
E agora, caros leitores, se me dão licença, vou-me retirar ali para a cozinha a ver se faço uma sandocha deliciosa. Lá fora, chove, cá dentro, haverá café quente e pão com manteiga. Simples, não?
Crónicas de África – Índico Maravilhoso
Maputo, 7 de outubro de 2012
Nunca gostei muito de praia. Sempre amei o mar como uma extensão de mim. A misteriosa. Às 17:30 do dia 5 de outubro parecia ter vivido três dias num. Se me tivesse deitado naquele momento, tinha adormecido até ao outro dia, mas foi preciso adiar a hora do sono. Ainda havia muito para experimentar.Preparámos um saco de roupa e uma caixa com mantimentos. Tinham-nos dito, Para onde vamos há excelentes condições mas não há comida. Atestei o depósito e a conselho do Marco levei um JerryCan com 20l extra. Às 8:30 enfiámos os carros no ferry e atravessámos de Maputo para Catemba. Assim que o carro saiu do barco, o asfalto desapareceu. Verificámos a pressão dos pneus e o Marco aconselhou, Põe isso em 4×4 porque daqui em diante é só terra e areia. Seguimos para Sul. A primeira parte do percurso foi em terra batida semeada de buracos por todo o lado. Passámos por uma carrinha avariada que tinha como sinalização de veículo imobilizado uns ramos de árvore atrás e à frente. Um pouco mais à frente, a polícia mandou-nos parar, perguntaram-nos se íamos passear e se estava tudo bem. Respondemos que sim às duas perguntas. O senhor está com aquelas pessoas que vão na carrinha ali à frente? Estou sim. Então boa viagem. Obrigado. Estava prestes a arrancar e o polícia disse para a Paula, Mamã tens aí uma garrafa de água? Tenho sim. E demos-lha antes de seguir. A polícia aqui sabe que os locais são inóspitos e que os caminhos são tortuosos, logo, a maioria dos auto-stop são de caráter pedagógico. Só querem saber se estamos bem, se a viagem está a correr bem. Isso, para eles, é mais importante do que a papelada. Por vezes, pedem água e compreende-se porque são largados no meio de nada ao calor e têm de aí ficar horas a fio. Os condutores são a sua companhia e a fonte de água fresca. Entrámos na área da Reserva de Elefantes de Maputo mas não vimos nenhum. Em contrapartida, deparámo-nos com diversas manadas de vacas que tivemos de contornar porque elas, simplesmente não saem do caminho. Depois veio o asfalto. Quer dizer, o que sobra dele. O Marco parou para avisar, Agora temos aqui um bocado de asfalto. Acontece que os buracos eram tantos e tão grandes que raramente andávamos 100m sem parar para contornar um. Decidi seguir a maior parte do trajeto pela berma de terra. Asfalto é que não! Ao cabo de duas horas tínhamos andado 65km. Seguiu-se um troço de areia direito e largo, mais um pouco de asfalto e, por fim, uma picada de areia muito funda a exigir as mudanças baixas por diversas vezes. O carro portou-se muito bem. Tem força, é ágil e não aconteceu o que eu mais temia: não sobreaqueceu. Ao cabo de 130km e mais de quatro horas de caminho, chegámos à Ponta Malongane. Estava cansado e só me apetecia dormir. Não sabia que o melhor estava para vir. O lodge Tartaruga Marítima é um dos muitos que há por aqui, consiste num conjunto de cabanas construídas em madeira e canvas (um tecido muito mais resistente do que o pano e muito mais fresco do que a lona), colocadas no meio das árvores como se fizessem parte da paisagem. As camas são muito confortáveis e estão protegidas por mosquiteiros. Somos constantemente visitados por macacos que tanto andam nas árvores, como fazem correrias loucas por cima das cabanas. O lodge tem uma área de restauração comum onde há frigoríficos, fogões, grelhadores, lava-loiças, armários, amplas mesas, sofás confortáveis e todos os requisitos para guardarmos e confecionarmos os nossos alimentos e estarmos confortáveis. Os funcionários do lodge mantêm o local limpíssimo. A vista para o Oceano Índico, por cima das árvores, é de cortar a respiração. O acesso às cabanas e à praia faz-se por um passadiço de madeira que há por todo o lodge. Antes de entrar no mar pensei, É a primeira vez que vou dar um mergulho no Índico! O Marco avisou, Está fria! Mas a verdade é que a água do mar estava cálida, uma temperatura morna e convidativa, um azul esmeralda intenso a entrar pelos olhos e a preencher todos os recantos da alma. E um cristalino de ver a nossa própria sombra no fundo do oceano. O areal é de uma extensão a perder de vista e toda a praia está povoada de colónias de caranguejos que abrem buracos na areia para se esconderem. Se estivermos sentados numa toalha muito quietinhos, eles começam a surgir à nossa volta, a um simples palmo de distância. A primeira coisa que fazem é limpar os olhos e deslocam-se a uma velocidade incrível. No dia seguinte ao almoço reparámos que, ao longe, já perto da linha do horizonte, havia jatos de água que pareciam emergir do próprio mar. Era uma colónia de baleias das muitas que por ali habitam. À noite fomos à praia e presenciámos um fenómeno muito interessante. À medida que caminhávamos, acendiam-se pequenos pontos de luz na areia que tínhamos acabado de pisar. Pegadas de luz… uma fantástica luminescência noturna no imenso areal da Ponta Malongane.
Como eu e a Paula tínhamos muito trabalho para fazer, preparar aulas, reuniões e fazer materiais, decidimos sair no domingo de manhã bem cedo e deixámos os primos para trás com os miúdos para aproveitarem mais um bocadinho. O Marco emprestou um GPS, uma pá, uma catana e um kit de primeiros socorros. O GPS deu imenso jeito. Do resto, felizmente, não precisámos. Cruzámos-nos com fauna diversa. Um lagarto de proporções enormes, cerca de 1m de comprimento e 30cm de diâmetro que ficou parado no meio da estrada a olhar para nós, uma manada de vacas à briga umas com as outras, tivemos de esperar que desocupassem a estrada para podermos passar, macacos atrevidos a atravessar a estrada à frente do carro e um fabuloso bando de galinhas selvagens muito azuis e com uma popa preta na cabeça. Chegámos cedo, antes de almoço, banhos e trabalho e as baterias completamente recarregadas, as da mente que o corpo pede uma boa noite de sono. O Índico é maravilhoso, a viagem comporta riscos mais ou menos controlados, mas é fantástica e esta terra, sejam quais forem os passos que dêmos, parece reservar-nos surpresas e emoções a cada momento.
Crónicas de África – O meu Aniversário com o Povo Moçambicano
O meu Aniversário com o Povo Moçambicano
Maputo, 4 de outubro de 2012
Vivo um sentimento de reencontro e completude, um ciclo que se fecha e uma perspetiva que se abre. Saudades do filho e da família, mas o olhar em frente. Aos 45 anos estou a tentar reinventar a vida, repercorrer trilhos e caminhos, lavar a alma, adoçar o coração. É boa terra para isso, Moçambique. Uma terra de gente doce e simpática. Ando há uns dias para escrever sobre os moçambicanos, mas não tenho tido um motivo para começar. Hoje há um extraordinário motivo. Moçambique e eu temos algo em comum. Uma celebração no dia de hoje. Aqui, o dia 4 de outubro é feriado. É o dia da Paz porque foi neste dia que se assinaram os acordos que garantiram esse bem precioso. E começo por aí. Se há algo que carateriza os moçambicanos, novos e idosos, homens e mulheres, mais ou menos cultos, é o apreço e a valorização da Paz como um bem a manter. É fácil, em qualquer conversa, um moçambicano, derivar para a Paz e defender a sua conquista e a sua preservação. Os moçambicanos falam da Paz com carinho. Hoje ao sair de casa pela manhã cruzei-me com uma senhora que disse como quem anuncia a boa nova, Feliz dia da Paz. Feliz dia da Paz, respondemos comovidos à sua prece.
Outra caraterística deste povo é a hospitalidade e a alegria. Um dia destes, entrei num supermercado e um funcionário disse, Bom dia, eu respondi, Bom dia como estás? Estou feliiiz… Felicidade também para ti. E sorriu genuíno como se fosse essa a sua essência. Aqui, têm o costume de tratar as mulheres por mamã e os homens por papá. A como estás a vender as bananas? A 25 meticais, papá! À saída dos supermercados, é preciso mostrar os recibos de pagamento e, se nos for solicitado, as compras. Quem faz esse serviço são funcionários do supermercado ou seguranças. Esta semana presenciámos um contraste vertiginoso entre o aspeto de um homem e a sua alegre essência moçambicana. Era um segurança a solicitar os recibos das compras. Tinha uma farda azul, um cinto encarnado, botas da tropa, um cacetete e uma pistola no coldre. A Paula disse, Bom dia, como estás? Estou feliiiz, um bom dia para a mamã também! E sorriu um sorriso aberto do tamanho do Universo. Como povo, não são nada stressados, pelo contrário, um dia de cada vez, uma coisa de cada vez, é o seu lema. Quando vens? Hei de vir! Quando fazes? Hei de fazer! E vêm e fazem, só não stressam com isso. E essa tranquilidade passa a quem contacta com eles. Têm uma naturalidade confrangedora na atitude, para os moçambicanos, as coisas são o que são, sem véus nem fingimentos. Um dia destes perguntei ao canalizador:
Hoje demos um passeio de carro pela cidade. Sim, já temos carro. Se tinha sido interessante um português alugar casa a um muçulmano em África, imaginem um português a comprar um carro japonês a um paquistanês que só fala inglês em África! Pois, o tal do melting pot é aqui! Aqui se vive uma mescla cultural quotidiana, rua a rua. O vendedor foi o Atif. No dia seguinte a ter-me mostrado o carro e tendo ele ficado a considerar uma contraproposta de valor que lhe fiz, telefonou-me e disse, Good morning, brother, you go see car? Claro que não lhe podia falar um inglês correto, senão começava uma conserva de surdos, então, mentalmente pedi desculpas a todos os meus professores de inglês e respondi bem alto, I go see car after lunch! Às tantas, reparei que o carro não tinha macaco e se tivesse um furo estava enrascado, ele viu que eu reparei e disse, juro que disse, a seguinte frase, No problem, I give macaco! Larguei a rir, I give macaco é inimitável. O Atif começou também a rir, olhou para a Paula e disse, good car for mamã go shoping! A sério, foi delicioso. Fechámos negócio e a nossa qualidade de vida aumentou substancialmente porque em Maputo, como já antes se escreveu, a mobilidade é fundamental e a melhor forma de a ter é com viatura própria. O Atif ainda tentou gabar o auto-rádio que era bom para a mamã ouvir música, mas eu disse-lhe que os botões estavam todos em japonês e ele calou-se, não fosse estragar o negócio. É giro porque os botões não têm os sinais internacionais de play, pause, etc… têm só carateres japoneses, os botões e o livro de instruções, enfim, pormenores sem importância nenhuma, em Maputo, um carro automático serve para acelerar e ir em frente… mais ou menos em frente!
Convidámos os primos Marco e Sandrine e o tio Zé (que não pôde vir porque vai viajar) e fomos almoçar ao rodízio. Correram carnes deliciosas, muqueca de peixe, sobremesas supremas e umas cervejinhas geladas e terminámos a tarde a planear uma passeata…
Há pormenores da vida aqui que são muito difíceis, mas na generalidade, o projeto vale muito a pena porque este é um país em crescimento, com potencialidades tremendas, com pessoas alegres e sorridentes, que nos interpelam na rua com simpatia para um cumprimento. E há esperança. Sim, posso dizer que em Moçambique há esperança e essa esperança, tão pouco palpável em tese, sente-se no quotidiano e muda-nos a perspetiva de vida.
À sexta-feira à tarde, ao longo da avenida marginal da Costa do Sol, com palmeiras e outras árvores marcando o traçado bordejado pelo mar, eles começam a chegar em carros e carrinhas, as malas térmicas estendem-se ao longo da avenida prenhes de sumos e cerveja, a mais popular chama-se “Laurentina”, mas eu gosto mais da “2M”, eles estacionam os carros e ligam os rádios no máximo e riem e cantam e dançam e bebem e há vida e festa e sensualidade no ar. É difícil cruzar a avenida ao fim-de-semana. Porque há festa. E a razão não é outra que estarem as pessoas vivas e ser fim-de-semana. Esta celebração da vida só termina ao final de domingo. No dia seguinte, inicia-se uma semana mais, sem stress.
Crónicas de África – Preçário
Maputo, 27 de setembro de 2012
Quando um europeu chega à cidade, apercebe-se de que há coisas muito acessíveis, mas aprende pela carteira que a generalidade dos produtos é muito cara quando comparada com os preços praticados na Europa e, em particular, em Portugal.
Numa primeira impressão, em traço largo e impreciso, parece-me que os automóveis usados, na sua maioria importados do Japão, a mão-de-obra, nomeadamente, as empregadas domésticas, e o peixe são produtos e serviços muito acessíveis. Um jipe Toyota RAV4 com dez anos custa entre 5000 e 6000 euros, 1kg de camarão grande custa entre 3 e 4,5 euros e com cerca de 90 euros paga-se a mão-de-obra de uma empregada doméstica para um mês. Outra coisa substancialmente mais barata do que em Portugal são as chamadas telefónicas internas, ou seja, nacionais. Um minuto custa cerca de sete cêntimos e há imensos pacotes de 100, 200 e 500 minutos grátis. A coisa funciona assim: na compra de 500 meticais (15 euros) de chamadas, dão-te mais 500 minutos nessa rede.
E as rosas acabam aí… tudo o resto, que é a maioria das coisas, é a preços exorbitantes. Não quero fazer uma lista de compras. Seria despropositado e maçador. Farei, somente, o registo dos preços que me impressionaram mais. Vamos, então, ao preçário. Podem fazer-se compras em diversos locais. Nos hipermercados parecidos com os europeus, estes são fora da cidade, têm uma oferta muito diversificada e são caríssimos porque os produtos são importados, na sua maioria, da África do Sul. Nos supermercados dentro da cidade. Estes são mais pequenos e são uma reprodução exata dos nossos supermercados dos anos 70 e 80, com as mercadorias pelo chão, os preços marcados à mão e um balcão a servir de charcutaria. São bem mais baratos e têm muitos produtos portugueses. Nos mercados e nas vendas de rua. Nestes locais é possível comprar tudo, frutas, legumes, batatas, citrinos, água, peixe, etc… São os locais de venda mais baratos, mas é indispensável ter uma balança própria e andar com ela na mala. Há umas de pendurar os sacos que são pequenas e os vendedores não se importam que usemos. Nestes locais, o mais aconselhável é levar notas separadas nos bolsos e só mostrar uma de cada vez. Os eletrodomésticos são caríssimos. Um microondas de linha branca que se compra em Portugal com 30 ou 40 euros, aqui custa entre 100 e 150€. Todos os metais e alumínios como, por exemplo, as panelas e os talheres são artigos de luxo. Um jogo de 7 panelas, qualidade mediana, custa entre 200 e 300 euros. Um jogo de 6 garfos, 6 facas e 6 colheres de qualidade média/baixa custa entre 24 e 40 euros! Uma forma para bolos, pequena, para fazer um bolo para duas pessoas, custa 12€! A carne, meu Deus, a carne é caríssima! O fiambre anda entre os 15 e os 30 euros/kg. Um frango com 700 gramas custa entre 6 e 9 euros. Há muito pouca carne de porco e a generalidade da carne de vaca ou borrego também é muito cara. Todos os plásticos são ao preço do ouro. Um simples balde do lixo pode custar 9€ ou mais. Um cesto standard para a roupa suja, em plástico, custa qualquer coisa como 15€. A água e a luz são caríssimas, em contrapartida, o gasóleo é a 1€, ou seja, menos 0,50€ do que em Portugal. O fornecimento de água é eficaz, mas o sistema é curioso. A água pública não tem pressão para servir as casas. Então todas as casas têm um tanque ao nível do solo que é abastecido automaticamente de madrugada. Depois as pessoas têm uma bomba de pressão que manda a água para depósitos no telhado e nos terraços das casa, por fim, segue desses depósitos para as torneiras com a força da… gravidade! Mai nada! O certo é que funciona…
O que me parece mais avisado é fazer um mix. Temos de recorrer aos hipermercados de importação para adquirir certos bens, mas é interessante e mais acessível irmo-nos misturando e consumindo nos supermercados da cidade e nas vendas de rua. Sempre fui adepto de aderir aos costumes das terras que visitava. Como, desta vez, não é uma visita, mas uma estadia, acho que não tenho outra solução senão entranhar a vida daqui, mas isso é o que dá mais prazer!
Se sobre esta matéria, sempre tão apetecível e interessante que é o custo de vida em Maputo, tiverem dúvidas, coloquem-nas nos comentários que eu responderei com prazer… se souber…
Crónicas de África – Um Dia com M.
No espaço de um dia, alugou-me a casa, fomos às finanças e ao notário, fez diversos negócios para reparação de i-pods e telemóveis, Gosto mais de trabalhar com software do que com hardware, tem menos riscos. Quando lhe disse que ia precisar de carro, atalhou logo, Queres de cá ou importado? Se quiseres importado, também te importo? Não tens net? Olha, a oferta melhor é da empresa xis, eu trato-te disso. Impressora? Diz lá que marca queres? E o modelo? De repente, ele estava a parar em locais onde apanhava telemóveis que ia entregar no dia seguinte, as pessoas confiam nele, sabem que vai devolver arranjado. Desbloqueou-me o meu telefone português. Ao passarmos por uma rua, disse-me, Estás a ver aquele carro branco? Estou. Está a ser roubado. Depois dos nossos primos e dos seus ensinamentos, foi muito interessante conhecer o M. e toda a sua capacidade para se movimentar e negociar na grande cidade. Está sempre ativo e atento e o negócio corre-lhe nas veias. M., esse parking é exclusivo. Vamos ver… Estacionou lá, claro! Sem problemas. O M. tem uma dicção perfeita e uma agilidade de raciocínio invejável e sabe alterar o registo do discurso de acordo com o seu interlocutor. É absolutamente educado comigo, é meigo com a mãe e quando se aproxima de um cliente pode dizer com um tom muito cool e integrado, Oi mano, qual é o teu problema? Às tantas reclamei, M., duas horas para abrir uma conta?! Não estranhes, é por isso que isto é Moçambique! Não sei como será o futuro, não sou adivinho, para já, tudo isto se revela surpreendentemente tentador! Se eu podia viver em Maputo sem o M.? Poder, podia, mas não era a mesma coisa! Hahahaha…




