Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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Crónicas de África – Walk on the Wild Side

Crónicas de África – Walk on the Wild Side

Hlane Park, Suazilândia, 26 de dezembro de 2012

Tenho alguma dificuldade em escrever esta crónica. Não se trata de qualquer impedimento emocional ou psicológico. Simplesmente, vejo mal. Já lá vamos.

Saímos de Maputo por volta das 6:30 em direção à Namaacha. Para o interior, portanto. Logo a seguir a Boane, a pouco mais de 50km da Capital, a paisagem pinta-se de um verde intenso e fresco e torna-se montanhosa. A localidade de Namaacha é muito pequenina e belíssima. Um autêntico mergulho no tempo. Ruas amplas, bairros bem desenhados e casas pequeninas a compô-los. É aí que fica o posto fronteiriço com a Suazilândia. Passámos o controlo moçambicano, onde um guarda fronteiriço no meio de nada discutiu, com propriedade, a situação financeira de Portugal connosco, e depois o suazi. Tudo normal. O reino da Suazilândia é muito verde e bastante organizado. Poucos quilómetros depois da fronteira, entrámos no Hlane Royal National Park. Hlane diz-se “chelane”. Dirigimo-nos ao Ndlovu Camp onde fomos muito bem recebidos. Todas as cabanas têm um estrutura em betão rebocado de forma grosseira onde assenta uma armação em madeira tratada que suporta o telhado em palafita. É fresco. É típico. É rústico e… não há luz elétrica! Quando reservei, disseram-me que não havia luz elétrica mas que a mesma era substituída pelo gás. Afinal o gás só serve para o fogão e o frigorífico. É verdade, foi a primeira vez na minha vida que vi acender um f´soforo para ligar o frigorífico! Ao final da tarde, entra-nos uma pessoa pela casa dentro, acende cinco ou seis candeeiros a petróleo e distribui-os pela casa. Um deles, o maior, fica na rua, no chão, à porta da casa e todo o campo habitacional fica mergulhado na escuridão com pontinhos de luz amarela aqui e ali. E é à luz de um desses candeeiros a tremeluzir um fogacho frágil que vos escrevo estas linhas.

Primeiro, logo pela manhã, fizemos um safari pago. Enfiaram-nos num LandRover Defender e lá fomos, dez pessoas e o condutor/guia, explorar a reserva. A variedade da fauna é tão vasta que custa enumerar. Refiro só os que retive. Vimos impalas, inhalas, gnus, rinocerontes e leões, tudo em estado selvagem e em liberdade, claro. Ficou alguma tristeza porque não se avistaram elefantes nem girafas. No fim do safari, perguntei se podia passear com o meu carro por ali. Disseram-me que não para não estragar as estradas. Desculpa mal amanhada porque as estradas são lama. Como aqui ao pé do Ndlovu Camp há um outro, chamado Bhubesi Camp, perguntei se poderia ir visitá-lo. Disseram-me que sim, mas que voltasse antes de escurecer por causa dos elefantes. Claro que fui pelo mato. Ainda não tinha andado quinhentos metros e ficámos parados e boquiabertos a ver uma manada de elefantes a cruzar a estrada mesmo à nossa frente. Um deles ficou a ruminar erva e a olhar para o Iago e era de tal forma possante que a Paula dizia, como quem não quer a coisa, Vamos embora, vamos embora! Vimos muitas outras espécies de veados além dos que víramos de manhã donde destaco uns cinzentos muito altos e irrequietos que emitem um som parecido com o dos bois. No regresso, cerca de uma hora e meia depois, uma família de girafas fez-nos para no meio da estrada. Ficámos a observá-las a comer. Uma delas tinha cinco pássaros agarrados ao pelo a comerem parasitas. Quando o sol se pôs, fui sentar-me de frente para o grande lago que fica aqui junto às casas do Ndlovu Camp. E o espetáculo continuou. Os hipopótamos saíram da água onde tinham estado todo o dia para irem dormir e uma família de rinocerontes veio beber mesmo à minha frente.

Foi um dia diferente que termina com uma luz amarelecida a projetar sombras no meu caderno enquanto as palavras se ordenam emocionadas para vos contar uma experiência 
no lado selvagem da vida.
jpv


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Crónicas de África – Natal

Crónicas de África – Natal

Vilankulo, 22 de dezembro de 2012

Não há!
Não vale a pena estarmos com eufemismos nem rodeios, tal como se vive na Europa, aqui não há Natal.

É evidente que em cada lar cristão há Natal. Reunimos a família possível, invocamos a época com os símbolos do costume, o presépio, a árvore de Natal, o Pai Natal, as luzinhas a piscar. Mas isso é em nossas casas.

Do ponto de vista do quotidiano social, não há Natal por estas paragens e percebe-se porquê. As temperaturas são de trinta graus e mais, o ar é quente e húmido, as pessoas andam em chinelos, calções e t-shirt e metade da população portuguesa em Maputo voou para Portugal. A outra metade desandou para as praias. Não há iluminações de rua alusivas, nem Pais-Natal cintilantes, aliás, há um à porta da Socimpex, que é um armazém de bebidas na 24 de Julho. Não se ouve o ginglobel nas ruas, nem nas lojas, nem nos supermercados. Continuam a bombar os sons de Verão. Os funanás do momento. Os supermercados venderam uns enfeites e quatro tamanhos da mesma árvore natalícia, mesmo ali ao lado dos produtos para campismo, praia e lazer que saíram da prateleira e deixaram a rena triste e abandonada ao pé dos outros todos.


A comunidade cristã é vasta, mas a mescla cultural é tão ampla e está de tal forma impregnada no quotidiano moçambicano que a celebração do nascimento do Filho do Senhor se faz mais em casa de cada um e no coração de cada um do que pela profusão de símbolos invocativos pelas ruas. De resto, em Moçambique, o dia 25 de dezembro é feriado porque é o Dia da Família e não por uma relação direta com o Natal.


Aqui, em Vilankulo, a única árvore de Natal que vi até ao momento, foi uma pequenina que está na receção do lodge.


Por exemplo, eu estou sentado numa cadeira de recosto no alpendre de uma cabana de madeira e palafita, à minha frente o sol brilha e o mar reflete mil azuis, há barcos a dançar ao sabor das ondas e pessoas a banharem-se em roupas diminutas. A música é a das ondas pequeninas e da vegetação sacudida pela brisa. Como pode acordar-se o Natal na minha mente senão por um esforço propositado e consciente?


Quando estava em Portugal, costumava dizer, como toda a gente, que o Natal é quando um homem quiser e onde ele quiser e o que interessa é o espírito… eu continuo a achar isso, mas lá que o enquadramento faz falta, disso não haja dúvidas.


Em todo o caso, nem este blogue nem o seu autor deixam de desejar a todos os amigos e leitores, independentemente da nacionalidade, condição, credo, e quaisquer outras semelhanças ou diferenças que marquem a nossa humanidade, um Feliz Natal e um Próspero Ano Novo!

jpv


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Crónicas de África – Um Dia Depois do Fim do Mundo

Crónicas de África – Um Dia Depois do Fim do Mundo

Vilankulo, 22 de dezembro de 2012

Contra o que eu estava à espera, ontem não foi o fim do mundo, ou, se foi, eu tive direito ao Paraíso!

Estou recostado na cama, com a rede mosquiteira à minha volta, são nove e meia da manhã, tomámos o pequeno-almoço às sete e agora estamos só a deixar correr o tempo e a sentir a suave brisa que sopra do Índico e entra na nossa cabana para nos embalar o sono. Daqui, de onde estou, vejo as árvores e a vegetação do nosso jardim e, mais à frente, uma sucessão infindável de azuis marinhos a perder de vista e as velas dos dhows a cortarem a paisagem.

Vilankulo é uma terra pequena onde os lodges para turistas vivem porta com porta com as habitações locais. Tem a rua principal e mais duas ou três estradas asfaltadas. Tudo o resto é areia. Alta. Podem percorrer-se de carro desde que seja um 4×4. Uma dessas estradas de terra é à beira-mar com árvores grandes e antigas a projetarem sombras na areia da praia. Outras, só se percorrem a pé. Têm 1,5m de largo e vende-se aí de tudo. É tal a agitação que as pessoas podem perder-se umas das outras. Ficámos alojados no Baobab Beach Lodge. Sem ser luxuoso, acho que nem tem essa pretensão, é um local agradabilíssimo. Os quartos ficam em cabanas de madeira e palafita projetadas sobre a praia. Tem imensas árvores e sombras refrescantes e a passagem da brisa fá-las cantar para nós um cântico sussurrado e acolhedor. Apesar de estar equipado com uma cozinha comum, o Baobab tem um restaurante com uma oferta simpática e muito acessível.

Cada olhar, cada movimento, cada momento, pede uma fotografia. O nascer do sol por cima do mar é tão belo que a Paula levanta-se todos os dias às quatro e meia para vê-lo e fotografá-lo. Quando a maré vaza, o mar vai lá para longe e os cascos dos barcos ancorados sentam-se na areia a descansar. Poucas horas depois, volta a encher e vem marulhar junto às cabanas e os barcos reaprendem vontades navegantes. A água é tão límpida que podemos tê-la pelo peito e ver os pés com nitidez. Conhecemos uns sul-africanos simpáticos enquanto procurávamos algum carvão para grelhar. Nem eles, nem nós tínhamos. Acabámos por conseguir algum emprestado a um outro sul-africano e pagámos a um terceiro tipo para repor o que gastámos. Conversámos bastante e a noite tornou-se muito interessante por isso. A Paula ensinou-os a comer ananás grelhado que eles desconheciam e adoraram.

No dia seguinte, fomos todos juntos à ilha de Magaruke. É uma pequena ilha no arquipélago de Bazaruto com a particularidade de ter, mesmo à frente da ilha, uma barreira de coral com mais de um quilómetro e meio. E nem é preciso nadar. Basta colocar os óculos e o tubo respirador e a corrente faz o resto. Empurra-nos suavemente ao longo da barreira de coral. Acho que vimos todos os peixes que estão nas enciclopédias e nos filmes da Disney. Até vimos o Nemo! Tudo começou ainda na deslocação para a ilha onde vimos o peixe voador. O bicho emerge e voa literalmente por cima da água durante vários metros. Na barreira de coral, a variedade é quase infindável. Peixes amarelos com listas pretas finas, com listas pretas largas, peixes pretos com listas amarelas, peixes cinzentos, quase transparentes, com um pontilhado azul-neon por cima das narinas, peixes pretos com uma lista lilás a marcar toda a extremidade do dorso, uns peixes muito pequeninos, verde-prateado, em cardumes numerosos e a movimentarem-se de forma sincronizada, peixe-agulha, um peixe redondo em degradé desde o laranja forte até ao azul petróleo e, claro, corais. Castanhos, liláses, azuis, enfim, toda uma variedade fantástica como se nadássemos dentro de um imenso aquário. Para condizer, almoçámos um extraordinário peixe grelhado que o condutor e o cozinheiro preparam para nós com lume aceso numa arca de areia dentro do barco. No regresso, o condutor desligou o motor do barco e, como o vento estava favorável, abriu a vela do dhow e fizemos a viagem ao sabor do vento.

O Índico é diferente na ondulação, no matizado dos azuis, na temperatura cálida da água e no poder que o sol tem. Eu andei todo o dia com protetor solar E uma t-shirt vestida. NUNCA a tirei e, mesmo assim, apanhei um escaldão nas costas.

A viagem incluía o transporte, o almoço e o equipamento para ver o “aquário”. Não sabíamos na altura, mas incluía também as maravilhas do Índico sub-aquático.


Por razões diversas, o verão passado não descansámos. Acho que estamos a fazê-lo agora, neste Paraíso de pós fim do mundo!

jpv


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Crónicas de África – Road Trip Maputo – Vilankulo e Volta.

Crónicas de África – Road Trip Maputo – Vilankulo e Volta.

Vilankulo, 21 de dezembro de 2012

Eram quatro da manhã. Maputo nem parecia a mesma. Uma calma e um silêncio pintados pelo breu da noite que começava a render-se à luz. Nenhum veículo em trânsito. Cruzámos a avenida 24 de Julho como se estivéssemos numa cidade fantasma. Levámos meia hora a abandonar o perímetro da capital. Como prevíramos, nenhum auto-stop. Só começaríamos a ver auto-stops por volta das seis da manhã. Fizemos 740km em 10 horas à ida, em 16 horas à vinda, cera de 1600km, portanto. passámos por cerca de 30 brigadas policiais e só nos mandaram parar uma vez, na viagem de ida, a 17km do destino. Boa tarde. Boa tarde. O livrete, por favor. Aqui tem. Pode seguir, mano.

Muitas vezes corrigi os meus alunos por dizerem, Em Moçambique faz-se assim, Em Moçambique é assim, Em Moçambique funciona assim. E lá atalhava eu dizendo que não podiam referir-se a todo o país pelo conhecimento que tinham da Capital. Maputo é a Capital, mas não é Moçambique. Dizia isto sem conhecimento de causa. Pelo cálculo, pelo bom senso e por algumas leituras. Hoje, ainda não tenho todo o conhecimento de causa, mas sei, pela riqueza que a viagem teve, que Moçambique é um país fantástico, muito para além da sua Capital.

A paisagem é arrebatadora. Começa com grandes planícies, a perder de vista, com o horizonte “limpo”, cortado por aquilo a que o Iago chama de “Árvores à Rei Leão”. Depois, é todo um imenso palmar, uma mar de verdes luminosos a emoldurar a paisagem. De quando em vez, como em Zavala, ou em Inharrime, o azul turquesa do Índico vem compor o cenário e chega, mesmo, no caso de Inharrime, a beijar a estrada. É um azul intenso e irrepetível. Não é um azul forte. É um azul clarinho e límpido a fugir para o tom de verde-água de uma água de colónia que a minha mãe usava quando eu era criança. E, pelo meio das árvores e da vegetação, são às centenas os povoados construídos em casinhas redondas com telhados de palha (palafita) atada e apertada. E estes povoados, mesmo em pisos térreos, estão impecavelmente varridos e o seu traçado é perfeitamente visível.

Ao longo dos 740km há, sem exagero, pelo menos de vinte em vinte quilómetros, às vezes nem tanto, uma Escola Primária. Mais ou menos a cada cinquenta quilómetros, há uma maternidade e um posto da polícia e, sim, há combustível ao longo do caminho, embora, por vezes, alguns postos estejam avariados.

À exceção das auto-estradas, que são estéreis como consequência do seu próprio conceito, as estradas são centros de vida, espaço de negócios e transações, ponto de encontro, e a Nacional 1, que cruza o país de Sul a Norte, com retas de várias dezenas de quilómetros, algumas a perder de vista, é uma estrada constantemente bordejada de vendedores de tudo o que é vendável. Primeiro a venda da castanha de cajú com os rapazes a assinalarem os seus pontos de venda atando inúmeros sacos de plástico transparentes a uma árvore ou a um fio estendido entre dois pontos. Os sacos emprenham com o vento e fica um espetáculo de atrair atenções. Depois a zona da lenha. As pessoas fazem molhos de lenha, empilham-nos à beira da estrada e ficam à espera que alguém os venha comprar. Pode vir uma pessoa comprar um molho, como pode parar um camião e levar tudo de uma vez. Depois, a zona dos ananases. Grandes, pequenos, verdes, maduros, são pendurados em bancas de venda e vendidos baratos. Depois a zona dos cocos. Um saco com cinquenta cocos custa 200 meticais, mais ou menos 5,4€. Depois a zona das mangas, onde são vendidas ao alguidar (mais ou menos 10kg) ou à lata (mais ou menos 20kg). Se pedirmos para comprar uma manga, encolhem os ombros como se não batêssemos bem da tola e oferecem-na. Quem é que quer uma manga?! Há ainda a zona do carvão e das massarocas, cruas e assadas e há aquela cidade onde para se entrar ou sair, alguém tem de levantar uma cancela e há a zona do piri-piri onde se montam umas estantes em madeira e se expõem as garrafas enfileiradas.

E, além de tudo isto, há as vendas ocasionais. Alguém tem lá em casa qualquer coisa que quer vender e vem para a beira da estrada. Achámos particularmente curioso um jovem com um coelho branco pendurado pelas orelhas, com ele bem erguido no ar, a ver se alguém o queria levar.

Quando paramos para comprar umas mangas, perguntei a como eram, a vendedora apontou para um alguidar e disse, Cinquenta. E depois apontou para uma lata enorme e disse, Cem. Eu apontei para o alguidar e disse, Levo aquelas. Ela vazou-as para um saco, eram seguramente mais de dez quilos de mangas e tinham custado cinquenta meticais (mais ou menos 1,25€). O Iago perguntou-me, Como é que sabias que era 50 por todas? Eu pensava que era por cada uma. E eu ainda hoje penso na pergunta dele. Eu não sabia, calculei. Acho que, com o tempo, nos habituamos às dádivas da Natureza já que tudo o resto é tão caro e difícil.

Quando parámos para comprar ananases, demos com uma simpática e desdentada anciã, apareceu com uns ananases enormes, para aí com mais de dois quilos cada um. Quanto queres? Cinquenta. Ok, dá cá dois. E quando ia para seguir, ela levantou a mão como que a dizer Não vás já e disse:

– Papá, não tens um chocolate?
– Chocolates não tenho, não posso comer, fazem-me mal aos dentes.
– Mas posso eu, já não tenho dentes!

E largámo-nos todos a rir. Fiz-lhe uma contra-proposta:

– Tenho aqui uma Laurentina, queres?
– Quero.

O Iago deu-lhe a garrafa da cerveja para a mão e senhora começou a dançar e a rodopiar sobre si própria, esfuziante de alegria e cantando Obrigado! Obrigado! Obrigado! O interessante é que ela dera mais importância a uma oferta do que ao facto de ter acabado de vender dois ananases. E foi-se afastando do carro e a miudagem foi atrás dela, não tanto por lhe cobiçar a cerveja, mas mais por partilhar a alegria do momento.

À medida que atravessámos localidades mais povoadas como Xai-Xai, Quissico, Lindela, Maxixe, Morrumbene e Massinga, era sempre o mesmo espetáculo de cor e odores frutados e movimento e ruas de passagem transformadas em autênticos mercados com os produtos em bancas e pelo chão numa riqueza e numa demonstração de vida ímpares.

Quando chegámos a Vilankulo estávamos cansados, mas estávamos, também, saciados. Finalmente, ambientes genuínos e livres onde nem tudo está controlado. Quero dizer, onde quase nada está controlado e a vida brota e acontece com a pujança que a carateriza. Finalmente, um pouco de Moçambique fora de Maputo. Finalmente uma viagem à moda antiga, com incidências e peripécias, com paragens e trocas e conhecimentos. Depois conhecemos Vilankulo, que escreverei em breve, e regressámos pelo mesmo caminho mas com parte do percurso feito de noite. Completamente desaconselhado. Carros sem luzes a ultrapassar em contra-mão, atrelados sobrecarregados a partirem o engate com o veículo e a despistarem-se ambos,  pneus que rebentam e eixos da direção que partem por excesso de peso. Carrinhas pequenas que levam tanta gente e mercadoria que parecem almejar o céu, mas que perdem o equilíbrio e tombam para o lado. Uma aventura e um risco.

Viajar é uma experiência única. Viajar em Moçambique é uma experiência única e especial. É conhecer as gentes as terras, as movimentações, a força do labor e a paisagem de cortar a respiração. Tem magia e encanto este país e eles notam-se mais quando se cruzam as terras. E, por falar em cruzar terras, nesta viagem cruzámos o Trópico de Capricórnio que está assinalado com placas e onde fizemos a tradicional fotografia. Só um pormenor entre tantas coisas a registar. Melhor do que isto, só arranjar tempo e cruzar o país todo. Coisinha para 3000km e volta. Que é lá isso?!

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Dados da viagem:
Quilómetros percorridos: mais ou menos 1650.
Horas decorridas: cerca de 26.
Litros de combustível: cerca de 80.
Coca-colas bebidas: cerca de 16
Águas tónicas: 2.
Cervejas bebidas: 1.
Água consumida: mais ou menos 8l.
Frangos comidos: 1.
Mangas compradas: cerca de 20kg.
Ananases comprados:2.
Capulanas compradas: 2.
Canções ouvidas: cerca de 330. O Iago foi à Estrela, em Maputo, e comprou uma “coisa” onde se enfia a pen/flash com música, depois liga-se ao isqueiro do carro, e depois o rádio sintoniza a “coisa” como se fosse uma estação de rádio. Com comando e tudo por 180 meticais.
Auto-stops encontrados: mais ou menos 30.
Auto-stops em que fomos mandados parar: 1.
Paragens para comer: sei lá! umas seis.
Paragens por outras razões fisiológicas: bué!
Conselhos: Faça Você Mesmo!
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jpv


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Crónicas de África – Três Meses de Esperança

Crónicas de África – Três Meses de Esperança

Maputo 15 de dezembro de 2012

Todo o dia fora de antecipação e borboletas no estômago. A noite estava quente, acolhedora, e o aeroporto de Maputo tinha as entranhas repletas de portugueses à espera de portugueses. Para nós, aquele avião trazia a carga mais preciosa, o passageiro mais especial. O nosso filho chegou para nos visitar na passada quinta-feira à noite. Abraços infindáveis, as perguntas já feitas ao telefone e no skype agora repetidas com o calor da presença de quem nos anima a vida. Não é fácil descrever o que se sente com a ausência de um filho, e menos fácil ainda é descrever o momento da reunião. É uma completude, um preencher de vazios, é um refazer de sentidos e uma pacificação, é o afastar de um sobressalto constante no peito, é uma nuvem que se vai para o sol poder brilhar de novo. É só isso. E é isso tudo!

No dia seguinte, completaram-se três meses sobre a nossa chegada a Moçambique. Um trimestre de certezas e incertezas, de alegrias e dúvidas, de uma adaptação constante a tudo. Um trimestre de que ficam aqui alguns, poucos, aspetos que o marcaram.

Marco e Sandrine
Incansáveis, sempre prestáveis e absolutamente fundamentais na nossa chegada e adaptação até conseguirmos dar os primeiros passos sozinhos. Conhecer a cidade, onde ficavam as portas que mais depressa e urgentemente precisaríamos de abrir, encontrar casa, perceber hábitos, rituais e as atitudes das pessoas… tudo ficou mais fácil com eles.

O Nunes
O Nunes como é conhecido por cá ou o Zé, como às vezes ainda lhe chamamos, foi uma ajuda preciosa para encontrarmos um carro, perceber os valores, o tipo de carro que mais se adequa à cidade, fazer um bom negócio, as primeiras manutenções, enfim, conseguirmos autonomia e mobilidade. O Nunes ajudou e esteve sempre sereno. E, sobretudo, foi paciente!

A Escola
Percebemos, quando chegámos, a curiosidade dos colegas e até alguma interrogação sobre o que viríamos fazer. Rápido se percebeu que éramos do clã. Só mais dois professores. E, desde a direção a todos os colegas na sala de professores, fomos recebendo dicas de adaptação através das inúmeras histórias e múltiplos conselhos que nos foram dando. E os alunos entraram nesse circuito, Os meus pais fazem assim, E já foi ali, Olhe, quando lhe acontecer isto assim, assim, faça o seguinte… E fomos vencendo o trabalho e criando os nossos próprios espaços e pode dizer-se, ao cabo de três meses, pelo menos, não somos estranhos e temos mesmo alguns amigos novos.

A Casa
Criámos, porque se trata de uma pessoa séria, uma boa relação com o senhorio. A nossa casa tem vindo a crescer por dentro e vai ficando mais confortável à medida que o tempo passa. Em certa medida, acho que as pessoas tentam, com as devidas adaptações, replicar a sua vida original.

Maputo
Meu Deus, havendo de tudo como em Portugal, estando repleta de portugueses, o facto de ser uma cidade africana, muda tudo. Como a vida é diferente! Nada tem nada a haver com o nosso modo de vida. Os mercados de rua, as pessoas a vender de tudo pelas artérias da cidade, os rapazes oferecendo-se para levar as compras, o trânsito caótico e cuidadoso, a alegria das gentes, o falarem para nós na rua ou num espaço público só porque sim, só porque somos uma pessoa e ele também, os buracos na estrada, os edifícios novos a despontar em cada esquina, a presença constante de armas pesadas nas forças de segurança, os encontros com os agentes da polícia de trânsito, tudo com a marca do improviso, da calma, do hei de fazer, da bonomia e da simpatia e dessa fantástica relação entre as pessoas com o dinheiro a mediá-la. Maputo tem lixo, sim. É um problema a resolver. Mas tem também a marginal e tem a 24 de Julho ululante de gente e fervilhante de vida. É uma grande cidade e, ao mesmo tempo, uma pequena aldeia. Traçado pombalino, é uma urbe de que nos apropriamos com facilidade. A vida é dura, claro, para quem emigra para África, mas, queiramos nós agarrá-la com firmeza, pode ser bem agradável. Pelo menos, há esperança.

Clima
São oito horas e já está calor. E vai continuar a estar calor, às vezes roça o insuportável, depois, em poucos minutos, o céu escurece, desaba uma água forte e caudalosa, toda a cidade é varrida pela bátega e meia hora depois vem a calmaria de novo. Maputo não é uma cidade insuportavelmente quente. A brisa do mar adoça a agressividade do calor. A brisa do mar e a bátega de água lavadoira!

Arte e Festa
É um povo que se exprime com os materiais mais nobres e com os mais rudimentares também. Com três latas de Coca-Cola e um fio de arame, faz-se uma carrinho de brincar, um helicóptero ou um LandRover Defender. Trabalham a madeira com arte e o ferro e o tecido. E pintam em tela com tinta ou em pano com tinta e cera e têm pormenores deliciosos de criatividade. Estão sempre em festa. Cumprimentam-te na rua em festa porque sim. Cantam no local de trabalho, já assisti a caixas de supermercado e balconistas de um banco, dançam enquanto atravessam a estrada e têm o culto da músico e o ritmo irrequieto nas pernas, nas ancas, no corpo todo.

Chapas
Não é possível ficar-se indiferente. São aos milhares pela cidade e transportam toda a gente de todo o lado para todo o lado. Interferem com as vidas das pessoas e uma greve de utentes a este serviço para completamente a cidade.

Ritmos
Deitar por volta das 20h, 21h, levantar com a luz das 4:30h, 5:30h, começar aulas às 7:00h, almoçar às 11:30. Encarar as 8h como meio da manhã. Não forçar ritmos, aprender a navegar neles. Assumir que o descanso é para descansar. 

RSA
Presente em hábitos do dia-a-dia, em expressões de fala, em hábitos alimentares, em objetos que se trazem no carro ou se guardam em casa, a África do Sul é uma vizinha donde chegam ventos culturais todos os dias.

Mail, Facebook, Skype, Amigos e Familiares
As comunicações por e-mail, as mensagens no FB, as vídeo-chamadas pelo Skype mantiveram presentes os amigos de lá, dessa Pátria fria e distante e mantiveram a presença visual e sonora da família. 

Negociar em Meticais

Viver em Maputo é estar em permanente negócio, é medir forças em meticais constantemente. Tudo tem um preço, tudo se negoceia, tudo se vende. Não só coisas. Serviços. Tudo o que possa resultar no amealhar de umas moedas pode ser transacionável. 

Portugal
Lá longe… esfumado nas mentes e vivido nelas também. É sempre a Pátria. Uma pátria donde chegam com frequência notícias de apreensão. Sim, é para voltar, mas não será já. Portugal terá de esperar.

O Futuro

O futuro, para já, é aqui. Aqui estão as soluções e a esperança de crescer. Aqui está o trabalho e a vontade de viver. Sempre desalojados. Sempre realojados da esperança e da vontade de superar. Hoje, enquanto estávamos no trabalho, o nosso filho andou pela cidade a conhecer, e a falar com as pessoas que mostraram gostar muito dele e do seu aspeto tranquilo. Chamam-lhe “O Argentino”, “O Reggae Man”, “O Messi” ou o “Brother”. E comprou umas sapatilhas All Star por 250 meticais, 6€. Em Portugal custam 70€. Sim, também para ele há esperança. Sim, também para ele, ela parece morar aqui.

Três meses repletos de dificuldades e alegrias, de crescer como pessoas na multiculturalidade que é a sociedade moçambicana. Uma sociedade aberta e simpática onde há riscos e onde há, sobretudo, oportunidades. Mesmo estando um pouco “vaidosos” com a nossa coragem para mudar de vida aos 45 anos, somos humildes e estamos gratos a todos os que se cruzaram connosco por bem. Três meses! Venham mais três!

jpv


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Crónicas de África – Cinema

Crónicas de África – Cinema

Maputo, 10 de dezembro de 2012

Eis um assunto interessante. Há e não há. 

Há o Cine África que está quase sempre fechado ou, como surge no jornal, “sem sessão”. Há o Cine Avenida e o Cine Gilberto Mendes que quase só apresentam teatro local. Ainda não fomos, mas está prometido. Depois há o Charlot que quase só passa cinema indiano. Ainda temos o Gil Vicente que passa filmes antigos e, finalmente, há cerca de um ano para cá, inaugurou-se o Maputo Shopping que passa os filmes da modinha em salas Lusomundo com direito a 3D e tudo. Ainda não fomos nem está para breve. Curiosamente, aqui, quando se pensa em sair de casa, não é para ir ao cinema.

É claro que para uma cidade tão grande, a oferta é escassa e cara e é por isso que prolifera um tipo de comércio que tem tanto de ilegal quanto de fascinante. Os rapazes que vendem filmes em DVD nas ruas. A oferta é vastíssima. Qualquer filme com três meses de circuito comercial pode ser comprado nas ruas de Maputo com excelente qualidade de imagem e som por 100 meticais (2,70€). Também se arranjam filmes com uma semana de circuito comercial, mas, nesse caso, alguma coisa vai correr mal, garanto-vos. Acho que já vi o “007 – Skyfall” umas três vezes. Primeiro com a imagem manhosa, depois com o som manhoso, depois vi um que estava bom mas não tinha o fim do filme e acho que para a próxima já acerto num completamente bom e entretanto passaram os três meses da ordem! Mas trocam-mo sempre! Os rapazes colocam uma pilha com cerca de 100 DVD na mão trepando e amparando-se pelo braço acima. Cinema indiano, moçambicano e, claro está, toda a oferta da indústria de Hollywood. Se se para o carro e abre a janela, eles vão passando filmes para dentro do carro até perceberem que o cliente já escolheu. Depois não se pergunta o preço. É o tipo de negócio em que o preço está tacitamente aceite por vendedor e comprador e é universal. É claro que se pode solicitar por género: Arranja-me aí comédia romântica. E ele tira para o lado tudo o que é ação e espeta-nos com uma carrada de DVD no colo. Não convém pedir um filme de amor. Isso é uma pergunta que acaba com o Kama Sutra rodado em Bombaim no nosso colo. O mais engraçado é que, se acontecer comprar-se um filme estragado, seja porque não arranca, seja porque a imagem é de má qualidade, sai-se à rua e troca-se por outro sem ser preciso encontrar o vendedor a quem se comprou aquele em específico.

Outra forma de ver cinema é ter televisão. Muita gente tem. Nós decidimos não ter porque a oferta é caríssima e porque, verdade, verdadinha, nos estamos a desinteressar da televisão. Nem sentimos a falta.

No domingo, comprámos o jornal e fomos verificar o que estava em cena e reparámos que o Gil Vicente está a passar uma fita muito recente e original: “Os Três Mosquiteiros”. Não, não está mal escrito, é assim mesmo. Parece que em Hollywood já estão a rodar a sequela que será “Os Quatro Repelentes”. Mai nada. Olha a prova aí em baixo!


(Clique para Aumentar)
jpv


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Crónicas de África – Carrinhos de Choque

Crónicas de África – Carrinhos de Choque


Maputo, 8 de dezembro de 2012


Desde que estou em Maputo já tive dois acidentes. Parecidos, consequências semelhantes.


Como já tive oportunidade de escrever, o trânsito por aqui é caótico, mas há poucos acidentes e os que há, normalmente, não são graves. A mim calharam-me dois em quinze dias. No primeiro, ia descansadinho na avenida Julius Nyerere, parei num semáforo a uns metros do tipo da frente e, ainda mal não tinha parado, um estrondo invadiu o carro, andei uns três metros para a frente e pensei, Pronto, já tenho o carro todo desfeito. Quando saí do carro, a primeira visão que tive foi a do carro que embateu no meu. Tinha o capô todo arreganhado e a grelha da frente com severos maus tratos. Olho para a traseira do meu carro e nada. Para choques ok, porta ok, abri e fechei, não estava empenada, espreitei por baixo do carro e tudo me pareceu ok, inclusive o tubo de escape. O outro condutor a pedir-me desculpa, que a culpa era dele porque tinha batido por trás, que eu visse se tinha alguma coisa. Eu não tenho nada, mas o senhor parece que tem. Ele não me respondeu. Fez peso com o corpo no capô para o endireitar, deu-lhe uns murros até ele voltar a fechar, agradeceu-me e foi à vida dele.

Ontem foi diferente. Era uma descida e reparei, pelo retrovisor, que atrás vinha uma carrinha LiteAce, é uma Hiace mas mais pequena. Tem a frente direita. Guardei distância do da frente porque era uma carrinha de caixa aberta carregada de materiais e com dois homens em cima da carga. A meio da descida e por causa da fila, parei. Não tem nada que saber. Um estrondo enorme a ecoar dentro do carro, três metros de rojo, e claro que percebi que tínhamos levado nova cacetada só que esta fora com mais força. Pensei que escapar sem mazelas, nem polícia, nem papelada, duas vezes seguidas, seria muita sorte e tinha a certeza de que a minha traseira estaria severamente danificada. Quando olhei para a carrinha ainda tive mais certeza de que haveria danos. O tipo tinha a frente toda amarrotada. O ritual repetiu-se. Olho para a traseira do meu carro e nada. Para choques ok, porta ok, abri e fechei, não estava empenada, espreitei por baixo do carro e tudo me pareceu ok, inclusive o tubo de escape.

Sem sair de dentro da carrinha, o outro condutor, disse-me a medo:
– Está alguma coisa estragado, papá?
– Está! Tens a frente toda amarrotada.
– E no teu?
– O meu está ok. Por mim, podemos seguir. Mas tens de ter cuidado.
– Eu vou ter cuidado, papá.

Entrei para o carro, olhei pelo retrovisor e vi que ele nem sequer saiu. Seguiu no seu ritmo sonolento. Fixei melhor a vista na frente da carrinha dele e reparei que o amarrotado era o desenho de um pneu. O meu! Mas com vincos!

Assim, caros leitores, se estão em Moçambique ou a pensar vir para Moçambique e vão precisar de carro, aqui toda a gente precisa de carro, dou-vos um conselho. Não interessa nada se é a gasolina ou a gasóleo, se tem muita ou pouca cilindrada, se gasta muito ou pouco, se é grande ou pequeno, se é bonito ou feio, o que interessa é que tenha um pneu bem cheio de ar na porta de trás. Assim, faz o efeito “Carrinhos de Choque em Ambiente Urbano” e o meu amigo livra-se de boa.

Em todo o caso, para as estradas de Maputo e areais de Moçambique, aconselha-se um carro com tração às quatro rodas, não muito grande, com ar condicionado e… japonês! O resto é… boa sorte e boa viagem.

– Adeus!
– Adeus, papá!

jpv


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Crónicas de África – Assim Também Eu!

Crónicas de África – Assim Também Eu!


Maputo, 7 de dezembro de 2012

Há pormenores do quotidiano que são tão subtis, tão singelos, que não mereceriam uma crónica, contudo, são eles que marcam a diferença, que nos dão a exata medida do que é viver em Moçambique, mais especificamente em Maputo.
Trata-se de um delicioso pormenor de mensurabilidade. A realidade africana é diferente da europeia pelo que a forma como se medem as distâncias, o tempo e os produtos é, forçosamente, diferente.
Há muitíssimos carros do mesmo modelo que o nosso, em Maputo. Ora, eu desconfio, há algum tempo, desde que o comprei, que ele anda a consumir muito. Não sabia se seria um problema no carro ou o simples e mais provável facto de se tratar de um quatro por quatro a gasolina e a fazer percurso urbano.
Hoje, finalmente, apanhei a jeito um homem que estava parado dentro do seu carro que era exatamente do mesmo modelo que o meu. É importante que saibam os leitores que o senhor estava à porta da minha escola, mas eu não o conheço de lado nenhum. E tivemos a conversa que agora reproduzo que, para o bem e para o mal, não é fictícia, está rigorosamente como aconteceu.
– Bom dia!
– Bom dia!
– Desculpe incmodá-lo, mas tenho há pouco tempo um carro deste modelo e queria fazer uma comparação. Posso fazer-lhe uma pergunta?
– Claro, diga.
– Este carro consome-lhe quanto?
– Pouco. Gasta 2000 meticais por semana.
– Pois, obrigado, mas eu queria saber é a que é que isso equivale…
– Ah, é fácil, é de casa aqui e daqui a casa duas vezes por dia!
Aí, eu fiquei sem argumentos. A informação era tão certeira e compacta, o senhor estava tão seguro da informação, que era difícil dizer-lhe que, não obstante a sua boa vontade, ainda não me tinha dito nada… mas não desisti:
– E daqui a sua casa é longe?
– O senhor mora onde?
– Moro na cidade!
– Aí tem, também eu!
Apeteceu-me dizer-lhe que a cidade tinha várias dezenas de quilómetros de área, mas ele perguntou:
– Mas isso gasta-lhe quanto?
– Bem, de facto, anda a gastar-me 2000 meticais por semana…
– Está a ver, está a ver, está tudo bem, não se preocupe. É um bocado, mas é de ser a gasolina!
E pronto. Fiquei-me. Normalmente, o consumo mede-se em litros por quilómetros. Desta vez, encontrei alguém que o media em meticais por semana! Nunca tinha visto, mas há uma primeira vez para tudo. Fez-me lembrar a anedota do português que dizia, Tanto se me dá que aumentem a gasolina como não, eu meto sempre cinco contos! Sorri e fui à vida. A africana.
jpv


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Crónicas de África – Malária e Poesia

Crónicas de África – Malária e Poesia

Maputo, 6 de dezembro de 2012

A malária é um problema que afeta África em geral e, naturalmente, Moçambique não lhe é isento. Há muita publicidade institucional aconselhando as pessoas a usar mosquiteiros e a protegerem-se das mais diversas formas. Não é que apanhar malária uma vez seja mortal, longe disso, trata-se. Acontece que afeta órgãos vitais e contraí-la por diversas vezes, isso sim, pode tornar-se letal.

Percebe-se, pois, que, mesmo praticando cuidados básicos, repelentes, mosquiteiros, roupas que cubram o corpo, pode acontecer ser-se picado por um mosquito infetado, sobretudo, fora de Maputo.

Quando isso acontece, por mais tratamentos que se apliquem, há sempre aquele medo das consequências, Afinal o que é que me vai acontecer? Depois, a malta habitua-se e convive com essa realidade africana.

Um dia destes, a nossa empregada, a F., apareceu-nos às sete e meia da manhã, como é costume, mas trazia o filho mais novo, de um ano, às costas! Vai de perguntar-lhe se estava tudo bem e ela a responder em lágrimas de aflição que o trouxera porque estava cheio de febre e diarreia. Ainda por cima, era dia de chuva.

Não estivemos com meias medidas, enfiámos a F. enervada e em lágrimas no carro e levámo-los a um Centro de Saúde. Uma hora e meia depois, recebemos uma sms dela a dizer que estava despachada e fomos buscá-la. Os testes foram inequívocos: o bebé tinha malária. Por razões óbvias, a saúde da criança e a chuva, metemo-los no carro, levámo-los a casa e dissemos-lhe para não vir trabalhar enquanto a criança não estivesse estável. Nesse momento, a F. mostrou-se um bocadinho menos preocupada. Já sabia o que enfrentava, o bebé já tinha levado uma injeção e estava muito bem disposto. E atravessámos a tempestade, trovões, águas e lamas até chegarmos junto à sua casa e foi nesse caminho que, da malária, emergiu a poesia. Uma frase só, uma expressão, F. não sabe, mas desenhou uma invejável metáfora. Andam os escritores perscrutando os caminhos da inspiração, buscando a beleza estética nas formulações originais, gastando tempo em aturado estudo, para encontrar a poesia e afinal ela foi nascer da malária, ali, a meio do caminho entre Maputo e Albazine, no coração amedrontado de F. Comecei eu:

– Então, estás mais aliviada?
– Estou, fico sempre assustada. Essa doença já levou o meu pai e uma irmã minha.
– Tens medo…
É. Quando a doença aparece, o meu coração corre para longe.

E pronto. Ali fiquei eu. Com a expressão a ecoar-me na mente, com o desenho claro da preocupação da F. sempre que a malária bate à porta. Essa doença que tanto brota morte como poesia.

jpv