Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


Deixe um comentário

Sem Problemas de Escolha

Outra pequena conversa de interesse relativo que presenciei no supermercado. Trabalho longe de casa, logo, o fim-de-semana é a minha única hipótese de visitar o zoológico das compras.
Um casal jovem. Com menos de trinta. Junto à prateleira dos vinhos. A primeira fala é dela:

– Qual é que levamos?
– Este é bom.
– Olha, este aqui também.
– Olha, e porque é que não levamos este. É o que a minha mãe bebe.
– E este? Este é muito bom. O meu pai bebe este.
– Não levamos nenhum desses. Levamos este. Este é que é bom.
– Deixa-te de coisas. Levamos aquele que tem a fotografia das raparigas…
– Olha, já baralhaste tudo. Vamos levar uma de cada.
– Está bem. Assim como assim bebe-se todo!

E pronto. Sem problemas de escolha. Hoje devem estar a Guronzan e águinha com gás!


2 comentários

Histórias do Autocarro 28 – Com Licença da Palavra

Com Licença da Palavra

Caros leitores e amigos,
Pensei bastante se haveria, ou não, de escrever esta história. E a razão é simples. Tem um palavrão. Mas não é um palavrão uma vez. É um palavrão, sempre o mesmo, várias vezes em cada frase.

Decidi escrever. E a razão também é simples. Esta é uma típica história do autocarro 28 com uma típica figura dessas que vagueiam pelos transportes públicos. Substituir a palavra por outra, ou por uma letra, ou por uns símbolos, retiraria toda a piada e ênfase que a palavra coloca nas frases. Assim sendo, cá vai,  com licença da palavra…

Por razões de trabalho tive de fazer uma viagem diferente no 28. Basicamente, atravessar toda a cidade. Coisinha para quarenta minutos. Estava com dois colegas, o C e a MP. Ela entrou umas duas paragens depois de nós. Era uma senhora nos quarenta, baixinha, cerca de um metro e meio, cabelo liso, loirito e comprido, apanhado num rabo de cavalo. Faces redondas, muito alvas, com sardas e ruborizadas pela emoção. Tinha uns sapatos rasos e umas calças verdes, tipo fato-de-treino, mas coladas às pernas. Trazia os braços abertos e sacos de compras pendurados deles e balançava para os lados à medida que avançava no espaço com um enorme chapéu-de-chuva numa das mãos. Junto a nós, que íamos de pé, estava um banco livre. A senhora aproximou-se e disse, muito educada:

– Com licença? Os senhores dão-me licença? Obrigada.

E não se sentou. Atirou-se para cima do banco e alapou-se. Acertou com um saco na perna da MP. Ajeitou-se no banco e começou um longo solilóquio em jeito de desabafo pessoal e coletivo em que tocou a maioria dos assuntos da atualidade. Falava alto como se fossemos responder-lhe. Não íamos. Mas todo o 28 a podia ouvir na perfeição.

– Ah… isto é uma merda! O 28 está uma merda. É só a merda das greves. Antigamente era um bom serviço, agora é uma merda. Este país está uma merda. E os políticos? Os políticos só fazem é merda e depois vêm para a televisão e desculpam-se com a merda da Troika. E a televisão? A televisão antigamente dava programas bons, agora é tudo uma merda! Uma pessoa antigamente ia às compras e trazia alguma coisa que se visse. Agora? Agora é tudo uma merda!

Às tantas, alguém saiu do autocarro 28 e, ao sair, tocou no chapéu-de-chuva da senhora. A reação não se fez esperar:

– Oh, oh, querem lá ver que me abalam com a merda do chapéu?!

O C olhou para mim, sorriu e fechou esta história:

– Ó João, já temos aqui mais um motivo de narrativa!

E tínhamos.

jpv


5 comentários

Histórias do Autocarro 28 – Amigas Conversadeiras

Amigas Conversadeiras

Voltei ao autocarro. Não foi bem no 28, mas foi num percurso partilhado com o 28.
Entrei e entraram atrás de mim duas amigas conversadeiras, bem simpáticas, que tiveram excertos de diálogo interessantes. Daqueles que nos acordam o espírito pela manhã.
Como estava de costas nem me apercebi bem do seu aspecto. Sei só que uma era loira e a outra morena. Uma delas agarrou-se ao varão e a sua mão ficou mesmo à frente dos meus olhos. E aí começou o espectáculo. No espaço minúsculo de uma unha, a senhora tinha um malmequer branco com o centro negro e, ao lado, também em negro, uma ramagem a fazer lembrar o acanto. Não sei como, mas ainda houve espaço para uma tira diagonal em brilhantes minúsculos. E quando entraram, vinham a falar de unhas.
– Eu mostrava-te a minha unha, mas não consigo.
– Isto está apertado.
– Ao menos vamos quentinhas. Olha lá, como é que vai a tua ansiedade?
– Vai boa. Durmo pouco. Eh pá, tenho de fazer umas merdas… e tu amiga, tens conseguido dormir?
– Muito Bem. Eu durmo sempre bem. Às vezes, depois do meu namorado sair de casa ainda vou dormir mais um bocado!

Pois é, caros leitores, se eu podia viver sem transportes públicos pela manhã? Poder, podia, mas não era a mesma coisa!

jpv


Deixe um comentário

O Clã do Comboio – A Face Humana da Mulher Vampiro

A Face Humana da Mulher Vampiro

A Mulher Vampiro continua a viajar no seu banco e nunca mudou o seu aspecto nem a sua atitude. Sempre no banco lateral, sempre completamente vestida de negro com aquela variação pontual em castanho, sempre dormindo a viagem toda, sempre com os phones nos ouvidos, mergulhada na sua música, sempre sem dizer uma palavra. Sempre no sentido Entroncamento – Lisboa. Ao contrário de outros passageiros, nunca a encontrei numa viagem de regresso.
Foi hoje. E foi fantástico.
Regressei no regional das 18:48. Entrei numa carruagem semi-vazia e esperei. Estava a colocar a música nos ouvidos quando ela entrou. Não me viu. Ao contrário do que acontece pela manhã, entrou fazendo muitos e decididos gestos. Tirou a capa, tirou o casaco, colocou tudo num banco ao lado do seu. Poisou nele a carteira e uma mochila e uma pasta de documentos. Sentou-se. Tirou um computador pequenino da mochila, colocou-o no colo e só depois arrumou a capa e o casaco também no colo, por baixo do computador.
Quando me viu, abriu-se num sorriso e disse:
– Olá, é a primeira vez que o vejo no regresso.
– Pois é!
– Trago trabalho.
– Olhe que isso transforma-se num hábito.
– Já é!
E riu, riu abertamente e sonoramente e para além de todo este à vontade, havia cor.
Sem a capa nem o casaco, a Mulher Vampiro exibia uma camisola de lã verde-escura, um casaquinho de malha no mesmo tom, um enorme colar com pedras em tom esmeralda forte e um anel grande com uma pedra a condizer com o colar mas num tom mais aberto. E, imagine-se, trazia o cabelo apanhado o que lhe dá um ar mais executivo e deste mundo, menos etéreo. E o mais interessante e o mais fantástico é que olhava para ela e não conseguia ver a Mulher a Vampiro. Via só uma mulher bonita em trajes práticos de ir para o trabalho com espírito no olhar e expressão no sorriso. Havia toda uma humanidade que se esconde pela manhã. Se é verdade o que dizem dos vampiros, que andam de noite, hoje devo ter visto os últimos minutos da Mulher Vampiro pela manhã e os últimos minutos da sua face humana ao fim da tarde…


Deixe um comentário

O Clã do Comboio – Faz o que Quiseres

Faz o que Quiseres.

Não é passageira frequente.
Chegou rosada e anafadinha com as carnes a esticarem-lhe a napa encarnada do casaco. Tem mais de 50. Menos de 60. Umas calças de ganga com o tecido propositadamente arrepanhado numa imitação de feira dessas que estão na modinha. Apresentou-se com o cabelo preso atrás com um gancho de plástico a imitar osso de baleia e trazia um chapéu-de-chuva e três sacos. Um verde pequenino, uma mala de mão que mais parecia um saco de viagem em tons de castanho e lilás e um enorme saco às flores brancas e cor-de-rosa que colocou aos meus pés ocupando todo o espaço entre nós. Íamos de frente um para o outro. Óculos de ver ao perto. Unhas pintadas de encarnado já com pouco encarnado. Tirou do caso pequeno uma toalha turca de cozinha amarela com uns limõezinhos verdes estampados, linhas e uma agulha de croché e começou a bordar uma renda a toda a volta da toalha que lhe dava um ar mais… rendado.
Depois deu-se a conversa. Foi ela que ligou. Poisou a toalha no colo, coçou a cabeça com a agulha de croché que a seguir pôs na boca enquanto falava ao telefone em tom audível em toda a carruagem.
– Sim, és tu?
– (…)
– Entrei há 5 minutos.
– (…)
– Este não é o regional. Chega mais cedo.
– (…)
– Faz o que quiseres, mas está lá à hora.
– (…)
– Olha, faz o que quiseres, mas já que lá vais, traz o detergente p’rá roupa.
– (…)
– Faz o que quiseres, mas não te esqueças das minhas luvas.
– (…)
– Faz o que quiseres, mas prepara o jantar. Estão aí as coisas.
– (…)
– Não. Chego mais cedo. Este é mais rápido.
– (…)
– Não sei.
– (…)
– Faz o que quiseres, mas não te esqueças das minhas luvas.
– (…)
– Não sei. Faz o que quiseres. Desde que estejas lá à hora.


Deixe um comentário

O Clã do Comboio – Prognósticos…

Prognósticos…
Ontem, 2 de Fevereiro de 2011, regressei a casa no interregional das 18:18. E colhi um apontamento que me escuso de comentar. Fico-me só pelo regozijo de o reproduzir.
Entraram dois amigos no Oriente e a conversa foi simples e breve:
– Então, vais ver o jogo?
– Vou. Vamos a casa do meu cunhado.
– E o que te parece?
– Eh pá, sei lá, eles estão melhor…
– Não estão nada pá, vão levar a dose da última vez!
Prognósticos!


4 comentários

O Clã do Comboio – Reencontro

Reencontro
É oficial. estou velho. E gordo!

Apareceram na plataforma uns indivíduos novos. Novos na idade e novos no facto de não serem costumeiros na plataforma. Eram dois.
Um deles era baixo, tinha o cabelo comprido, arredondado à volta da cara e a dar-lhe por cima do ombro mas sem lhe tocar. O ar cansado, a barba por fazer. roupas práticas para o trabalho. O outro era alto. Barbinha feita e um ar menos cansado. Com entradas suficientes no couro cabeludo para dizermos que é careca ou para lá caminha. E lá entraram no interregional das 7:18 e lá foram a conversar um com o outro e com outras pessoas da carruagem. Sobretudo o baixinho da barba por fazer. Não os conheci nem os reconheci. Mas há um momento para tudo na vida e acontece que a determinada altura da conversa, o baixinho da barba por fazer abriu muito os olhos, fez um sorriso e abanou a cabeça num trejeito, assim como quem ajeita o cabelo sem lhe mexer. O sorriso, confesso, não lho conheci, mas o brilho no olhar e, sobretudo, o trejeito com a cabeça fizeram-me olhá-lo com mais atenção. Não precisei olhar muito. Tirei os phones dos ouvidos e disse-lhe:
– Bom dia.
Ele respondeu de forma muito educada e quase contrastante com o aspecto, numa voz suave e composta:
– Bom dia.
– Sabe, você foi meu aluno para aí há uns 20 anos.
– Acho que não. Não o reconheço.
– Eu sou professor em Alcanena.
– Eu nunca estudei em Alcanena.
– Peço desculpa, devo ter feito confusão.
E aqui fiz aquela figura ridícula que sempre fazemos quando confundimos alguém com outrem. A minha viagem estava condenada e a minha reputação de excelente memória tinha acabado de sofrer um duro golpe. Acontece que até à morte há esperança e o moço, conversador, quis acrescentar qualquer coisa ao diálogo como que a honrar as suas próprias memórias ou a buscar um laço entre nós que mantivesse a chama da conversa acesa:
– Não tenho nada a ver com Alcanena, excepto que conheço um professor de lá, um excelente professor, talvez o senhor o conheça, chama-se João Paulo Videira.
– O João Paulo Videira sou eu!
– Ena pá… é mesmo! Você está gordo! Nem o reconhecia. Mudou as feições.
– Já estive mais…
– Você foi meu professor em Constância!
– Isso foi há 18 anos. Não errei muito.
– Olhe aquele ali é o Tó.
– Pois é! Estou mesmo velho. Já tenho alunos carecas!
O Tó riu. Rimos todos. Lembro-me muito bem deles. O baixinho da barba por fazer na altura não tinha barba. Tinha uns 12 ou 13 anos. Era uma criança muito activa, irrequieta mesmo, mas nunca foi mal educado. Pelo contrário, era aquele tipo de miúdo cordato, extremamente educado, mas que não parava quieto. Já na altura balançava o corpo ao andar e fazia um trejeito com a cabeça para consertar o cabelo. Tinha um brilho no olhar que transparecia esperança e boa disposição.
O Tó, agora a caminhar para careca, era diferente. Sempre foi um miúdo mais tranquilo, mais pacato, de evitar confusões, mas sempre foi, também, mais teimoso. Convencê-lo de que tinha de contrariar-se era muito difícil.
E agora, já não são personagens antigas da minha memória. São dois homens a caminho do trabalho no interregional das 7:18.
Estou mesmo velho. E, pelos vistos, gordo!


1 Comentário

O Clã do Comboio – O Rómingue

O Rómingue
Há já uns dias que não colhia nenhuma história e hoje apanhei duas. De maneira que são fresquinhas. Esta traduz uma fusão. A fusão cultural e linguística entre a mais profunda ruralidade e o mais recente cosmopolitismo tecnológico. A história é breve. Basta uma descrição e uma tentativa de reprodução de uma conversa de que só ouvi metade. Porquê? Simples. Foi ao telefone e não sei o que a pessoa do lado de lá do aparelhómetro disse.
Era uma mulher baixinha, muito coradinha, cabelito curto, voz trigueira de quem não cala resposta e roupas bem campestres preparadas para o frio. Botas de cano alto em camurça, gastas. Se não falasse como falou, diria que alguém do interior tinha ido ao médico e regressava a casa no InterCidades das 19:30h. Mas a conversa despistou essa possibilidade. Ela e os outros, para aí uns quatro, já contando com o marido, tinham acabado de chegar. E foi assim.
– Tou sim?
– (…)
– Sou. Estamos no treine. Aterrerizámos há pouco.
– (…)
– Em a gente chegando, vamos organizar a nossa vida.
– (…)
– Não senhor, a vida pode esperar.
– (…)
– Não senhor, a gente tem de organizar a nossa vida e visitar os parentes.
– (…)
– Sim, eu sei. É o do talho, não é? A gente aluga um carro de praça.
– (…)
– Não. Não atendi. É que o meu telefone tem uma coisa estúpida que é o rómingue. A gente até por atender paga. De lá para cá é 75 cêntimos mas de cá para lá é mesmo uma coisa estúpida.
– (…)
– É o rómingue.
– (…)
– Beijinhos p’ra vocês. Deus queira que corra tudo bem com o Toino.
– (…)
– Beijinhos p’ra vocês.
– (…)
– Beijinhos p’ra vocês.


2 comentários

O Clã do Comboio – Julieta, porque é que não fazemos amor?

Julieta, porque é que não fazemos amor?
Não é possível ninguém dizer com rigor qual é a sua canção preferida ou a sua música preferida. Quando nos fazem esse tipo de pergunta, em vez de dizermos uma, respondemos com uma imensa listagem. E isso é normal. Dependendo do momento que estamos a viver e da nossa disposição, referimos temas mais tranquilos ou mais exuberantes, géneros mais clássicos ou mais revolucionários. E acontece isto porque a música é uma expressão da nossa alma.
Há, no entanto, um critério que restringe um bocadinho as nossas preferências. É o das músicas e/ou canções que nos marcaram.

Tinha eu 17 anos, estava no auge dos amores, dos sentimentos arrebatados, das paixões, das descobertas, das leituras marcantes, das mulheres para além das roupas, das tristezas profundas, dos desgostos de amor, das saídas à noite, das amizades para sempre, das ideias, dos planos para mudar o mundo, das escolhas que iriam afectar a minha vida para sempre, das borbulhas na cara, das causas e da ideia de que algo no Universo seria diferente por minha causa, quando um amigo me estendeu um par de cassetes e disse:
– Toma, vendo-tas baratas. Isto é do melhor que há. Ouve um bocadinho.
Corri a um gravador e ouvi. Ouvi e apaixonei-me. Aquilo era diferente daquele som tecno e formatado que inundava os anos oitenta. Aquilo era genuíno. Tinha poucas palavras, mas os instrumentos, sobretudo a guitarra, pareciam falar. E aquilo soava como se tivesse uma história e acordava em mim coisas boas. Comprei-as. Era um álbum todo gravado num concerto o que quer dizer que, além da música, eu ouvia a multidão exultante e a sua interacção com os músicos. Aquela música marcou-me de tal forma que nunca mais a deixei de ouvir. As cassetes passaram tantas vezes que acabaram por, literalmente, gastar-se. Mais tarde comprei o vinil e depois, quando surgiu a tecnologia digital, acabei por comprar os CDs que entretanto estão riscados de tanto uso. Ouço-os em casa, no carro, no computador, onde quer que esteja e possa. Depois, quando o vídeo se tornou mais portátil e de melhor qualidade ofereceram-me o DVD do concerto. E mais recentemente com o surgimento dos sistemas de armazenamento de massa, vulgo pen drive, leitores mp3 e mp4, arranjei o ficheiro com o concerto coloquei-o no meu leitor mp3 e volvidos 26 anos continuo a ouvir esta música como se fosse a primeira vez e de cada vez que a oiço sinto esperança e força e fé e volto a querer mudar o mundo e a fazer coisas geniais e a fazer a diferença e a tocar o Universo de bondade. É a minha música da manhã, da tarde, da noite, do levantar e do deitar. É a minha música de rir e de chorar, de pensar e de reflectir e também de brincar.

O colega que me vendeu as cassetes chamava-se José Sioga, morreu dois meses mais tarde num acidente de automóvel, mas deixou-me esta herança de vida. E eu fui ser feliz, fui namorar, fui casar, fui ter um filho e criá-lo, fui tirar um curso, fui ser professor, fui ser outras coisas, fui fazer um mestrado, fui ver a minha irmã crescer, fui ver o meu pai morrer, fui ver o meu filho fazer-se homem, fui celebrar-lhe os aniversários, fui marcar as férias com a minha mulher, fui construir uma casa, fui traçar um caminho de vida e sempre, mesmo sempre, em momentos de exultação e acabrunhamento, o meu som de fundo esteve lá a acompanhar-me, a ajudar-me a fazer de mim o homem que sou.

Ia aqui no interregional das 7:18, com seis ou sete pessoas à minha volta com música nos ouvidos, e ia a pensar o que é que estariam a ouvir e porquê. E, de repente, pensei nas minhas próprias motivações e na minha própria música e, como tantas vezes na minha vida, escrevi ao som dela. Só que, desta vez, escrevi também sobre ela…

Este Natal quis homenagear o jovem que me apresentou esta música e faleceu tragicamente dois meses depois. Faleceu mas continuou vivo. É que o simples facto de me ter apresentado o concerto “Alchemy Live” dos Dire Straits mudou por completo a minha existência. Não sei como teria sido a minha vida, mas sei, com a certeza do meu crer, que teria sido algo completamente diferente, infinitamente mais pobre.
E queria homenagear o Mark Knopfler e os Dire Straits por me terem transmitido essa energia e essa força e por terem sido o meu canal de contacto e comunicação com a Divindade ao longo dos últimos 26 anos.

Eu não sei o que é que os outros passageiros do interregional das 7:18 vão a ouvir, embora sinta essa curiosidade. Eu cá vou escrevendo enquanto a guitarra chora, suave e doce, e o Mark entoa:
– Juliet, why don’t we make love?


1 Comentário

O Clã do Comboio – Trim, triiim, triiiiiiiiiim…

Trim, triiim, triiiiiiiiiim…
Há dias que nascem agitados até mesmo no seio de um clã semi-adormecido e com os rituais muito incorporados.
Um dia destes, parecia que andava o diabo à solta no interregional das 7:18h. Mas não um diabo qualquer. Era o diabo dos ruídos incomodativos.
Já na estação me pareceu que havia certo alvoroço no ar, pouco costumeiro. Pensei, Assim que o comboio arrancar, começa tudo a dormir e é um descanso. É o começas. Vamos por partes.
Primeiro sentou-se um moço à minha frente com música nos ouvidos. Acontece que tinha um daqueles auriculares que, além de empurrarem a música para dentro, também a explodem para fora em forma de ruído impreciso. Acresce ainda que se tratava de um moço generoso que não queria a sua frenética batida só para si. Vai daí, coloca a coisa no máximo do volume e, que eu reparasse, nove pessoas deitaram-lhe olhares acusadores. E o moço nada! Até que alguém lhe tocou no ombro e disse:
– Olha, importas-te de baixar o som?
O tipo não ouviu. O outro falou mais alto e alterou ligeiramente a frase:
– Baixa o som!
Pensámos que a coisa ia tranquilizar. Não tranquilizou.
Duas filas mais atrás, toca um telefone. Triim, triiiim… Que eu contasse, tocou aí umas cinco vezes. A dona dele atendeu e falou baixinho. Nisto, o tipo que tinha mandado baixar o som ao outro começou a emitir um ruído polifónico do bolso do casaco:
– Estou?!
Falou baixinho mas não se livrou da vergonhaça. Ainda agora tinha mandado calar o outro e já não deixava ninguém dormir. Depois, tocaram mais três telemóveis e quando chegámos a Vila Franca de Xira, o ambiente acalmou e o pessoal pensou que embora só faltasse um terço da viagem, poderíamos finalmente descansar um pouco. E foi aí que se deu o episódio que acabou por motivar este texto. Ao fundo da carruagem viajava uma alma que dormia profundamente com música nos ouvidos e por essas duas razões não ouvia nada. Ora, por cima dela, tinha colocado uma mochila que, entre outras coisas, levava um telemóvel estridente no máximo do volume. O desgraçado tocou, tocou, tocou… E a senhora adormecida com a música nos ouvidos nem pestanejava. Quando alguém conseguiu perceber o esquema, ou seja, de onde vinha o som, de quem seria mochila, acordou a mulher que atendeu o telefone. Guardou-o no bolso do casaco e recolocou a mochila na prateleira por cima da cabeça. A malta das 7:18 pensou que ia descansar uns minutinhos. Enganou-se. Um som igualmente estridente mas diferente do anterior ecoou na carruagem e ninguém parecia querer atender aquele também. O pessoal olhava, olhava, o som parecia vir do mesmo sítio mas a senhora já tinha de lá tirado o telemóvel e ainda por cima aquele não era o toque dela. Quando já ninguém conseguia disfarçar a má disposição, ela olhou em volta, viu as caras zangadas dos companheiros de viagem, tirou a música dos ouvidos, apercebeu-se do som, foi à mochila, tirou de lá outro telemóvel, atendeu e foi a conversar até Lisboa numa voz audível em toda a carruagem. Deu instruções para o almoço, para o jantar, disse o que ia fazer a Lisboa, combinou quem ia buscar as crianças e falou muito do seu trabalho e do seu marido. Se bem me lembro, comentários pouco simpáticos.
Quando chegámos a Lisboa, as olheiras eram mais que muitas e os passageiros regulares do interregional das 7:18h. não sabiam bem se haviam de rir ou chorar. Para catarse colectiva, houve um que, ao sair, ainda exclamou:
– Este pessoal deixa os telemóveis ligados e não os atende. É uma falta de respeito.
Era o tipo que tinha mandado baixar o som ao outro quando julgávamos que esse era o maior dos nossos problemas.