Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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O Clã do Comboio – Julieta, porque é que não fazemos amor?

Julieta, porque é que não fazemos amor?
Não é possível ninguém dizer com rigor qual é a sua canção preferida ou a sua música preferida. Quando nos fazem esse tipo de pergunta, em vez de dizermos uma, respondemos com uma imensa listagem. E isso é normal. Dependendo do momento que estamos a viver e da nossa disposição, referimos temas mais tranquilos ou mais exuberantes, géneros mais clássicos ou mais revolucionários. E acontece isto porque a música é uma expressão da nossa alma.
Há, no entanto, um critério que restringe um bocadinho as nossas preferências. É o das músicas e/ou canções que nos marcaram.

Tinha eu 17 anos, estava no auge dos amores, dos sentimentos arrebatados, das paixões, das descobertas, das leituras marcantes, das mulheres para além das roupas, das tristezas profundas, dos desgostos de amor, das saídas à noite, das amizades para sempre, das ideias, dos planos para mudar o mundo, das escolhas que iriam afectar a minha vida para sempre, das borbulhas na cara, das causas e da ideia de que algo no Universo seria diferente por minha causa, quando um amigo me estendeu um par de cassetes e disse:
– Toma, vendo-tas baratas. Isto é do melhor que há. Ouve um bocadinho.
Corri a um gravador e ouvi. Ouvi e apaixonei-me. Aquilo era diferente daquele som tecno e formatado que inundava os anos oitenta. Aquilo era genuíno. Tinha poucas palavras, mas os instrumentos, sobretudo a guitarra, pareciam falar. E aquilo soava como se tivesse uma história e acordava em mim coisas boas. Comprei-as. Era um álbum todo gravado num concerto o que quer dizer que, além da música, eu ouvia a multidão exultante e a sua interacção com os músicos. Aquela música marcou-me de tal forma que nunca mais a deixei de ouvir. As cassetes passaram tantas vezes que acabaram por, literalmente, gastar-se. Mais tarde comprei o vinil e depois, quando surgiu a tecnologia digital, acabei por comprar os CDs que entretanto estão riscados de tanto uso. Ouço-os em casa, no carro, no computador, onde quer que esteja e possa. Depois, quando o vídeo se tornou mais portátil e de melhor qualidade ofereceram-me o DVD do concerto. E mais recentemente com o surgimento dos sistemas de armazenamento de massa, vulgo pen drive, leitores mp3 e mp4, arranjei o ficheiro com o concerto coloquei-o no meu leitor mp3 e volvidos 26 anos continuo a ouvir esta música como se fosse a primeira vez e de cada vez que a oiço sinto esperança e força e fé e volto a querer mudar o mundo e a fazer coisas geniais e a fazer a diferença e a tocar o Universo de bondade. É a minha música da manhã, da tarde, da noite, do levantar e do deitar. É a minha música de rir e de chorar, de pensar e de reflectir e também de brincar.

O colega que me vendeu as cassetes chamava-se José Sioga, morreu dois meses mais tarde num acidente de automóvel, mas deixou-me esta herança de vida. E eu fui ser feliz, fui namorar, fui casar, fui ter um filho e criá-lo, fui tirar um curso, fui ser professor, fui ser outras coisas, fui fazer um mestrado, fui ver a minha irmã crescer, fui ver o meu pai morrer, fui ver o meu filho fazer-se homem, fui celebrar-lhe os aniversários, fui marcar as férias com a minha mulher, fui construir uma casa, fui traçar um caminho de vida e sempre, mesmo sempre, em momentos de exultação e acabrunhamento, o meu som de fundo esteve lá a acompanhar-me, a ajudar-me a fazer de mim o homem que sou.

Ia aqui no interregional das 7:18, com seis ou sete pessoas à minha volta com música nos ouvidos, e ia a pensar o que é que estariam a ouvir e porquê. E, de repente, pensei nas minhas próprias motivações e na minha própria música e, como tantas vezes na minha vida, escrevi ao som dela. Só que, desta vez, escrevi também sobre ela…

Este Natal quis homenagear o jovem que me apresentou esta música e faleceu tragicamente dois meses depois. Faleceu mas continuou vivo. É que o simples facto de me ter apresentado o concerto “Alchemy Live” dos Dire Straits mudou por completo a minha existência. Não sei como teria sido a minha vida, mas sei, com a certeza do meu crer, que teria sido algo completamente diferente, infinitamente mais pobre.
E queria homenagear o Mark Knopfler e os Dire Straits por me terem transmitido essa energia e essa força e por terem sido o meu canal de contacto e comunicação com a Divindade ao longo dos últimos 26 anos.

Eu não sei o que é que os outros passageiros do interregional das 7:18 vão a ouvir, embora sinta essa curiosidade. Eu cá vou escrevendo enquanto a guitarra chora, suave e doce, e o Mark entoa:
– Juliet, why don’t we make love?


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O Clã do Comboio – A Face do Sono

A Face do Sono

À medida que vou viajando, os aspectos mais óbvios vão-se tornando comuns e o meu olho observador procura o menos comum. Não quer dizer que encontre aspectos menos interessantes, pelo contrário, só não estão visíveis a olho nu.

Algo que comecei por notar sem consciencializar, mas de que agora tenho a certeza constitui um fenómeno interessante é aquilo que chamei a face do sono.

Não sei se há alguma relação entre a nossa disposição, o nosso carácter, o estado da nossa alma e a forma como deixamos transparecer isso na face enquanto dormimos. Admito que haja. Tenho quase a certeza, empírica, de que há. E vem-me esta certeza de ter começado a “coleccionar” faces de pessoas que dormem no interregional das 7:18 entre Entroncamento e Lisboa.

É verdade, não dormimos todos da mesma maneira. E a diferença começa aí. Há os que se mantêm direitos e recostam a cabeça, há os que recostam o corpo todo, há os que se apoiam no braço do banco e tombam para a esquerda, há os que se encostam à janela e enquanto dormem vão dando pequenas e involuntárias cabeçadas no vidro, há os que encostam o queixo ao peito, tombam a cabeça para a frente e assim é que dormem, há os que dormem com música nos ouvidos e os que o fazem sem ela. E há os que têm o sono leve e vão dormitando e intermitentemente abrindo um olho para ver o ambiente do espaço, assim como há os que dormem a sono solto até ao destino. Tudo isto é interessante, mas nada comparável ao verdadeiro interesse: o da face do sono.

Um destes dias, entrei no comboio, sentei-me e sentou-se à minha frente uma pessoa daquelas que dormem sobre o queixo. E não pude deixar de reparar nela porque dormia profundamente mas a sua face estava sisuda, preocupada e, mais do que isso, sofrida. Diversas vezes tive a sensação de que ia chorar. Não aconteceu, mas juraria que esteve quase. Depois reparei que havia mais pessoas assim. Franzem as sobrancelhas enquanto dormem, cerram os dentes e os lábios, fecham os olhos com força e sofrem o sono. Outra categoria é a dos pensativos. Têm um sono sério, uma face fechada e sisuda. Não há ali sofrimento mas seriedade. Estes, normalmente, mantêm o corpo direito e recostam somente a cabeça.
Um dos grupos mais interessantes é o dos desleixados. Tudo é desorganização, até na forma como dormem. Encostam-se à janela, alguns colam-se literalmente a ela, e vão dormindo e cabeceando. Os braços caem desorganizados pelo corpo e transparecem indiferença. Alguns destes sorriem durante o sono. Mas, os mais engraçados, que até nem são a maioria, são os tranquilos. Estes tipos, não sei o que fazem na vida nem à vida, mas sei que poderia vir de lá o comboio que nada os acordaria! Recostam o corpo todo, alguns destes, além do corpo, também recostam a cabeça. Normalmente fecham a boca mas há, nesta categoria, os que vão dormindo como se estivessem para comer a carruagem, de boca escancarada. E o que os une é uma clara expressão de tranquilidade. Também entre estes há os que sorriem enquanto dormem profundamente. Só acordam no destino. Vá-se lá saber como sabem que chegaram, o certo é que sabem. São invejáveis. Até a dormir transparecem tranquilidade, como se nada fosse com eles..

E assim, à medida que a máquina rola e os solavancos se repetem e os sons se propagam, a face do sono viaja no interregional das 7:18 e por ela, vemos o que vai no mundo. A preocupação e o sofrimento, a seriedade, a desorganização e a tranquilidade de quem vai de Entroncamento a Santa Apolónia na mais absoluta paz do senhor. Todos têm algo em comum. Durmam como dormirem, estas pessoas têm de ter o nosso respeito porque ainda a noite banha a Terra já elas estão a trabalhar. A sono solto.


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O Clã do Comboio – O Casal que Fez Amor no Interregional das 7:18

O Casal que Fez Amor no Interregional das 7:18

Não estranhem o Título.
Eu próprio não queria acreditar, mas foi o que aconteceu.
No lugar onde costumo ir sentado, ao lado da senhora que lê, da menina que dorme e do homem que sai em Santarém, vê-se o fundo da carruagem onde os bancos estão dispostos lateralmente, ou seja, virados para o centro do comboio. O casal ia sentado nessa zona, lado a lado. Ele era um homem nos seus quarenta e muitos, grisalho, com muito boa figura. Vestia fato e gravata. Camisa azul-claro e gravata encarnada. Ela seria ligeiramente mais nova, tinha um sorriso bonito, em arco, a enfeitar-lhe a cara magra e o cabelo levara um corte a lembrar a Jacqueline Kennedy. Vestia um saia e casaco cinzento com uma ténue risca branca e um casaco comprido de fazenda grossa, castanho-escuro, por cima da roupa.

Estavam conversando. E a conversa começou a animar. Não que falassem alto, mas começaram a sorrir um para o outro cada vez com mais frequência. No caso dela, houve mesmo alturas em que o sorriso deu lugar a uns risinhos agudos. A pouco e pouco a sua familiaridade foi crescendo e trocaram alguns beijinhos na face e depois, por entre a animada conversa, alguns beijinhos nos lábios. Ora, tudo tem um começo e tudo tem um fim. Nesta caso, o começo foi muito claro. Exactamente quando trocavam um desses beijinhos pequeninos, ela complementou-o colocando a sua mão em concha na face dele e acariciou-o. E ele acariciou-a de volta com uma mão grande aberta ocupando-lhe a face toda. E o problema não foram as suas faces acolhidas pelas suas mãos. O problema é que esse toque e o calor dele prolongaram o beijo que era para ser pequenino e ficou longo e terno e dedicado e húmido de lábios e línguas. E ela puxou-lhe pela gravata e sentou-se no colo dele arqueada e empurrando-lhe a cabeça para trás até que batesse no vidro e dobrou-se sobre ele beijando-o. Ele ficou admirado mas não negou. E a saia dela subiu com o gesto de afastar as pernas para se sentar nas dele, mas pouco se viu disso porque o casaco comprido castanho-escuro caindo direito até ao chão tapava tudo.

Sei que continuaram beijando-se ofegantes e as mãos dele navegaram para baixo do casaco dela e libertaram o que tinham de libertar e juntamente com os beijos começou um inequívoco balancear ritmado. Por esta altura, havia um burburinho no comboio de pessoas que reprovavam baixinho o que não tinham coragem para dizer alto e outras que não reprovavam, É lá com eles, mas o certo é que ninguém ficou indiferente. Ou melhor, quase ninguém. Eles iam de frente para a mulher vampiro que abriu os olhos, encolheu nos ombros e voltou a fechá-los. O ceguinho tirou os óculos escuros e nesse dia não dormiu. A maioria das pessoas, quer aprovasse, quer reprovasse, não tirava os olhos do casal que fazia amor no interregional das 7:18.

E o ritmo deles cresceu e cresceu também a ofegância e pareceu-me mesmo que estavam a chegar a um ponto de não regresso, onde seria impossível parar a jactância do amor a bordo quando aconteceu o inesperado.
O revisor aproximou-se de mim, tocou-me no ombro e disse:
– Desculpe lá, bilhete…
Saquei do passe, mostrei-lho e respondi:
– Desculpe, ia a…
– Não há problema. A esta hora muita gente vai. Mas você ia bem ferrado.
Pois ia. Sabe, ando cansado.
Guardei o passe, tentei adormecer e recuperar a acção no momento onde a deixara, mas não consegui. Há coisas que só nos acontecem uma vez na vida!


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O Clã do Comboio – Morning Breakfast

Morning Breakfast
Tem as mãos largas. As unhas transparentes acabam num risco branco. Não sendo magra, não é gorda. É aquele tipo de mulher a que chamamos bem constituída. A cara larga e ampla, o cabelo louro, pelos ombros, as pernas largas e roliças. Traz sempre um ar sério. E tudo isto, sendo a sua especificidade, é comum e não suscita um texto. Mas há um ritual. Alguns de nós tomam café em casa, outros no bar da estação, outros vão a esse mesmo bar tomar todo o pequeno-almoço matinal. Ela não. Posiciona-se na plataforma de frente para mim, do outro lado da linha. Entra pela porta oposta à que eu uso e sentamo-nos na mesma zona. E depois surge o ritual. O pessoal acomoda-se, assenta o pó do ruído e ela, sempre, religiosamente sempre, toma o seu pequeno-almoço a bordo. Pode ser uma sandes, uma fatia de bolo ou outra coisa qualquer. O que quer que seja, é sempre generoso. Foi cortado por generosas mãos e é degustado com o interregional das 7:18 em andamento. Com a mesma calma e ligeireza de gestos com que abre a merenda, também se desfaz do que sobra e do guardanapo ou do papel de alumínio onde vinha embrulhada.
Depois, de forma invariável, encosta a cabeça à lateral do comboio e dorme até ao Oriente. É como dizia a minha mãe, de barriguinha cheia…


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O Clã do Comboio – O Ceguinho

O Ceguinho
Esta história terá poucas palavras porque nem sequer é uma história. É mais uma constatação de um ritual como qualquer outro, estranho como qualquer outro. Um homem nos seus quarenta entra todos os dias no interregional das 7:18, procura o mesmo banco, o que consegue porque não é uma zona muito procurada e dorme. A forma como encontra o seu equilíbrio é um pouco diferente da maioria de nós. Em vez de colocar a pasta na prateleira ou debaixo do banco onde segue sentado, coloca-a no colo, agarra-se a ela, dobra-se sobre ela e dorme assim.
O que suscita este texto, contudo, é o mecanismo que ele encontrou para isolar-se de todos nós. Não foi tapando os ouvidos com as suas escolhas musicais, foi colocando uns óculos escuros. Ora, isto torna-se engraçado porque, quando entramos para o comboio é noite, ou melhor, o dia anuncia-se lá ao fundo mas não há, ainda, qualquer notícia do sol, logo, não é dele que se está protegendo. E lá vai, dobrado sobre a pasta, dormindo atrás do seu escudo de estar isolado e protegido… mas não do sol!


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O Clã do Comboio – Trim, triiim, triiiiiiiiiim…

Trim, triiim, triiiiiiiiiim…
Há dias que nascem agitados até mesmo no seio de um clã semi-adormecido e com os rituais muito incorporados.
Um dia destes, parecia que andava o diabo à solta no interregional das 7:18h. Mas não um diabo qualquer. Era o diabo dos ruídos incomodativos.
Já na estação me pareceu que havia certo alvoroço no ar, pouco costumeiro. Pensei, Assim que o comboio arrancar, começa tudo a dormir e é um descanso. É o começas. Vamos por partes.
Primeiro sentou-se um moço à minha frente com música nos ouvidos. Acontece que tinha um daqueles auriculares que, além de empurrarem a música para dentro, também a explodem para fora em forma de ruído impreciso. Acresce ainda que se tratava de um moço generoso que não queria a sua frenética batida só para si. Vai daí, coloca a coisa no máximo do volume e, que eu reparasse, nove pessoas deitaram-lhe olhares acusadores. E o moço nada! Até que alguém lhe tocou no ombro e disse:
– Olha, importas-te de baixar o som?
O tipo não ouviu. O outro falou mais alto e alterou ligeiramente a frase:
– Baixa o som!
Pensámos que a coisa ia tranquilizar. Não tranquilizou.
Duas filas mais atrás, toca um telefone. Triim, triiiim… Que eu contasse, tocou aí umas cinco vezes. A dona dele atendeu e falou baixinho. Nisto, o tipo que tinha mandado baixar o som ao outro começou a emitir um ruído polifónico do bolso do casaco:
– Estou?!
Falou baixinho mas não se livrou da vergonhaça. Ainda agora tinha mandado calar o outro e já não deixava ninguém dormir. Depois, tocaram mais três telemóveis e quando chegámos a Vila Franca de Xira, o ambiente acalmou e o pessoal pensou que embora só faltasse um terço da viagem, poderíamos finalmente descansar um pouco. E foi aí que se deu o episódio que acabou por motivar este texto. Ao fundo da carruagem viajava uma alma que dormia profundamente com música nos ouvidos e por essas duas razões não ouvia nada. Ora, por cima dela, tinha colocado uma mochila que, entre outras coisas, levava um telemóvel estridente no máximo do volume. O desgraçado tocou, tocou, tocou… E a senhora adormecida com a música nos ouvidos nem pestanejava. Quando alguém conseguiu perceber o esquema, ou seja, de onde vinha o som, de quem seria mochila, acordou a mulher que atendeu o telefone. Guardou-o no bolso do casaco e recolocou a mochila na prateleira por cima da cabeça. A malta das 7:18 pensou que ia descansar uns minutinhos. Enganou-se. Um som igualmente estridente mas diferente do anterior ecoou na carruagem e ninguém parecia querer atender aquele também. O pessoal olhava, olhava, o som parecia vir do mesmo sítio mas a senhora já tinha de lá tirado o telemóvel e ainda por cima aquele não era o toque dela. Quando já ninguém conseguia disfarçar a má disposição, ela olhou em volta, viu as caras zangadas dos companheiros de viagem, tirou a música dos ouvidos, apercebeu-se do som, foi à mochila, tirou de lá outro telemóvel, atendeu e foi a conversar até Lisboa numa voz audível em toda a carruagem. Deu instruções para o almoço, para o jantar, disse o que ia fazer a Lisboa, combinou quem ia buscar as crianças e falou muito do seu trabalho e do seu marido. Se bem me lembro, comentários pouco simpáticos.
Quando chegámos a Lisboa, as olheiras eram mais que muitas e os passageiros regulares do interregional das 7:18h. não sabiam bem se haviam de rir ou chorar. Para catarse colectiva, houve um que, ao sair, ainda exclamou:
– Este pessoal deixa os telemóveis ligados e não os atende. É uma falta de respeito.
Era o tipo que tinha mandado baixar o som ao outro quando julgávamos que esse era o maior dos nossos problemas.


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O Clã do Comboio – A Mulher Vampiro Ataca de Novo

A Mulher Vampiro Ataca de Novo.

A mulher vampiro hoje sorriu-me! Tem um sorriso bonito.

Mas, antes de sabermos como e porquê, vamos lá a perceber porque é que este texto tem no título a expressão “Ataca de Novo”. Ela não ataca nada. Só quer que a deixem dormir a viagem. Mas como quem faz os títulos das crónicas sou eu e como ia escrever de novo sobre ela, escolhi este porque me apeteceu.
A verdade é que tenho mais pormenores dela. Faltou à minha descrição anterior dizer que também as suas mãos são alvíssimas e que tem as unhas impecavelmente pintadas de negro. Faltou dizer que ouve música toda a viagem com uns phones brancos que contrastam com o negro da indumentária. E faltou dizer que dorme toda a viagem, que viaja sempre no mesmo banco. Não me perguntem como é que consegue apanhá-lo vago, mas o certo é que consegue. Acorda sempre no mesmo local, levanta-se, compõe-se e vai à sua vida.
Esta semana, contudo, foi semana de mudanças profundas. Abandonou o negro. Veste toda de cinzento. Quer dizer, quase toda. Calças de fazenda cinzentas e um enorme casaco de fazenda num xadrez miudinho castanho-escuro e branco. Um lenço farto a sair-lhe do casaco num tom castanho-clarinho seco muito suave e o calçado, botas, no mesmo tom. Esta roupa não é tão monocromática como a anterior mas cria a sensação de estar toda de cinza. E depois, claro, emerge aquela labareda laranja que é o seu cabelo. Continua a qualificar para vampiro do século XXI.
Hoje, três tipos simpáticos que costumam ir a meio da carruagem a discutir como é que lavam os carros ao fim-de-semana e despejam o lixo à noite, foram lá para trás. Ficaram ao pé dela. E conversavam abundantemente com o seu usual entusiasmo de tipos que passeiam o cão. E é precisamente essa conversa que não a deixa dormir. Ela forçou. Fechou os olhos e tentou, mas eles agora iam a falar de marcas de pneus e não dava mesmo para ela dormir. Eu estava a olhar para ela, tirava-lhe a pinta à nova roupa para escrever este texto, quando ela abriu os olhos com cara de poucos amigos, olhou para eles, encolheu os ombros como quem diz, Nada a fazer, e depois olhou na minha direcção e sorriu. Um sorriso “Já me topaste”. Eu sorri de volta encolhendo os ombros a dizer-lhe sem palavras, Hoje não se dorme. Ela confirmou com o olhar, sacou de uma revista e foi ler. Eu vim escrever. E os três amigos continuaram a salvar o mundo. Alto e bom som.


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O Clã do Comboio – Curta e Grossa

Curta e Grossa
Nunca me tinha acontecido. Foi desta. Alguma havia de ser a primeira.
Dia intenso e cansativo. Comboio de regresso tardio. Frio na rua. O ar condicionado lá dentro aqueceu o corpo e a alma. Adormeci.
Quando acordei, o painel do comboio anunciava “Próxima estação: Lamarosa”.
Como a Lamarosa é depois do Entroncamento onde é suposto eu sair, pensei, “Esta treta destes comboios andam todos desregulados.”
Reparei entretanto que o comboio tinha muito pouca gente. Perguntei a uma senhora, “Já passámos o Entroncamento?”. Ela não gostou de ser interrompida no seu meio sono e respondeu curta e grossa:
——– Já!


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O Clã do Comboio – O Casal Desigual

Ele é velho. Ela é nova. Ele é alto. Ela é baixa. Ele é grisalho. Ela tem o cabelo escuro. Ele tem pouco cabelo. Ela tem muito. Ele é mais para o magro. Ela é mais para o cheiinho. Ele é reservado. Ela é conversadeira. Ele tem o olhar cansado. Ela tem o olhar vivo. Ele dorme sempre. Ela nunca dorme.
Entram sempre na mesma estação, à mesma hora, para o mesmo comboio, no regresso a casa findo mais um dia de trabalho. Sentam-se rigorosamente sempre nos mesmos bancos da mesma carruagem, de frente um para o outro. Dão um beijo nos lábios para celebrar mais um dia vencido e o início do regresso a casa e depois cada um faz o seu próprio regresso.
É um casal que juntou aos rituais lá de casa a rotina do comboio. Incorporaram-na no seu quotidiano. Não são diferentes. São harmoniosamente desiguais.


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O Clã do Comboio – A Tia da Beatriz

A Tia da BeatrizCaros amigos e leitores, esta é a primeira história do Clã do Comboio em que há interacção, mais especificamente, conversa entre mim e um passageiro. Tinha de ser especial pessoa, pois então!
Sexta-feira. Quase 19h. O frio aperta. Quando entro no comboio não está quase ninguém e o ar condicionado devolve-me à vida e ao conforto. Coloco a música nos ouvidos, caderno e caneta nas mãos, escrevo e espero que o fim-de-semana venha até mim.
Quando ela chegou, não soube bem como aconteceria, mas pressenti que conversaríamos. Tinha um ar bem disposto e comunicativo. Parecia daquelas pessoas que não quer perder nada da vida e o olhar transparecia uma simpatia natural. Não me enganei.
Mas não foi por isso que escrevi sobre ela. Foi pela naturalidade e pela dedicação. tinha a face redonda e o sorriso aberto e bonito, a tez clara e o cabelo escuro e ondulado por cima dos ombros. Vestia a juventude dos seus vinte anos, mais coisa, menos coisa. Era, de certeza, uma jovem estudante que vinha de fim-de-semana a casa. Tinha todas as características de uma pessoa na flor da juventude e contudo surpreendeu-me. Comecei por estranhar que o seu telemóvel fosse de um modelo menos recente. Ia apostar que aqueles já não se fazem. Depois, tirou uma tira de pano com cerca de 10cm de largura e bastante comprida onde estava a bordar a ponto cruz flores com sorrisos e o nome Beatriz. Era baixa e por isso com muita arrumação e só assim conseguiu contorcer-se e encontrar posição para bordar quase indiferente aos solavancos do comboio como se não perturbassem o que estava fazendo. E fiquei vendo um quadro antigo com uma menina jovem que não lia romances com vampiros, não tinha um computador, não lia uma revista cor-de-rosa, não se esvaía em sms a partir de um telemóvel última geração. Entretinha o tempo bordando Beatriz a ponto cruz. Reparei que aproveitava a linha mesmo até ao finzinho. Quando era tão curta que a agulha não conseguia dar a volta, ela desenfiava a linha, espetava a agulha, voltava a enfiar a linha e dava o ponto.
Num movimento mais brusco da grande lagarta metálica, a folha onde tinha impresso o que estava a bordar caiu ao chão e eu apanhei-lha.
——– Muito Obrigada!
——– Não tem de quê. Não é por si que estamos em crise. Aproveita a linha mesmo até ao fim…
——– Não é por isso. Tento cortá-la o menor número de vezes porque os remates dão muito trabalho.
E isto bastou para que nem eu ouvisse mais música, nem escrevesse mais uma linha, nem ela desse mais um ponto. Fomos conversando o caminho todo. Percebi que Beatriz era a sobrinha e percebi que a Tia da Beatriz bordava com gosto e dedicação e fazia-o porque a mãe lhe ensinara. E disse-o com naturalidade e assumiu isso na sua juventude. O seu código de estar não implicava que se identificasse com os outros jovens fazendo o que eles fazem. Podia ser só a Tia da Beatriz que borda com carinho para a sobrinha porque a mãe lhe ensinou e isso a faz feliz. E quando lhe disse que escreveria sobre ela mas não queria saber o seu nome porque para mim bastava que fosse a Tia da Beatriz, ela não reclamou nenhuma espécie de protagonismo e voltou a surpreender-me com a sua naturalidade:
——– Eu reparei que não quis perguntar e por isso não lho disse.
Eu sei que a Beatriz vai ter um saquinho da escola todo bonito com o nome bordado mas sei algo mais importante. A famíla da Tia da Beatriz deve estar orgulhosa dela porque não só assume a herança de simplicidade e dedicação que lhe deixaram, como já a está transmitindo à sobrinha. Não sei se virá aqui um dia ler o que escrevi sobre ela, mas se vier, o melhor que posso dizer da Tia da Beatriz é que todas as sobrinhas deviam ter uma tia assim.