Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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Crónicas de África – O Conselheiro Matrimonial

O Conselheiro Matrimonial

Maputo, 16 de janeiro de 2014

Podia começar a história pelo fim e contar já o telefonema, mas a coisa perdia a graça. A história só tem corpo porque existe a naturalidade desconcertante dos moçambicanos, a forma como atacam os assuntos sem preparação nem grandes introduções, e há também o seu sorriso, a sua alegria, a sua tão afamada, e tão verdadeira, boa disposição.

Esta é a história do I e do dia em que me tornei seu conselheiro matrimonial.

O I foi-me recomendado pelo célebre M sobre quem já aqui escrevi. Está com um problema senhor Paulo? Vai aí o I. E veio. Atrasado. Não muito. Não estranhei. Já estranhei o facto de ter ferramentas próprias, de começar e acabar um trabalho sem interrupções, de sacrificar-se para que tudo ficasse pronto no mais curto espaço de tempo possível. Percebi que ele valorizava o negócio que tinha e, como tal, dei-lhe atenção e continuei a dar-lhe trabalho.

Eu trato-o por I, ele trata-me por boss. Tudo normal, portanto. Mas um dia surpreendeu-me. Fora um trabalho complexo. Dois dias de volta daquilo até deslindar o problema, encontrar a solução e aplicá-la. E nesse dia eu notava-o mais calado. Ele gosta de trabalhar e ir explicando o que está a fazer, mas naquele dia estava apreensivo. Olhava para as coisas demoradamente, olhava para mim, e parecia engolir. Foi depois de ter terminado que o I explodiu:

– Boss… preciso da tua ajuda.
– Como assim?
– Eh boss vou-me casar.
– Eh pá, grande notícia. E para quando é isso?
– No sábado, boss…
– No sábado? Mas já hoje é quarta!
– É boss, mas ela não quer aquela pessoa que eu arranjei para cozinhar e tenho de ir buscar outra e preciso ir comprar… xiii boss, ’tá complicado.
– E precisas de ajuda?
– Preciso, boss…
– Diz lá…
– Como é isto do casamento boss? Eu não sei estar casado. É, nós namoramos faz um tempo, mas deve ser diferente de estar casado, não sei bem como fazer… tu estás casado há muito tempo, podias dar-me aí umas dicas, uns conselhos… mulher não é fácil boss…

Tremi! Não estava à espera e a responsabilidade do que dizemos numa altura destas, a partir de uma pergunta colocada com tanta naturalidade e tanta necessidade, assustou-me, mas o I estava aflito e não me apeteceu vacilar nem mostrar-lhe complexidades. A vida ensina, pensei, agora é só dar umas orientações.

– Ouve, I, não há receitas. O que te vou dizer pode resultar com uns e não resultar com outros. Cada situação tem de ser avaliada. A primeira coisa que te vou dizer é para não te assustares quando surgirem problemas, os problemas são normais. Não podes desistir ao primeiro problema porque é a superação deles que fortalece uma relação.
– Mas os problemas doem, boss.
– Claro, mas a dor é uma força. A segunda coisa que te digo é para falarem sempre e de tudo. Nunca guardes uma conversa, não deixes azedar um assunto, um desentendimento, nunca te vás deitar zangado com ela.
– Eh boss, não dá…
– Dá, dá, basta que seja a tua vontade, a tua prioridade.
– Eh boss, mas ela às vezes não me quer ouvir.
– Quer pois.
– Quer?
– Quer. Ela diz-te que não te quer ouvir, mas quer. É como quando lhe dizes que vais sair com os amigos sem ela. Ela diz-te que está bem, mas não está.
– Eh boss, não dá, tá mal… ela diz ao contrário.
– Claro!
– Para quê?
– Para ver se tu descobres por ti o que ela quer… se vais ao encontro dela…
– Como fazer boss?
– Simples… sempre que começas a falar com ela, dás-lhe razão e pedes desculpa. Como princípio genérico, entendes? Não interessa sobre o que é a conversa, dá-lhe logo razão. Ouve lá, quando têm uma discussão, quem é que acaba a ter razão?
– Ela.
– Pronto. Aí tens. Se lhe tivesses dado razão à partida, não tinhas discussão.
– Mas e o que eu penso? Eu posso ter razão, não é boss?
– Podes, mas ela vai-te reconhecer essa razão mais rapidamente se primeiro lhe deres razão a ela!
– Não pode!
– Pode, pode… experimenta… Por exemplo, para que é que tu queres um sofá?
– Para sentar.
– Certo. Então o que é te interessa a cor do sofá?
– Nada.
– Pois, mas a ela interessa! Logo, quando forem comprar um sofá para que é que hás de estar a discutir a cor do sofá se tu só o queres para te sentar e beber uma geladinha?
– Tá certo, boss… e o dinheiro?
– Partilha tudo! Ou são um casal ou não são. É como sair com os amigos… se ela é a tua dama porque não há de ir… A única coisa que te posso dizer é para não gastares tudo de uma vez… ires poupando porque podes precisar ao longo do mês…
– Pois é boss, ela pode entrar aí num supermercado ou numa loja e de repente foi-se tudo e depois como é amanhã?
– Lá está… sei lá, se tiveres 8 para gastar, combina gastarem 4.
– E resulta?
– Mais ou menos.
– Ai…
– Pois… ela vai gastar os 8 na mesma só que vai levar mais tempo. Tempo que tu precisas…
– Xiii boss, é isso mesmo, como não lembrei disso…
– Olha, e não te esqueças que o sexo é muito importante.
– Claro…
– Mas não é só para ti…  tens de… como dizer… tens de ter a certeza de que não és egoísta, também pensas nela, és carinhoso com ela. E falem, falem sobre o que gostam e o que não gostam… comuniquem… Queres ter filhos?
– Claro.
– Já pensaste quando?
– Não…
– Lá está… já pensaste que uma criança dá muito trabalho e é muito absorvente e tu ainda agora estás a casar… talvez fosse melhor dares um tempo para a conheceres e criares intimidade e depois pensas em filhos, mas isso são vocês que avaliam…
– Eh boss e há assim alguma coisa proibida, que a não se pode fazer?
– Há.
– O quê?
– Violência. Nunca podes ser violento. Nem com os gestos nem com as palavras. As mulheres são sensíveis a isso e tu deves ser o primeiro a respeitar a tua mulher, afinal de contas escolheste-a…
– Ou fui escolhido!
– Tens razão! Mesmo assim…
– Tens razão boss. Violência é má onda…

A conversa foi assim, crua, pura, sem preconceitos, sem rodeios, direta, positiva… E o I lá foi à vida dele um pouco mais seguro. O tempo passou. Já lá vão mais de dois meses e, ontem, à hora do jantar, o telefone tocou, vi o nome do I no visor e voltei a estremecer, Ai meu Deus, se ele me está a ligar… o que se terá passado…

– Sim… Estás bem I?
– Tudo bem boss. Tinha dado um sinal, mas o teu telefone estava morto. Pensei que tinhas viajado.
– E viajei, mas já estou de volta.
– E correu tudo bem por lá?
– Sim, graças a Deus. Tudo fantástico. Estive com o meu filho, família, amigos…
– Boss estou-te a ligar para desejar um bom ano e para te agradecer…
– Então? A vida de casado é boa? Está tudo a correr bem?
– Muito boa boss! E as tuas dicas foram muito eficazes, boss, resultam na perfeição… está tudo tranquilo… então aquela de dar razão para começar a conversa… eh boss, comecei a ter razão mais vezes…

E largámo-nos os dois a rir e percebi que o I está numa fase feliz da sua vida. Uma fase de crescimento. Uma fase de aprendizagem. E assume isso com naturalidade, receios, poucas expectativas, mas a mesma esperança e a mesma alegria que inundam o olhar, o sorriso e os gestos das gentes moçambicanas. Há menos conceitos por aqui. E isso faz com que haja menos pré-conceitos… E as coisas que dizemos, se vierem do coração, são assim interpretadas e são intuídas e postas em prática como se a vida fosse fácil. E talvez seja, nós é que, por um sinuoso processo mental de justificação da nossa própria existência, andamos a inventar que é complexa. Mas não é. Os moçambicanos não inventam nada disso. Eles sabem que a vida é simples. É só para viver. E têm essa verdade mais segura do que qualquer outra.

jpv


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Crónicas de África – Sem Preconceitos

Crónicas de África – Sem Preconceitos

Maputo, 30 de janeiro de 2013

Hoje, vou falar-vos de um assunto sensível. Acho mesmo que a maioria das pessoas em Maputo, portuguesas e moçambicanas, evita falar sobre ele. Percebo que seja sensível porque mexe com as emoções das pessoas. E com os conceitos. Ora, onde estão conceitos, normalmente, estão também preconceitos. Acontece que tenho sobre o assunto uma visão terna e conciliadora e, mesmo que não tivesse, prometi escrever nas “Crónicas de África” (ver 1ª crónica) sobre tudo o que visse, ouvisse e sentisse.

Moçambique e Portugal são duas grandes nações com uma história construída em comum, com momentos maus e momentos bons, como em todas as relações, mas com uma inexorável consequência: moçambicanos e portugueses há muito que sabem relacionar-se, há muito que se conhecem, há muito que contam uns com os outros e há muito que… se casam!

E arrisco dizer, sem grande margem de erro, que a segunda nacionalidade com que os moçambicanos mais casam é a portuguesa, depois dos próprios moçambicanos, como é natural. Também arrisco que uma grande parte dos portugueses emigrados em Moçambique casa com moçambicanos. Às vezes, à custa do fim de relacionamentos que já existiam e encontram o seu termo por essa razão. É preciso respeitar a dor e o sofrimento dos envolvidos nesses momentos de rutura, mas é igualmente preciso reconhecer, sem preconceitos, que as pessoas mudam e, por vezes, terminam relacionamentos para iniciar outros sendo isso um direito que lhes assiste.

Ora, veio todo este introito a propósito de algo que observo com frequência e que faz parte da abertura e da multiculturalidade da sociedade maputense. Há muitos casais compostos por homens portugueses de idade visível e incontestavelmente superior às mulheres moçambicanas com que resolvem juntar os trapinhos. Não sei, nem me interessa, se casam, ficam em cohabitação, são amigos, companheiros ou outra coisa qualquer. Interessa-me que fazem parte da paisagem e do quotidiano desta cidade. Vemo-los às compras nos supermercados, vemo-los a tomar o pequeno-almoço ao fim de semana pelas pastelarias disponíveis, vemo-los a almoçar ou a jantar nos restaurantes, vemo-los lado a lado dentro dos automóveis, vemo-los a passear pelos jardins e pelas ruas da cidade. Normalmente, transpiram harmonia e bem estar. São homens que nunca casaram, que enviuvaram, que se divorciaram ou que por qualquer outra razão vieram a ficar sozinhos e procuram o conforto e o apoio de uma companheira na juventude de moçambicanas mais novas que sabem percebê-los e preencher o vazio das suas vidas. Olhando para este fenómeno de forma preconceituosa, podemos fazer juízos de valor terríveis, desde a diferença etária, às razões que levaram a tal união. Acontece, caros amigos, que os preconceitos não são bons conselheiros. E a vida torna-se bastante mais honesta e repleta de lisura se olharmos para ela de forma despreconceituosa. E a verdade é esta, nunca nenhum elemento destes casais me pareceu contrariado, e nunca nenhum me pareceu tão jovem e inocente que não soubesse no que estava a meter-se e porquê. E é aqui que eu quero chegar: se as pessoas conheciam os contornos da situação e sabiam no que estavam a meter-se, o resto, o que fica, para mim, para o meu eterno e amanteigado coração de romântico sem emenda, é a experiência casada com a juventude. A perfeita aliança, impossível de alcançar num mesmo corpo por inultrapassável problema da condição humana, vá-se lá saber como é que o Criador não reparou nisso, pode ser alcançada por esta união. Saibam e queiram eles, os elementos destes casais, encontrar a disponibilidade para aprender. Até lá, é vê-los por Maputo, passeando a sua felicidade. Onde ela vai dar, não é problema nosso.
jpv


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O Nosso 11 de Setembro

Caros Leitores,
peço muita desculpa a todos quantos sofreram a tragédia do 11 de setembro em Nova Iorque e àqueles que ainda sofrem com a tragédia, mas, para nós, este é um dia de imensa, inqualificável e redobrada alegria.

Com altos e baixos, com certezas e dúvidas, com alegrias e tristezas, com regozijo e dor, hoje fazemos 24 anos de casados… e acresce a isso o facto de o nosso filho fazer 22 anos de vida. Efetivamente, o rapaz resolveu nascer no mesmo mês, no mesmo dia e, imaginem a pontaria, à mesma hora em que tínhamos casado dois anos antes.

Assim, o nosso 11 de setembro é de alegria, é de vida e júbilo e, se é importante para nós o marco do casamento, sem dúvida que a presença do nosso filho ofusca tudo o resto.

Costuma dizer-se que os pais só têm olhos para os filhos. Acho que é mais do que isso. É só ter bons olhos. É sentir a nossa vida suspensa a cada decisão deles. É protegê-los, guardá-los e guiá-los para depois os ver partir como se nunca nos tivessem sido nada. Esse desprendimento, esse reconhecimento de liberdade e autonomia a quem amamos mais do que a nós próprios é o verdadeiro amor!

Não nos interessa muito o que o nosso filho é ou possa vir a ser. Não nos interessa muito o que ele possa vir a realizar. Para nós, a única coisa que realmente interessa é que ele é nosso filho e, faça o que fizer, será sempre entendido, valorizado, relativizado, percebido como uma centelha de perfeição no Universo. Quem não sentir este aperto no estômago, quem não depender dessa vida terceira, quem não souber abrir mão daquilo que mais ama, não é verdadeiramente pai, nem mãe.

Quem me conhece, sabe que sou um homem de múltiplas facetas e realizações e posso dizer, aos 44 anos, que já fiz de quase tudo. Pois, amigos, olhando para trás, a única coisa de que me orgulho 100% e sem qualquer reserva, não sou eu. É essa fantástica criatura que me tem cativo, como cativa tem sua mãe: o nosso filho. Melhor do que todos os outros como todos os outros, para seus pais, serão melhores do que ele, e se assim não fosse, não estaria correto.

Parabéns filho!
Vive sempre e para além de nós. Isso, aceitamos com naturalidade e regozijo.

jp/ap