Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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De Negro Vestida – XIII

 

Rotinas – XIII

– Vieste-te?
– Hum, hum…
– Desculpa.
– Desculpa.
– Ela ou eu?
– Tu!
– De que falas?
– Disto.
– Nunca perceberás, pois não?
– O quê?

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O Romance “De Negro Vestida” foi publicado, capítulo a capítulo, neste blogue, entre 26 de janeiro de 2010 e 22 de abril de 2011.

Agora que conhecerá outros voos, nomeadamente, a publicação em livro, deixamos aqui um excerto de cada capítulo e convidamos todos os amigos e leitores a adquirirem o livro.

Obrigado pela vossa dedicação.

Setembro de 2013

João Paulo Videira

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De Negro Vestida – XII

 

Rotinas – XII

Sexta-feira é dia de limpezas. E o que de mais importante se limpa não é a casa. Aproveita Maria de Lurdes a nuvem de tarefas, das pequeninas às mais significativas, para ir lavando também a alma. É como se cirandassem pela casa duas mulheres. Uma, de corpo envolvido no arredar dos móveis, no limpar do pó, no sacudir dos panos, no varrer e no aspirar dos chãos, no substituir das roupas de cama, no passar de óleo de cedro pelas mobílias, no remover das teias que as aranhas só começaram a formar, no passar pressuroso da esfregona mergulhada em detergente com odor a lavanda pelo chão, no re-arrumar de livros, cêdês, comandos diversos, objectos que perderam o norte ao seu lugar, no posicionar preciso dos bibelôs, no passar do pano cuidadoso por cima das molduras, no substituir de águas no balde, no limpar de restos e marcas pelas mesas e bancadas, no deixar a brilhar como novo o fogão manchado de vapores e gorduras apesar das folhas de alumínio a circundar os bicos, no lavar das janelas a terminar com um pano seco que finalmente elimina as impressões digitais que lá foram ficando. Esta Maria de Lurdes anda de cabelo envolto num lenço, enfiada numa bata colorida com dois bolsos à frente donde pendem dois panos, um para o pó, outro para os vidros. A outra, de pensamento alheado, anda lavando a alma e gosta da sexta-feira porque ela é a catarse do dia anterior que havia sido a catarse da semana inteira. Enquanto limpa e arruma revê as conversas, acerta as ideias e pode distrair-se desse sonho impossível de ser livre e desbocada como Gininha e Hortense e de viver as vidas das pessoas nas revistas.

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O Romance “De Negro Vestida” foi publicado, capítulo a capítulo, neste blogue, entre 26 de janeiro de 2010 e 22 de abril de 2011.

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Obrigado pela vossa dedicação.

Setembro de 2013

João Paulo Videira

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De Negro Vestida – XI

Rotinas – XI

Ela ainda está de joelhos em cima da cama mas já deixou cair os braços ao longo do corpo. Tem o pescoço vergado, olhando o edredão como que procurando nele uma solução. A camisola interior dele está-lhe larga mas permite perceber o volume generoso e redondo dos seios jovens. Ele está de pé junto à cama, olha-a, e tem no olhar um pedido de compreensão. Tem umas calças de fato em fazenda cinzenta, uma camisa branca e uma gravata em encarnado escuro, tom de cereja. O casaco do fato está dobrado no seu braço esquerdo e quando devia estar calado, esperar que o tempo fizesse o seu trabalho, falou:
– Que me dizes se…
E mais não foi preciso. Ela esperava assentar as ideias e os impulsos e a voz dele era um ruído nesse processo, uma provocação só por ser a voz dele, independentemente do conteúdo. Emerge nela a raiva e o despudor da linguagem:
– Cabrão, mentiroso…

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Setembro de 2013

João Paulo Videira

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De Negro Vestida – X

 

Rotinas – X

Ao preparar o jantar de quinta-feira, Maria de Lurdes está tão alheada como estava ao pequeno-almoço. Agora, já não por via da antecipação mas por causa do enlevo. Um dia dedicado a si, ao perfume químico do salão, à conversa de Hortense, aos cuidados de Teresinha, a um almoço tranquilo e à invasão da ousadia de Gininha, deixa-a leve, tranquila, predisposta para o bem e nas nuvens das vidas que sabe não viverá mas com que sonha todas as quintas-feiras à noite. E quando a família abandona, como de costume, a mesa do jantar, Maria de Lurdes vai deitar-se. Protege o cabelo, veste a camisa-de-noite e deita-se na cama olhando o tecto como se fosse o céu das possibilidades. Está semi-recostada, com os braços por fora da roupa da cama e as mãos cruzadas. E tem um sorriso. Um sorriso que, mesmo sem Maria de Lurdes saber, assusta profundamente Carlos Manuel.

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Setembro de 2013

João Paulo Videira

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De Negro Vestida – IX

Rotinas – IX

Onde quer que entre, quando Gininha entra nalgum lado, a vida entra consigo. Uma pastelaria, um pronto-a-vestir, um restaurante, uma farmácia ou um salão de cabeleireiro são inundados pela cor que sempre a acompanha, pelo perfume que transporta, pela pose que exibe e pela voz que anuncia a sua presença e a marca. O parágrafo que agora redigimos está mal começado. Usámos o verbo entrar, três vezes repetido na mesma frase, contrariando ensinamentos antigos de um professor primário de voz grave e mão pesada, porque entrando estava Gininha na Pastelaria Avenida, no entanto, o efeito que esta pujante manifestação de vida causa faz-se sentir, a bem dizer, sempre que passa e passar deveria ter sido o verbo. E, ao fazê-lo, os homens levantam os olhos dos jornais de esplanada, viram a cabeça para trás contrariando o sentido da caminhada que levam, dão toques de cotovelo, abrem janelas de automóveis e contemplam a pose e a pompa, o espectáculo de luz e cor, a energia de vida que é ver Gininha passando, estando ou entrando numa pastelaria como agora faz. Tem um espírito independente e livre, tem uma atitude ousada e um comportamento vistoso e, ao contrário do que temos visto neste mundo em que viemos passar uma vida, Gininha não é assim porque coloque uma qualquer máscara ou accione um qualquer mecanismo de defesa. É assim genuinamente sendo assim. Extrovertida nas palavras, no olhar, no vestir e, claro, no andar com que se transporta pelas ruas.

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Setembro de 2013

João Paulo Videira

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De Negro Vestida – VIII

 

Rotinas – VIII

O dia amanheceu com gestos pequeninos, miudinhos, como se, por se fazerem menores, se fizessem em menos tempo. Maria de Lurdes põe o mesmo pequeno-almoço na mesa mas põe-no de forma diferente. Não na disposição dos lugares de cada um, nem na festa de luz e cor e cheiros que aviva a mesa, mas na forma menos pausada e mais sussurradamente apressada com que prepara a refeição inaugural do dia. Não pretende dar a ideia de que quer despachá-los para fora de casa, mas dá. É indisfarçável a energia ansiosa que lhe atravessa o brilho do olhar, os gestos nervosos de trazer e levar e quando se cruza com um deles no espaço amplo da cozinha, em vez de esperar tranquilamente, com a tranquilidade que todos lhe reconhecem de mãe e mulher, que passe, apressa-o com um Vá lá, vá lá! fazendo com a mão um gesto de Apressa-te e passa! Lembrando os sinaleiros que noutros tempos serpenteavam a cidade.
E, à quinta-feira, quando os vê partir, em debandada da sua vida para a vida deles, não sente o rasgar interior nem o impulso de os reter. Larga-os livremente para a liberdade deles que, neste dia, é também a sua. Normalmente, quando sente que já não estão no prédio, exclama Ora, ora… como quem pensa Por onde vou começar a vida que há hoje para viver?
Ao pequeno-almoço, o marido repetira, como quem confirma, aquilo que diz todas as quintas-feiras à mesa:
– Hoje é dia de Gininha?
– Hum, hum…
Ele já sabia a pergunta e a resposta para ela. Ela já sabia a resposta e a pergunta para ela. Ele sabia, já, que não viria almoçar a casa porque nunca vem. Habituou-se, há muito, a este ritual e respeita-o. Interiormente considera-o como uma espécie de grito do Ipiranga semanal da sua mulher. Admite-lho porque, de quando em vez, também solta o seu.

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Setembro de 2013

João Paulo Videira

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Onde se produziu quase todo o capítulo VIII

Por razões de trabalho, acordei hoje na agradável paisagem alentejana que as imagens documentam. A paz e a tranquilidade da manhã num local assim ajudaram a produzir quase todo o capítulo VIII de “De Negro Vestida”. A sua publicação será breve. Para já aqui ficam alguns pedacinhos alentejanos. É natural que as imagens não tenham grande qualidade porque foram feitas com telemóvel mas julgo que documentam bem paz da paisagem alentejana às 8h da manhã.

Um chabouco para a beberragem dos póneis.

Vista genérica do complexo do Hotel da Ameira junto a Montemor-o-Novo.
É muito agradável e bastante acessível.
Consiste na recuperação de uma herdade com seus baracões e estábulos todos convertidos em hotel.
Uma zona de descanso. Tem uma vista ampla e muito verde nesta época do ano.

A vista a partir da área exterior de descanso. Muitos quartos têm esta vista.

Escadaria da capela da herdade da Ameira.

Frente da Capela de Nossa Senhora da Ameira, na herdade com o mesmo nome.

Vista da capela para o Hotel. Vegetação circundante.


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De Negro Vestida – VII

 

Rotinas – VII

Maria de Lurdes não gosta particularmente da quarta-feira. Mesmo assim, percebe que um dia passado no conforto da sua casa, com as suas coisas, na sua intimidade, com os intervalos que faz para beber um sumo ou ir à casa-de-banho ou descansar dez minutos, vale bem a pena o sacrifício de tratar das roupas. Passando-as e arrumando-as pela casa.
O dia, hoje, tem a vantagem de ter nascido solarengo e brilhante. Maria de Lurdes despachou os pequenos-almoços, arranjou roupas e lanches e mandou-os à vida sendo que a vida estava, já, à espera deles. Tratou da sua higiene e, não gostando do peso do trabalho de cuidar das roupas, prefere-o a ter de sair de casa. O trabalho é pesado mas decorre no seu ambiente, na sua casa, tratando das roupas da sua gente.

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João Paulo Videira

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De Negro Vestida – VI

Rotinas – VI

Ela está semi-nua, ajoelhada em cima da cama desfeita como ela. Cuecas pretas a desenharem rendas na pele alva do corpo. Estava em tronco nu mas por pudor do momento vestiu a camisola interior dele. Sente-se humilhada e tem nos olhos raiados de água e sangue a raiva da decepção. Os cabelos desgrenhados dos restos do sexo e do desalinho do desatino. Levanta as duas mãos à frente da cara com as palmas voltadas para si e os dedos como se estivessem arranhando o ar. As palavras que profere trazem o ódio e a raiva do olhar e um azedume profundo e grita ao mesmo tempo que chora num pranto de quem vê o horizonte esfumando-se.
– És um filho da puta! Um grandessíssimo filho da puta!
– Calma… nunca te enganei a este respeito…

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João Paulo Videira

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De Negro Vestida – V

 

Rotinas – V

Há uma expressão popular que, segundo dizem as línguas do mundo, tem origem na Grécia dos gregos mas que, na nossa modesta opinião, se pode perfeitamente aplicar a qualquer povo, nomeadamente, ao nosso. Diz o aforismo que o homem é a cabeça da família mas a mulher é o pescoço sendo que o pescoço vira a cabeça para onde quer. Tem esta expressão ecos e sínteses variadas pelo mundo fora ao longo da História da Humanidade. A mais comum e, por isso, a mais conhecida é aquela que dita que por trás de um grande homem está sempre uma grande mulher. Permitam-nos um reparo. Nem sempre a mulher está atrás. Muitas vezes tem estado à frente, acima e também ao lado. Menos referida esta última quiçá por ser a mais importante e menos vistosa. Estende-se o reparo a outra situação não abrangida pela expressão que vimos analisando. É que, muitas vezes, têm estado grandes mulheres atrás de homens que nunca chegam a ser grande coisa pois não almejaram ser tão homens quanto elas! Não fazendo, para não aborrecer a benevolência do leitor, desta humilde estória uma dissertação sobre a condição feminina, arriscamos, ainda, uma conclusão perfeitamente impressionista, casuística mesmo, mas não menos válida por isso. Trata-se, pois, de acreditarmos que a maioria destas mulheres, que estiveram sendo homens no corpo deles, é, ou foi, doméstica.

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Obrigado pela vossa dedicação.

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João Paulo Videira

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