Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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De Negro Vestida – XXIII

 

Solidão – IV

Venha comigo, caro leitor, venha presenciar ou reviver um ambiente irrepetível. O local onde vamos tem um odor ímpar e inconfundível, tem sons próprios e seculares, tem rituais, tem frequentadores e tem uma personagem da nossa estória.
Há templos que são templos. E porque são templos, as pessoas comportam-se neles como estando em templos. E há espaços que não sendo templos, são templos na mesma e, por isso, estando as pessoas nesses espaços que não são templos comportam-se neles como nos templos. É explicável mas indefinível a linha da lógica razão, a linha do pensamento que define porque fazemos silêncio numa biblioteca. Logo à partida, não se trata de silêncio, trata-se daquele marulhar abafado das folhas de papel virando, do sussurrar respeitoso de comentários, só os essenciais, que os utilizadores trocam entre si ou com os funcionários do templo dos livros. E esse respeito vertido em quase silêncio tanto o pode ser para que se não incomode quem lê e quem pensa, como o pode ser para que se respeite quem pensou e quem escreveu com sabedoria, dedicação, trabalho e genialidade suficientes para que viesse parar à biblioteca. Tem este espaço o estatuto de templo do saber e faz-se nele silêncio para que se não incomode quem soube e quem está querendo saber.

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O Romance “De Negro Vestida” foi publicado, capítulo a capítulo, neste blogue, entre 26 de janeiro de 2010 e 22 de abril de 2011.

Agora que conhecerá outros voos, nomeadamente, a publicação em livro, deixamos aqui um excerto de cada capítulo e convidamos todos os amigos e leitores a adquirirem o livro.

Obrigado pela vossa dedicação.

Setembro de 2013

João Paulo Videira

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De Negro Vestida – XXII

 

Solidão – III

O plano era básico. De resto, para ela não constituía surpresa. Estava habituada às surpresas dele que a não surpreendiam. Não se importava com a previsibilidade dos planos dele pela razão simples de que via neles a forma que ele encontrara para a cortejar. E sentia-se cortejada. Desta vez ele limitara-se a pedir “Vais buscar-me à oficina logo à noite?” Ela anuiu acenando que sim com a cabeça e foi esse gesto que lhe deu a ele a liberdade de acrescentar “Tenho uma surpresa para ti. Vais adorar.”
E a noite veio. E ela apareceu na oficina para buscá-lo.
– Vem cá!
– Que tens para mim hoje?

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O Romance “De Negro Vestida” foi publicado, capítulo a capítulo, neste blogue, entre 26 de janeiro de 2010 e 22 de abril de 2011.

Agora que conhecerá outros voos, nomeadamente, a publicação em livro, deixamos aqui um excerto de cada capítulo e convidamos todos os amigos e leitores a adquirirem o livro.

Obrigado pela vossa dedicação.

Setembro de 2013

João Paulo Videira

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De Negro Vestida – XXI

 

Solidão – II

Despedimo-nos.
Nós saímos da estória e nela deixámos Maria de Lurdes na caixa multibanco pagando a conta da luz.
Bem sabemos que há movimentos defendendo com palavras novas, novas ideias, como a paridade e a igualdade entre homens e mulheres. E queremos acreditar que se trata de igualdade no trato pois que na essência, no ser e no comportar, homens e mulheres sempre foram diferentes, diferentes são e continuarão a ser diferentes no eterno escorrer do tempo. Não pode pedir-se a um homem que seja mulher. Falta-lhe a capacidade, o sentir de todas as formas, a ânsia de perfeição, o maternal instinto. E não pode pedir-se a uma mulher que seja homem. Falta-lhe a determinação instintiva, a simplicidade nas opções, a ânsia de conquista e o instinto de cobrição. São diferentes à nascença, vivem de forma diferente, sentem de forma diferente e de diferente forma se entregam ao breu definitivo da morte.

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Obrigado pela vossa dedicação.

Setembro de 2013

João Paulo Videira

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De Negro Vestida – XX

 

Solidão – I

Há neste centro comercial um barulho de luzes que atrai e cansa. Há um bailado de cores que seduz, enreda e chama. Passam pessoas em trajes apressados de trabalho e passeiam pessoas em trajes exibicionistas de passerelle. Umas levam a chave do carro na mão ou a carteira com o passe dos transportes públicos. Outras levam sacos marcados com o timbre dos vendedores. E desliza no ar luminoso do espaço amplo um cheiro adocicado a crepes com gelado de baunilha, a pipocas de cinema, a batatas fritas em pacotinhos de papel a acompanhar hambúrgueres que são os mesmos aqui, em Madrid, em Paris, ou em Moscovo. E há uma música de fundo que ninguém ouve mas de que todos sentem falta quando se cala. E há escadas rolantes que levam e trazem os viajantes de sonhar que param juntos às montras olhando o que não podem comprar ou entram nas lojas comprando o que não podem comprar deixando para mais tarde as preocupações de tais excessos. E correm crianças em aventuras de visitar lojas de brinquedos e vêm, depois, agarrar-se às pernas dos pais olhando como quem pede ou simplesmente pedindo. E divertem-se em carrosséis de interior a troco de uma moeda em máquinas pintadas com cavalos ou carros ou motos que dão três voltas, acendem luzes e no fim dizem obrigado em espanhol.

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Setembro de 2013

João Paulo Videira

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De Negro Vestida – XIX

 

Rupturas – IV

Gininha está sentada no lugar do costume, na mesa das quintas-feiras à tarde que ambas ocupam na pastelaria Avenida. Tem uma chávena de chá suspensa da mão, os olhos muito abertos como que a quererem ver melhor o que estão ouvindo e a boca que há minutos fez um Ah! ainda se mantém nessa posição embora o som da exclamação se tenha já perdido no ar. À medida que Maria de Lurdes vai falando, os olhos de Gininha vão ficando marejados e quando alguma lágrima ameaça desprender-se, ela acorre com um lencinho de papel para evitar estragos na maquilhagem.

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Setembro de 2013

João Paulo Videira

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De Negro Vestida – XVIII

 

Rupturas – III

Aquela pergunta foi como um clarão de luz rompendo a escuridão. Antes de proporcionar a visão faz doer e cega e confunde quem estava mergulhado no breu. Mais do que as palavras era o escuro do caminho, a falta de referências no lugar que o deixava perdido, perto de encontrar-se. E encontrou-se, e identificou aquela roupa íntima noutras intimidades, noutros contextos, noutros mundos. Aqui, onde está, no seu quarto, tudo está certo e no lugar apropriado, excepto a semi-descoberta Maria de Lurdes e a lingerie negra que não é sua. Num repente, num momento, procurou o caminho que aquela roupa teria percorrido até chegar ali. Procurou os porquês, tentou vislumbrar os contactos, a mente voou-lhe, depois, para a possibilidade de terem conversado uma com a outra. Será que se conheciam? E, sem se aperceber, Carlos Manuel ficou onde Maria de Lurdes o queria. No lugar da vulnerabilidade. No espaço das perguntas a invadirem-lhe, velozes, a mente e no desespero das respostas que não vinham, na inexplicabilidade daquela revelação. Nem conseguiu concentrar-se nas consequências. De certo que as haveria.

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Setembro de 2013

João Paulo Videira

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De Negro Vestida – XVII

 

Rupturas – II

Quando Carlos Manuel entrou no quarto e passou para a casa-de-banho privada, nem reparou em Maria de Lurdes porque ela se cobrira, por prudência, com a roupa de cama. Esperou que ele passasse para arranjar-se e colocar-se na posição planeada. Quando ele voltou, já de pijama vestido, nem que fosse cego deixaria de reparar nela. Não tanto pelo preparo mas sobretudo pela diferença que tal preparo evidencia em relação à normalidade monótona do casal. Poderia ser um cenário para uma noite romântica. Mas não era. Tratava-se de um cenário para um jogo. Um jogo de testes de provações, de medições e tomar de pulso, um jogo tenso em que ganharia o mais hábil e o mais paciente.

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João Paulo Videira

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De Negro Vestida – XVI

 

Rupturas – I

Habitam em nós pessoas que desconhecemos, moram em nós sentimentos que julgávamos alienos, vivem em nós latentes gestos de que não nos sabíamos capazes, escondem-se em nós palavras que desconhecíamos poder pronunciar. Mas querendo as circunstâncias provocá-los, querendo a vida revelá-los, há-de exigi-los, pôr-nos à prova, testar-nos com a confrontação de situações novas e inesperadas e logo as palavras desconhecidas e improváveis nos bailam nos lábios, e logo os gestos insondáveis se manifestam em nós, e são sentidos os sentimentos e emerge de todas estas pequenas revelações uma nova pessoa, um novo ser, habitando o mesmo corpo.
E o covarde há-de ser corajoso, e o medroso há-de ser temerário, e o fraco há-de ser forte, e o prudente há-de ser aventureiro, e o dependente há-de ser autónomo, e o calado há-de expressar-se por palavras cristalinas.
A família tomou o pequeno-almoço de segunda-feira e foi à vida.

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João Paulo Videira

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De Negro Vestida – XV

 

Rotinas – XV

– Nunca perceberás, pois não?
– O quê?
– É inacreditável! Vocês homens são todos iguais, são sempre os mesmos! Só pensam em sexo! Vocês têm implantado na cabeça um chip de cobrição que vos impede de qualquer outro raciocínio em relação às mulheres. Pensam em trabalho? Pensam! Pensam em futebol? Pensam! Pensam em cervejas? Pensam! Pensam em mulheres? Não! Vocês não pensam em mulheres, nem com as mulheres, nem para as mulheres. Vocês só se querem é vir! Não me podias ter desiludido mais. Sabes, por momentos pensei que eras diferente.
– Mas…
– Mas o quê? Ficaste admirado porque ainda agora estivemos a fazer amor e eu já estou toda indignada e irritada contigo…

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João Paulo Videira

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De Negro Vestida – XIV

 

Rotinas – XIV

Seja por preguiça na investigação, por comodismo na atitude, por semelhança nos rituais ou por coincidência cronológica, não raro atribuímos os mesmos nomes a fenómenos aparentemente semelhantes que são, quando observados com rigor e pormenor, tão díspares que mereciam nomenclatura diferente. Passa-se isto com o que está prestes a acontecer em casa de Maria de Lurdes. Hoje é sábado. Pais e filhos estão ainda em suas camas deitados e aconchegados e parecem indiferentes ao facto de a manhã ser já entrada há algum tempo. Daqui a pouco, Maria de Lurdes levantar-se-á para preparar-lhes o pequeno-almoço. E é este o nome que se dá à refeição que vai seguir-se por presumir-se idêntica ou ser a mesma que acontece ao longo da semana quando, na verdade, poucas coisas haverá tão dissemelhantes entre si. Durante a semana, a família, à excepção já aqui relatada da mãe, é acordada violentamente por despertadores e chamamentos a que se seguem corridas e competições pelas casas-de-banho. Hoje, acordam naturalmente e vão-se arrastando indolentes e ensonados para a cozinha. De semana, vestem-se e aprumam-se para saírem às suas vidas na rua social que os espera. Hoje, aparecem em pijamas e chinelos, os filhos, e enfiados em roupões por cima das roupas de dormir, os pais. De semana, fazem gestos rápidos e precipitados como se estivessem sempre irreversivelmente atrasados e tudo termina no burburinho de prédio abaixo a desembocar no carro do pai. Hoje, falam pouco e o que dizem são banalidades tranquilas e os seus gestos são lentos e displicentes e parecem, propositadamente, exibir a vontade de não ir a parte alguma. Não falam de horários, nem combinam encontrar-se, nem prometem não atrasar-se. Ouvem rádio. Comentam os comentadores, trocam ensonados Bons dias! E têm tempo para sorrir e falar de coisa nenhuma.

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Setembro de 2013

João Paulo Videira

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