Category Archives: Afetos
De Negro Vestida – IV
Rotinas – IV
Não deve haver sentimento mais frustrante do que concluir-se uma obra e, ao concluí-la, ainda no prazer da contemplação, descobrir-se que está incompleta. Ou, estando completa, descobrir-se que carece de manutenção desde o momento primeiro da sua conclusão. Assim ficou o Criador, olhando, descoroçoado, o universo, pois, mal o concluíra, toda a Natureza, com particular ênfase para a Humanidade dada a libertinagem que lhe fora confiada, começou a pedir por pão. E se o Criador pensou, ao acabar a obra, que a obra estava acabada, bem se enganou. A própria Natureza, tão pródiga a resolver os seus problemas, necessitou desde a primeira hora de uns trabalhos de manutenção. Não teve o Criador outro remédio que não fosse emendar a mão. E se havia um búfalo com parasitas, encomendou à garça que lhos comesse montada no lombo dele. E se havia excesso de restos carnívoros abandonados pelos predadores, logo encomendou às rapinas que deles se alimentassem limpando os espaços e reciclando o que para outros eram lixos abandonados. Os exemplos multiplicaram-se e só quando a omnipresença do Criador confirmou que a sua omnipotência havia resolvido os problemas de manutenção, pode Ele descansar um dia, sétimo na sequência.
E foi por este encadeamento de criações e necessidades que viemos a ter pescadores que pescam o peixe, caçadores que caçam a caça, mineiros que extraem o minério, lavradores que rasgam a terra, agricultores que semeiam as sementes, lenhadores que racham a lenha, carpinteiros que carpintam os móveis, serralheiros que trabalham o ferro, domadores que domam os animais, professores que ensinam os ensinamentos, médicos que prescrevem os medicamentos, enfermeiros que assistem os enfermos, jornalistas que divulgam a palavra, escritores que contam estórias, padres que orientam rebanhos, pastores que fazem o mesmo que os padres mas com dificuldades acrescidas por não poderem socorrer-se das palavras, prostitutas que iludem a vida, poetas que a cantam… e todos eles têm sua função de manutenção da divina criação onde a criação divina ficou falha de solução própria e autónoma. E todos eles têm seu reconhecimento e vieram, mesmo, a ter sua recompensa e sustento. Todos, menos a mais injustiçada de todas as tarefeiras de Deus, a que nunca viu a profissão reconhecida nem remunerada pois que ainda hoje, em plena era das tecnologias, não recebe, não passa recibo, nem verde de outra cor qualquer, e não desconta para a Caixa nem paga i erre esse. A Doméstica. Nem ao menos serve a desculpa da falta de importância de seu mester que é, sem dúvida e comummente aceite, dos mais importantes. Cuidar da célula fundamental da nossa vida social: a família. Cuidar do lar. Educar e acompanhar o crescimento dos filhos, apertando-os a si para os libertar depois. Estar incondicionalmente ao lado do seu companheiro.
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O Romance “De Negro Vestida” foi publicado, capítulo a capítulo, neste blogue, entre 26 de janeiro de 2010 e 22 de abril de 2011.
Agora que conhecerá outros voos, nomeadamente, a publicação em livro, deixamos aqui um excerto de cada capítulo e convidamos todos os amigos e leitores a adquirirem o livro.
Obrigado pela vossa dedicação.
Setembro de 2013
João Paulo Videira
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De Negro Vestida – III
Rotinas – III
Antes do primeiro raio de luz que anuncia o astro rei, antes do momento primeiro em que o breu da noite é cortado por uma tímida centelha de luz, a selva dorme. Profunda e negra, num silêncio absoluto de fazer as almas sentirem-se abandonadas, somente cortado, a espaços, pelos animais que fazem de noite o que a maioria vive fazendo de dia. Assim está o lar de Maria de Lurdes. Profundamente adormecido, sossegado e em paz.
Depois, por entre a folhagem e nas tocas e nos recantos escuros e escusos, há, algures, um animal que pressente a chegada do dia e sabendo pela certeza do saber que o Criador lhe deu porque racional não é ou, pelo menos, lhe não chamamos, emite o seu som de despertar. Pode ser um grasnar de ave de porte, um piar de ave miúda ou o ruído distante de um mamífero que percebe se anuncia mais uma sequência jubilosa de luz a que tentará sobreviver e a que nós chamamos dia mas eles não, ao menos que tenhamos conhecimento.
Assim está este lar que estamos devassando, a mulher que vamos conhecendo. Primeiro, ainda no escuro, pressentiu o dia e abriu um olho para certificar-se da luz. Qualquer humano pensaria É noite, virar-se-ia para o lado e continuaria a explorar o sono e o sonho. Mas, as Marias de Lurdes deste mundo que são mães e conhecem a labuta de cuidar de uma casa, conseguem distinguir os diversos timbres de escuridão. E esta mulher, deitada de lado, de costas para o marido, com as mãos persignadas como quem reza debaixo da cabeça suportando-a e dando-lhe um pouco de altura, com um olho aberto e outro fechado, conseguiu já ver que este escuro não é o da tarde que termina, nem o da noite que se inicia, nem já o da noite profunda que ela conhece do tempo distante de mudar fraldas e dar de mamar. Este é o escuro que se está perdendo para a luz. Dentro em breve, após o despertar das vidas para a vida, o mundo estará girando, ruidoso, à sua volta. Por isso, não fecha o olho que tem aberto. Abre o que tem fechado. E, com o olhar fixado na parede, reconstrói para a manhã que hoje se anuncia, os gestos da manhã que ontem foi.
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O Romance “De Negro Vestida” foi publicado, capítulo a capítulo, neste blogue, entre 26 de janeiro de 2010 e 22 de abril de 2011.
Agora que conhecerá outros voos, nomeadamente, a publicação em livro, deixamos aqui um excerto de cada capítulo e convidamos todos os amigos e leitores a adquirirem o livro.
Obrigado pela vossa dedicação.
Setembro de 2013
João Paulo Videira
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Onde se escreveu o 3º capítulo de "De Negro Vestida"
A sorte de viver no campo e, em particular, no Ribatejo, permite acordar num sábado de manhã e decidir-se que se quer escrever o 3º capítulo de “De Negro Vestida” num local absolutamente idílico.
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Já tinha todo o capítulo pensado e planeado e, hoje pela manhã, em seis minutos, coloquei-me num dos locais mais bonitos da Serra d’Aire e Candeeiros onde redigi o capítulo que, ainda hoje, colocarei aqui no blogue.
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O capítulo segue dentro de momentos. Só falta passar do manuscrito para o processador de texto.
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Aqui fica o testemunho fotográfico com breves legendas.

Ainda subindo a serra.
A paisagem para norte.
A paisagem para sul.
O escritório. Sim, é um bocadinho perigoso mas nada do outro mundo.
Lá dentro está mais quentinho. Evita-se o vento serrano.
Relendo o 1º capítulo…De Negro Vestida – II
Rotinas – II
Teve o Criador a excelente ideia de, quando criou o universo e as coisas que pôs nele, as ir logo nomeando a todas. Facilitada ficou a sua tarefa que assim podia lembrar-se do que já tinha criado pelo nome atribuído em vez de se ver forçado a uma longa paráfrase. Só por isso foi possível a Criação em seis dias. Caso contrário, teria o Criador pela frente, pelo menos, uma longa quinzena de trabalhos e canseiras. Admitamos, foi muito mais fácil em seu pensamento, de si para consigo, ter pensado o Criador Será que já criei os vales? Do que teria sido a formulação Será que já criei uma planura de terras que hei-de colocar entre as montanhas e as colinas por onde há-de passar um curso de água doce bordejado de laranjeiras e terras férteis porque ricas naquilo a que os humanos habitantes hão-de chamar, milénios mais tarde, azoto?
Ora, venhamos e convenhamos, excelente ideia teve o Criador quando, depois de criar, nomeou. Esta é uma árvore e chamar-se-á macieira e o seu fruto será a maçã. E assim como ia dizendo, ia fazendo. Ou o inverso. Sendo que, neste caso, a ordem pouco importa. Isto é um líquido gerador de vida, mitigador de sedes e correrá seu curso incolor e inodoro e chamar-se-á água. E daí em diante chamou maçãs às maçãs com as consequências que todos conhecemos e água à água com os benefícios que daí advieram.
Aconteceu, pois, que sendo nós, humanos, uma dessas criações, não fomos logo todos nomeados porque se descartou o criador da responsabilidade de regulação demográfica. Fez uns quantos de nós e deu-nos depois a capacidade de nos irmos acrescentando. Essa, e a de decidirmos do nosso destino. De livre arbítrio chamada. E sendo nós, humanos, à imagem do Criador criados, logo lhe apanhámos as virtudes que os defeitos, esses, são de nossa exclusiva responsabilidade. E uma delas foi a de sintetizar nomeando.
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O Romance “De Negro Vestida” foi publicado, capítulo a capítulo, neste blogue, entre 26 de janeiro de 2010 e 22 de abril de 2011.
Agora que conhecerá outros voos, nomeadamente, a publicação em livro, deixamos aqui um excerto de cada capítulo e convidamos todos os amigos e leitores a adquirirem o livro.
Obrigado pela vossa dedicação.
Setembro de 2013
João Paulo Videira
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De Negro Vestida – I
Rotinas – I
A cena que agora presenciamos e nos cabe narrar é assaz curiosa. Temos nós, contadores de estórias, este mágico poder de tudo ver e tudo saber só para dar a conhecer. E, em calhando, até a intimidade alheia devassamos. É o que faremos agora. Isto é uma casa. E há nesta casa um quarto e há neste quarto uma cama e estão nesta cama duas pessoas. Um homem e uma mulher. Ela por baixo. Ele por cima. E nasce aqui a curiosidade. É que não estão fazendo sexo e amor também não. Estão os dois vivos. Ela planeando a lida da casa. A roupa que os filhos vestirão pela manhã. E já decidiu o que será o almoço no dia seguinte quando ele vier do atelier. Ele está balançando em cima dela sem fulgor nem paixão. Para sexo, queria-se outra energia nos gestos, outra habilidade no inflamar das carícias, outra luxúria entre dentes. Para amor, outra entrega bastaria mas não há aqui nada disso. E a razão é simples. Estão estes dois cumprindo um dever. Ela cumpre o dever de esposa dedicada, sempre pronta a receber em si o marido porque assim lhe foi dito que seria e assim tem sido nos últimos vinte e dois anos. Quer dizer, sempre, sempre, também não que têm as mulheres muitas formas de governar uma casa e uma relação com a suprema e subtil capacidade de deixar os homens acreditar que são eles quem está controlando. Ainda assim, ela preza a tranquilidade do lar e sabe que os humores do marido se alteram quando se não despede dos sexuais líquidos que parecem nascer-lhe no corpo todo para se virem alojar entre pernas. E lá lhe vai dando a ração suficiente para que se não queixe mas também se não enfarte. Não lhe marca os eventos na agenda para que se não aperceba da rotina mas sabe muito bem os dias em que menos lhe incomoda ser incomodada.
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O Romance “De Negro Vestida” foi publicado, capítulo a capítulo, neste blogue, entre 26 de janeiro de 2010 e 22 de abril de 2011.
Agora que conhecerá outros voos, nomeadamente, a publicação em livro, deixamos aqui um excerto de cada capítulo e convidamos todos os amigos e leitores a adquirirem o livro.
Obrigado pela vossa dedicação.
Setembro de 2013
João Paulo Videira
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