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Citação da Liberdade Assim como Quem Aguça o Apetite
A publicar brevemente neste blogue.
A Paixão de Madalena – Capítulo 5
A Paixão de Madalena
Livro I – A Paixão de Madalena
5. O sábado amanheceu frio mas brilhante. Quase como se houvesse esperança no ar. A manhã vai a meio e a sala é modesta, mas absolutamente limpa. Muitos livros à volta, uma cristaleira com poucas peças que se esqueceram de ser usadas, uma mesinha redonda no meio com uma toalha em croché, um bule branco com uma risca dourada na asa fumega um odor claro a erva cidreira e canela, algumas bolachas de água e sal num pires, também ele branco, uma manteigueira, algumas fatias de pão e uma faca sem gume e de folha larga para passar a manteiga loura no pão fresco e macio, um frasco de doce e um açucareiro com torrões lá dentro. Pela janela entra o sol e banha a mesa e desenha sombras com a disposição dos objetos. Entre a sala e a cozinha, Albertina desloca-se com tranquilidade. A vida já lhe ensinou tanto e já lhe trouxe tantas surpresas que poucas são as situações que a possam surpreender. Agirá com naturalidade porque, bem vistas as coisas, natural é a situação. O Criador mandou-nos a este mundo e desde que chegamos até que partimos andamos contando o tempo que por cá estamos como se fossemos todos iguais, sendo certo que o somos à partida e à chegada deixando pelo meio o rasto das nossas diferenças. E acertamos as datas. Falamos ao ano e meio, somos crianças até aos onze, começamos a ser adolescentes aos doze, somos adultos aos dezoito, verdadeiramente adultos aos vinte e um, poderosos aos trinta, experientes aos quarenta, respeitáveis aos cinquenta e a dever tempo à cova a partir dos sessenta e cinco, altura em que ficamos oficial e reconhecidamente velhos com direito a desconto nos transportes públicos. E preparamos as mentes e ajeitamos os conceitos nelas para reagirem com naturalidade a esta ordem de coisas. Somos homens quando chega a idade de sermos homens, mulheres quando chega a idade de sermos mulheres, casamos na idade de casar, procriamos na idade de procriar, vencemos na idade de vencer e morremos quando se espera que tal venha a suceder. Ora, em saindo um de nós desta regulação e desta tácita ordem de sucedâneos, estranham os conceitos, inquietam-se as mentes e reagimos expurgando de nós e da nossa normalidade, a anormalidade sucedida. E ao fazê-lo, expulsamos a mesma diferença que passamos a vida inteira a reclamar como direito. Em abono da esperança na nossa humanidade, alguns de nós abrem os horizontes da leitura da vida e da perceção dos sucedidos nela. E habituam-se a não estranhar. E desenvolvem a tendência de aceitar, mais do que de rejeitar, de incluir, mais do que expurgar. É assim Albertina. Por si começou pois que se divorciou, por vontade própria, numa terra e num tempo em que se não divorciavam os casais e menos ainda por iniciativa das mulheres. Um divórcio era uma desgraça na família e uma mancha no casal com particular ênfase para a mulher, por inocente que fosse. Ora, espírito livre nasceu Albertina e em espírito livre criou Madalena e foi esse espírito que primeiro reconheceu em Kyle e, por isso, resolveu aceitá-lo. Isso e o gosto por chá. São pequenas as coisas, pormenores, que às vezes influenciam as decisões maiores.
-Interessa-me pouco a sua idade e interessa-me ainda menos o que as pessoas dirão. O que as pessoas dizem são palavras. As palavras varrem-se do cimo da terra com uma suave brisa. Quanto a normalidade, lamento, mas não sei o que seja. Nada na minha vida tem sido normal e pouca coisa na vida de Madalena tem sido normal. E nem por isso temos deixado de ser felizes. Interessa-me, isso sim, se gosta dela. Se está disposto a cuidar dela e a fazer disso a prioridade da sua vida. Pelo que viveu, pelo que leu e pelo que viu, Madalena é já uma mulher, mas tem ainda o pensar de uma jovem. Precisa ser acompanhada.
– É isso que quero, mais do que tudo. Acompanhá-la. Cuidar dela. Sinto desejo, sim… como disse, ela é uma mulher, mas antes desse desejo há uma profunda vontade de ampará-la.
– E de ser amparado por ela…
– Não nego. A juventude dela é-me necessária. Estou doente. Ela sabe isso.
– E está mal?
– Acho que sim, mas não penso muito nisso. Nem sou egoísta com isso. Eu não procuro uma enfermeira, senhora Albertina…
– Albertina.
– Eu não procuro uma enfermeira, Albertina. De facto eu não procuro nada, ou, pelo menos, não procurava… Queria só que me deixassem em paz. Que me deixassem acabar em paz, mas Madalena desinquietou-me o espírito e fez-me ter coragem e acreditar que ainda é possível viver.
– E eu preocupada com ela e com o que o senhor lhe podia fazer… o melhor seria preocupar-me consigo… estou a ver que ela lhe deu volta à cabeça…
– Remexeu-ma toda. A cabeça e o coração…
E, em meio desta conversa, surgiu uma voz feminina e jovem:
– Olha que bonito, a brincarem aos adultos, a falarem de mim como se eu não estivesse aqui. Não sei já qual dos dois me disse que isso era falta de educação. Talvez ambos! O mais certo é ter de cuidar de vós… velhotes…
E riu. E arrastou consigo as gargalhadas deles e criou-se ali a sintonia que todos queriam preservar. E o certo é que Madalena pelo que conhecia de cada um viria a ser uma ponte entre todos. E quando se despediram ao final da manhã, Albertina acrescentou com o olhar antecipando uma lágrima, Cuide bem da minha menina. Da nossa menina, emendou Kyle.
Todos os namoros são como os outros namoros e nenhum namoro é como os outros namoros. Tudo é encantamento e enamoramento e limar dos defeitos alheios com os olhos próprios, tudo é essa força magnética de puxar-te para mim e empurrar-me para ti, tudo é marcado pelo olhar benevolente da descoberta e pelo movimento concêntrico da adaptação. E, contudo, cada par tem seus próprios ritmos, suas próprias caraterísticas, seus rituais, suas músicas e suas palavras de encantar. O que, definitivamente, marcará para sempre o namoro de Kyle e Madalena é que foi ele o guia, o tutor e o cicerone e foi ela a aluna aplicada das emoções, das atitudes e da forma como se pode olhar o Universo. Ensinou-a a reagir a pressões, ensinou-a a consciencializar sentimentos, ensinou-a a relacionar-se com os outros medindo forças, ensinou-a as subtis diferenças entre paixão, amor e amizade e ensinou-lhe os sinuosos caminhos que se percorrem no prazer do corpo para conquista da alma. E ensinou-lhe a cidade. Os passeios junto ao grande lago, os locais para comprar as melhores mercearias, os bares mais confortáveis e os poucos pubs importados da Irlanda onde era possível ouvir o jorrar da cerveja, o bater das canecas umas nas outras, as pessoas falando alto e aquecendo o desconforto do local com a sua ruidosa presença. Ele costumava dizer, Isto é a Irlanda diluída pelo frio e pela distância, mas é o mais aproximado. E ela retorquia, Estás sempre a falar do frio de cá, mas lá também é frio. Mas ele não se calava, Onde há dois irlandeses, não há frio, o frio combate-se de muitas formas, os sistemas de aquecimento são menos eficaz! E como sempre acontece foram aprendendo-se mutuamente. Foram percebendo o recorte mental de cada um. Ela percebeu-lhe o caminho de vida atribulado, a ânsia de paz, assuntos por resolver com as filhas, a mente plural e aberta, o gosto pela sedução, o desespero com a doença. Ele viu-lhe o desejo contido de conhecer mundo, outras gentes, outras pessoas, para ela, estar entre as montanhas que cercam a cidade, era como estar aprisionada, viu-lhe a candura e viu-lhe, na malandrice de menina, a sensualidade da mulher que despontava. E quando a cidade estava explorada e conhecida e começavam a desenhar-se rotinas, ele disse-lhe, Um dia destes falo com a Albertina e levo-te a Belfast. Isso sim, é uma cidade. E que tal falares comigo primeiro? Já me perguntaste se queria ir contigo? Não perguntei, nem pergunto, vais e pronto, às crianças não se pergunta o que querem fazer, diz-se! E ela começou a correr atrás dele e ele fugia numa corrida frágil e tímida e quando o apanhou, puxou-lhe as orelhas e mordiscou-lhas e beijou-o e pelo meio disse-lhe em excitação, Temos de castigar o senhor professor!
– Tenho uma má notícia para ti.
– E uma boa?
– Depende de como encarares a má.
– Como queres que a encare?
– Como quero que encares tudo. Com aventura no coração e espaço na mente.
– Espaço na mente?
– Sim, Madalena. Não te feches sobre ti e o teu umbigo.
– Vais gostar do meu umbigo…
– Não me distraias, ouve-me que isto é importante…
– Sim, setôr!
– Abre a tua mente para as oportunidades da vida. O interessante nas oportunidades é que muitas vezes vêm mascaradas de problema. Não sejas pequena no pensar. Não deixes os problemas tomarem conta de ti. Abraça a vida, entrega-te a cada dia como se tudo dependesse dele, agradece o sol e a chuva e, sobretudo, agradece cada pessoa que se cruzar contigo, mesmo que te traga problemas. Os problemas são sofrimento e o sofrimento é aprendizagem e nós nunca aprendemos o suficiente e quando finalmente sabemos algo, estamos prontos para partir… não sejas efémera porque a efemeridade é a tua condição à nascença. Sê perene nas tuas opções e nos teus atos. Imortaliza-te a cada momento, a cada olhar e a cada palavra e, mesmo assim, verás mais tarde que poderá não ter sido suficiente.
Madalena bebeu-lhe as palavras como um néctar de vida, um manual de sobrevivência e gravou-as na mente e no peito. Nunca mais dali sairiam. Contudo, não se deixou iludir em relação ao início da conversa e atalhou:
– E a má notícia?
– No próximo ano não serei teu professor.
– A tua saúde?
– Não. A minha opção!
– A tua opção? Porque te afastas de mim?
– Não me afasto, miúda, aproximo-me.
– Vais começar a fazer sentido em breve ou tenho de esperar?
– Madalena, já passei a fase de achar que isto era uma loucura. Já te inclui no meu céu de estrelas e pessoas boas, já estás no meu coração. Pedi a minha demissão por razões diversas.
– Pediste a demissão? Tu és louco?
– Seria louco se não fosse louco. Tenho pena de só ter-te encontrado agora, mas agora que te encontrei, quero cada momento partilhado contigo. Demiti-me, antes de mais, para ter tempo para nós. Também preciso de tempo para mim, para gerir esta doença terrível que me consome e depois por razões que são dos homens com preconceitos e que combateria noutra altura e noutras circunstâncias. Acontece que, neste momento da minha vida, não me importo de fazer-lhes a vontade e ser um bocadinho egoísta. Afasto-me do trabalho por questões éticas, para que não digam que o professor e a aluna dormem juntos. Sim, não tenho dúvida nenhuma de que a maldade e a inveja reduzirão o nosso amor a um estereótipo pejorativo, a uma coisa feia, quando na verdade é a coisa mais bela que alguma vez me aconteceu…
– Mas nós não dormimos juntos…
– Mas vamos dormir, tens consciência disso…
– E até uma pontinha de ansiedade… só quero que me prometas uma coisa…
– Tudo.
– Vais achar que é coisa de miúda como costumas dizer, talvez seja, talvez seja a Elisabeth Bennet que há em mim, ou então é só uma tolice…
– Desembucha, miúda.
– Promete-me que será especial. Não quero mais nada de ti. Eu percebo que te possas interessar por mim só por causa da minha juventude, pela atração do corpo, mas, ainda que seja uma só vez, promete-me que será especial.
– Enterneces-me e ofendes-me. Já te falei de sexo, eu? Não. E sabes porque não? Porque eu adoro sexo, mas sei que é só um complemento do que as mentes das pessoas conseguem trocar entre si. É preciso desbravar as ideias primeiro. Deixar crescer o entusiasmo, deixar evoluir a sedução e por fim consumá-los num momento… como é que é a palavra que usaste? Especial! Sim, miúda, será especial. Para ambos.
– E enterneço-te com quê?
– Hã?!
– Pois, esse teu discurso todo foi sobre o que eu disse e te poderia ofender, mas também quero saber o que é que te enterneceu?
– Que tu queiras um momento tão íntimo, tão revelador, e tão especial como esse comigo. Que tu estejas disponível para entregar-me a tua juventude em vez de o fazeres com um rapaz da tua idade. Seria o normal, não?
– Os rapazes da minha idade são uns tolos. Acho que por serem da minha idade ainda não estão preparados para dar. Somente para sorver, sugar a emoção e deixar escapar entre os dedos a oportunidade de fazer algo especial…
– Meu Deus, a consciência que tu tens das coisas!
– Com que então demissão?
– Demissão!
– Valho assim tanto?
– Vales o resgate de uma vida.
– Talvez só tenha vindo ao mundo para isso…
– Para quê?
– Para resgatar vidas. Como uma missão, uma predestinação. Madalena a que veio para amar e resgatar.
A conversa foi breve e produtiva:
– Se a Albertina não vir inconveniente, este fim de semana vou levar a Madalena a conhecer Belfast.
– Sabe, Kyle, há uma coisa em que ela tem razão. Temos de deixar de falar dela como se ainda a estivéssemos a educar. Eu criei-a em liberdade. A liberdade das decisões e a responsabilidade por elas. Ela optou. É com ela que tem de falar. Eu não estou a demitir-me de nada. Só não posso substituir-me à Madalena, sobretudo, assumindo nós que estamos perante uma mulher. A sua mulher.
– Sim, tem razão. Só não queria que não soubesse onde ela vai estar.
– Para mim, Kyle, onde ela vai estar é consigo. Nas suas mãos. No seu coração. E isso basta-me.
– Fico feliz por ouvir isso…
– Divirtam-se e…
– Sim?
– Que seja especial!
– Vocês combinam-se?
– Ou estamos irmanadas pela convivência e pelo amor. Chá?
– Sempre. Adorei aquela planta aromática…
– Cidreira.
– Cidreira.
Belfast surpreendeu-a em todos os sentidos. De todas as formas. Maravilhava-se a cada esquina e pedia a Kyle que lhe contasse a história de cada edifício. Apesar de se notarem ainda os efeitos dos conflitos na degradação dos espaços, a cidade afigurou-se-lhe belíssima. Era um emaranhado de ruas estreitas e compactas com muitas delas para uso pedonal exclusivo. A marca da época vitoriana habitava cada edifício e evocava histórias antigas de realezas e cavaleiros nobres. Kyle mostrou-lhe a sumtuosidade do Scottish Provident Building, a harmonia musculada do City Hall onde a levou de novo à noite para verem a cúpula iluminada, a frieza vertical e exótica do Albert Clock, Vê lá se tens o relógio certo, este nunca se engana! Visitaram os jardins botânicos onde fizeram corridinhas e trocaram abraços e beijos apaixonados. A certa altura, Kyle dirigiu-se com ela para o mar, percebia-se pelas gaivotas a bailar e os corvos marinhos agitados em volta delas, até que chegaram junto de uns grandes armazéns que pareciam abandonados e onde jaziam enormes peças de ferro que lhe pareciam pedaços de um gigantesco puzzle tridimensional de um barco.
– O que é isto? É tudo tão velho, tão abandonado.
– São os estaleiros da Harland and Wolff.
– Da quê?
– É uma construtora de navios.
– Muito bem. Apesar de tudo isto ser estranho e feio, conseguiste pôr-me curiosa. Tem tudo sido tão romântico, posso saber o porquê deste momento de sucata?
– É um dos mais interessantes momentos. Poucas pessoas sabem que foi aqui…
– Que foi aqui o quê?
– Já ouviste falar do Titanic?
– Quem não ouviu? Uma história de grandiosidade e terror. Até fizeram um filme na década de cinquenta. É trágica e bela a cena do navio a afundar-se com as pessoas em sentido… não me digas que…
– Exatamente! Foi construído aqui, nestes estaleiros.
– Maravilhoso.
Depois percorreram a Victoria Street e pararam em frente ao Crown Liquor Saloon.
– Este também tem uma história.
– Então?
– Durante a fase mais acesa dos conflitos sofreu várias tentativas de ataque, mas nunca foi realmente atingido.
– Porquê?
– Essa é a parte engraçada. A malta aqui diz que é porque Deus protege os bêbados.
– E bebemos?
– Claro. É obrigatório.
E beberam e passearam pela noite fria e foram-se aquecendo intermitentemente neste e naquele pub e toda a gente parecia conhecer Kyle e toda a gente lhe perguntava quem era aquela e ele dizia com inocência que era a sua namorada. Uns calavam-se, outros riam, outros gozavam e todos acabavam a beber uma Guiness com eles. Chegaram tardíssimo ao hotel e caíram pesados e exaustos na cama. Pensaram diversas vezes, um e outro, que aquela seria a noite dos corpos. Não foi. O dia fora tão extenuante quanto interessante e a noite longa e visitada por muitos vapores etílicos. Foi de madrugada. Ele acordou e viu a luz primeira do dia banhando-lhe a pele. Percebeu-lhe a sensualidades das curvas e dos volumes e, olhando para ela, mesmo sabendo da sua juventude, não podia deixar de admitir que era de uma mulher que se tratava. Com a ponta dos dedos, percorreu-lhe um braço numa carícia suave e sentiu-a acordar ainda que fingisse continuar a dormir. Depois poisou-lhe um beijo no ombro descoberto, e ainda outro no pescoço, ela voltou-se para ele como se acordasse, sem abrir os olhos, e beijou-o apaixonadamente. E sussurrou-lhe, Ensina-me tudo. Ensinarei. Desapertou-lhe o sutiã e beijou-lhe os seios firmes e rosados, percorreu o seu ventre com os lábios húmidos e beijou-lhe o sexo como quem se persigna num altar agradecendo a dádiva e acariciou-a de tal forma que quando se ergueu para tomá-la, ela já estava ansiando que ele o fizesse. E aceitou-o no seu ventre, acolheu-o em si como uma dádiva de vida, recebeu-o para ficar a eternidade toda no seu corpo e na sua alma. E deram-se as explosões todas e voltaram-se a dar. E foram ensinando um ao outro o caminho despudorado do prazer e foram brincando um com o outro como se fossem brinquedo um do outro. E houve libertação. Kyle libertou-se da opressão da doença, sentiu esperança e realização. Madalena libertou-se de si, da sua própria ignorância e cruzou as fronteiras traçadas pelos preconceitos dos homens. Foram um casal. Um homem e uma mulher esgrimindo a sedução e a sensualidade. Foram dois corpos nus inaugurando o amor na madrugada fria de Belfast.
Quando trouxeram o pequeno almoço ao quarto, Madalena devorou-o sentada na cama como se não comesse há uma semana. Kyle viu-a comer com prazer enquanto bebia um café. Depois foi para o chuveiro, abriu a água quente, deixou-a correr sobre a cabeça que ergueu aos céus. Em pensamento agradeceu a mulher que o fizera renascer e era uma pequena oração que murmurava enquanto a água lhe corria pela face misturando-se com as lágrimas.
——————————— jpv ———————————
A Paixão de Madalena – Previsão que não é Promessa
A Paixão de Madalena – Capítulo 4
A Paixão de Madalena
Livro I – A Paixão de Madalena
4.-Florence!
-Presente!
-Jacques!
-Presente!
-Louis!
-Presente!
-Madelaine!
-…
-Madelaine! Não há uma Madelaine aqui?
-Não.
-E tu, quem és?
-Eu sou a Madalena.
-A Madelaine, portanto!
-Não. A Madalena. Como saberá, os nomes não se traduzem.
-E tu és a engraçadinha, portanto.
-Não, eu sou a Madalena
-Madaléna?
-Não se pronuncia assim, mas terá de servir.
-E que livro é esse em cima da tua secretária?
-“Orgulho e Preconceito” é da…
-Eu sei bem de quem é! É uma das minhas autoras preferidas e esse é um dos meu livros favoritos.
-Quer então dizer que tem mais jeito para escolher livros do que para pronunciar nomes…
-Tu és atrevida!
-Só quando me provocam.
Quando disse isto, Madalena ruborizou completamente e, aquela que teria sido uma frase de vitória, foi um dar de flanco. Acontece que Kyle não tirou partido disso. Reconheceu-lhe a inusitada coragem, a maioria não teria ido tão longe, mas sabia que estava em posição de vantagem e não quis abusar disso. Ficou intrigado, contudo, com aquela mescla de pureza e atrevimento. Fizeram-se as apresentações, estabeleceram-se as regras de funcionamento da disciplina de Inglês e na hora da saída, Kyle fez um gesto a Madalena pedindo-lhe que ficasse.
-Estou intrigado…
-Com o quê?
-Diz aqui na tua identificação que és portuguesa.
-E sou! Genebra está repleta deles.
-Sim, mas o que faz uma portuguesa em Genebra a ler um livro inglês traduzido em francês… O natural seria estares a ler uma tradução em português…
-Eu quase não sei português. Só o básico, Bom dia, Boa Tarde, e frases curtas e utilitárias…
-E como veio isso a suceder?
-É a história da minha vida, mas acho que não lhe diz respeito. Digamos que vim para cá muito pequenina…
-De Portugal.
-Não. De Londres e antes disso do Quénia e antes disso de Macau, mas, sinceramente, não me apetece falar disso… quase não o conheço.
-Correto. Mas…
-Sim…
-Tens idade para ler esse livro?
-Ha ha ha ha…
-Porque te ris?
-Pela sua presunção! É para aí a quarta vez que leio este livro e só estou a relê-lo porque não consigo comprar mais…
-Tens a biblioteca.
-Estive lá ontem. Não há lá nada que valha a pena ser lido que eu não tenha devorado já!
-Exagero!
-Teste-me!
-Guerra e Paz?
-Fácil, Tolstoi.
-Crime e Castigo?
-Outra fácil, Dostoievski.
-O Senhor das Moscas?
-Mais rebuscado, Golding.
-Cem Anos de Solidão?
-Garcia Marquez… isso não vai ficar um bocadinho mais difícil?
-O Jardim das Quimeras?
-Sim, esse não é para qualquer um, mas adorei… Marguerite Yourcenar. Agora é a minha vez…
-Venha…
-Pavel Pavlovitch?
-Hummm… isso traz água no bico… como autor não conheço… como título também não… apanhaste-me… ou fizeste batota!
-É a personagem principal de “O Eterno Marido” do seu Dostoievski…
-Batoteira, mudaste as regras do jogo. Gosto desse livro… e do autor. Como sabias que eu gostava do Fiodor?
-Básico, a primeira obra que perguntou era dele…
-Poderia ser casual…
-O professor não é um homem de casualidades!
-Mas afinal quantos anos tens tu?
-Catorze.
-És tão novinha!
-Não sou nada. Novinhas são as minhas colegas de turma que só têm catorze anos! Enfim, aquela dos risinhos tem quinze e é ainda mais nova do que as outras!
-Hummm… isto vai ser giro…
-Senhor Mckenzie?
-Sim…
-Porque é que está triste?
-Não estou. Já chega, reunião terminada, podes ir embora Madalénade Portugal que não fala português e andou a correr mundo antes de me aterrar em cima!
-Madalena!
Não saberemos nunca, se no momento de expirar-se a última gota de água no nosso planeta, um ser humano estará no local para presenciar o evento, quem sabe, cheio de sede, sacudindo o fundo de um cantil e recebendo essa gota nos lábios saciando-lhes, pela última vez, um resquício dessa mesma sede. Provavelmente, quando vier a acontecer tal desgraça, já não haverá seres humanos. E, contudo, passamos os dias da nossa vida usando expressões como “até à última gota” sendo que, não saberemos o que será, nem como será essa gota. Vale a expressão, não pela última gota, mas pelo valor dado ao inestimável e indispensável líquido que nos sustenta a vida. Este encontro com Madalena reabriu o espírito de Kyle Mckenzie e, mesmo que o não saiba ainda, há de devolver-lhe a esperança e há de fazê-lo querer sorver a vida até à última gota.
Depois de um percurso intermitente e deambulante pelo mundo, que contaremos com pormenor chegada a altura de o fazer, que, também nós, escritores, temos os nossos caprichos, Madalena veio instalar-se em Genebra com Albertina, mãe de sua mãe, e sua mãe desde tenra idade. Dizemos por vezes que ser avó é ser mãe duas vezes, pois no caso de Albertina, ser avó de Madalena foi ser sua mãe pois que muito cedo lhe foi entregue e a seu cuidado ficou. Agradecida está Madalena por ter tido essa proteção e o Universo, em seus misteriosos desígnios, lhe há de pedir que devolva a generosidade o que ela fará com dedicação e amor. Por agora, importa saber que Madalena está há dois anos em Genebra, é fluente em inglês e em francês e está, desde que chegou à cidade das neves, pela primeira vez, numa escola pública. Tem tido excelentes resultados, mas quase não tem amigos. Chega à escola, vai às aulas, regressa a casa, e nos intervalos de tempo que possa ter, dedica-se à maior das suas paixões: lê. Albertina, a avó-mãe, não só nunca lhe cerceou o ímpeto e o gosto, como lho fomentou e lho alimentou sempre que pode. Aos oito anos já lia alguns dos clássicos da literatura mundial e sempre que lhe surgiam dúvidas, fossem vocabulares, fossem das intrincadas razões das pessoas para serem pessoas, Albertina explicava-lhe com simplicidade e com naturalidade as coisas tal como a vida lhas ensinara.
É curioso como por vezes se pensa que a atração entre duas pessoas é física. E como se pensa também que, não sendo física, é do foro das emoções, como o amor, por exemplo, tendo depois a sua concretização física. Em todo o caso, está a atração entre duas pessoas distanciada quase sempre, e na sua génese, das zonas racionais e inteletuais. Madalena e Kyle são prova de que este senso comum é falho de precisão. Para que duas pessoas se sintam atraídas, basta que se sintam atraídas. A causa da coisa pode bem ser do âmbito racional ou intelectual, como foi o caso. Madalena foi ficando mais vezes no final das aulas e depois mais vezes ainda e depois começaram a encontrar-se, ocasionalmente e sem qualquer arranjo, no refeitório e as suas conversas eram sobre literatura e livros e a interpretação das coisas escritas e do seu sentido na vida que nos é comum. E quando sucedia que, por qualquer razão alheia a ambos ou por propositada prudência de Kyle, não ficavam conversando uns minutos no fim da aula ou à hora do almoço, Madalena sentia-se como se algo lhe tivesse faltado naquele dia e Kyle sentia-se como se naquele dia algo lhe tivesse faltado. Discutiam questões de gosto, debatiam as intenções dos autores, analisavam estilos, esquadrinharam o romantismo de Lord Byron, Jane Austen e Victor Hugo, discutiram os realistas, os neo-realistas, os existencialistas, e aqueles que discutiram só porque quiseram discuti-los, só porque tinham gostado de um livro anónimo de um autor desconhecido. E o tempo e as conversas foram traçando caminhos de emoção no peito e na mente e, sabemos nós e saberá o leitor, em fazendo as contas que são de matemática simples, que havia entre a aluna e o professor vinte e cinco anos de diferença na idade que a cronologia dos dias marcou. E, no entanto, os seus corações não viam essa diferença, as suas mentes não sentiam essa assimetria de tão ocupados que estavam com o estímulo intelectual que cada um representava para o outro. E como sempre acontece quando as pessoas se revelam pelas palavras e pelo sentido que vai nelas, começaram a conhecer-se. Madalena percebeu que o professor de inglês, não era só um professor de inglês, havia um homem sensível e magoado e havia, não obstante o traço triste que sempre o acompanhava, um sonhador, um menino de olho azul que continuava a acreditar nas pessoas. Percebeu, também, que estava divorciado e percebeu que essa era uma ferida muito recente em que ele evitava tocar a todo o custo. Como quando levantamos um penso de uma ferida fresca e a pele vem agarrada. Este homem era, sobretudo, um espírito livre, um amante da vida e de viver, uma pessoa de mente aberta e mentalidade plural e, sendo muito mais velho, era charmoso. Um dia deu consigo a pensar na diferença entre bonito e charmoso. De facto, não podia dizer-se que o professor Kyle fosse bonito. Já o fora, por certo, mas demasiadas dores e algum tempo lhe haviam passado pelo corpo e pelo olhar. E gostava de mulheres, ai isso é que gostava, via-se bem na forma enlevada como falava da sua graciosidade e harmonia. E havia em si uma aura de magnética paz, de boa disposição e de entendimento que puxava. Apetecia estar com ele. A verdade é que Madalena se sentia atraída pelo professor de inglês e em pouco tempo, que estas coisas nunca levam muito, se apaixonou por ele. Só que não soube. Se soubesse talvez tivesse recuado por via de uma montanha de preconceitos que se avistava ao longe como as que cercam Genebra. Quando veio a saber, era já incapaz de recuar. Em abono da mesma verdade que ainda agora se invocou, as coisas não foram iguais na cabeça de Kyle. Foram conscientes, medidas, pesadas e calculadas desde o primeiro momento. Ele soube de imediato, logo naquela primeira chamada, que aquela miúda mexia consigo. Aquele misto de ingenuidade e atrevimento era condimento irresistível. Aquela miúda corava com uma facilidade inusitada e, ao mesmo tempo, debatia literatura e a vida com a maturidade de uma mulher crescida. Kyle sabia que se tratava somente de uma rapariga de catorze anos, mas sabia também que tinha na sua frente uma mulher com mais maturidade do que a maioria das mulheres que ele conhecera, de algumas das suas colegas de trabalho, por exemplo. Retraiu qualquer impulso afetivo que estivesse para além da comunhão das ideias que ambos procuravam e analisavam nos livros que liam, mas sabia que o impulso estava lá. Por vezes, sentia-se mal. Pensava na idade dela, Mas onde raio é que andas com a cabeça, irlandês casmurro, é só uma adolescente! Outras vezes pensava na maturidade dela e nas coisas que passara a vida a ensinar na faculdade e agora também a estes, que o amor não escolhe raça, género nem idade, acontece e pronto. E debatia-se entre aquilo que ensinava aos outros e a coragem de seguir o seu próprio impulso. Um dia marcaram-lhe um desses infindáveis e dolorosos exames. As coisas não correram como esperado e ficou duas semanas em casa acompanhado por uma enfermeira. Na escola disseram somente que o senhor McKenzie estava doente e seria substituído temporariamente por fulano de tal. Ele chorou na cama a sua sorte, quando o coração lhe pedia vida, o corpo negava-lha. E chorou a ausência de Madalena. A enfermeira, com aspeto muito frio e distante, surpreendeu-o, Por que chora, senhor Mckenkie? Está com dores? Não, não tenho dores! Calculei, um choro assim profundo e sentido não vem do corpo, vem da alma, o senhor está com dores de alma? Kyle olhou-a surpreendido e disse-lhe, Acho que sim, e contou-lhe tudo o que estava a passar. Senhor Kyle, estou habituada a ver corpos abertos, a sangrar, a deitar pus, homens de barba rija a gritarem como crianças, mas acho que nunca vi um coração assim dilacerado. A sua história é impressionante e ingénua e pura… Sabe, eu seguiria esse amor, se essa jovem soubesse no que se estava a meter, se a família soubesse no que ela se estava a meter, se o senhor não fosse mais professor dela… percebe… o problema, a meu ver, não é a idade, é o seu relacionamento profissional com a jovem.
-Está melhor?
-Eu não vou melhorar, mas por agora estou.
-Ainda bem. Gosto de saber isso. Não tinha mesmo como avisar?
-Avisar? Eu pedi que avisassem…
-Sim à turma em geral, disseram que estava doente, mas nós, quer dizer eu… pensei…
-Sim. Pensei em fazer-te chegar um recado só a ti a dizer que estava tudo bem, que eram só uns exames, mas… não sei… achei mais prudente não fazê-lo… porquê tratar de modo diferente uma aluna?
-Uma aluna?! É isso que sou para si?
-Que mais podes ser, Madaléna?
-Se não cabe mais nada na sua cabeça, então tem razão… que mais? Nada.
-Cabe na minha cabeça, cabe no meu coração, mas e os outros? Que dirão as pessoas? Tenho mais vinte e cinco anos do que tu e tu… por mais maturidade que tenhas, és só uma adolescente… não quero magoar-te, mas…
-Mas só ficou o preconceito. Já não há orgulho e amor talvez nunca tenha havido…
-Madaléna, imagina que assumíamos tudo o que houvesse para assumir, imagina que tudo era aceite, e não vai ser, imagina que tudo corria bem entre nós e à nossa volta, mesmo assim, eu tenho cancro Madaléna,isto vai matar-me em breve, não me resta muito tempo e o pouco que resta adivinha-se um tempo de sofrimento…
-E como tal, o melhor que encontra para fazer é negar a vida que lhe resta viver! É negar os sentimentos que nutre pelas pessoas que o rodeiam, é… enfim, é morrer antes de ter morrido! Eu estou a falar com o professor McKenzie ou com o cadáver dele?
-Cala-te miúda atrevida, não brinques com o que não conheces!
-Eu não estava a brincar…
-Cala-te!
Durante essa semana não voltaram a falar-se. Ele entrava na sala, chamava os alunos, corrigia os trabalhos de casa em os havendo, dava a aula, fazia perguntas, a ela também, ela mostrava-se atenta, respondia quando alguma pergunta lhe era dirigida e saía da sala sem olhar para ele sabendo que ele estava ocupado a apagar o quadro ou a arrumar os cadernos e não olharia para ela também. E andaram os dois remoendo aquela conversa azeda e relembrando todas as outras interessantes e estimulantes na partilha e na troca de ideias. E outras semanas se passaram até que se digerisse o muito que havia para digerir. Até que se pensasse e pesasse o muito que havia para pensar e pesar. Até que a distância ajudasse a medir a proximidade. E os seus corações serenaram e as suas cabeças discerniram. E um dia, no final da aula, ela deixou-se ficar para trás e quando se dirigia para a porta perguntou:
-Professor McKenzie?
-Sim…
-Todos os irlandeses são assim casmurros ou o senhor é um caso particular?
-Há dois requisitos para se ser irlandês, ser casmurro, beber Guiness e amar portuguesas francófonas que correram meio mundo, amadureceram prematuramente e nos revoltaram o coração no fim da vida!
-A vida não tem fim, Kyle McKenzie.
-Isso é o que veremos, Madaléna…
-Mas… disse dois requisitos e enumerou três…
-Naaa… o terceiro é uma consequência dos dois primeiros!
-Safado!
Madalena deu os dois passos que os separavam e abraçou-se a ele. Kyle retribuiu o abraço com força e ternura e ficaram ali sentindo o imenso amor que os unia até que ele conseguiu dizer:
-Precisamos conversar, miúda.
-Está bem, velhote…
-E preciso conhecer a tua avó.
-Ela já te conhece e sabe as tuas intenções.
-Quais intenções?
-Amares-me para todo o sempre!
-Mas eu nunca disse isso!
-Nem foi preciso, estava escrito na tua cara, no teu corpo e vinha com as tuas palavras mesmo que elas não o dissessem abertamente.
-Safada!
-Sabes quando tive a certeza de que éramos namorados?
-Ai somos?
-Claro que sim, sabes que sim… quando nos zangámos… Eu fui rezingona como a Elizabeth Bennet e tu foste altivo como o Mr. Darcy.
-A vida não é um romance, Madaléna!
-Passas as aulas a dizer o contrário.
-Ainda bem que o ano letivo está quase no fim.
-Porquê?
-Para me livrar de ti e das tuas respostas impertinentes…
-Para te livrares de mim?
-Sim, como aluna. Vamos lá conhecer a avó Albertina!
Não se beijaram. Não era preciso. E também não deram as mãos. Ele acompanhou-a até ao portão e ficou combinado que no sábado de manhã a visitaria para conhecer Albertina. Continuava a achar que tudo aquilo era uma rematada loucura, mas corria-lhe no peito um Camowen de emoções e excitação. Por momentos, pensou mesmo que um dia venceria o cancro. Fantásticos poderes tem o amor. Cura doenças, traz a imortalidade dos amantes e une as pessoas improváveis em improváveis casais. Brota súbito e poderoso e corre para a morte prenhe de vida como os salmões no Strule.
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Citação das Intrincadas Razões
A Paixão de Madalena – Capítulo 3
A Paixão de Madalena
Livro I – A Paixão de Madalena
3. Dois princípios primordiais seguiu o Criador quando criou tudo e todos. Foi o primeiro ter tornado todas as coisas e seres distintos de todas as coisas e seres. De tal forma assim é que estando nós contemplando o mar não dizemos, Olha que belas montanhas o Senhor aqui pôs. E assim acontece com tudo o que a este mundo veio parar. Não se confundem os cães com os gatos, não se confundem as águas com as terras, nem as árvores com os ventos, nem o dia com a noite. Muito trabalho deu isto ao Criador pois que, para todas as coisas e seres, dos maiores aos mais ínfimos, teve de encontrar distintivo traço não Lhe cabendo a Ele qualquer responsabilidade pelo tempo que nós, pequenos humanos, possamos levar a encontrá-los e a identificá-los. Ora, sendo esta tarefa, só por si, justificativa dos seis dias que o Senhor levou a criar todas as coisas e seres, com universal reconhecimento para a sua eficácia e níveis de produção no labor, mais séria e difícil se tornou a tarefa quando o próprio Criador, porquanto mais nada existia à altura, ao mesmo tempo que diferenciava tudo, tudo decidiu interligar em abono da coerência do Universo criado. Só assim se percebe que, ao nomeá-lo, de Universo o tenha chamado.
É curioso, pois, que, desde o início dos tempos, andemos nós humanos identificando traços distintivos e buscando a teia de ligações com a qual se urde a coesão. Sendo certo que é mais seguro o método científico, muitos adeptos têm as conclusões empíricas, as mais das vezes por se dizerem fundeadas na experiência e no saber antigo. E é por esta ordem de razões que sabendo o Povo que os rios são uma coisa distinta e diversa do mar, deles veio a dizer que correm para este. Da mesma forma que sabendo as claras diferenças entre o deserto e a floresta, reconhece que as chuvas que caem nesta tornando-a fresca e frondosa se formam sobre aquele. E assim nasceram relacionamentos de empírica raiz e comprovação. O luar e as marés, os movimentos das entranhas da terra e o humor dos animais, a tela paisagística e o caráter dos homens. E será neste último que nos deteremos de forma breve por não nos esquecermos que temos uma personagem para apresentar e uma história para contar. Diz o Povo que os pescadores são bravios e persistentes como o mar e o vento que os moldou. E diz que os habitantes da montanha são firmes e fechados como a pedra que os esculpiu. E diz ainda que são os habitantes da planície tranquilos e de espírito aberto como a planura e a brisa que os soprou. Fossem todas as paisagens simples e definidas como as dos exemplos que acabámos de dar e todas as explicações seriam fáceis. Viveriam os escrevedores os estranho paradoxo de não serem precisos por estar tudo natural e intuitivamente percebido. Sem história. Felizmente, complicam-se os acidentes da geografia e entrelaçam-se os sentimentos e os comportamentos no caráter dos homens carecendo, por isso, de explicação, história contada.
O rio Camowen desce a montanha excitado e rápido, em torvelinhos, cavalgando rochas, precipitando-se e gerando escumas brancas de oxigénio donde saltam salmões em frenesim correndo apressados e ansiosos da morte que os espera. É revolto desde que nasce e quando chega a Omagh ainda traz o nervo no curso e a excitação no passar. As pessoas que habitam ao longo da sua caminhada parecem ter essa pressa, essa agitação e esse sobressalto na atitude. Como se mesmo estando tudo bem, esperassem sempre uma mudança súbita e para pior, mesmo estando tudo feito, algo estivesse constantemente à espera de surgir inacabado. Quando Kyle Mackenzie nasceu, no coração da Irlanda do Norte, em Omagh, corria o ano de 1948 e já nessa altura se contava a história de seu avô materno, Joseph Stewart, homem que, segundo as fiáveis narrativas de pub irlandês sensivelmente à décima Guiness entornada, nascera apressado, vivera apressado e morrera cheio de pressa para ir ao talho. Falara depressa, ao ano, falava depressa e diziam que só a mulher, a pobre Mary, o percebia na plenitude. Fora para a escola antes da idade e abandonara a escola à pressa sem concluir quaisquer estudos porque queria trabalhar no campo onde havia tanto para fazer e ninguém parecia querer fazer coisa nenhuma. Saíra de casa depressa para se casar à pressa com a pressa de honrar a mulher que engravidara numa cópula apressada entre dois negócios de reses no celeiro de um leilão de gado. Com a mesma urgência de ir a lado nenhum lhe fez mais sete filhos, oito ao todo, dos quais seis vingaram e uma viria a parir Kyle com tranquilidade oriunda de outras águas. Fez nascer, prosperar e falir, que é outra forma de morrer, pelo menos seis negócios, todos em torno do gado bovino. Com a mesma pressa que os fazia vingar, assim os perdia e substituía por outros. Contam que se levantava de manhã, ainda a luz do dia não tinha certeza de querer vingar, empurrava o ombro de Mary para a acordar com brusquidão e dizia, Vá lá, mulher, despacha-te, não tarda nada é hora de almoço! Vestia-se e calçava-se num abrir e fechar de olhos, engolia o café e o bacon, saía à rua e começava a dar ordens que podiam, ou não, ter algo a ver com os trabalhos do dia anterior. Tal como o Camowen, Joseph sempre soube para onde queria ir, só não sabia bem como, excetuando o ímpeto e a pressa. Um dia levantou-se, meteu-se no carro e apareceu no rancho a dar ordens e a dizer que se mexessem, que o trabalho não aparecia feito e ele tinha de ir a Omagh. No meio da agitação que era a sua presença, alguém lhe disse:
– Senhor Joseph, está com pressa?
– Que raio de pergunta é essa, rapaz? Eu estou sempre com pressa.
– Sim, mas mais do que nos outros dias?
– Deixa-te de parvoíces e diz lá o que queres que eu tenho mais o que fazer.
– É que o senhor Joseph está todo vestido mas as calças são do pijama.
Ele largou a rir umas gargalhadas muito abertas e semirroucas, tirou o chapéu destapando o fogo ruivo que lhe ardia na cabeça e disse:
– É no que dão as pressas! Já não volto a casa. Não são as calças que fazem o homem.
Era um irlandês determinado e engenhoso e era-lhe atribuída a autoria de diversas engenhocas e mecanismos de utilidade extrema no cuidar e no transportar do gado. Isso e o “Relógio 48”. Quando alguém em Omagh mostrava uma pressa extraordinária, podia ouvir a expressão, Estás a precisar de um “Relógio 48”. A frase nascera certa noite entre a oitava e a décima Guiness, num pub local, quando Joseph disse, O meu relógio não tem 24 horas, tem 48 meias horas!Alguém teve a ousadia de perguntar, E qual é a diferença? E Joseph rematou, As meias horas passam mais depressa. Um dia, já com os cabelos brancos e as rugas com a pressa de lhe marcarem a face, a filharada toda arrumada e entregue à vida e uma carrada de netos beijados à pressa ao fim-de-semana, Joseph saiu de casa, disse, Vou ao talho, e meteu-se no carro. Num cruzamento, olhou para a esquerda e, com a pressa, esqueceu-se de verificar a direita. Foi abalroado por um camião. No funeral, houve quem dissesse que o tinha ouvido mexer-se no caixão e ainda hoje se conta que, fosse por respeito, por medo ou porque o Camowen corria ali ao pé, o Pastor disse no final do serviço fúnebre, Foi o funeral mais apressado que alguma vez celebrei.
O rio Drumragh entra em Omagh não muito longe do Camowen a que há de unir-se. Mas é outra atitude. Sereno e tranquilo, o rio desliza discretamente e há mesmo quem defenda em Omagh que ele só corre por baixo porque as águas superficiais estão paradas. O Drumragh não tem os estreitos nem os acidentes do Camowen. É um rio de curso largo e leito generoso onde é possível pescar um dia inteiro num pequeno bote amarrado por uma corda de nó simples. Todo ele é discrição e serenidade o que não significa que seja um curso fraco, pelo contrário, é uma força de água corrente significativa, mas corre firme e tranquilo sem sobressaltos nem percalços. Sabe para onde vai e vai com graça e doçura. John Mackenzie, pai de John Mckenzie, avô de Kyle Mckenzie, nascera assim, tranquilo, vivera tranquilo e com a tranquilidade de quem parte em viagem se despediu desta vida. No dia em que o pariu, a mãe sentiu uma leve dor, pensou, Vou ter o bebé, dirigiu-se ao quarto, recostou-se na cama e teve-o. Ele cresceu olhando as planuras verdes do Tyrone bordejando a passagem sossegada do Drumragh. Teve uma infância sem sobressaltos, uma juventude sem sobressaltos e um dia chegou junto do pai e disse:
– Meu pai, enamorei-me de Elizabeth O’Leary e acho que vou casar com ela. O que pensa disto?
– Penso que é sensato, mas, meu filho, ela já sabe da tua determinação?
– Não, meu pai, não sabe. Acho mesmo que não tem a certeza de que eu exista, mas, com calma, tudo se faz.
E fez. E foi com ela que casou, foi dela que teve os quatro rapazes. Ao primeiro deu o seu nome por falta de imaginação e para não se aborrecer mais com o assunto. E foi esse primeiro que lhe deu o neto, primeiro também, a quem chamaram Kyle Mckenzie.
Conta-se de John Mckenzie, o pai, que acordava cedo, fazia as suas orações matinais agradecendo a noite descansada e o novo dia, fazia a sua higiene, vestia a roupa que Elizabeth lhe deixara nas costas da cadeira e tomava calmamente o seu pequeno-almoço num ritual de passar manteiga nas torradas, beber o chá com leite enquanto folheava o Tyrone Advertiser. Depois, saía à cozinha para fora, inspirava o ar da manhã e, de olhos fechados, erguidos ao céu, pressentia o dia. Quando abria os olhos podia exclamar, Hummm… isto hoje vai pôr-se bom. E, assim sendo, todas as tarefas lhe corriam com fluidez e normalidade. A ele e aos que o rodeavam, por mais complexas e arriscadas que fossem. Se, por outro lado, ao abrir os olhos, dissesse, Oh diabo, isto hoje é capaz de se complicar,alguma coisa haveria de lhe ensombrar o trabalho ou a vida de forma a exigir trabalheiras e canseiras extraordinárias. Tudo passava, suportava e vencia com o olhar azul e beneplácito, uma palavra de tranquilidade e uma serena palmada nas costas. Certa vez, por descuido, desprendeu-se a cilha da sela, caiu do cavalo e foi atropelado por dois bois que terminavam uma manada a acabar de encurralar. Com o osso da perna a rasgar-lhe o tecido das calças e um empregado a desfalecer lívido, disse para os que sobravam em pé. Tenham calma, o que tinha de ser, já foi, vão lá chamar o médico, digam-lhe que tenho aqui um arranhão. Ficou coxo para o resto dos seus dias e gostou. Costumava dizer que, se não fosse ser coxo, seria um homem como qualquer outro. Aquela era a sua marca de individualidade. Aos noventa e quatro anos, viúvo, órfão de dois filhos e um neto, após um pequeno almoço generoso e tranquilo, comunicou à enfermeira que tomava conta dele que iria recostar-se na cama porque lhe apetecia morrer.
– Não diga disparates, senhor Mckenzie! Para o que lhe havia de dar hoje.
Quando foi ver dele, daí por uma hora, ele lá estava, recostado na cama, com as mãos sobre o peito, as pernas de lado para não sujarem a coberta, os olhos tranquilamente fechados, dormindo o sono dos sonos.
E foi assim que nasceu Kyle Mckenzie, entre a corrente tumultuosa do Camowen e o sereno deslizar do Drumragh, com o sangue apaixonado, determinado e efervescente de Joseph e o olhar azul e a pose tranquila de John. Quando o Camowen e o Drumragh se unem em Omagh dão origem ao Strule, um curso firme e caudaloso, mas de deslizar sem sobressaltos. E pode bem dizer-se que o caráter de Kyle foi temperado por essas águas. A primeira vez que o viu, Joseph não se conteve, Tem o fogo na cabeça, é cá dos meus! E seria, mas não tanto quanto ele quereria. Por volta dos seis anos, começou a ser visto em passeios contemplativos ao longo do Drumragh atirando pedras ao rio, falando às árvores e aos pássaros. Outras vezes, parava, ficava a olhar a água e era como se toda a sua existência, exceto o corpo, tivessem mergulhado e desaparecido no leito do rio e, contudo, gostava de aprender. Nunca se negou a aprender. Aprendeu a selar e a montar um cavalo, os cuidados com a alimentação, aprendeu a negociar num leilão de gado, a transportar os animais, a diferenciar uma rês de cobrição e uma de carne, aprendeu as atribuições de cada funcionário do rancho e como geri-los e, por volta dos dezasseis anos, a família conhecia-o, mas não fazia a mínima ideia de qual seria o seu destino. Quem via nele o Camowen dizia que seria um rancheiro de mão cheia. Quem via nele o Drumragh dizia que ele seria uma alma pacata como o avô John, talvez um médico veterinário, e ninguém conseguia perceber o meio terreno em que o seu caráter crescera e se formara. Exceto a mãe que um dia a um jantar, quando todos se deitavam a adivinhar o futuro de Kyle e a discuti-lo, disse, a destoar das teorias todas, O coração do meu filho não cabe no Tyrone! Ninguém percebeu o que ela quis dizer até ao dia em que Kyle anunciou, sem pedir, Vou para Belfast estudar.E foi. Mas a essa parte da história iremos daqui a pouco. Por agora, importa falar das paixões de Kyle Mckenzie, neto de Joseph Stewart e John Mckenzie, filho de John Mckenzie, criador de gado, contemplador do rio, amador das mulheres.
Aos dezasseis anos, o fogo no cabelo era uma certeza rebelde, o que era justificadíssimo motivo de orgulho, mas não era atarracado, nem de ossatura larga, pelo contrário, saíra esguio e à procura do céu como a mãe, tinha o olhar azul e profundo, sardas na face e nas costas, as mãos grandes e um andar cambaleado. A voz grave e forte com um traço de rouquidão que o fazia parecer mais velho quando falava. Desde que se conhecia que se sabia apaixonado. A raposa de Éxupery queixa-se ao principezinho, Rien n’est parfait, isto porque onde houvesse galinhas, teria de haver caçadores e onde estes não pusessem o pé também não haveria galinhas. Kyle sofria de um dilema semelhante com os pais das raparigas. Arriscou sempre, por vezes até a própria pele. São onze horas, o sol de verão está quase a pino e aquece as águas calmas do Drumragh, ouve-se o zumbido dos insetos cortando o silêncio e de quando em vez uma leve brisa vem sacudir a sombra da vegetação nas margens. No meio do leito está um pequeno bote fundeado com uma âncora pequena. É a calmaria total. Quem olhe a embarcação da margem não vê nada nem ninguém, quase parece abandonada, mas fixando bem a vista percebe-se um certo balançar. Da mesma forma que apurando o ouvido conseguimos perceber uma voz máscula e jovem cortada por um risinho feminino. Ela está deitada de costas no fundo do bote, o sol doura-lhe a pele clara e a brisa sopra-lhe o púbis exposto à luz e ao azul do céu e dos olhos de Kyle que está a seu lado, recostado sobre um cotovelo, elogiando as formas dela e o sorriso enquanto os seus dedos passeiam o corpo oferecido. Baixa-se para beijá-la e é o paraíso. Seguido do inferno:
– Kyle Mckenziiiiiiie! Seu grandessíssimo filho da puta, salvo seja, que a tua mãe é uma santa senhora que não merece o filho que tem, eu vou buscar-te seu atrevido e encho-te o corpo de chumbo!
Kyle manteve-se calmo, riu-se com ela, abraçaram-se. Bastava que ficassem quietos e nada aconteceria. Mas aconteceu. Quando ouviu o ruído dos barcos a motor, Kyle disse-lhe, Fica quieta, eles querem-me a mim, vão atrás de mim e esquecem-se de ti, nunca te levantes. Ela riu, puxou-o para si, agarrou numa mão dele que levou ao seu púbis e disse-lhe ao ouvido, Kyle Mckenzie, não te atrevas a ser apanhado hoje; à meia-noite no celeiro do meu pai! Estás louca? Ou é isso ou nunca mais me tocas. Seja! À meia-noite no covil do lobo! Kyle levanta a cabeça, olha à sua volta, são dois barcos, um vem descendo a corrente e outro vem-na subindo, olha para a margem, pensa que consegue mas, Vai ser por um triz, e faz-se ao rio completamente nu, nada desalmadamente para a margem oposta àquela em que está o pai ofendido, sim, o pai, que a donzela já se percebeu de que lado está, os homens nos barcos percebem-lhe o plano e dirigem-se para a margem, Kyle chega primeiro a terra e começa a correr em direção a um arvoredo perto, quando os homens se preparam para iniciar a sua corrida de perseguição, a rapariga, por curiosidade, levanta a cabeça, um acompanhante do pai ofendido vê-lhe a cabecita a espreitar e exclama:
– Olha, Ron, não é a tua filha!
– Olha, pois não, mas devíamos dar uma lição àquele malandro!
– Sê sensato, Ron, tu não és o ofendido… sabes lá se a rapariga estava ali autorizada…
– Olha lá, mas tu ’tás parvo ou quê? Aquele era o Kyle Mckenzie, a única autorização que ele tem é a sua própria para perseguir todas as raparigas do Tyrone…
– E para curar as tuas éguas quando sofrem de peeira.
– Lá nisso tens razão.
Fez um gesto para os perseguidores de Kyle na outra margem e gritou:
– Rapazes, vamos embora, esse safado não merece o combustível dos barcos nem o tempo que perdemos com ele, além disso nem sei quem é a rapariga…
– É a filha do…
– Cala-te, besta, já te disse que não sei quem é a rapariga!
À noite, no celeiro de telhas falhas, a lua substituiu o sol na cumplicidade dos murmúrios abafados pela palha e a Natureza cumpriu a sua missão.
Outras vezes entregava-se à conversa com os animais. Gostava particularmente de pedir conselhos ao Malte. Fora um garanhão promissor para as corridas, mas a necessidade levou a que a sua força fosse aproveitada nos trabalhos do rancho. Em vez de passar a vida a correr com outros cavalos, tinha nas suas corridas o propósito de juntar as reses do gado. E cobria. A sua linhagem era de tal forma garbosa que os Mckenzie se davam ao luxo de cobrar quantias exorbitantes por cada vez que o espantoso animal plantava uma sementinha de si numa égua da vizinhança. Hoje trabalha pouco. Está velho e cansado mas nunca foi abatido porque se tornou numa figura do Clã Mckenzie e num símbolo do rancho. Kyle gostava de pegar no Malte e caminhar à beira do rio e pelas estradas de terra sem o montar. Ia andando e ia-lhe contando as suas aventuras com as raparigas, os problemas na família, a contabilidade do rancho, os projetos para o futuro e contava depois que o Malte dava bons conselhos. Quando chegava à primeira localidade depois do rancho, entrava no pubcom o Malte pela mão e pedia duas pints, uma de homem e outra de cavalgadura. Mickey, o empregado de balcão, servia uma pint de Guiness a Kyle e vazava dois litros de cerveja num balde, passava o balde a Kyle que o segurava enquanto Malte bebia a sua Guiness tranquilamente. Saíam os dois semiébrios e conversando de coisas menos sérias. Os amores de Malte, o sentido da vida, o significado da sombra das árvores, o porquê de cada rapariga ter um pai e esse pai ser obcecado por caçadeiras… e faziam poesia juntos. Partes desses poemas, aquelas que Kyle conseguia relembrar no dia seguinte, registava-as num caderninho de escrita pequenino que guardava na mesa de cabeceira e tinha escrito na capa “Poemas de Kyle Mckenzie e seu ajudante, o Grandioso Malte”.
A vida no liceu de Omagh também não era fácil para o jovem e ruivo Mckenzie. As alunas queriam estudar com ele, as professoras queriam que ele estudasse para elas, as raparigas queriam-no apanhar sozinho para marcar encontros fortuitos e lutar pela exclusividade da sua atenção, as professoras queriam-no apanhar sozinho para tentar convencê-lo a seguir a sua área e todas, sem exceção, lhe sorriam e, à sua maneira, o seduziam. E Kyle ia bebendo as palavras delas, alunas e professoras, e ia mergulhando nos decotes delas, alunas e professoras, e ia-se deixando seduzir por elas, alunas e professoras e quando cresceu e o percurso no liceu se aproximou do fim, Kyle navegava no corpo delas, alunas e professoras. Gostava de deitar-se com os lábios junto ao sexo delas soprando o púbis para o ver revolto como os rápidos do Camowen e ficava contemplando as formas onduladas dos corpos como se estivesse visitando as dunas do deserto mas com o insuperável odor de um corpo de mulher depois do amor. Era um aluno contraditório, quase misterioso. Andava por ali displicente, um caderno preto no bolso de trás dos jeans, o olhar perdido nas raparigas e na folhagem das árvores, Que andas a fazer Mckenzie? A pensar. A pensar? Pensar, pensamos todos nós. Aí é que te enganas, a maioria de nós não pensa, reage. Pensar dá trabalho, é gerador, iniciático.Viravam-lhe as costas e iam à sua vida e Kyle continuava no labor de pensar. O que é que queres ser na vida , Mckenzie? Pensador. Pensador? Ninguém ganha a vida como pensador! É porque ainda ninguém pensou o suficiente. No último ano do liceu, as coisas precipitaram-se na sua mente. Se bem que o mais correto não é dizer-se que se precipitaram, mas antes que foram precipitadas. Miss Melanie era uma professora de Inglês que usava sempre uma saia de fazenda comprida, uma blusa de seda com gola aos folhos e um grosso casaco de lã por cima. Tinha uns óculos pequeninos, o cabelo apanhado atrás num totó e uma rede a envolvê-lo. Trazia invariavelmente uma pasta de cabedal preta, nunca se atrasava e nunca se esquecia de perguntar por um trabalho que tinha pedido. Foi ela que lhe deu a beber a fluidez melódica de Shakespeare, o romantismo extremado de Lord Byron, a intriga familiar e rural de Jane Austen e a fantástica e perturbante veia realista de James Joyce. E tentou-o com ideias. Um dia disse-lhe, Livra-te de ficares nesse rancho a dar cerveja a um cavalo, já pensaste que, ao contrário do que te deixam acreditar, tu podes viver de pensar e, mais importante, de ensinar a pensar. Tu percebes a literatura, tu sentes a literatura, tu vives a literatura e, à parte algumas falhas por desleixo, tens um bom domínio do inglês, darias um excelente professor, não fiques aqui, Kyle Mckenzie, vai estudar miúdo, vai estudar, andas fascinado com todos esses autores e as suas ideias e a sua sensibilidade e nem sabes tudo o que estás a perder, há mais, Kyle, há muito mais e na universidade podes ter acesso a tudo.O discurso, diversas vezes repetido, era motivador, espicaçava a curiosidade mas só por si não provocaria uma epifania. Susy provocou. A verdade é que, nesse ano, Miss Melanie, de palavras distantes, mas apaixonadas, adoeceu gravemente, fruto da idade a que estamos, todos nós humanos, sujeitos. E foi o contraste de todo esse entusiasmo, dessa capacidade de fazer parecer que cada palavra era um milagre, com o discurso leviano e superficial de Susy que o levaram a decidir. Era uma rapariga jovem, recém-formada, reagiu muto bem aos encantos dele e sabia perfeitamente o que estava nas páginas centrais dos tablóides, o problema é que, para ver o milagre das palavras em Shakspeare ou em Joyce, era preciso um pouco mais e para esse pouco a ela faltava-lhe muito. Susy está deitada na penumbra do seu quarto alugado em Omagh. Ao seu corpo nu chega uma ténue claridade que faz bailar sombras no seu ventre e derrama nos seios pequeninos e redondos um mar de prata. Kyle está como mais gosta, com os lábios junto ao sexo dela soprando os pelos do púbis. Fazem pouco efeito porque estão aparados muito curtos como se fossem um risco preto numa folha prateada de luz. Ele observa-lhe as formas, apetece-lhe perceber aquele encanto, quer saber o que pensaram e o que escreveram os homens sobre as maravilhas do mundo e, entre elas, sobre esse deleite que é observar um corpo tombado, oferecido à luz ténue e prateada de um fim de tarde. E, estranhamente, lembrou-se de Miss Melanie. Nunca a senhora lhe oferecera o corpo, nem a ele nem a nenhum outro homem em toda a sua vida, mas dera-lhe as explicações todas, as possíveis, dadas as limitações. Susy, por seu lado, dera-lhe o corpo sofregamente, mas não tinha uma única explicação que superasse a banalidade e Kyle, contemplando-lhe as formas, percebeu que lhe faziam mais falta as explicações. Faziam-lhe a falta toda. Levantou-se, vestiu-se à pressa, deixou-a com uma interrogação na mente e outra nos lábios, Está tudo bem, Kyle?Ele não chegou a responder. Apressou-se. Chegou a casa e disse, Meu pai, minha mãe, vou para Belfast estudar.E foi. Inscreveu-se nos exames que superou com assinalável sucesso,matriculou-se no curso de Língua e Literatura Inglesa e quando foi aceite chegou-se a casa de Miss Melanie e disse-lhe baixinho, Conseguimos, Miss Melanie, conseguimos. Ela sorriu, prostrada na cama, e respondeu com ternura, Conseguiste, miúdo, tu é que conseguiste e, Kyle, isto é só o princípio. No outono de 1967, Kyle entra em Belfast com dezanove anos para conquistar o coração da cidade e desbravar todo o saber. Conquistará Belfast, há de desbravar muito do conhecimento e será também em Belfast que o seu coração ficará cativo para quase sempre.
É para nós informação óbvia sabermos que habitamos uma cidade se de uma cidade se tratar. E por vezes, seja por ignorância ou por vício, ao dizer a palavra cidade, fazemos a evocação mental de um emaranhado de edifícios. Nada mais errado, porquanto as cidades são, sobretudo, o que nelas se vive e como se vive. Já constitui facto menos óbvio e percetível haver cidades que nos habitam. Podemos até nunca ter vivido nelas, mas vive em nós o seu espírito e se calha o destino levar-nos até lá, de imediato nos identificamos e concluimos, Oh, mas eu sou daqui! É um fenómeno recorrente identificarmos em nós o espírito de uma cidade. Descobrirmos, como já se disse que éramos habitados por ela mesmo antes de habitarmos nela. Foi essa compatibilidade e essa sintonia que Kyle Mackenzie descobriu em Belfast. E por isso a sua adaptação foi tão rápida e harmoniosa. Há pouco tempo lá estava e era como se lhe conhecesse os segredos todos, como se sempre ali tivesse vivido. Os três primeiros anos foram o perfeito encantamento, o príncipe e a princesa, o enamoramento do homem pela urbe que o completa. Frequentava as aulas, empenhava-se nos trabalhos, debatia com os colegas e com os professores, escrevia para o jornal da universidade, ia a palestras sobre tudo o que lhe interessasse, História, Filosofia, Arte e sempre, sempre a Literatura. Organizou tertúlias e outras organizavam-se sozinhas e eram as mais apetecíveis, noites inesperadas e espontâneas a discutir o pensamento do Homem e a sua expressão, bebendo Guiness e beijando quem se deixasse beijar ou devolvesse a carícia só porque sim. Tudo começava num pub e acabava no dia seguinte em casa de alguém, corpos seminus e mal acordados, a vida saboreada, discutida e levada do prazer do estímulo intelectual até ao suor gemido da carne. O ruivo de Omagh começou a ser conhecido em Belfast e a criar a sua teia de relações de tal forma que, quando voltava às margens do Drumragh, se sentia pacificado e inquieto. Primeiro, pela tranquilidade que bebia do lugar. Depois, porque lhe faltava o ópio e esse ópio chamava-se Belfast. Era comum ouvir-se nos corredores da universidade frases como, O ruivo disse, O ruivo marcou, O ruivo mandou fazer… Kyle conquistou Belfast e tomou posse no trono do conhecimento e dos relacionamentos. E, da mesma forma que Belfast era para si uma droga, ele parecia ser uma droga para Belfast. Havia quem arriscasse que Kyle nunca mais deixaria a Irlanda do Norte, mas, como o leitor já percebeu, enganou-se quem tal disse e se tivesse feito aposta, perderia. A sua mudança começou em 1970 e o curioso é que daí em diante e até conhecer Madalena, as coisas iam suceder-lhe de dois em dois anos. Como ele diria mais tarde, Vivi de biénio em biénio.Um dia, nesse ano, cruzava um dos jardins junto à universidade, abraçado a amigos, e viu-a passar entre duas moças com quem conversava. Era alta, muito loira, os olhos verdes e líquidos, as ancas generosas e tinha um sinal junto ao nariz, por baixo do olho direito. E deu-se o caso incomum de ele ter olhado para ela e ter continuado a conversa como se nada tivesse visto, mas algo lhe ficou gravado na mente que o suspendeu da conversa , deu mais quatro ou cinco passos, segurou os amigos que o ladeavam por um braço para os calar e perguntou:
– Vocês viram aquilo?
– Aquilo o quê, rapaz?
– Vai ali a mulher da minha vida!
Os tipos abriram a boca, pensaram que era Guiness a mais e iam para gozar com ele quando ele lhes virou as costas, correu para o grupo de moças e perguntou ^`a do meio:
– Olá, como te chamas?
– Sandrine…
– Sotaque… francês!
– Suíço! Se é que isso existe…
– Deve existir, tu, pelos vistos, tens um…
– Sim, tenho, querias…
– Queria perguntar-te se queres passar o resto da tua vida comigo…
– Se quero, não sei, mas acho que o mínimo que posso fazer perante tanta ousadia é perguntar quem pergunta.
– Kyle Mckenzie… já viste como soa bem?
– O teu nome?
– Não. O teu. Sandrine Mckenzie. É brutalmente multicultural.
– Bebes uma cerveja, Kyle Mckenzie?
– Não, mas aceito uma Guiness!
Era uma daquelas moças que está uma temporada noutro país a estudar ao abrigo de um programa com o nome de um filósofo antigo qualquer. Ao cabo de três meses viviam juntos. Foi numa paixão fulminante e intensa. Eram de áreas diferentes e costumavam brincar dizendo que se completavam. Kyle mostrou-lhe a cidade, leu-lhe poesia ao luar e à chuva, fizeram amor em todos os locais que consideraram dignos do seu amor, dançaram, riram, choraram e quando ela partiu, Kyle ficou melancólico e abatido e iniciou um período de visitas frequentes a Genebra, ao longo de um ano, para visitá-la e tocar-lhe e beber-lhe a vida e o espírito.
O inverno vai rígido. O frio aperta com inusitada severidade. Finda janeiro de 1972 e as piores vontades dos homens combinaram encontrar-se no domingo, dia 30. Kyle espreguiça-se na cama desfeita do quarto em desalinho e batem-lhe à porta com tal força que parecem querer derrubá-la.
– Kyle! Ruivo, ó ruivo, acorda, pá!
Ouve as vozes, dirige-se para a porta, quatro ou cinco colegas irrompem pelo quarto em altercação e o confuso é que Kyle não consegue perceber se estão assustados ou entusiasmados e isso há de entristecê-lo em breve.
– Mas afinal o que é que se passa?
– Foi fantástico e terrível, pá, colocaram uma bomba numa igreja e limparam o sebo a uma carrada deles!
– Onde é que foi isso?
– Em Derry, pá! O que pensas disto?
– Desnecessário. É uma catástrofe desnecessária. Nós pensamos o que pensamos e às vezes pensamos pouco. Algum de vocês é protestante porque pensou no assunto ou herdaram todos essa condição como se fosse uma doença?
– Não digas isso, pá, eles são separatistas, pá!
– Sim, e nós somos unionistas! Andamos a unir o quê, rapazes? E como? À bomba! Eles cometem crimes, nós cometemos crimes e tudo não passa de um gigantesco crime e têm razão, rapazes, é preciso fazer alguma coisa…
– O que é que vais fazer, Ruivo?
– Vou a Derry!
Kyle foi a Derry depois do domingo sangrento, visitou as famílias de algumas vítimas, sobretudo as mais jovens, e pediu-lhes desculpa pela insanidade dos homens. E rezou com elas. A sua alma enlutou-se de vez. O sol da sua vida estava em Genebra. E aqui, a violência atingia expressões indignas da sua terra natal. Concluiu o curso nesse ano. Lecionou inglês durante um ano em Belfast, mas não conseguiu suportar a escalada de agressividade e violência, não conseguiu assistir aos seus colegas conspirando atos de morte, não conseguiu suportar a ausência de Sandrine. Em 74 mudou-se para Genebra, definitivamente. Nunca mais daí sairia. Exercia como professor de inglês na universidade e visitava regularmente as margens tranquilas do Drumragh ou as revoltas do Camowen. Essa regularidade foi-se perdendo e as visitas à Irlanda tornaram-se mais esporádicas. Vivia para Sandrine. Envolto no amor por ela. Com ela. Dois anos depois casaram. Uma cerimónia íntima de meia dúzia de pessoas, umas palavras de circunstância e fugiram para uma cabana na montanha a fazer amor. Não frutificou, então, mas viria a dar frutos mais tarde. Duas meninas, Mary em 78, pelo trigésimo aniversário de Kyle e em 80 veio a rebelde Charlotte. Kyle dedicou-se em exclusivo às suas três mulheres e fez delas a sua alegria e a sua razão de viver. Percebeu a importância de ensinar jovens. Ser pai fez-lhe mudar muitas opiniões e perspetivas. E foi por essa razão que em 82 mudou de trabalho. Continuou como professor de inglês, mas optou por ensinar os mais jovens no secundário. E essa opção viria a mudar a sua vida, por mais breve que fosse. Viria a dar-lhe a oportunidade de acreditar de novo no Ser Humano. E bem precisava. Sandrine, paixão de juventude, mulher nas alegrias e nas tristezas, mãe das suas filhas, fora surpreendida na cama, suando com outro homem, gemendo com um estranho. Essa infidelidade corroeu-o por dentro, desiludiu-o em relação a tudo e a todos. Kyle declarou que 1984 seria o ano horribilis da sua vida. Enganou-se. Em 1986 foi-lhe diagnosticado um cancro no cólon e o casamento, de mil maneiras fragilizado, sucumbiu. Atormentado por uma doença cuja fama a precedia, a exigir exames e tratamentos violentos, fustigado pela deceção de um divórcio que se anunciara e surgira na pior altura, Kyle não espera nada da vida nem das pessoas. Assim, quando o ano letivo de 1987/88 começou, o homem que entrou na sala de aula apresentado como professor de inglês era um tipo cinzento e desiludido. Acontece que a vida não se domina nem se controla e tem os seus próprios caprichos. A nós, humanos, cabe-nos aceitar a nossa vulnerabilidade e passar o tempo com a maior dignidade possível e, se for caso disso, usufruir das boas surpresas que ela nos reservar. A Kyle reservou só mais sete anos, mas reservou-lhe os mais luminosos, os mais intensos, e os mais belos. Esses sete anos valeriam uma vida, como já se disse. Valeram a vida de Kyle Mckenzie e a paixão de Madalena.
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A Paixão de Madalena – Ponto de Situação
A Paixão de Madalena – Capítulo 2
A Paixão de Madalena
Livro I – A Paixão de Madalena
2. Há cidades que exercem sobre os seus habitantes e visitantes uma magia especial como se algo nos fosse familiar mesmo sendo a primeira vez que lá vamos, como se pairasse no ar certa nostalgia ou ainda como se houvesse a comunhão de um sentimento coletivo clara e facilmente identificável. Genebra tem esse sentimento. É a paz. A tranquilidade. Rodeada de montanhas cobertas por mantos brancos de neve, composta, na parte velha, de ruas estreitinhas e típicas, a cidade usufrui, sobretudo, da presença do imenso lago. É como se aquela água límpida, quase sem ondulação, sussurrando nas margens, transmitisse uma paz comum. Hoje em dia, o trânsito já se vai vendo caótico, sobretudo na travessia do lago, mas na década de noventa, quando Kyle Mckenzie aí vivia, o frenesim urbano era mínimo e Genebra podia descrever-se como uma aldeia grande. Estamos nos primeiros dias de outubro de 1994, o frio começa a fazer sentir-se, as nuvens de neve vão cercando as montanhas que, em breve, estarão brancas como véus de noiva. Já sabe bem um casaco de pele ou mesmo de penas. Sendo trágico perder-se uma vida humana, sempre que tal acontece, e aconteça com quem acontecer, mais trágico se torna quando a pessoa que deixará este mundo sabe o que vai passar-se. E Kyle sabe. Há vários anos que luta contra esta doença, fez os testes todos, fez todos os tratamentos, ganhou, perdeu, avançou para a vida e cedeu espaço à morte, mas hoje, neste preciso momento em que Madalena lhe segura a mão e lhe diz, Não partas, não podes partir, falta fazer uma coisa, pelo menos uma, quero ter um filho teu, nosso, tu sabes, Sim, eu sei, mas não posso já cumprir essa promessa, meu amor, acho que o meu tempo se esgotou, não sinto forças para continuar, também eu quis esse fruto do nosso amor, mas não foi possível, acho que os deuses nos invejaram, Kyle sabe que não sobreviverá a este ataque silencioso da doença. Como se houvesse formas diversas de conceção natural, Madalena cerra os dentes, fecha os olhos, leva a mão de Kyle ao seu ventre e deseja um filho dele, um filho do amor perfeito. Ele pressente a intenção, sorri levemente e murmura, Sempre uma sonhadora…
O último ano fora uma tortura. As dores, as perdas de consciência, as consequências devastadoras da quimioterapia. Tinha resistido bem nos últimos sete anos, tinha combatido de todas as formas possíveis, seguiu todos os conselhos e fez as experiências todas, até o xarope de aloé vera, o cato milagreiro, mas o facto é que a missão em África o fragilizara bastante e agora não lhe apetecia mais, não conseguia mais sobreviver. A morte havia vencido pelo cansaço. Não leva arrependimentos, exceto não ter dado a Madalena o filho que ambos desejavam. Com esforço e sofrimento, ainda tentara há um par de meses atrás, mas o seu amor, abençoado de tantas formas, parecia não ter colhido a bênção do Senhor naquela vontade.
Madalena passa-lhe uma mão pela face, vê-o muito fraco, completamente vulnerável e pressente, também ela, que o vai perder. As máquinas à sua volta fazem bips metálicos, mostram gráficos e de quando em vez cospem tiras de papel. O quarto está escurecido e não são permitidas visitas à exceção da mulher de Kyle. Ela beija-lhe as mãos e a face e a testa e repete mecanicamente, como se tivesse desaprendido todas as outras palavras, Meu amor, meu amor, meu amor…Nunca chorou junto a ele. Kyle era a fonte da alegria e da vontade de viver, não poderia, não quereria, trazer sinais de tristeza à sua beira. Foi quando saiu do hospital que Madalena explodiu num choro desesperado e convulso, caminhava sem destino a ver se a dor a perdia por entre o emaranhado das ruas, limpava as lágrimas com as mãos e continuava a chorar e a dar gargalhadas pelo meio do choro à medida que imagens da sua vida em conjunto lhe afloravam à memória. Às vezes, quando queria fazer amor com ela, Kyle brincava com a sua diferença de idades, Princesa, anda cá ao velhote, vamos ver se isto ainda funciona, e viam e acabavam mergulhando em carícias apaixonadas até a princesa e o velhote tombarem suados e exaustos. A própria cidade lhe parecia mais triste, menos amistosa, menos acolhedora. Só mais tarde perceberia, mas a verdade é que Madalena nunca viria a superar a perda de Kyle. Conhecera-o. Entusiasmara-se com ele. Aprendera com ele a ser mulher. Entregara-lhe a vida. Rira com ele. Chorara com ele. E agora ficava-lhe um vazio profundo no peito. Madalena perguntava-se se seria possível, se seria justo, se seria humano, conhecer o homem da sua vida, encontrar o amor dos amores e só poder desfrutá-lo durante sete anos. Poderiam sete anos valer uma vida inteira de paixão e de amor? Não compreendia porque teria de morrer o homem que lhe mostrara a vida, que lha entregara. No último ano, Kyle não se cansou de repetir, Princesa, não te preocupes, vais encontrar um homem melhor do que eu… e mais novo! Não sejas tonto, Kyle, não há dois homens como tu. Tu és como essa cerveja irlandesa que bebes como água, podem fazer outras, mas é na Guiness que está a essência. Ah, princesa, a Guiness! Essas garrafas fazem milagres! Kyle Mckenzie, comporte-se! Riram da partilha cúmplice e ambos souberam que Kyle a havia libertado. E ela percebeu que essa era só mais uma razão para nunca desprender-se dele.
Olhando a cena que agora presenciamos, podemos dizer sem grande risco de imprecisão que lá fora é Genebra e aqui dentro é Belfast. O lago adormecido e calmo exala tranquilidade. Está frio. O manto branco circundante da cidade cresce a cada noite que passa. É manhã, mas ainda muito escuro. Madalena está na cozinha, tem um café forte fumegando em cima da mesa, ao lado, scones que acabou de confecionar e está de frente para o fogão onde rebrilham tiras de baconfrito com ovos estrelados. Espremeu duas laranjas e juntou um pouco de água. Decidiu reviver sozinha todos os rituais que praticava com Kyle. Tem-no gravado na alma e no peito. Quer também incluí-lo nos seus gestos do dia-a-dia. Vai cantarolando “The Whole of the Moon” dos Waterboys e prepara-se para começar a comer. Algo aconteceu, contudo, que não tinha acontecido ainda. O odor perfumado do bacon e dos ovos, o aroma do café, tudo isto que, normalmente, lhe fazia crescer água na boca e comer com satisfação trouxe-lhe, súbito, um vómito. Correu à casa-de-banho e vomitou tudo o que tinha no estômago. Água. E pensou, Mas ainda nem sequer comecei a comer, deve ser a sugestão. E voltou à cozinha. Desta vez nem precisou sentir o cheiro da comida, assim que avistou ao longe os ovos, foi acometida de novos vómitos. Enfiou a cabeça na sanita e expeliu água. Colou os olhos na parede e gritou: Kyle!Pegou na carteira, desceu as escadas numa correria de saltar degraus, saiu para o frio com um braço no ar e a palavra a saltar-lhe dos lábios, Táxi! Táxi!Entrou na farmácia afogueada, com o peito cheio de esperança e medo e antecipação:
– Um teste de gravidez, por favor.
– Que idade tem a menina?
– A suficiente para estar grávida do meu amor.
– De acordo.
– Posso usar a casa-de-banho?
– Claro que sim, respondeu-lhe o farmacêutico perguntando a si mesmo que urgência poderia haver para saber uma jovem se estava grávida ou não. Se não estivesse, problema encerrado. Seria talvez o melhor. Se estivesse, nada poderia fazer agora se não esperar, marcar umas consultas, contar à família, ao pai e continuar a esperar. Pensou isto o farmacêutico porque desconhecia as aflições e as urgências de Madalena, as mesmas que o amável leitor já conhece.
A casa-de-banho era pequena, mas Madalena não precisava de mais. Um lavatório com um espelho por cima e a sanita onde está sentada. Lê apressadamente as instruções e inicia os procedimentos. Dois minutos mais tarde agarra na prova da sua satisfação e sai à rua com o teste de gravidez em punho gritando, pela segunda vez nessa manhã, Táxi! Táxi!
Depressa! Depressa! Repetia ela ao segundo taxista do dia. Entra no hospital com a roupa em desalinho e o peito em sobressalto, atravessa um corredor, sobe dois pisos de elevador, respira fundo, sai para outro corredor, dirige-se à ala de internamentos de oncologia, Deixem-me passar, preciso falar com Kyle Mckenzie, sou a mulher dele, deixem-me passar. Um enfermeiro segura-a, tenta acalmá-la, puxa-a para uma salinha e diz-lhe, Tenha calma, por favor, tenha calma, precisa ouvir-me. Ela pressente as piores notícias e grita, Ele morreu? O meu Kyle morreu? Não. O senhor Mckenzie não morreu ainda, mas temo que as notícias não sejam animadoras. Como assim? Deixe-me falar com ele. Eu deixo, mas ele não vai poder ouvi-la, há duas noites atrás, pouco depois da senhora sair, o senhor Mckenzie entrou em coma e nada indica que vá recuperar, infelizmente só os aparelhos de suporte de vida o mantêm entre nós. Madalena levanta-se, ignora as palavras e os avisos do enfermeiro, corre para o quarto, ajoelha-se junto à cama de Kyle e fala com ele entre lágrimas e soluços, Acorda, meu amor, acorda, acorda seu irlandês teimoso, vamos ser pais, conseguimos, conseguimos, ouve-me, Kyle, ouve a tua princesa, conseguiste, Kyle, conseguiste, ficará entre nós uma semente de ti, o fruto do nosso amor. Dizia estas palavras como que esperando que a maravilha da notícia o despertasse, como se, pronunciadas as palavras de anunciação, Kyle se libertasse dos tubos e dos fios e das máquinas e lhe respondesse, Sim, princesa, conseguimos, vês, o teu velhote ainda funciona. Ela esperou depois algo mais ténue, um sinal impercetível, um sorriso tímido, um piscar de olhos. Nada. Kyle Mckenzie não voltou a acordar. Nunca saberia, neste mundo, que fora pai. Morreria semanas mais tarde naquele quarto de hospital. Morreria, por ironia, junto à estação do nascimento dos nascimentos, o Natal. Madalena recebeu do seu professor uma última lição. Aprendeu que pode um homem estar morto e vivo ao mesmo tempo. Pode jazer inerte e frio numa cama de hospital e fervilhar de vida no ventre de uma mulher. É preciso ser-se um homem especial para conseguir tal feito. É preciso ser-se uma mulher especial para aceitar a vida de um tal homem e dedicar-lhe com devoção a alma e todo o amor de que se é capaz.
É por serem especiais que contaremos a sua história. Fazemo-lo já porque maio não vem longe e com ele chegará o fruto do seu amor: Jacob.
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A Paixão de Madalena – Capítulo 1
A Paixão de Madalena
Livro I – A Paixão de Madalena
1. A tarde cai. Fenece a luz do dia. Um manto cinzento e triste cobre esta Terra que viemos habitar. Já o coroaram de espinhos. Já percorreu a última estrada. Caiu e levantou-se. Chegou carregando o seu próprio madeiro. Ao madeiro o pregaram. O madeiro ergueram. Do madeiro sangrou fundindo carne e sangue e lenha num só. Escarneceram dele com propostas materiais e impossíveis, Se és o Senhor, liberta-te daí! E não viram que não foi pela matéria que deixou pregar-se. Não foi a matéria que quis libertar. Ferido, cansado, acertadas as contas com o ladrão a seu lado, desceram o madeiro e descravaram-lhe o ferro da carne. A mãe o tem no colo e o limpa e o acaricia. E junto a ela outras mulheres de família ajudam a tratar o corpo do Homem, filho do Senhor e da Mulher escolhida para o entregar ao mundo. E entre elas uma outra mulher. Sem laços de família nem outro direito ao seu corpo que não fosse tê-lo amado. Madalena.
A mãe e as demais familiares podem reclamá-lo como seu, podem chorá-lo e todos acharão legítimo esse choro. Um choro de dor. Um choro de posse. Acredita o escrevedor humilde destas linhas que Cristo veio até nós para amar. Para ensinar-nos o amor e a salvação por ele. Acredita e sente-se confortável com tão nobre crer. E que Cristo seria o nosso se não conhecesse todas as formas de amor e, conhecendo-as, as não quisesse experimentar a todas? Sim, preferimos a ideia de um Cristo amador que amou tudo de todas as maneiras inclusive as mulheres à maneira dos homens. E, tendo-o feito, que outra mulher poderia ter sido amante de Si que não essa que se encontra aí prostrada, lavada em lágrimas de silêncio, limpando-lhe as feridas do corpo?
Sim. Amou Cristo a Madalena. E amou Madalena a Cristo. E outro laço não tiveram que a certeza desse amor. Cristo despojou-se do Seu corpo e entregou-lho. Madalena despojou-se da sua alma e ofereceu-lha. E enquanto as outras mulheres o limpam em gestos de posse, chorando a perda, Madalena percorre-lhe o corpo com um pano humedecido, limpa-lhe as feridas e reconhece-lhe as formas e fá-lo em gestos de desprendimento e dádiva. Deu Cristo a vida pela Humanidade e resgatou-a. Deu Madalena a alma pelo amor do filho do Senhor e encontrou-os. Ao amor. E ao Senhor. E encontrou um caminho de arrependimentos e expiações pelo poder resiliente do Amor.
Desceram o madeiro. Descravaram-lhe o ferro da carne e ficaram as mulheres limpando-o. Mas só uma o conhecia por inteiro. A si e ao seu legado de Amor. Madalena.
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