Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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Está para Breve, muito breve…

Alguns leitores têm perguntado ultimamente e com alguma insistência pelo capítulo 11 de “A Paixão de Madalena”.

Está para breve, amigos, para muito breve.

O trabalho, as preocupações da vida e as outras publicações não têm permitido um ritmo mais célere. Espero que a qualidade dos capítulos vá valendo a pena esperar.

Obrigado.


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“E nada fora tudo o que lhe sobrara. Acontece muito a quem quer tudo.”

João Paulo Videira
In A Paixão de Madalena
Capítulo 11


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A Paixão de Madalena – Capítulo 10

A Paixão de Madalena

Livro II – O Cordeiro de Deus

10.Fora atribulada e longa, a caminhada. Viera Ele de salvá-la da morte arremessada em cada pedra. Um ou outro popular, talvez desses que pensam nunca ter pecado, ainda os perseguiu. Ele voltou-se para trás e fez-lhes um gesto veemente com o braço:
-Ide à vossa vida!
E foram.

Ela caminhava com a cabeça vergada pela vergonha, os olhos pregados no chão, as lágrimas de arrependimento lavando-lhe a face. Segura ao braço dele, tropeçou aqui e ali e abriu lenhos de sangue na carne dos pés. Ele tinha caminhado muito antes de encontrá-la e agora quase corria e, por isso, seus pés tinham terra pó e sangue seco de pequenas feridas. Entraram em casa dela. A mulher correu a todas a janelas a tapá-las com tecidos, restou uma luz trémula, um raio de sol cortando a escuridão e deixando ver o bailado do pó à sua volta.

A casa estava na penumbra. Alguém bateu à porta, mas não foi ouvido. A mulher puxou um pequeno banco de madeira e convidou-o a sentar-se. Foi buscar um alguidar com água a uma bilha e um pano limpo. Era um líquido precioso. Normalmente não se usava a primeira água para lavar os pés. Mas aquele era um convidado diferente. Não vinha pelos mesmos motivos dos outros. Acabara de salvá-la. Era Ele. Molhou o pano e espremeu-o. Começou por limpar-lhe a face, depois o pescoço, voltou a mergulhar o pano na água, lavou-o, espremeu-o e levou-o aos pés dele e lavou-lhos com movimentos cuidados envoltos em dedicação e admiração.

Está Ele sentado no banco. Está ela ajoelhada à sua frente lavando-lhe os pés. Segura-lhe um de cada vez, mergulha-os na água e depois fá-los emergir do alguidar e acaricia-os com o pano antes humedecido, limpa-lhos da terra e do sangue seco. Nunca olha para cima. Não se atreve. Mantém-se prostrada perante o Senhor. Quando termina, , ergue-lhe os pés lavados e limpos e beija-os.
-Porque me beijas os pés?
-Porque sois quem sois…
-Sou um pecador como todos os outros.
-Não sois como todos os outros.
-Sou sim. Sou mesmo mais pecadores do que eles.
-Senhor…
-Ouve… eu conheço o caminho da salvação, a minha missão era simples, bastava que vos ensinasse esse caminho, que vos levasse a segui-lo ou desse a minha vida por vós. Verás, dentro de pouco tempo, que terei de morrer por vós pois não consegui ensinar-vos o caminho da salvação.
-Ensinai-me esse caminho, Senhor, e eu o gravarei em meu coração. Eu o aprenderei, Senhor.
-Sim. Ensinarei. Sim. Aprenderás.
-Qual é o caminho, Senhor, dizei-me, eu vos suplico.
-O único caminho para a salvação, Maria de Magdala, o único capaz de vos redimir de todas as faltas, é o Amor.
-Eu vos amo, Senhor.
-Eu sei, Maria de Magdala, mas não basta que me ameis. Amai-vos uns aos outros.

E dizendo isto, o Senhor se levantou, o Senhor ergueu Maria de Magdala e a sentou no pequeno banco de madeira, o Senhor puxou o alguidar com a água e pano para junto de si e se prostrou diante da mulher que acabara de aprender a suprema lição. E com gestos lentos e cuidados, o Senhor lhe lavou as lágrimas desenhadas na face e os pés das feridas e do pó e tendo terminado o Senhor lhos ergueu e os beijou.

—————————- jpv —————————-


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A Paixão de Madalena – Capítulo 9

A Paixão de Madalena

Livro I – A Paixão de Madalena

9.Reconhecemos nós e reconhecerá o leitor que, desde que pode comunicar com palavras, ditas ou escritas, o Homem anda conversando e debatendo em torno dos mesmos assuntos que não serão mais do que uma mão cheia. O sentido da vida, o que é a morte, o valor do amor, o papel do sexo, a solidariedade, a existência, ou não, de divina e reguladora entidade, a subsistência, a segurança, a origem das espécies e, claro, essa filosófica e interminável discussão acerca da mudança. Há quem defenda de forma clara e inequívoca que as pessoas não mudam. Nascem com uma matriz comportamental e é com ela que morrem  e, mesmo quando tentam mudar, hão de vir ter à sua originária e única maneira de ser. Os adeptos desta teoria aduzem pesados e imutáveis argumentos. E há quem defenda de forma clara e inequívoca que as pessoas mudam. Nascem lá como nascem, mas crescem, aprendem, são permeáveis ao conhecimento, vulneráveis às experiências e acabam alterando a sua maneira de ser.

Escolhemos escrever neste ainda breve capítulo, por duas vezes, a expressão maneira de ser. Essa palavra, maneira, daria motivo para um romance e mais umas quantas teses de mestrado e doutoramento e ainda diversos capítulos em compêndios mais ou menos competentes sobre teoria da literatura. São, quanto a nós, esforços inúteis e inócuos porquanto quando o autor destas linhas escreve maneira de ser, toda a gente, mais ou menos letrada, percebe do que se trata. Quase tão inútil a discussão quanto essa outra que ainda há pouco referimos sobre se, efetivamente, o Homem muda ou não. Inútil, pois, que não se discute, ou deveria discutir, que possa depender da escolha do Homem aquilo que é a sua essência. Quando nascemos já estamos mudando. E mudamos, até, o mundo à nossa volta. E quando vivemos, a mudança é essência e definição da própria vida. É certo que, por motivos de segurança e auto consciência, tentamos cristalizar no tempo certas imagens de nós e por isso mesmo vamos dizendo, Eu sou isto, Eu creio nisto, Eu quero isto, Eu ajo assim, De mim esperem isto. Acontece, pois, não se tratarem mais do que tentativas de cristalização de imagens pois que, à medida que vamos fazendo estas declarações, vamos mudando com elas e até por elas.

Continuai, assim, a discutir o indiscutível que, para nós, humilde autor desta Paixão, a de Madalena, a mudança é um facto imutável.

Madalena mudou. Não foi fácil. Nem a sua decisão, nem a aceitação dela por parte de quem a rodeia, nem a sua execução por se tratar de fenómeno raro, raramente autorizado. Corria o ano de mil novecentos e noventa e três, tinham regressado há pouco de África, e a menina que conhecemos adolescente completou vinte primaveras. Nesse ano, em todos os meses, no dia do seu aniversário, Kyle lho lembrou com um carinho, uma pulseira, uns chocolates, umas flores, um jantar romântico. No final do ano não pôde continuar porque foi hospitalizado. Assim, quando Madalena o visitava e calhava no dia do seu aniversário, dizia-lhe ao ouvido:
-Vinte anos! És uma mulher!
Assim se pode dizer que, no ano em que fez vinte anos, Madalena fê-los doze vezes. Kyle nunca se esqueceu de lho relembrar e foi também a consciência dessa maturidade que a fez querer mudar. É que, tendo Madalena vinte anos, pouca matemática seria necessária para se perceber que sua irmã morrera há dez. Não se trata da mana Liberta que lhe deixou Mariana nos braços e nunca mais voltou, nem voltará. Trata-se de outra irmã. Um pouco mais nova. Muito pouco.

Foi numa terça feira. A manhã estava fria de sol e por isso mesmo o corpo se encolhia mas a alma se expandia a novos horizontes e realidades. Entrou pelo Registo Civil dentro, procurou alguém que a pudesse atender, e disse com convicção na voz e na intenção:
-Quero mudar de nome!
-Lamento, senhorita, mas isso não vai ser possível.
-Como assim, não vai ser possível?
-Não. Ninguém muda de nome. Se uma pessoa mudar de nome, toda a sua identidade passada se altera, todos os documentos que assinou perdem validade e todos e todos os que assinar daqui em diante é como se fossem assinados por outra pessoa.
-Sim, compreendo, mas, efetivamente, eu não pretendo mudar de nome. O que eu quero é acrescentar um nome aos que já tenho.
-Muda pouco, o caso. Outro nome, outra pessoa…
Madalena sentiu-se encurralada e quando se sentia encurralada costumava reagir com mais vigor e imaginação. E foi por isso que lhe saiu o argumento que lhe saiu e é como lhe saiu que o relatamos:
-Então quer dizer que, se os meus pais me tivessem chamado Monte de Caca, eu tinha de ficar Monte de Caca para o resto da vida?
-Meu Deus, a senhora chama-se Monte de Caca?!
-Chamo.
-Jesus, credo… nesse caso há uma solução…
-E qual é?
-A senhora tem de expor a sua situação num requerimento e remetê-lo à Direção Nacional dos Cartórios e Notariados. A sua exposição será avaliada por uma comissão que, em casos muito excecionais, pode deferir…
-E onde é que entrego o requerimento?
-Aqui mesmo. Ou remete por correio.
-Remeterei por correio.
-Sim, claro! As melhoras, quer dizer, boa sorte.
-Não se preocupe, tenho outros nomes…
-Ah sim? Pois claro que sim… ufa, que alívio. Agora nem sabia como despedir-me…
-Madalena. Madalena da Conceição…
-Madalena da Conceição M…
-Sim, veja lá a desgraça.
-Uma desgraça, de facto.

Madalena saiu feliz. A ingenuidade da senhora levara-a a dar-lhe a informação que pretendia. Seria agora necessário redigir o requerimento com propriedade e com rigor para que se percebesse a sua motivação. Era mesmo necessário contar alguns momentos da sua vida em que não queria voltar a mexer. Teria de ser. Nunca gostara de ser Conceição. Não percebia a sua conceção ou, percebendo-a, sabia-a mergulhada no pecado dos homens ainda que emergisse do amor deles. Mas os homens tinham decidido não ver o amor e concentrar-se no pecado. Exilaram-na da vida muito cedo. E por isso se entregou a Albertina e à sua irmã mais nova. Pouco mais nova. Por outro lado, essa irmã sempre fora uma luz na sua vida. Um sorriso, um conselho, uma matreirice, um olhar, uma confissão, uma partilha, uma ligação com o mundo real. Uma luz a fazer sentido. Chamava-se Maria da Luz. E Madalena queria expurgar de si a conceção em pecado e eternizar em si a luz que de si nunca tinha saído. Essa irmã era a comunhão total, era parte de si, a sua razão para continuar a viver. Têm força os mortos. Por vezes, mais do que os vivos. Antes de partir, Maria da Luz dissera-lhe, Vive, vive tudo por mim como se fosse eu. E Madalena tem trazido consigo essa missão, a de mostrar a Maria da Luz como é a vida. E terminava o requerimento como começara, solicitando que a deixassem ter um nome que fizesse sentido e desse vida a quem merecia a vida e emprestasse esperança a quem precisava dela. Queria ser Madalena da Luz em vez de Madalena da Conceição. E é com a luz desse nome que enfrentará a vida que lhe falta viver. Tem muita pela frente. Alguma carregada de sofrimento e outra salpicada de alegrias como normalmente sucede a todos nós.

A cara lavada em lágrimas, Mariana ao colo sem perceber o que se passava, o hospital atrás d si, um táxi, a campainha da porta de Albertina a chorar, os cabelos brancos da avó a surgirem e uma explosão:
-Ajuda-me, avó Bá, ajuda-me! Não posso, não consigo viver sem ele. Era a minha trave, a minha vida, o meu homem… porque tem de acabar, avó? Porque tem de acabar assim?
Albertina chegou-a ao seu peito, fechou a porta, levou-a para dentro e tentou sossegá-la. Usou palavras de coragem, que estaria com ela como sempre estiveram, que teriam Mariana para criar, se quisesse voltariam a viver juntas…
-Eu só o quero a ele, avó Bá, eu só o quero a ele…
-Mas o que te disseram?
-Que tinha pouco tempo. Meses. A viagem a África não ajudou…
-Mas não foi a vontade dele?
-Claro, mas está fraco… vai passar o Natal no hospital. Só sairá se recuperar o suficiente e quando o tempo estiver menos agressivo, mas virá por pouco tempo… foi o que disseram.
-Aceita a dor, Madalena, só assim a conseguirás superar.
-Eu não queria perder mais ninguém. Primeiro a mana e agora o meu homem, o meu irlandês teimoso de olhos azuis.
-Será sempre teu, Madalena.

Madalena tem lutado com a vida para conquistar-lhe confiança e sempre que parece superar uma provação, uma onda de sofrimento, a vida derruba-a de novo, joga-a ao chão, seu lugar primeiro e último.

O estado de saúde de Kyle melhorou, piorou e voltou a melhorar. Sofria de cancro no cólon. A luta era difícil e penosa e, pior de tudo, tinha um vencedor anunciado. Saiu do hospital numa manhã chuvosa de abril. Madalena chamara um táxi que esperou enquanto foi buscá-lo lá dentro. Levou-o para casa, tratou-o como um príncipe, o seu príncipe. Teve de refazer o quotidiano para poder cuidar dele. Manteve em casa a senhora que a ajudava com Mariana. Trabalhava. Ganhava muito pouco, mas o vencimento de Kyle era generoso e ela geria-o com rigor. Fizeram inúmeras tardes de chá, conversaram sobre livros, os amigos vieram visitá-lo de quando em vez e pelo verão sentia-se a recuperar. Com mais força. Numa tarde de agosto, quis fazer amor. Fizeram amor devagarinho como se não quisessem estragar nada. No fim, ela limpou-lhe o suor da testa. Adormeceram abraçados. Ela sonhou que sobrevoavam o mundo na sua cama observando os monumentos e saudando as pessoas. Ele sonhou que jogava à bola com uma criança que o tratava por pai. Quando acordaram, disse a Madalena:
-Sonhei que tínhamos um filho.
-Foi só um sonho.
Madalena não sabia ainda, nem tão pouco Kyle, mas tinham de facti um filho. Aquele que acabaram de fazer. São insondáveis os caminhos da mente.

Dois meses mais tarde, Kyle voltará ao hospital e, tendo o leitor prestado atenção ao início desta história, saberá que foi para morrer. E saberá também que Madalena descobriu a semente do amor de ambos e correu a contar-lhe e ele já não ouviu. Não soube Kyle que seria pai, embora tivesse pressentido que lhe tinha feito um filho. E sonhou. Sonhou com o fruto desse amor, depois de fazer amor. E era com isso que estava sonhando outra vez, quando adormeceu para sempre.

Jacob, assim se chamará. Não será somente o filho de Kyle. Será a herança do seu amor. E assim viverá. Como o fruto da paixão de Madalena.

——————- FIM DO LIVRO I ——————-
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A Paixão de Madalena – Capítulo 8

A Paixão de Madalena

Livro I – A Paixão de Madalena

8. Teve o Criador suas próprias e indiscutíveis razões, seus intrínsecos e justificadíssimos motivos, para ter criado as coisas como as criou, para ter criado o Universo como o criou. Quem sabe se, em vez de seis dias, tivesse levado duas semanas ou três, não teria tido outro tempo para refletir na obra, para limar arestas e imperfeições que, reconhecidamente as tem, não obstante suas inegáveis maravilhas. Uma coisa é certa, contas não tinha de as prestar a ninguém porquanto foi operário, capataz, engenheiro e arquiteto de todo o projeto. E talvez por isso, por falta de entidade reguladora e fiscalizadora, ficou a obra com evitáveis falhas no acabamento geral. Excesso de montanhas nuns locais e falta delas noutros, excesso de frutos em certas zonas e falta deles noutros, muito sol, a queimar e a abrasar, em certas regiões e míngua dele noutras onde bem vindo seria e, mais grave, por de essencial elemento se tratar, abundância de águas em certas paisagens e confrangedora falta delas noutras. E é por isso que andam os homens e as mulheres em canseiras infinitas que por vezes resultam em querelas, lutas e guerras onde prolifera o pecado, tentando remediar a divina falha ou imperscrutável determinação. Dê-se o benefício da dúvida ao Criador, não só por ser quem é, mas ainda porque, em certas situações, têm estas dificuldades levado a que os homens e as mulheres revelem o que de melhor existe no seu âmago, as suas mais nobres virtudes, divinas também, porque emanadas do mesmo Deus. Assim nos parece que aconteceu, salvo grosseiro erro de avaliação, com Kyle e Madalena.

É uma torre de ferro a emergir de um camião e a procurar o céu. Os naturais dali fugiram para longe e sábia escolha foi essa porque daqui por momentos tudo jazerá pelo chão. Queixam-se daquele barulho que veio incomodar os espíritos e queixam-se daqueles golpes nas entranhas da terra. Acordarão quem adormecido deveria ficar e estão a rasgá-la onde deveria permanecer cicatrizada de feridas antigas. Ainda assim, do mal o menos, nas conversações com o chefe e o feiticeiro da tribo, com a promessa de que se encontraria água para mitigar a sede de animais humanos e não humanos, lá se conseguiu acordo para furar ali. É um camião antigo, da segunda guerra, foi adaptado e tem uma torre de ferros e correntes a subir e a descer empurrando as brocas gigantescas que martelam, que rodam e perfuram à procura de um líquido precioso. Se fosse petróleo o motivo desta busca, outros e melhores meios haveria, mas andam assim as prioridades das gentes e é com elas que temos de viver. Buscam água! Uma broca encravou, Kyle, que estava manobrando a máquina, teve a tentação de não forçar, mas o tempo estava-se esgotando, as pessoas desfaleciam desidratadas, os homens cada vez mais picavam o pescoço das vacas extraindo sangue para matar a sede e alimentar uns quantos, e ele forçou, a broca persistiu e rasgou a pedra, encontrou uma bolsa de gás, não deveria estar ali, mas, como já se disse, imperscrutáveis são os desígnios do Senhor, não era muito o gás, mas o suficiente para empurrar aquela secção da broca uns metros para trás e, sendo ela de ferro e rígida e obediente às leis da física, empurrou a secção atrás de si que empurrou a secção atrás de si e criou-se uma reação em cadeia que rebentou nas mãos de Kyle. Ele lembra-se de ver o ferro emergir, como se nascesse do chão, o que seria natural pois que lá fora plantado, e a coluna assente em cima do camião recebeu aquele metal e a aquela força incontrolável e despedaçou-se em migalhas de nada em menos de um átomo de tempo. Kyle foi projetado pelo estremecimento do ferro e pelo impacto do gás chegando à superfície. Caiu a uns metro dali, pedaços de ferro o acompanharam e houve mesmo um extenso segmento de uma broca que se deitou com estrondo a seu lado, uma nuvem de poeira, ao longe as gentes a levar as mãos à cabeça e a gritar como se de morte de homem se tratasse, mas, felizmente, não morreu ninguém. Chegaram socorros que o levaram, Madalena acorreu à tenda de campanha destinada à enfermaria e percebeu que tinha sido maior o susto que o estrago.
-Estás bem?
-Estou, mas perdemos umas semanas de trabalho…
-Merda… Que se pode fazer?
-Recomeçar.
-E tens forças para isso?
-Sabes, miúda, as grandes desgraças têm uma vantagem…
-E qual é ela?
-Qualquer solução serve para recomeçar!

Para que servem os amigos? A pergunta teve já infinitas respostas e explicações e só uma faltou aduzir. Os amigos servem para ser amigos. E foi através de um amigo que tinha um amigo que Kyle percebeu como poderia realizar o desígnio de ir para África. Integraria uma missão da Cruz Vermelha no Quénia. Na inóspita região de Wajir, junto à Somália, a terra secava estéril e as pessoas morriam com ela. A Cruz Vermelha construíra um acampamento de campanha e estava a fornecer cuidados médicos, a providenciar alimentos, a erigir um posto de saúde e uma escola. Acontece que a água naquela região não tinha meio termo. Faltava durante meses, anos a fio, e depois desabava em torrentes de levar tudo na frente, arrasar terras, construções e vidas, de deixar um rasto de destruição sem que houvesse tempo para se beber um gole dela. A terra sugava-a, sedenta que estava do líquido da vida. Era preciso gente para ajudar a abrir furos de água e o facto de Kyle saber manobrar as máquinas era habilitação suficiente. A ajuda de Madalena seria com os cuidados pessoais, gerir e administrar medicamentos, racionar e providenciar alimentos, organizar a distribuição das roupas que ali chegavam por doação. O único problema era Mariana. Os responsáveis pela instituição e pelas missões consideravam que o ambiente era demasiado agressivo e muito pouco adequado para uma criança tão pequena. Madalena e Kyle assinaram um termo de responsabilidade e deixaram um contacto local de alguém que resgataria a menina caso algo corresse mal. Albertina! Foram muito claros com eles. Explicaram-lhes toda a vacinação que teriam de fazer, a profilaxia da malária, as consequências de ambas, o facto de terem de estar conscientes que as condições de vida eram adversas e que eles estariam lá para ajudar e não para constituir um problema, que o fariam gratuitamente, a troco de alojamento no acampamento, uma verba mínima para as necessidades do quotidiano, alimentação e cuidados médicos básicos, caso necessitassem deles. Ao cabo de três reuniões, quando julgavam que Kyle e Madalena iriam agradecer a informação e declinar a participação no projeto, os olhos dos seus interlocutores abriram-se de espanto:
-Certo. Onde é que assinamos? É isso mesmo que queremos.

Decidiram levar pouca coisa. A mala mais volumosa transportava tudo o que seria necessário aos cuidados com Mariana. Para eles, somente algumas roupas, umas interiores e as outras escolhidas com um critério único: serem confortáveis e práticas. Por vezes, a vida prepara-nos a mente e o corpo para o que nos espera. E essa é uma preparação natural, mas fundamental à nossa perceção da realidade e ao nosso compromisso para com os projetos e situações em que nos metemos por mão e pé próprio. Vem isto a propósito da viagem. Se fosse fácil, rápido e cómodo chegar de Genebra a Wajir, talvez não fosse preciso ir de Genebra a Wajir e, se fosse, que valor dariam os viajantes à chegada tendo ela sido fácil e rápida? A viagem que fizeram, por nunca mais ter fim, fê-los perceber, de imediato, que, se alguém se dava ao trabalho de passar por aqueles trabalhos e canseiras até lá, onde esperavam por eles, então é porque deveriam ser mesmo muito necessários. E eram. O vôo de Genebra para Londres foi uma entrada, como dizem os franceses, um amuse bouche, nem deu para perceber que estavam em viagem. A ligação entre Londres e Nairobi exigiu um pouco mais de paciência, uma noite inteira num espaço reduzido, ainda assim, no ambiente confortável e controlado do avião onde sempre há essas meninas com um lenço ao pescoço oferecendo uma bebida. No aeroporto de Nairobi, e uma vez despachado o ritual de mostrar passaportes, confirmar vistos, fazer assinaturas, pagar sem saberem bem o quê, fintar um polícia teimoso com argumentos duvidosos, esperar pela mala que não vinha, foram recebidos por assinalável comitiva. Um homem alto e magro, de poucas palavras, enfiado em vestes brancas e um lenço dessa mesma cor enrolado à volta da cabeça. Nunca souberam como os reconheceu, souberam só que estavam em guerra aberta com as malas e os sacos, ele aproximou-se com três ou quatro miúdos à sua volta que pegaram nas malas e nos sacos e desapareceram com eles e quando Kyle se preparava para gritar a chamá-los, o homem alto disse:
-Bom dia. O meu nome é Munir e sou o vosso guia. Os senhores são o casal McKenzie, certo?
-Certo. Como soube?
-Soube. Acompanhem-me, por favor.
Não lhes perguntou que línguas falavam, não fez mais apresentações, não disse da parte de quem vinha, nem confirmou para onde se dirigiam, falou num inglês de pronúncia arrastada, mas perfeitamente percetível e limitou-se a dizer o seu nome e a pedir-lhes que o acompanhassem. Madalena e Kyle trocaram um olhar, sabiam que podiam estar a ser enganados, mas a verdade é que confiar nele não era uma opção, era uma obrigatoriedade. Confiaram. Conduziu-os até junto do carro onde iriam viajar, era uma carrinhapick-up branca de marca Toyota, suficientemente antiga para se antecipar uma viagem desconfortável. A generalidade das peças já deveria ter sido reformada, havia ferrugens, partes presas à carroçaria com arames e bancos de napa rasgados onde passava a linha que os cosia. Fazia um barulho como quem pede perdão e deitava mais fumo que algumas das fábricas nos arredores da Capital. As malas estavam na caixa e a lona que a cobre puxada para trás. À volta da carrinha, os miúdos vigiavam. Munir puxou a lona e atou-a. No fim, chamou um dos miúdos e deu-lhe umas quantas moedas, ele saiu a correr, olhando as moedas, com os outros saltando à sua volta. O carro tinha três lugares à frente. Munir conduzia, Kyle cedeu o lugar da janela a Madalena por ter um pouco mais de espaço e encolheu-se no banco do meio. Para engrenar as mudanças, a mão de Munir tinha de bailar entre as suas pernas. Deve ser por pouco tempo, pensou. Enganou-se. Seria um calvário. Munir conduzia com precaução. A estrada era composta sobretudo por retas infindáveis, mas o pavimento estava num estado lastimável. Semeado de buracos pequenos, médios e grandes por todo o lado, obrigava a um ritmo muito lento de progressão. Em muitos troços, o alcatrão simplesmente desaparecia engolido pelas águas, pela areia, pelo mato, pela falta de manutenção. Foram forçados a paragens diversas para comer, para se aliviarem das humanas necessidades, para cuidar de Mariana. Munir foi paciente e só mostrava alguma contrariedade quando era forçado a parar por causa da menina. Lia-se-lhe no olhar que considerava a vinda da bebé para aquelas paragens uma loucura rematada. Quando paravam para comer, Munir providenciava água potável e uma espécie de pão barrado com gordura. Madalena distribuía bolachas que trouxera na mala. Na primeira vez que puxou do pacote, ofereceu a Munir. Não, obrigado. Isso tem açúcar. Açúcar faz sede. Sede obriga a gastar água. Madalena resolveu não calar-se, Sim, mas o açúcar alimenta… Munir não respondeu. Sempre que lhe perguntava se ainda faltava muito, e perguntaram-lho diversas vezes, repetindo-se a pergunta em intervalos de tempo menores à medida que o dia avançava, Munir dava a mesma e invariável resposta, Está quase! O sol abrasou a estrada e o carro sem ar condicionado ao longo de todo o dia, as janelas iam abertas, mas o ar que circulava era quente, o horizonte ficava trémulo à vista como quando olhamos por cima de uma panela a ferver, de Nairobi a Garissa percorreram quase quatrocentos quilómetros e precisaram de oito horas para fazer um percurso que, em condições normais demoraria metade desse tempo. Já não havia como abastecer de combustível, estava tudo fechado, e Munir não quis gastar os vinte e cinco litros que levava num jerrican na parte de trás da carrinha. Ordenou que fechassem as janelas e foi assim que atravessou a cidade. Tinham-na deixado para trás há cerca de quinze minutos, quando Munir saiu da estrada, parou junto a uns arbustos e anunciou em tom seco, Pernoitamos aqui. Foi à caixa da carrinha, tirou de lá um volume grande e pesado e foi à frente da luz amarelecida dos faróis que armou uma tenda de campanha. Estendeu umas esteiras e umas mantas por cima delas e convidou-os a descansar. Ainda falta muito? Está quase!
O dia vinha lá longe, a noite ainda cobria a terra mas o seu negrume começava a alegrar-se lá muito ao fundo. Madalena sentiu restolhar, levantou-se e percebeu que o guia já tinha café ao lume. Sentou-se junto ao tripé de ferro. À sua volta, o som dos insetos, o crepitar das brasas, o odor do café, o silêncio escuro e fundo de África. Sentiu-se pequenina. Munir aproximou-se e disse-lhe em tom sereno, mas absolutamente convicto:
-Beba. Já está pronto e vai fazer-lhe bem. Reconheço-lhe a coragem, sabe, mas tenho de ser honesto consigo. Esta terra é exigente. Não tente mudar isto, antes de dar por ela, estará a senhora mudada. Adapte-se já que cá está, mas assim que puder tire essa criança daqui e vá com ela.
-Quase me assusta e olhe que eu não sou de assustar-me. Eu venho preparada para dificuldades, é por isso que cá estou, mas o seu discurso…
-É realista!
-Veremos.
-Veremos.
Estava um lusco-fusco raiado de laranja, mais parecia o pôr-do-sol, quando saíram. Voltaram a Garissa. Munir abasteceu de combustível, água e alguns mantimentos. Nunca lhes perguntou se queriam alguma coisa, mas nunca lhes faltou com o básico. Depois rumaram em direção a Dadaab. O trajeto foi muito menor do que o do dia anterior, cerca de cento e vinte quilómetros e três horas aos solavancos e a fintar buracos no alcatrão quando o havia. Cruzaram a cidade em ritmo lento e à sua saída, pela primeira vez, Madalena e Kyle perceberam que haveria ali muito trabalho a fazer. Ao abandonar a cidade, cruzaram o campo de refugiados de Ifo e uns quilómetros mais à frente o de Dagahaley. Eram filas intermináveis de tendas em pano branco arredondadas, levavam quatro pessoas, mas chegavam a ter vinte a pernoitar lá dentro, o lixo amontoava-se a cada esquina, as pessoas estavam famélicas, algumas desfaleciam, a água era escassa, os alimentos quase não existiam. Muitas mulheres prostituíam-se por um pouco de comida e as doenças de toda a espécie cresciam e galgavam terreno todos os dias. As ruas dos campos eram em terra batida e aqui e ali viam-se carros brancos com as letras azuis da ajuda humanitária da ONU. O primeiro estava à pinha, as mulheres e as crianças encostadas à rede estendendo as mãos e falando, gritando. Percebia-se que queriam algo, não se percebia o quê. O segundo pareceu mais desafogado de gentes. Quando viu uma ambulância da Cruz Vermelha, Madalena perguntou:
-São estas pessoas que vimos ajudar?
-Não. Vocês vêm ajudar quenianos.
-Estas pessoas não são quenianas?
-Claro que não! Os quenianos são livres. Têm outras prisões, mas não em rede e arame farpado. São refugiados da Somália. A guerra civil está a ficar cada vez mais acesa e eles fogem e vêm para aqui. O primeiro campo que viu já está funcional há um ano, daí estar completamente cheio. Este aqui, o de Dagahaley, tem meia dúzia de meses. Em breve estará como o outro. Todos os dias chegam milhares de pessoas. Estas pessoas não têm nada. Não têm pátria, não têm terra, não têm comida, não têm roupas decentes, não têm dignidade, até isso lhes roubaram…
-Também podíamos ajudar…
-Lembra-se do que lhe disse esta manhã? Um dos truques para resistir aqui é concentrar-se em objetivos muito concretos e muito pequeninos. Podem parecer-lhe insignificantes a si, mas garanto-lhe que fazem toda a diferença para quem recebe a ajuda. Deixei-se de grandes cometimentos e heroísmos descabidos. Isso só vai trazer-lhe frustração e desespero. Resolva as pequenas coisas do dia a dia.
-Seguirei esse conselho. Ainda falta muito?
-Está quase!
Entre Dadaab e Wajir rolaram mais de duzentos e cinquenta quilómetros, as condições da estrada agravaram-se, a paisagem verde do sul do país foi desaparecendo e dando lugar a um terreno árido e amarelo e cada vez mais arenoso. Isto que agora observavam era uma paisagem seca e estéril. Procurar água aqui fazia todo o sentido. Foram precisas quase sete horas para fazer esse troço. A certa altura, o insólito. A estrada tinha ficado estreita, o sol queimava, não se avistava vivalma em nenhuma direção ou distância que o olhar alcançasse, de repente, sem se saber donde, surge um rebanho de cabras magras atravessando a estrada. Munir abranda primeiro e depois para. Atrás das cabras, da nuvem de pó que faziam, emerge um pastor esguio, com o corpo pintado, colares pendendo no peito, roupas parcas confundindo-se com as pinturas na pele. Numa mão um cajado e na outra um rádior transistor gritando uma melodia fanhosa que cortava o ar. Passaram em cortejo. Primeiro as cabras, depois ele e a música. Madalena e Kyle sorriram e ela não se conteve, Que é, todos nós temos direito a um som! Kyle, que preferira quase sempre o silêncio naquela viagem, desafiou-a, Ainda consigo imaginar que ele arranjasse um rádio, o difícil é perceber quem é que está a emitir nesta terra inóspita. Wajir era aquilo que Madalena relembrará para sempre como o fim do mundo. Uma cidade. Enfim, tinha o estatuto de cidade. Era um casario pequeno e baixo de madeira e bairros de lata a conviver com algumas ruas largas e meia dúzia de casas grandes. Não se via ninguém nas ruas, as pessoas fugiam do calor intenso, Mariana queixou-se muito, Madalena embebia fraldas em água e colocava-lhas sobre a face e os bracinhos. Munir cruzou a cidade devagarinho. Parou à saída, junto a um casario baixo de terra. Conversou com um homem vestido como ele, apontou o horizonte e o relógio e regressou. Não disse nada. Kyle, sempre paciente, sofrera de dores nas últimas horas, tomara analgésicos às escondidas de Madalena para não a preocupar, mas ficou intrigado quando percebeu que Munir ia continuar a conduzir.
-Desculpe, senhor Munir, mas não chegámos já a Wajir? É aqui que vimos trabalhar, certo?
-Certo e errado. Vocês vêm trabalhar no distrito de Wajir, mas não na cidade. Agora é preciso levá-los até ao acampamento, mas essa não será a minha função. Eu fui contratado para trazê-los até aqui de carro e em segurança. Daqui em diante não é comigo é com outras pessoas. Já tratei de tudo.
-É com quem? Precisamos saber. Temos o direito de saber.
-Sim. Suponho que sim, mas de que lhe adianta saber? Porque querem vocês saber sempre tudo, controlar sempre tudo? Já lhe disse que está tudo tratado. Chegará em segurança ao acampamento da Cruz Vermelha. Pode-se ir com um 4×4, mas eu não tenho um e o esforço do carro seria muito maior do que o dos animais, além de que o trilho para veículos é muito maior e mais demorado…
-O quê? Animais? Que animais?
-Camelos. Amanhã de manhã.
-Nem pense nisso.
-Está bem!
-Hã?! Madalena, vou já resolver isto…
E saiu do carro e dirigiu-se ao casario onde estava o outro homem vestido como Munir e chamou e bateu às portas e fez barulho. Nada. Nem ninguém. Insistiu tanto que o tal homem apareceu. Foi uma tentativa inglória de conversação. Foi um desespero. Nem o outro percebia Kyle, nem Kyle percebia o outro. Só lhe percebeu uma palavra. É que ele, pelo meio do que dizia na língua em que sabia dizê-lo, acrescentava sempre mai freeendarticulado como ele sabia e um tanto diferente de como Kyle o diria, mas percetível, contudo. Kyle regressou ao carro e parecia um pouco mais resignado quando perguntou:
-Então e agora?
-Agora vou montar o acampamento, vão descansar, pela manhã faço café, aquele mesmo homem vai ter connosco onde estivermos acampados, segue convosco para o acampamento da Cruz Vermelha e eu regresso à minha vida.
-E o que é a sua vida?
Munir fez um ar sério, como se fosse um homem mau, franziu o sobrolho, e disse:
-Eu sou assassino profissional…
Kyle estremeceu, fez-se encarnado, Madalena percebeu e percebeu que ele não tinha percebido a brincadeira:
-Está a meter-se contigo!
Kyle olhou-o nos olhos, fez um silêncio e depois desabou a rir…
-Agora enganei-te, mai freeend!
E voltaram a rir. África era uma surpresa a cada minuto. Um esplendor e uma riqueza. Uma preocupação e uma miséria e estes antagonismos, por vezes, conviviam lado a lado. Estavam a andar de carro há dois dias e já parecia que viviam no grande continente vermelho há dois anos. E foram precisos dois dias para andar cerca de setecentos quilómetros. A Suíça não tinha aquela distância em toda a sua largura e era mais perto ir de Genebra a Paris do que de Nairobi a Wajir. Mais perto e mais fácil. Tudo em África se tornava relativo aos seus olhos. E ainda nem tinham chegado ao local que os esperava, ainda não tinham começado a trabalhar. Amanheceram com o ritual do café. A luz começou a despontar e depressa viram chegar uma caravana de camelos. Só dois montados. Havia mais uns cinco sem nada nem ninguém em cima. Não foi difícil perceber para o que seriam. O homem que vinha à frente tirou as coisas deles da carrinha e amarrou-as a dois camelos. Deram-lhes instruções sobre como montar, onde se agarrarem e como preservarem o equilíbrio. Ensinaram Madalena a transportar Mariana envolta num pano pendurado no seu pescoço. Caminharam por trilhos de rocha, de terra, e de areia, sempre com pouca vegetação. Não era uma areia solta e fina como a do deserto, era mais uma terra que se havia esboroado com o vento do tempo e agora impedia veículos motorizados de circular por ali. A viagem foi incómoda e cansativa. Madalena e Kyle ansiavam um banho, roupas lavadas e, mais do que qualquer outra coisa, uma cama. Ao cabo de duas horas naquilo, viram ao longe o que parecia um poste, ouvia-se um som metálico e um ruído de ar comprimido. Pouco depois, já dava para perceber que não era um poste era uma torre de suspender brocas de perfuração que estava assente num camião mais antigo do que o tempo. Kyle percebeu de imediato que, o que quer que fizessem ali, era muito rudimentar, quase inglório. Nos seus tempos de rancho e máquinas para homens de barba rija, quando passeava com Malte, o garanhão, pelas ruas e bebia cerveja a meias com ele, aprendera, por curiosidade, a manobrar uma máquina de perfuração, mas nenhuma que cuspisse vapor por cima e óleo por baixo. Isto vai ser lindo, pensou. A máquina martelava e empurrava a broca com esforço, três ou quatro homens corriam à volta dela em tarefas pequenas, mas urgentes, junto à torre e ao painel de comandos, quase desfeito, estava um tipo de estatura média, cabelo curto e ralo, barba cerrada e por fazer, vestia uns calções de safari, uma t-shirt branca e um colete na mesma cor e material que os calções. Dos bolsos do colete pendiam chaves de ferramentas de todas as espécies e feitios. Tinha um chapéu de aba na cabeça, tirou-o, segurou-o com a mão e acenou com ele na direção de Kyle:
-Eh lá! Bom dia! É você o tipo que percebe de máquinas?
-Quer dizer, mais ou menos, eu manobrei umas quantas e quando me inscrevi para a missão disseram-me que era só para isso mesmo… manobrar…
-Sim, mas isso foi antes do tipo que a trouxe ter abalado daqui para fora… desentendeu-se com o soba… e adoeceu.
-Desentendeu-se com quem? E é grave?
-Sei lá, o tipo estava bem e de repente ficou com sintomas parecidos com os da malária… o importante é que preciso de si. O soba… depois explico-lhe…
À medida que Kyle se aproximava, deixaram de gritar e foram falando em tom mais brando e quando chegaram a cumprimentar-se falavam já como dois cavalheiros:
-Bom dia, Kyle McKenzie.
-Bom dia, Mark Merrit.
-Aquelas são a Madalena e a Mariana…
-Que loucura trazer para aqui crianças…
-Uma delas é minha mulher. A outra…
Kyle hesitou um segundo e completou com firmeza e convicção na voz:
-A outra é a nossa filha.
-Em todo o caso é precisa muita coragem.
-Disso, nós temos.
Fez-se um breve silêncio enquanto Kyle olhava em volta e foi Madalena que, lá de cima do camelo, com uma mão atravessada a proteger a vista do sol, estranhou:
-Onde estão os outros?
-Quais outros?
-Nós viemos ajudar populações, no plural…
-Ah, esses outros! Não vivem aqui.
-Não vivem aqui? E vocês andam a procurar água longe de onde eles vivem?
-Longa história, Madalena, longa história.
-Não tem uma versão curta?
-Claro… nem vale a pena maçá-la com muito. Repare, o facto de virmos em missão gera em nós, por vezes, certa arrogância, não propositada, bem entendido, de acharmos que sabemos o que é melhor para as pessoas. Ora, ajudar, jovem Madalena, não é proporcionar às pessoas aquilo que nós pensamos que elas precisam, é dar-lhes aquilo que elas pensam que precisam…
-Mas toda a gente precisa de água!
-Correto. Toda a gente precisa de água, mas não a qualquer preço. E aquelas pessoas que vê ali atrás têm fé e têm crenças, tal como nós temos as nossas. Só não são as mesmas que as nossas… Aquelas pessoas desconfiam do que estamos fazendo porque estamos rasgando a terra, ou seja, fragilizando o suporte de nós e de toda a vida, aquelas pessoas desconfiam da nossa capacidade de conseguir água e até da legitimidade da água que conseguirmos porque acreditam que, se os deuses quisessem que a tivéssemos, tê-la-iam enviado sem custo…
-Mas se a encontrarmos consomem-na…
-Só lhe lha oferecermos. Assim, o pecado de a roubar à terra é nosso, a eles cabe a responsabilidade de aceitar uma oferta… só isso…
-E por isso quiseram ficar distantes do furo…
-Sim. Mas não só do furo. Eles não permitiram que o nosso acampamento ficasse próximo dos deles. Nós manipulamos a doença através do corpo e isso para eles é incompreensível e repudiável porque a manipulam através do espírito.
-Todas as doenças são do espírito?
-Todas.
-Até mesmo uma ferida num joelho causada por uma queda?
-Até mesmo essa. Se o corpo se feriu, foi porque se negou a colaborar… e isso é um problema que só o espírito pode resolver…
-Faz sentido…
-Pois faz… mas o nosso acampamento fica a cerca de dois quilómetros das povoações deles e isso dificulta o nosso acompanhamento, a nossa ajuda…
-E o furo?
-O furo fica a três… o acampamento é a mil metros daqui. Subindo ali aquela colina, já consegue avistá-lo… há outra coisa que os perturba. A agressividade dos ruídos que produzimos. Os nossos carros, as nossas máquinas, esta, então, como trabalha com pressão, é para eles muito agressiva, violenta, mesmo. Quando chegámos, tivemos um encontro com o chefe da tribo, o soba, e percebemos de imediato algumas regras. Só furamos em espaços autorizados por eles, só fazemos curativos ou administramos medicamentos a pessoas que eles autorizem e em casos de doenças que eles reconheçam, ou seja, na dúvida pergunte à responsável da missão, mas concentre-se em coisas…
-Pequenas, objetivas!
-Viajou com o Munir! E aprende depressa…
-Sim. E sim… e sei de uma máquina que apreciam!
-Hummm… isso existe?
-Existe, pois, o rádio…
-Ah sim… claro… gostam de música, sim, mas não é tanto por isso, é de novo por causa do espírito… intriga-os e atrai-os a presença das pessoas sem a necessidade do corpo. Estas pessoas, pense-se o que se pensar, aqui, longe da evolução e do desenvolvimento científico e tecnológico, estão mais desenvolvidas, estão mais à frente enquanto seres humanos..
-Interessante conversa, mas…
-Sim, claro, desculpe, ainda tem esses mil metros para fazer e precisa recompor-se da viagem.
-Precisamos.
-Precisa, aqui o especialista vai ter de ficar e ajudar-nos a furar…
Kyle percebeu o desafio. Estava exausto, mas entendeu de imediato que, o que interessava ali, não era o seu tempo, nem o seu cansaço. Eram outros tempos e outras necessidades. Decidiu ajudar, mas decidiu, também, fazê-lo em verdade. A única forma de progredirem, seria serem honestos com o que estavam a fazer. E por isso mesmo informou:
-Vocês não vão encontrar água nenhuma porque não estão a perfurar…
-Como?
-A máquina está a desperdiçar a pouca força que tem, perde óleo, está em esforço e tem mais folgas do que é admissível. Vale mais perdermos umas horas com uma revisão geral do que estarem para aí a fingir que furam e a única coisa que está a acontecer é moer rocha e broca.
-E como fazemos isso?
-No tempo em que eu bebia cerveja com um cavalo…
-Hã?! Amigo, acho melhor ir descansar, o sol fritou-lhe o cérebro…
-Engana-se… e fique sabendo que o Malte era melhor companhia do que muitos dos tipos que encontrei pela vida fora…
Armou-se de chaves diversas, martelos, alicates, pedaços de material velho que jaziam numa caixa, verificou fugas de óleo na tubagem da torre de perfuração, remendou a tubagem do ar comprimido, foi-se às correntes da torre e ajustou os engates e as caixas de rolamentos para que não tivessem fugas. Abriu o painel de comandos e fez uma revisão aos contactos e uma limpeza geral. No final, fez alguns ajustes ao próprio motor do camião. Enquanto trabalhou, foi dando pequenas ordens e tarefas aos ajudantes, pediu cerveja. Não havia. Pediu água… riram-se, Pensámos que você é que nos ia dar água! Mas apareceu um cantil que foi bebendo com parcimónia, cantarolou umas coisas impercetíveis com ritmo irlandês, falou do Malte e praguejou sempre que alguma coisa correu mal. Ao final da tarde tinha feito um trabalho absolutamente essencial, ordenou que não o testassem sem que ele estivesse por perto, voltariam ao trabalho na manhã seguinte, estava para lá de exausto. Não quis comer, nem tomar banho, caiu em cima do colchão e dormiu doze horas consecutivas. Quando acordou, tinha Madalena sentada a seu lado e um velho indígena balbuciando palavras ritmadas, quase como um choro, e um homem a seu lado traduzindo. Kyle assustou-se e foi ainda estremunhado que perguntou:
-O que se passa?
-É o curandeiro de uma das povoações que nos rodeiam. Diz que estás doente “onde passa a comida”, diz que tens comido mal por andares perdido no mundo, diz que há um rio na tua vida mas te afastaste dele e isso vai custar-te a morte do corpo, diz que vais encontrar água para regar a semente da vida que deixarás entre nós quando partires… sabes como é… crendices… não dês importância.
-Aparte a semente, está tudo certo…
-Porquê, vais encontrar água?
-Se a houver, encontro. Agora já temos condições para isso.
-Irlandês teimoso!

Ao longo de pouco mais de um ano, Kyle McKenzie e Mark Merrit fizeram seis furos, dois abateram sobre si mesmos, provocaram estragos, obrigaram a deslocações a Dadaab para adquirir materiais, quatro foram bem sucedidos. O líquido da vida jorrou. Não foi um jorrar impetuoso, mas ainda assim, eram furos de captação que rendiam dois mil litros de água por hora. Por precaução, Kyle cortou as linhas. Assim evitou contaminações ou aproveitamentos por outros furos feitos nas redondezas. As condições de vida das pessoas melhoraram significativamente, a própria paisagem parecia querer alterar-se, havia esperançosos apontamentos de verde aqui e ali. O curandeiro continuou a visitá-lo de quando em vez enquanto dormia. Batizou-o, Tu és “Mtu Kwana na Mimba Mito”. O Quer isto dizer? Perguntou Kyle ao tradutor. Quer dizer que tu és o “Homem que está Prenhe de um Rio”. Kyle silenciou. Lembrou-se dos rios da sua vida. A pujança e a determinação do Camowen que lhe corriam nas veias, a serenidade e a tranquilidade do Drumragh e a firmeza e a força caudalosa do Strule. E pensou que talvez o velho homem tivesse razão, talvez tivesse andado uma vida inteira a evitar os rios que corriam em si e agora, prenhe deles, tinha vindo ali pari-los. Esta água, que busca e encontra, brota em África, mas nasce na Irlanda. Achou interessante o nome que lhe pusera o velho e perguntou:
-Olha lá, e tem de ser um nome tão comprido?
-As coisas não são compridas nem curtas, são o que são e tu és Mtu Kwana na Mimba Mito.

A Madalena couberam outras tarefas. Quando chegou, o acampamento distribuía a ajuda de forma quase indiscriminada, praticamente sem registo e seguramente sem controlo. Começou por perceber como faziam, quando chegavam os carregamentos, como inscreviam as pessoas, como as alinhavam e o que lhes davam e com que frequência. Era um caos. O processo era mais ou menos a olho e poderia suceder que uma pessoa recebesse duas t-shirts no espaço de quinze dias e nenhuma coberta e outros houvessem com excesso de cobertas, mas sem t-shirts. O mesmo com os alimentos. A logística era arrasada pela necessidade de distribuir. Isto tinha uma consequência nefasta. Gerava-se um confuso jogo de comércio fora do acampamento onde emergia o favorecimento e a lei do mais forte. Madalena apercebeu-se disto e foi no seu caderninho de bolso que começou a escrevinhar um complexo sistema de organização e registo da ajuda. Separou, para efeitos logísticos, as quatro populações que circundavam o acampamento, recenseou todos os habitantes de cada população por faixa etária, ainda tentou por agregado familiar, mas rápido percebeu que seria impossível. Uma povoação correspondia, de facto, a um agregado familiar. Identificou as faixas etárias com cores, identificou a ajuda com cores e letras também. Os alimentos tinham uma cor, e dentro da categoria dos alimentos havia diversas letras, a roupa outra tinha outra cor, o calçado outra, o material escolar outra, os medicamentos outra, e assim sucessivamente. Tornou-se fácil abrir um dossiê, um separador de uma pessoa dentro dele e verificar as últimas atribuições, isso levou a que a ajuda fosse dada menos pelo que as pessoas pediam e mais pelo que ainda não tinham tido o que, previsivelmente, iria ao encontro das suas necessidades. As pessoas estranharam e começaram por reclamar. Madalena, com a ajuda da chefe de missão, foi inflexível e os resultados começaram a aparecer em pouco tempo. Os guardas das tendas de campanha onde estavam guaradadas as ajudas começaram a ter turnos que ela lhes atribuiu e rodavam pelas diferentes tendas. Dentro de cada tenda, pediu que lhe improvisassem umas prateleiras com tábuas e paus e os produtos deixaram de estar amontoados pelo chão e passaram a estar arrumados e identificados por cores. Isto obrigou a um registo de entrada que tinha de bater certo com o registo de saída. De dois em dois dias, ao final da tarde, reunia com os outros colaboradores e confrontavam registos. Em poucos meses, o caos deu lugar à organização e a ajuda passou a ser distribuída com paridade, enfim, com a paridade possível. Durante muito tempo, não percebeu porque é que o álcool se gastava a uma velocidade estonteante, sempre insuficiente, da mesma forma que não percebeu porque é que havia colaboradores que, depois da refeição, caíam a dormir como mortos e só ao fim da tarde davam acordo de si. Quando percebeu que lhe bebiam o álcool, já muitos litros se haviam desperdiçado. Passou a desenhar linhas de nível nas garrafas e a colocar algumas gotas de tintura de iodo no álcool. Eles nunca perceberam porque é que o álcool tinha desaparecido e dado lugar àquele líquido escuro e mal cheiroso e começaram a dormir sestas mais curtas. Quando o processo já corria sobre rodas e outros companheiros começavam a apropriar-se das suas metodologias, decidiu organizar a enfermaria. Entradas, saídas, tempos de permanência, controlo da medicação. Os companheiros de missão, sabendo de onde tinha vindo e observando o seu rigor organizativo, puseram-lhe a alcunha de “Relógio Suíço”. Kyle costumava dizer-lhe a brincar, A tua alcunha é menos poética do que a minha. Madalena respondia-lhe com superioridade, Mas é mais eficaz!E riam. E, não obstante as dificuldades por que passavam, sentiam-se felizes. Houve mesmo momentos em que Kyle se esqueceu de que estava doente. Muito doente. Doente dessa doença do corpo e do espírito que fora ter comido mal toda a vida e ter engolido três rios até vir pari-los aqui. Essa mesma doença que, pouco mais de um ano depois de terem chegado, o obrigou a voltar. Precisava de cuidados. O sofrimento era já muito e começava a haver dias em que constituía mais uma preocupação do que uma ajuda ou uma solução. Quando desfizeram o caminho que haviam feito para ali chegar, Kyle e Madalena eram um casal feliz, cúmplice e indestrutível. Nem mesmo pela morte. Haveriam de regressar para que Kyle pudesse semear uma semente e morrer em paz como já se viu que morreu. Pelo meio, tomaram chá com Mark Merrit.

Foi Mark quem lançou o desafio no final de um dia de trabalho. As coisas tinham corrido particularmente bem nessa tarde e ele arriscou:
-Bebemos um chá esta noite? Não há nada como um chá noturno à volta de uma fogueira em África…
-Tentador. Falarei com Madalena. Se não estiver muito cansada, lá estaremos… já agora, estaremos onde?
-Junto à minha tenda.
E assim foi. Madalena adorou a ideia. Era a vida social possível no fim do mundo! Uma roda de pedras no chão, a lenha lá dentro a crepitar, três cadeiras de pano enfiado numa estrutura metálica em tripé que se desmontava como quem fecha um guarda chuva, uma cafeteira com café em pó lá dentro a borbulhar, umas chávenas mal acabadas, cada qual de sua nação, Mark tinha um pau na mão com o qual riscava na terra desenhos geométricos à medida que ia falando, Kyle na sua eterna t-shirt que em tempos fora branca e Madalena enroscada numa manta porque as noites de África têm quase tanto frio como dias têm calor. As conversas desfiavam, fluentes e amistosas, pelos assuntos mais diversos que três seres humanos podem encontrar à roda duma fogueira com uma chávena de café na mão. O trabalho, os direitos humanos, o modo de vida nas diferentes partes do mundo que haviam conhecido, as suas juventudes, altura em que brincavam com Madalena dizendo-lhe que ainda estava vivendo essa fase, os estudos, a ocupação profissional regular, as motivações para estarem ali e como haviam chegado a Wajir, as peripécias de viagem e livros, livros e mais livros. Numa das conversas, Madalena quis saber pormenores:
-Afinal, o que faz um engenheiro mecânico?
-A pergunta mais acertada era o que faria um engenheiro mecânico. Eu não faço o que eles normalmente fazem. A vida tem atalhos. Desenho equipamentos.
-Que servem para…
-Humm… lá se vai a minha privacidade. Conheces o Indiana Jones?
-Quem não conhece?
-Pois bem, o George e o Steven estavam com um problema aquando da produção do segundo filme da série…
-O George? Queres dizer o George Lucas?
-Sim. E o Steven é esse mesmo que estás a pensar!
-Kyle, temos um amigo famoso!
-Não. Tu tens é um amigo que tem amigos famosos! Enfim durante a produção do…
-Templo Perdido! Indiana Jones e o Templo Perdido!
-Esse mesmo. Enfim, havia uma série de cenas de filmagem impossível, quer dizer, era possível filmar aquilo, mas não com os ângulos e os movimentos que eles queriam. As câmaras não acompanhavam. Eles expuseram o problema e eu tinha um amigo português…
-Português? Tu tinhas um amigo português!
-Sim. É aquele paísinho na Penínsu…
-Eu sou portuguesa!
-Uau…
-Sim, uau! As coincidências da vida. E depois?
-E depois, ele era genial e dedicou-se aos problemas de rotação enquanto eu resolvi as questões relacionadas com focagem, lentes, etc… foi uma pequena experiência, mas correu tão bem que há três anos atrás… sim, em 89, logo, há três anos atrás, quando lançaram a Última Cruzada, já todas as filmagens foram feitas com a nossa tecnologia. De lá para cá não temos tido mãos a medir, mas precisei de sair daquela movimentação toda. Estava farto de cosmopolitismo, manias e festas sem sentido e resolvi falar com a Cruz Vermelha e financiar um projeto. Calhou este.
-Tu estás a pagar o que se passa aqui?
-Quase tudo, mas sem vós e os outros colaboradores, nada disto seria possível. Aqui contam mais as pessoas do que o dinheiro. Felizmente, ainda há sítios no mundo onde se pode dizer esta frase.
-Posso fazer-te uma pergunta sobre o Indy?
-Claro.
-Achas que a Última Cruzada foi mesmo a última ou haverá mais?
-Acho que foi a última. Eles estão fartos daquilo. O Harry está a ficar velho para aquelas andanças, já quase não dá uma corrida sem um duplo, o filão está gasto. Agora só se pusessem o Indiana Jones a enfrentar extra terrestres e francamente não creio que isso vá acontecer… e tu, que fazes na vida.
-Sou a jovem esposa do teu amigo, temos a Mariana para cuidar, trabalho à noite num pub, tirei um curso profissional de contabilidade e acho que quero mais… um curso superior… adoro contas, gestão de stocks, gestão financeira, adoro tudo o que seja organizar e controlar…
-Ah, temos uma controladora!
-Sim! Moderada, mas controladora…
-Moderada? Mark, já viste o que ela está a fazer ao acampamento? Qualquer dia, precisamos de limpar o rabo e vamos ter de preencher um papel… para sujar outro!
-Já é assim, amorzinho, tu é que ainda não reparaste. Já está em curso um sistema para monitorização dos nossos gastos.
-Miúda! Isso faz-se?
-Claro, é para o bem de todos…
Embrenhavam-se nos pormenores das conversas, na sua utilidade e futilidade como se estivessem a construir o mundo. Um mundo de ideais. E foi assim que ficaram cúmplices os três. Amigos inseparáveis vivendo longe um dos outros. Madalena nunca mais perdeu o contacto com Mark que viria a ser ajuda fundamental para suportar a dor e as dificuldades que estavam para vir. Gostavam de conversar um com o outro. Sentiam uma sintonia intelectual ímpar e sentiam também que se motivavam e espicaçavam no raciocínio e no discurso. O relacionamento de Mark com Kyle era diferente. Era um entendimento mais assente na experiência e no conhecimento das agruras da vida. Um dia, no final de uma dessas conversas, Kyle deixou Madalena seguir à frente, demorou-se um pouco, e confiou-a a Mark:
-Amigo, deixemo-nos de rodeios e ilusões. Eu não vou viver muito mais. Foi uma felicidade encontrar-te aqui. Tu és um tipo bem formado, conheces a vida e sabes o queres dela… faz-me um favor… quando eu morrer…
-Vá lá, Kyle, as coisas não são assim…
-São, são, meu velho, são mesmo assim… isto já dura pouco. Vamos ter de partir. Eu não estou a aguentar o esforço e grande parte do que era preciso fazer está feito…
-O favor?
-Olha por ela. Ela é jovem e forte, mas teve um percurso sinuoso até chegar aqui. Se não tiver um referente por perto, pode perder-se…
-Eu estarei longe…
-Eu sei, mas podes olhar por ela… por favor.
-Fica descansado, rapaz, se não nos enterrares primeiro, eu olharei por ela.
Kyle suspirou de alívio e como o ambiente estava tenso e tristonho, quis fazer uma piada:
-Mas nada de te aproveitares dela, ouviste?
-Nem tal me passaria pela cabeça, rapaz. Eu jogo na outra equipa…
-Ah, ok… só virtudes, então…
-Hahaha… a bem da verdade, no tempo que aqui temos estado, ao longo destes meses, tu tens corrido mais riscos do que ela!
-Eh lá! Posso ir deitar-me descansado?
Riram ambos de satisfação e alívio. Apertaram a mão e abraçaram-se. Tem a vida estas sinuosidades, mas o facto é que, por circunstâncias diversas, não voltariam a fazer outro serão de café e fogueira, ver-se-iam poucas vezes mais. Kyle deixou a sua obra para trás. Alguns desses furos ainda lá estão hoje jorrando água, brotando vida. Foi preciso que regressasse a Genebra. Foi recuperar o possível. Foi amar Madalena até ao último minuto. Foi semear-lhe uma semente de vida que nunca veria nascer. Madalena guardou a morada de Mark e o número da sua casa nos Estados Unidos. Voltariam a ver-se daqui por uns tempos e estariam em contacto distante e intermitente até ao dia em que formariam o inseparável grupo dos três emes.

———————————- jpv ———————————-


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Trailer

Um Homem, uma mulher, um deserto, um tipo suspeito em vestes brancas, Uma carrinha a cair aos bocados, uma viagem infindável, uma vida em perigo, campos de refugiados, um desafio, uma torre de ferro, diversos camelos, uma busca, uma doença… 

Não, não é um filme do Quentin Tarantino, é o próximo capítulo de “A Paixão de Madalena”, brevemente, neste blogue!
jpv
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Aviso:
A leitura deste texto pode provocar dependência e tonturas.
A produção sugere que o leia acompanhado.


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Citação das Grandes Desgraças


“- Sabes, miúda, as grandes desgraças têm uma vantagem…
 – E qual é ela?
 – Qualquer solução serve para recomeçar!”

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Diálogo entre Kyle e Madalena
In “A Paixão de Madalena”,
Capítulo 8, a publicar em breve neste blogue.
jpv


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A Paixão de Madalena – Capítulo 7

A Paixão de Madalena

Livro I – A Paixão de Madalena

7. Foi em Belfast. Kyle pedia-lhe poucas coisas. E Madalena não lhe recusou esta. Percebia que Kyle quisesse reencontrar-se com a cidade e, casando com ela, queria fazê-lo num local do coração, que lhe dissesse muito. Foi a mais íntima das cerimónias. Madalena levou Albertina. Kyle levou as filhas, os amigos da tertúlia e dois ou três familiares. Ela tinha um vestidinho pérola de alças, apertado na cintura para depois se abrir numa roda de pregas e tules. Um coletezinho por cima, cobrindo os ombros, com as mangas justas aos braços e uma fiada de botões pequeninos, muito juntos, desde o punho até meio do braço. Kyle revelou nesse dia o que restava da sua rebeldia. Era uma camisa de seda cinzenta fechada no pescoço com uma gravata fininha de cabedal. Um colete no mesmo material da gravata e umas calças de ganga com um cinto de fivela em cinzento escovado. Entraram no registo civil com sorrisos tímidos e o coração nas mãos. Afinal de contas o noivo tinha quarenta e dois anos e a noiva dezassete. Ficavam bem lado a lado. Indisfarçável a diferença, tanto quanto a ansiedade e a vontade de seguirem em frente. E assinaram. E beijaram-se. Albertina sorriu. A sua menina voara, libertara-se. Imaginara este momento de muitas formas menos desta. Madalena está feliz e isso é o que verdadeiramente conta. Houve uns sorrisos, umas palavras de felicitações, algumas lágrimas, uma garrafa de champanhe e outro beijo, mais relaxado, mais longo. E saíram para a rua. Para a vida que os esperava. Almoçaram num restaurante de Belfast onde Kyle reservara mesas para todos. E o que se seguiu, não sendo uma festa, foi uma festa. As conversas correram com naturalidade, os olhares ficaram tolerantes e os sorrisos enfeitaram a mesa. Ao final da tarde, quando se despediram, o jovem casal deu as mãos e fez a lua de mel improvável. Passearam de mão dada pelas ruas de Belfast como fizeram no dia em que amaram pela primeira vez com os corpos. E tal como nesse dia, não fizeram amor. Deitaram-se enroscados um no outro, entregaram-se as almas, confiaram-se a existência e adormeceram nesse doce encantamento. O da Felicidade.

Pela manhã, fria e cinzenta, com as almas do mundo ainda adormecidas na sua maioria, Kyle deu-lhe uma lição. Encostou-se a ela e sussurrou-lhe ao ouvido:
-Aprende! O setôr vai ensinar-te.
-Hum, hum.
-Não há mal nenhum, certas ocasiões, em seres submissa e deixares o teu mestre cuidar de ti. Essa atitude excita-o porque te sente à sua mercê, um caminho para ele explorar, uma vulnerabilidade que o faz sentir-se o Senhor do Universo. Deixa-lo tratar dos teus cabelos.
E ajeitou-lhe os cabelos desalinhados do sono puxando-os para trás.
-Deixa-lo acariciar o teu pescoço.
E semeou-lhe beijos pequeninos na curva da nuca.
-Deixa-lo sentir os teus seios nas suas mãos.
E tomou-os nas mãos, enchendo-as e deslizando com elas muito suavemente ao longo da sua curva generosa.
-Deixa-lo percorrer o teu ventre.
E percorreu com a língua essa linha reta e tentadora que une os seios ao púbis.
-Deixa-lo refrescar-te.
E soprou-lhe os pelos revoltos e ela contraiu-se um pouco e sorriu.
-E deixa-lo possuir-te.
E beijou-lhe o sexo demoradamente e devorou-lho depois e tomou-a com vigor quando ela própria já não desejava outro destino que não fosse esse.
Madalena aprendeu a relaxar e a entregar-se. Julgava que tinha aprendido tudo e foi por saber que ela pensava isso que Kyle, quando estavam prostrados em silêncio a usufruir do sexo depois do sexo, a informou:
-Não penses que sabes tudo. Tens muito mais para dar. E tens de aprender a possuir. A tomar o teu homem para ti.
-Hum, hum.
-Vamos dar um mergulho gelado e repentino na piscina!
Estava frio, como já se disse, eles desceram em roupas interiores e envoltos nas tolhas de banho do hotel. Quando saltaram para a água, diversos hóspedes afloraram às janelas, alguns empregados espreitaram pelas portas envidraçadas. Com o entusiasmo da água fria no corpo e a sensação de liberdade, Kyle não reparou que tinha uma assistência considerável, viu Madalena no meio da piscina, encheu os pulmões de ar e gritou:
-Abre as pernas, miúda, o teu velhote vai passar!
Uns sorrisos, uma risada incontida, uns sobrolhos franzidos, uns ares de espanto, Madalena corada, Kyle sente o silêncio, percebe o que fez, olha em volta e acrescenta:
-Então? Para eu passar é preciso que ela abra as pernas, não?
As pessoas recolheram-se, viraram o olhar para onde o tinham antes ou fingiram desinteressar-se. Kyle aproximou-se de Madalena, abraçou-a muito apertadinha a si e disse-lhe:
-O mundo não é como to dão. Será como tu o fizeres.
Ao final da tarde, depois de uma refeição devorada, de uma sesta aconchegada, um pouco de leitura e um duche quente, Kyle ensinou-a a descobrir-se.
-Anda cá!
-Sim, meu adorado setôr e marido. Faz-me impressão chamar-te marido…
-Sabes o que é que tens de conhecer melhor para dares prazer ao teu companheiro?
-O meu companheiro!
-Não!
-Não?!
-O que tens de conhecer melhor, antes de mais, é o teu corpo, os teus limites, os teus desejos e aquilo de que mais gostas. Tudo isto é um jogo de dar e receber e é fundamental que conheças muito bem o corpo que vais usar para ambas as coisas. E ensinou-a, como quem encaminha, a acariciar-se, a descobrir-se no seu próprio corpo, a encontrar as zonas onde gostava de ser acariciada e estava já excitadíssima quando Kyle se despiu completamente, a chamou a si e disse:
-Toma! É teu! Faz dele o que quiseres.
-Dele?
-Do corpo todo. Descobre-me como te descobrimos ainda agora. Sacia a tua curiosidade…
-E posso fazer perguntas?
-Todas as que quiseres. E podes até fazer-me pedidos, dar-me ordens, indicações… o importante é que comuniques.
E ela descobriu-o. Com o olhar, com a ponta dos dedos, com as mãos ávidas, com a língua ardente, e vagueou pelo corpo dele enquanto entregava o seu. E fizeram todas estas coisas no dia seguinte ao do seu casamento e isso intrigou-a. Estavam já deitados, dormitando e olhando o teto e sentindo-se por perto e ela resolveu perguntar:
-Se sabias tudo isto, se tinhas tudo isto para ensinar-me, porquê só hoje? Porquê hoje?
-Porque hoje, Madalena, é o primeiro dia da nossa lua de mel e de hoje em diante não teremos segredos, só este receber feito dar, só este amar contínuo e doce enquanto existirmos um para o outro.
Madalena não respondeu. Pendurou-se no pescoço dele e beijou-o longamente.

Já aqui se defendeu a influência que uma cidade pode ter na formação de uma pessoa, nas suas opções, no seu modo de vida. Vem isto a suceder por via das relações afetuosas que as pessoas desenvolvem com as cidades. Belfast marcara Kyle e Madalena, o casal. E, por essa razão, por residirem aí memórias fortes e importantes, por se terem desenrolado nas suas ruas conversas íntimas e reveladoras, dividiram o seu tempo entre a terra das obrigações, Genebra, e a terra das paixões, Belfast. A situação financeira de Kyle, muitíssimo confortável, permitia-lhes fazer fins de semana prolongados, férias e, por vezes, até a loucura de uma fuga de dois dias para a cidade que os acolhera. Uma breve viagem de avião e o mundo mudava. Desvaneciam-se as preocupações, viviam-se as emoções. Era em Belfast que se sentiam inquebrantáveis e eternos.

Ora, é a eternidade, concordará o leitor, outro bom motivo de conversa e, em abono da verdade, esta condição de contador de histórias vai pouco além do que manter uma boa conversa. Eterno, Kyle não será. Estando nós em mil novecentos e noventa, tendo o leitor prestado atenção às primeiras linhas desta história, sabe que morrerá em breve, mais precisamente no Outono de mil novecentos e noventa e quatro. Ainda assim, muito lhe falta viver. Mais do que algumas pessoas que estarão entre nós muitos anos após a partida do irlandês. Contudo, o corpo de Kyle começou a revoltar-se cedo, como se sabe. Ao fim da noite, fora buscar Madalena ao trabalho. Ofereceram-lhe uma Guinessque recusou com simpatia. Umas dores de cabeça e umas náuseas traziam-no indisposto, incomodado, preocupado sem saber com quê. Quando Madalena saiu, beijou-a na testa. Recusou-lhe um beijo nos lábios como se evitasse, por instinto, que algo mau passasse para ela. Conduziu inquieto e ela apercebeu-se:
-Que tens, velhote?
-Estou mal disposto, só isso. Deve ter sido algo que eu comi.
-E o que comeste tu?
-Nada.
-Ora aí está um diagnóstico inteligente! Assim que chegarmos vou fazer-te um chá quentinho. Pode ser?
-Claro que sim! És uma santa!
-Talvez não…
-Talvez não…
Quando chegaram, saíram do carro, subiram as escadas do prédio, Madalena estendeu a sua chave à porta e sentiu um estrondo seco atrás de si. Kyle desfalecera. Ela acabou de abrir a porta, assustada, tentou puxá-lo para dentro, mas era um corpo demasiado pesado para si. Ficou atravessado, meio corpo dentro de casa e outro meio fora dela. Assim ficaria para sempre na vida de Madalena. Ocupando o seu espaço, deixando-lhe outro espaço livre para ocupar. Madalena grita agora, Ajudem-me, por favor, ajudem-me! Os vizinhos e as vizinhas acudiram, pouco depois havia uma ambulância e Kyle seguia para o hospital. Assim há de ser sempre a vida para Madalena. Estendendo-lhe uma mão de felicidade, estendendo-lhe uma mão de sofrimento. Talvez por isso se tenha feito uma mulher forte, segura de si e preparada para o pior. No dia seguinte visitou Kyle.
-Está aqui uma menina para o ver…
-É a minha mulher.
-Está ainda combalido, senhor Mckenzie…
-Mande entrar a menina e quando eu lhe apalpar o rabo venha depois dizer-me que estou combalido.
-Senhor Mckenzie!
Madalena entrou no quarto, aproximou-se dele e beijou-o nos lábios, ele estendeu uma mão e apalpou-lhe o rabo, a enfermeira saiu com um olhar de reprovação e sacudindo a cabeça, só não se percebe porque sorria.
-Estás melhor?
-Pronto para outra!
-Vá lá, a sério…
-Estabilizei. Exames hoje, amanhã nova medicação e volto para casa daqui a um par de dias… e tu?
-Escola na perfeição, trabalho a correr bem, a minha avó tem-me ido buscar. Eu podia ir de autocarro, mas ela insiste…
-Deves aceitar. Faz-lhe bem sentir que não te perdeu de todo. Se a deixares ajudar-te, estás a ajudá-la muito.
-Tens um bom íntimo!
-Sinto a tua falta.
-Eu sei. Também sinto a tua, meu querido.
-Mas…
-Mas o quê?
-Um dia destes pode ser de vez.
-Não digas isso, por favor. Não digas isso! Já chega de perdas na minha vida….
-Nunca me perderás. Estarei sempre contigo.
-Assim está melhor.
-Amanhã também vens ver-me?
-Claro! Que pergunta!
-Podias fazer-me um favor…
-Sim…
-Está um maço de cigarros…
-Kyle Mckenzie! Comporte-se! Ainda nem fez vinte e quatro horas que caíste redondo no chão, estás internado e queres conspurcar o hospital? Se eu não te conhecesse bem…
-Se tu não me conhecesses bem, o quê?
– Se eu não te conhecesse bem, não tinha os cigarros aqui comigo na mala!
-Malvada! Liiinda! Perfeiiiiita! Adoro-te! Põe ali na gaveta.
-Na, na… tudo tem um preço.
-E qual é o teu?
-Essa mão no meu rabo… por baixo da saia!

Kyle recuperou. Estabilizou. A vida passou a fazer-se mais por Genebra. Era necessária alguma prudência e alguns cuidados com a saúde de Kyle. Os fins de semana corriam tranquilos. Liam, conversavam, faziam tardes eternas de chá e biscoitos. Por vezes convidavam Albertina que aceitava e trazia sempre consigo um miminho doce.  E foi numa dessas tardes que a vida fintou a vida, que os afetos inexistentes encontraram chão desconhecido e fértil. A força de Kyle tem sido posta à prova. Chegará agora a vez de Madalena. E vai acontecer-lhe com naturalidade aquilo que acontece com tantos de nós. Da fraqueza surgirão forças, da impreparação surgirá engenho, na impossibilidade se abrirá caminho para a vida. Estão os dois a ler. Madalena mais concentrada. E é por isso que nem ouve o ding-dong melódico da campainha. Kyle sorri e vai à porta. Espreita. Abre. Madalena ouve um conversar em sussurro, como quem não quer incomodar que, ao mesmo tempo, lhe parece uma lamúria. Kyle reentra na sala com um ar preocupado e fala. Ao falar, fá-lo como se não soubesse o que está a fazer. Diz, mas não sabe o que está a dizer. Parece surpreendido e é por isso que as suas palavras são uma afirmação, mas soam como uma pergunta:
-Está ali a tua irmã?!
-Que raio de conversa é essa? Sabes que a minha irmã…
-Então é melhor ires ver porque a pessoa que ali está parece muito certa do que diz.
-Será que…
-Não sei o que será, Madalena, mas aquela pessoa é bem mais velha do que tu e isso não bate certo com o que eu sei.
-Liberta?
Madalena levantou-se num gesto brusco que vai amaciando à medida que se aproxima da porta, levava uma expressão de zanga que dispersou a custo naquelas passadas. E, de repente, enquanto andava, lembrou-se de que fosse quem fosse que estivesse à porta, mesmo que fosse efetivamente Liberta, ela não teria como reconhecê-la. Vira-a duas ou três vezes em visitas fugazes que Albertina fizera a Portugal. Nada mais do que isso e há tanto tempo que lhe resta somente uma imagem esfumada semeada na memória. Abriu a porta que Kyle deixara encostada e pasmou com o que viu. Era uma moça de cara arredondada como a sua, os lábios finos e bem desenhados como os seus, o olhar azul como o seu e os caracóis no cabelo como os seus. Está em total desalinho. Roxa de frio, mal vestida, as roupas velhas e desgastadas, os sapatos tinham andado muito mais do que aquilo para que foram concebidos e isso notava-se nas biqueiras desgastadas e nos tacões arranhados. Lá fora estava frio, talvez uns doze graus e ela vestia um vestidinho de algodão que fora branco e um casaquinho de malha. Aquela pessoa passara mal. Mas não foi isso, apesar de marcante, o que mais chamou a atenção de Madalena. Foi a criança nos braços da rapariga, envolta em panos que tinham sido mantas, e por já nenhum servir  sozinho para aquecer um bebé, todos foram ali juntos e embrulhados uns nos outros à volta da criança.
-Liberta?
-Sim, mana, sou eu. Não me reconheces?
Aquela palavra, mana, ali colocada no meio da frase soara-lhe a falso e normalmente tê-la-ia corrigido, mas o estado da rapariga e a curiosidade a palpitar-lhe no peito, Quem será o bebé? Como será o bebé?, levaram-na a saltar esses pormenores.
-Não te fazia aqui e eu não tenho como reconhecer-te porque não te conheço. Sabes que nos vimos duas ou três vezes por períodos breves quando eu era muito miúda. Eu reconheço-te os meus traços e os da nossa irmã, mas não te conheço.
-Mas sou eu, Madalena, sou eu, a Liberta. Eu vi-te nascer, a ti e à mana, eu estava com a nossa mãe naqueles dias difíceis e eu conheço-te e não tenho mais a quem recorrer. Por favor, deixa-me entrar, deixa-me ao menos dizer-te ao que venho.
-Sim, entra. Suponho que não haverá muitas Libertas neste mundo à procura de uma Madalena…
Liberta entrou. Madalena disse-lhe para aguardar um segundo na entrada, foi à sala, sussurrou ao ouvido de Kyle, Está tudo bem, confia em mim, já volto, foi buscar Liberta e levou-a para o quarto:
-Vais tomar um banho quente, vamos vestir-te e vamos agasalhar-te, vais comer e depois conversamos. Agora é preciso cuidar de ti e do bebé. Vá, despe-te.
-Da bebé. Corrigiu Liberta. E ficou parada, olhando em volta, procurando um sítio para poisar a criança, e os seus olhos pararam em Madalena. Estendeu-lhe a bebé e disse:
-Seguras?
-Não sei se sei…
-É fácil. É como uma bonequinha.
-Nunca tive bonecas.
-Olha, pões uma mão por trás da cabeça e outra por baixo do rabinho.
Madalena segurou a menina e sentiu-se pequenina e vulnerável como ela e, ao mesmo tempo, teve medo. Um medo terrível de a estragar! Estava ali uma vida preciosa a despontar, precisava de cuidados e ela não tinha a mínima ideia do que fazer. Por momentos pensou se não se teria precipitado ao casar-se com Kyle, mas afastou o pensamento e aconchegou a criança a si. E sentiu o seu calor, a sua vida, contemplou a pele rosada e os olhinhos fechados. A bebé acordou, olhou-a em silêncio, como se estivesse a examiná-la e esse olhar que trocaram foi a semente. Liberta tomou banho, vestiu-se e agasalhou-se com roupas de Madalena, bebeu um chá quente e devorou os biscoitos que estavam no pires. Madalena fez-lhe uma sandes que ela comeu também. Depois explicou que descobrira Madalena seguindo-a a partir de casa de Albertina. Esperara vários dias até que acabou por vê-la. E o que vinha pedir-lhe não se atrevia a pedir a Albertina. De resto, quase não falava com a avó. Sabia que estava zangada por causa de assuntos antigos e não ousava pedir-lhe nada.
-Sim, mas o que queres tu, Liberta?
-Ajuda.
-Que tipo de ajuda?
-Eu casei com um rapaz lá da terra, o Bernardino Silva. É bom moço, gosta de mim, é muito trabalhador, mas muito humilde. É pobre como nós. Viemos tentar a vida aqui, mas está a ser muito difícil. Mal temos para comer e é preciso pagar umas dívidas que fizemos por causa da viagem e dos papéis, a legalização. Sabes como tudo é caro aqui…
-Sim, o que precisas é de dinheiro…
-Não é que não desse jeito, mas não me atrevo a pedir para mim. Peço para a menina. Não sei como te diga…
-Sê direta!
-Ela é pequenina. Estou a tentar arranjar trabalho e quando me veem com ela recusam logo. Se me ficasses com ela uma semana
-O quê?!
-Se me ficasses…
-Eu percebi! Só não percebo como podes pedir-me isso. Eu não sei nada de bebés, nem sei a idade dela, nem o nome, Liberta!
-Chama-se Mariana. Mariana Silva e tem duas semanas. Já nasceu cá. Também temos essa despesa para pagar. Por favor, Madalena, só até eu arranjar trabalho. Depois logo encontro quem me fique com ela.
-Não sei que te diga. Estou apavorada. E se lhe acontece alguma coisa?
-Não há de acontecer nada, Madalena. Só uma semana. É tua sobrinha. Podes dar-lhe o que eu não posso. Por favor… eu venho buscá-la de hoje a oito dias.
-E o que é que é preciso fazer?
-Eu ensino-te. As coisas dela estão neste saquinho.
E passaram o resto da tarde conversando. Liberta ensinou os cuidados básicos, mostrou os documentos, falou de horas para comer, de como mudar uma fralda, limpar a criança quando bolsa, ensinou-lhe a preparar o leite em pó e ao fim do dia saiu com mil agradecimentos e despedidas, Até para a semana, disse. Mas nunca mais voltou.
Kyle, que presenciara tudo aos repelões, o suficiente para aperceber-se do que se passara, ironizou assim que Liberta saiu:
-A tua irmã esqueceu-se cá da filha!
-Kyle, por favor, são só oito dias… uma simples semana em que posso matar a fome a esta criança. Ela ensinou-me como fazer.
-E também te ensinou a amá-la?
-São só oito dias, Kyle.
-Tu tens uma vida, miúda. Tens escola, tens trabalho, tens um marido… sei lá, podias ter perguntado o que eu achava…
-Tu achas bem. Tu és o homem com o maior coração do mundo, um defensor dos direitos das pessoas…
-Uma semana?
-Uma semana!

Não fazemos juízos de valor. Julgar é fácil. O difícil é experimentar a pele do outro. Sabemos, mas não exploramos para já, as razões de Liberta. O facto é que passou uma semana e outra e outra e um mês e um ano e outro até que chegou um dia em que Madalena olhou Mariana e viu uma filha e Mariana olhou Madalena e viu uma mãe. E, tendo nós tempo e engenho, aqui relataremos algumas das provações que as esperam. Para já, anda Madalena procurando Liberta porque ainda não sabe que a não encontrará. A sua vida revolveu-se. Deixou o trabalho, procurou uma pessoa que cuidasse da criança enquanto ia à escola e apoiou-se em Kyle que estava habituado a ter mulherzinhas por perto e um dia lhe disse em tom de brincadeira, Se a tua irmã continua a demorar-se, temos de comprar uma casa maior. Madalena teve de adaptar-se à nova realidade e aos novos ritmos. Sofreu com as noites em branco e as idas ao hospital, quase sempre por causa de coisa nenhuma que lhe parecia tão grave e, sobretudo, cresceu. Aprendeu outra responsabilidade. A inigualável responsabilidade de ter ao seu cuidado uma vida humana completamente indefesa. E aprendeu outro amor. Uma dependência. Kyle dizia-lhe com frequência que estava a revelar-se uma boa mãe e daria uma excelente mãe para os filhos de ambos. E combinaram tê-los.

Foi por essa altura que Madalena conheceu Pablo Sentido. Era um eterno amigo de Kyle que havia fugido da Espanha franquista, se mantivera no exílio escrevendo sobre o projeto da Espanha libertada e quando ela finalmente se libertou, ele não regressou. Continuou a escrever e a publicar nos mesmos jornais da reação, desta vez sobre os defeitos da democracia, os abutres do poder, a subjugação do povo pela finança e ainda sobre… sexo! Era um psiquiatra especializado em sexologia que tinha o dom e o gosto da confrontação. Participava nas tertúlias de amigos que aconteciam quando Deus queria embora fossem todos ateus e alguns, até, agnósticos. Ora, Deus, que também tem as suas rotinas, queria sempre à sexta feira, mas não era todas as sextas, era lá de quando em vez. Madalena gostava de os ouvir a discorrer sobre o futuro do mundo pela noite dentro e, por vezes, também participava. Mais recentemente, porém, os cuidados com Mariana obrigavam-na a não ir ou a sair mais cedo. Ficava um bocadinho e depois Kyle ou um amigo ia pô-la a casa para a senhora que ficava com a bebé poder despegar e ir à sua vida. Foi numa dessas tertúlias de visita fugaz que calhou a vez a Pablo Sentido de levar Madalena a casa e iam lado a lado no carro, falando sobre aquelas reuniões de amigos, sobre Kyle, a Espanha, Franco, Portugal e a luta pela democracia alcançada mas instável,Cuidado com os barões, avisava, Cuidado com os barões, que Pablo surpreendeu Madalena:
-Olha lá, tu e o Kyle já fizeram sexo anal?
Madalena petrificou. Sentiu-se invadida e insegura e só conseguiu dizer:
-Para o carro! Eu faço o resto a pé.
-Não te incomodes, miúda, não te ofendas, a pergunta é meramente técnica.
-Nada que te diga respeito.
-Claro! A tua vida com Kyle não me diz respeito, muito menos na intimidade, mas a minha pergunta não era sobre vós, era sobre as práticas e os comportamentos de um casal com acentuada diferença de idades…
-Podias ter começado por aí…
-Rodeios! Para quê rodeios se podemos ser diretos?
-Para sermos educados!
-A educação é uma ficção, um artifício social, não existe.
-Já vi que para ti não.
E a conversa morreu por ali, mas a pergunta ficou plantada na mente de Madalena. Assim que kyle chegou a casa, tomou um duche, deitou-se e ouviu Madalena que ele julgava adormecida:
-Setôr…
-Sim, miúda…
-Porque é que nunca fizemos sexo anal?
-Estou a ver que foi o Pablo quem te trouxe hoje! Ele faz a mesma pergunta a toda a gente. Essa e outras.
-Sim, mas porquê?
-Porque nunca pediste.
-Tu não ofereceste.
-Se tivesse de acontecer, teria de ser pela tua curiosidade e não pela minha vontade.
-É bom?
-Acredito que seja melhor para os homens do que para as mulheres.
-Porquê?
-Acho que nem eles, nem elas, perceberam ainda como pode fazer-se.
-E como pode fazer-se?
-Ao contrário do que a maioria pensa, eu acho que deve ser a mulher a escolher quando isso deve acontecer e, escolhendo, acho que ela deve orientar todo o processo, os pequenos gestos, as carícias, a penetração, tudo isso deve ser ela quem escolhe, quem decide, quem faz…
-Porque pensas isso?
-Porque acho que o sexo só é bom se for bom para os dois, não pode constituir uma invasão e esse tipo de sexo pode ser invasivo.
-Todo o sexo é invasivo…
-Nem todo, mas sim, muito é. Mas este pode ser particularmente invasivo. Ora, se a mulher estiver no comando, isso só acontecerá quando ela estiver completamente preparada, relaxada, desejando que aconteça…
-E…
-E isso é metade do caminho para uma relação bem sucedida…
-E vocês, o que fazem?
-A nós, cabe-nos ser carinhosos, pacientes e… obedientes!
As luzes apagaram-se e quando Kyle adormeceu nessa noite agradeceu em silêncio e pela primeira vez as parvoíces de Pablo Sentido.

As tertúlias eram fantásticas. Eles e elas falavam de tudo, arte, cultura, política, literatura, ciência e discorriam, desenhavam as suas próprias teorias, liam textos, comentavam-nos e decidiam quem eram os verdadeiros artistas, os bons escritores, os políticos de mérito e decidiam também como resolver os problemas do mundo. Havia um momento de que Madalena gostava em particular. Era quando eles analisavam a vida de cada um e davam conselhos sobre o que cada um deveria fazer no futuro. Aquelas pessoas eram genuínas na sua amizade, importavam-se umas com as outras e criavam entre si laços duradouros. Madalena experimentará essa força daqui por uns anos. Para já, o casal Mckenzie é visto como um exemplo do amor puro, da resistência aos preconceitos, da liberdade de decisão da autodeterminação de cada um sobre o seu próprio destino. O gesto de Madalena, quando solicitou a sua emancipação, colheu aplauso e clamor na tertúlia e o seu casamento com Kyle foi um sinal de esperança num Universo moribundo de ideias e liberdade. Jimmy McCarthur, o arquiteto. Um irlandês de famílias abastadas e influentes, amigo de infância de Kyle, que se esperava viesse a assumir a firma de advogados da família, mas se entregou ao trabalho para pagar os seus próprios estudos. Edmond Chevalier, um francês de origens humildes que fizera os estudos com bolsas por via dos excelentes resultados que sempre apresentara até formar-se em Medicina. Exerceu pouco tempo. Refugiou-se na escrita e vive disso. Dominique Pritchard, uma professora belga que seguira a carreira diplomática e estava agora no consulado daquele país em Genebra. Chester Miller, nascido na suíça, descendente de britânicos, empresário na área dos produtos oftálmicos, era uma espécie de advogado do diabo do grupo. Divertia-se a contrariá-los, costumava dizer, Vocês são uns revolucionários de Porto na mão, especialistas do Xerês e do sofá! Eles zangavam-se e zurziam-no de argumentos e no fim brindavam todos. Eram estes alguns dos mais significativos elementos daquela dúzia de amigos que fazia emergir de um bom vinho francês ou de uma garrafa de Porto as mais fantásticas teorias. Tudo fazia sentido para eles e isso era o importante.

Estão juntos hoje. E erguem copos e tilintam uns nos outros e bebem e falam alto e cantam e festejam. Madalena terminou com assinalável sucesso o seu curso profissional e Kyle surpreendeu-a combinando com eles uma tertúlia-festa. Jorraram vivas ao saber, à valorização da mulher, ao poder do trabalho contra a tirania do colarinho branco e alguém disse, com ébrio propósito, Miúda, és finalmente uma mulher livre e armada para vida! E era. Só não o sabia ainda. E, no meio de todo aquele entusiasmo, uma voz se ouviu gritando, Viva a liberdade de expressão sexual da mulher! Um breve silêncio e uma dúzia de pessoas gritou em coro:
-Cala-te Pablo!

Nessa noite, quando chegaram a casa, Kyle mostrou-se inquieto.
-Que tens, velhote?
-Nada, nada…
Era falso. A meio da noite, sem lhe perguntar se ela estava acordada, explodiu:
-Que achas da malta da tertúlia?
-Hummm, vais acordar a Mariana…
-Não é o sono da Mariana que me preocupa, é o nosso. Estamos todos adormecidos. É fácil gritar princípios aos sete ventos numa tertúlia quando todos estão confortáveis e têm um copo de Porto na mão…
-Até pareces o Chester.
-O Chester às vezes tem razão.
-Oh diabo! Estás preocupado com alguma coisa não estás?
-Claro, Madalena. Não sei quanto tempo de vida tenho, não sei o que me resta fazer, mas queria ter uma palavra a dizer na forma como vou gastar esse tempo, queria tentar fazer a diferença, queria mais do que palavras, o ativismo de sofá é uma hipocrisia.
-E porque é que pressinto que já sabes o que queres? E, já agora, pressinto que vem aí coisa da grossa…
-Sim, já decidi…
-Podias ter-me consultado…
-Não precisas acompanhar-me.
-Irei contigo para todo o lado.
-Há a Mariana.
-Irá connosco.
-E sim, desta vez coube-me decidir unilateralmente, mas é mais forte do que eu, estou para morrer e quero ser verdadeiramente útil antes de partir.
-Cala-te com isso! Venha o plano.
-Vais odiar-me…
-Amo-te!
-Quero ir para África…
-Vamos!

———————————– jpv ———————————–


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Já vai, já vai…


Caros Amigos e Leitores,

Ao contrário do que aconteceu com o último capítulo de “A Paixão de Madalena” que publicámos, o próximo terá um intervalo de tempo muito menor. Correndo tudo com normalidade, será possível postá-lo ainda este fim de semana. Chamo a atenção para o facto de ser muito extenso e peço a vossa paciência.


Escrevo estas linhas porque tenho uns leitores de estimação que já começaram a reclamar por ele… De resto, e como quem aguça o apetite, sempre vou adiantando que este capítulo introduzirá um dado novo, de grande relevância, na narrativa.

“Julgar é fácil. O difícil é experimentar a pele do outro.”
In “A Paixão de Madalena”, Cap.7, brevemente neste blogue.

Até já!
jpv


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Citação de Kyle Mckenzie

“- O mundo não é como to dão, será como tu o fizeres.”

Kyle Mckenzie

in A Paixão de Madalena, Cap. 7
A publicar brevemente neste blogue.


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A Paixão de Madalena – Capítulo 6

A Paixão de Madalena

Livro I – A Paixão de Madalena

6. A liberdade é um conceito. Às vezes também é um facto. Uma realidade. Não acontece sempre. E as mais das vezes nem é porque seja cerceada por terceiros, é porque nós próprios a desconhecemos, ignoramos os seus limites, e navegamos pela vida sem percebermos que liberdade temos, que liberdade podemos ter, que liberdade queremos ter e, não menos importante, que liberdade é a dos outros. Madalena sabe. Não sabe porque tenha pensado nisso, refletido e consciencializado. Sabe, porque sente no seu íntimo o desenho dos limites da sua ação, do seu desejo e do bater do seu coração. E foi por isso que decidiu mudar. Não sabe ela porque decidiu naquele momento da sua vida, naquele dia, naquele serão, e, por certo, não o sabemos nós que imperscrutáveis são os desígnios das personagens, mormente, das que são dotadas de caráter e vontade própria, como é ocaso. Ainda assim, podemos deitar-nos a adivinhar. Uma teoria possível é a do irrompimento. Há ideias que irrompem como plantas. Certo será que tiveram seu tempo de gestação, contudo, concentramo-nos nós por força da evidência no momento em que rompem a terra e beijam a luz em sua fragilidade que é afinal a inteira pujança da vida.

Madalena estava sentada num cadeirão da sala. Era uma cadeira antiga com braços de madeira estofados por cima em tecido de flores envelhecidas rodeado por uma fileirinha de tachas de latão pregadas muito juntas. Assentava um cotovelo num desses braços da cadeira e havia dobrado as pernas para as guardar debaixo de si. Tinha um pijama vestido. Segurava um livro aberto com os dedos da mão em V. A luz em redor era suficiente mas amarelecida. Nem ela, nem Kyle gostavam da agressividade das iluminações jorrantes de watts. Tinham feito amor ao final da tarde, depois um duche quente, depois um chá com leite e biscoitos de manteiga e, por fim, abandonaram-se às leituras que tanto apreciavam e estavam devorando páginas quando Madalena começou a mudar de posição frequentes vezes. Ele levantou os olhos por cima do óculos de ler e percebeu que um incómodo a apoquentava. Não era físico. Era uma comichão na mente. Regressou ao livro sem lhe dizer nada nem voltar a olhar para ela. Conhecia-a a bem e sabia que, o que quer que fosse, rebentaria em breve em palavras atrapalhadas e mal organizadas, primeiro, e depois num discurso mais pensado e terno. Decidiu esperar, portanto. Assim foi. Ela estava pensando, desenhando hipóteses, organizando o pensamento e ele, mesmo sem saber, entrou nessas linhas de vida traçadas pelo coração dela. Entrou e interrompeu a sequência do pensamento dela. Havia ali uma informação que, por despiciente que fosse, era fundamental para a organização que ela estava a dar às ideias. Aborrecida pela quebra da fluência das ideias e, sobretudo, pela continuidade do seu raciocínio depender de terceiros, colocou um ar interrogativo e sério e perguntou como quem desafia:
-Tu queres casar comigo?
-Já pensaste na hipótese de abandonares o curso geral e fazeres um curso profissional de contabilidade e administração?
-Não desconverses. Eu fiz-te uma pergunta séria.
-Em primeiro lugar eu não posso desconversar porque não havia conversa nenhuma, em segundo lugar se tu podes fazer perguntas do nada que não têm nada a ver com nada, eu também reclamo para mim esse direito e, por fim, doce Madalena, dificilmente a tua pergunta é mais séria do que a minha.
-Estás mesmo a falar a sério?
-Claro. Muito a sério…
-Hummm, não me apanhas, primeiro a minha pergunta.
-Porquê a tua primeiro? Eu sou mais velho…
-Muito mais velho! Acontece que eu perguntei primeiro.
-Estás a pedir-me em casamento?
-Como?!
-Já vi que não… o que queres com essa pergunta?
-Pensei que era óbvia…
-Mas não é!
-Pois, preciso de saber, quer dizer, estava aqui com um pensamento e de repente pareceu-me importante saber se tinhas intenção de casar comigo um dia, se para ti isto é para continuar, se… enfim, eu tenho uma ideia, vamos dizer uma determinação, mas ela só faz sentido contigo na equação…
-Quase me assustas, mas… mesmo não sabendo se casaremos ou não, conheces as minhas reservas em relação ao casamento, sei que farei parte de todas as equações em que estiveres, enquanto quiseres…
-Queres com isso dizer…
-Quero dizer que seja lá o que for que essa cabecinha esteja a magicar, podes contar comigo para tudo!
-Uau!
-Uau?
-Sim, uau! Já viste que acabaste de fazer uma extraordinária declaração de amor?
-Não pensei nisso, mas tudo o que vai de mim para ti leva amor.
Madalena saiu do cadeirão, dirigiu-se à secretária, abriu uma gaveta, tirou um caderninho e começou a registar apontamentos e a escrever pedaços de texto e unia-os com traços e gráficos e datas. Kyle, em tom sereno, interrompeu-a:
-Não vais responder à minha pergunta?
-Está tudo aqui.
-Onde? Nos rabiscos?
-Não são rabiscos. É um plano.
-Um plano. E acaso posso saber do que se trata? É que muito dificilmente não estarei envolvido nele e tu tens a mania de ter esses ataques de determinação, assumes e fazes e mudas e não perguntas nada… tens de partilhar.
-Tens razão. Em todo o caso isto são coisas minhas… envolvem-te, sim, mas são determinações minhas.
-Não serão nossas?
-Minhas com a tua ajuda…
-Ok, como queiras, o que se passa?
-Quero seguir o teu conselho e mudar para o profissional de contabilidade, quero trabalhar e, sobretudo, quero tratar da minha emancipação.
-Sabes ao menos o que é uma emancipação?
-Vá lá Kyle, leva-me a sério… que sentido faz depender dos meus pais para tudo, para todas as assinaturas e autorizações, estar constantemente a depender dos contactos entre a minha avó e eles, se eu sei o que quero da vida, como quero, com quem quero… eu não preciso de ninguém para decidir por mim ou para me autorizar o que quero para mim. Eu decido a minha vida. Então que isso fique claro. Que se acabe de uma vez por todas com essa farsa que é a tutoria dos meus pais…
-Não forces. Não avances tu, não vás à frente. Fala com Albertina. Ela levantará o assunto, dirá que será mais prático, dirá que é para facilitar e depois entras tu e tratas da papelada…
-Por mim, falava com eles, explicava tudo e arrumava o assunto.
-Não arrumavas nada. Tens de ter sentido estratégico…

E teve. Avançou para o curso de contabilidade. Fez uns exames de equivalência que superou com facilidade e a roçar o brilhantismo. Conversou com Albertina e surpreendeu-se com a naturalidade com que a avó encarou a ideia e se dispôs de imediato a conversar com os pais. Fosse porque reconhecessem a independência de sua filha Madalena, fosse porque o destino os obrigara a confiar os passos da jovem ao critério de Albertina ou, mais seguramente, fosse por medo de acordarem fantasmas do passado e reabrirem feridas nunca verdadeiramente saradas, os pais de Madalena, mesmo discordando claramente da ideia, quase não se opuseram. Uma leve resistência que cedeu aos primeiros argumentos de Albertina. Os papéis foram tratados, assinado o que havia para ser assinado, autorizado o que havia para ser autorizado, renunciado o que havia para ser renunciado, assumido o que havia para ser assumido e uma mulher nasceu. Já nascera a menina, depois nasceu mulher para um homem e agora nasce mulher para si e para o mundo. Em abril de mil novecentos e oitenta e nove, no dia do seu décimo sexto aniversário, Madalena enverga um vestido lilás de roda larga e mangas apertadas no punho com um botãozinho pérola. A entrega do processo foi surpreendentemente fácil. O mais difícil seriam as sessões seguintes. Ora sozinha, ora com Albertina, ora com Kyle, Madalena viu a sua vida vasculhada, a sua intimidade devassada. Respondeu a tudo com serenidade. Três meses depois, numa manhã chuvosa e fria, sai do tribunal, corre para o carro, beija Kyle com sofreguidão e diz-lhe, Conseguimos, meu amor, conseguimos. Já não sou tua por empréstimo, sou uma mulher que decide o que fazer com a sua vida e eu entrego a minha nas tuas mãos, Kyle Mckenzie. Oh! Princesa! A tua vida a ti pertence e a mais ninguém. És uma alma livre, sempre serás. Tens a fragilidade das flores e a tenacidade dos seres mais fortes e resistentes… não serás minha, nunca. Serás sempre de ti e é isso que amo. Serei teu companheiro enquanto conseguir. Deixa-te de lamúrias, irlandês teimoso! Quero-te ao meu lado para sempre, prometes? Prometo. Kyle ainda não sabe, mas há de cumprir a promessa.

Não é que precisasse, mas decidiu trabalhar para sentir o sabor da autonomia. Com a ajuda de Kyle, conseguiu um trabalho à noite num pub onde se jogava snooker em mesas dispersas num enorme salão de mesas atapetadas de verde e longos candeeiros sobre elas projetando luzes fortes. Madalena servia as mesas, limpava-as, mantinha a sala limpa e enquanto se deslocava apaixonava-se pelo jogo. Tudo aquilo lhe parecia matemático e fácil. Calculável como uma equação. Kyle não a vigiava, mas ficava por ali muitas vezes. Agradava-lhe a ideia de a ter por perto enquanto bebia uma Guiness. O orçamento dele daria perfeitamente para viverem confortáveis como, de facto viviam, mas não podia cortar-lhe o sentido de independência e realização que só com o trabalho se conquista. Era preciso que crescesse e este sacrifício de estudar e trabalhar e viver com ele e para ele estava a fazer da menina cada vez mais mulher. De alguma forma, Kyle percebera que só a reteria junto a si se a soltasse. Qualquer atitude de posse, qualquer movimento de retê-la, seria perdê-la para sempre.

Um dia Madalena atrasou-se no trabalho. Era já tarde e Kyle adormecera. Acordou assustado, meteu-se no carro e encontrou o pub fechado com uma luz trémula lá dentro. Bateu à porta devagarinho, sentiu passos, um homem de barba por fazer e uma chama velha de cigarro ao canto da boca abriu-lhe a porta e disse-lhe:
-Entra, não vais acreditar nisto.
-O que se passa?
-A miúda…
-O que tem a miúda?
-Está a dar uma coça ao Liam!
-Ao Liam? Mas… espera, ao jogo?
-Ao jogo… ela tem muito jogo!
-Mas quando é que ela aprendeu a jogar?
-Uma noite destas, o próprio Liam ensinou-lhe as regras e deixou-a experimentar, foi já no fim da noite e, para um primeiro contacto, aquilo foi promissor… depois parece que treinou um bocadinho nas últimas noites depois de fechar o salão…
-Por isso estava a chegar mais tarde. E a dizer-me que era o trabalho…
-Sabes como são os jovens… mas olha que esta vai longe…
-Snooker?! Só me faltava esta!

É claro que jogaram juntos. Madalena ganhava-lhe quase invariavelmente e só quando via Kyle desesperar, errava umas bolas e perdia uns pontos e ele recuperava a sua dignidade masculina. Mil novecentos e oitenta e nove. Dezasseis anos. Uma menina feita mulher entregue a si própria. Uma estudante de sucesso. Uma trabalhadora dedicada. Uma jogadora de um jogo tradicionalmente masculino. Uma alma livre. Um coração indómito. A vida toda pela frente. Quando chegou o Outono e os primeiros frios, acendiam a lareira ao fim de semana e ficavam lendo enroscados um no outro, por vezes trocavam impressões sobre a leitura, outras vezes ficavam em silêncio encostados um ao outro a sentir o calor do fogo e dos seus corpos encostados. Foi num desses momentos que Kyle resolveu reinventar a pergunta:
-Tu queres casar comigo?
Ela não confundiu a pergunta com nenhuma outra e não hesitou na resposta. Já tudo havia sido dito sem palavras, agora que era preciso fazê-lo com elas, sabia bem como. Mais uma vez foi sucinta e direta. O brilho no olhar e o som a ecoar no coração dele:
-Quero!

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