Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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Crónicas de Maledicência – A Contas com a Lei

Crónicas de Maledicência – A Contas com a Lei

Antes que sejam apanhados de surpresa, é preciso que os meus familiares, amigos, leitores, colegas de trabalho, enfim, todos aqueles que possam ter alguma espécie de relacionamento comigo, saibam que estou a contas com a Lei. E, como é sabido, com a Lei não se brinca.

E o mais grave é que eu não transgredi a Lei uma vez só. Fui transgredindo ao longo dos anos e vai daí devo ter um acumulado de coimas acima das minhas possibilidades. Além disso, por despudor, que assumo, transgredi a Lei publicamente exibindo e ostentando orgulho naquilo que fazia. 

Como sabem, estou em Moçambique e venho revelar-vos que não sei se alguma vez mais voltarei a Portugal, porquanto a gravidade das sucessivas infrações deve ter como pena, além das coimas e do tempo de cadeia, alguma espécie de exílio para que fique impedido de reincidir como vem sendo meu nefasto hábito.

Peço desculpa àqueles que acreditaram em mim e se associaram comigo e me deram a honra de ser meus amigos. Peço desculpa se os envergonho. E peço desculpa a Portugal por tão séria e continuada prevaricação.

A verdade é que eu tenho três, não um, nem dois, mas três cães! Não satisfeito, resolvi regozijar-me com a posse de uma pónei, quatro cabrinhas anãs e três tanques carregados de peixes, assim, horror dos horrores, a perder a conta. Os cães estão distribuídos da seguinte forma. Dois ficam na cama do meu filho que dorme no tapete. Eu sei, é a desgraça total! Mas o rapaz não gosta de dormir na cama. Diz que lhe doem as costas. Um dorme aos pés da minha cama, numa alcofa de esponja forrada a veludo. Eu sei, não deveria tratá-lo com semelhante crueldade e ele, coitadinho, com medo de mim, dorme toda a noite enroscado. E sim, assumo, já fui visto a passear o cão! Shame on me! Mas há mais. A pónei vive na banheira da casa de banho e quando queremos tomar banho, o que felizmente acontece pouco porque somos pessoas asseadinhas e lavamos-se raramente, ela espera no sofá da sala. Se eu puser uma cassete com desenhos animados, ela aguenta bem o tempo de uma chuveirada. Tenho duas cabrinhas na cozinha a fazer uma espécie de compostagem. Eu deito os restos num balde e elas morfam. As outras duas estão no quarto de hóspedes porque já não havia mais lugar na casa. E, como devem calcular, tenho imensos problemas com os vizinhos. Eles não se importam nada com os animais, mas não me toleram. Ou é porque grito muito alto os golos do Benfica, ou é porque ponho os Cêdês do Tony Carreira no máximo do volume, quer dizer, também não é bem no máximo, é ali mesmo antes do som começar a destrocer! Ou é porque estou até altas horas a ver combates de boxe e sempre vou gritando dá-lhe, dá-lhe, toma, toma! Eu desfazer-me deles, queria ver se não, mas também não me apetece ir morar pró canil como sugeriu o vizinho do 5º esquerdo. Esse sim, um verdadeiro animal, uma autêntica cavalgadura, que eu bem o oiço zurrar todos os domingos de manhã ali entre as 10h e as 10:15. Aqui para nós aquilo no 5º esquerdo deve ser só alimárias de pasto. É que a essa hora está a senhora dele a relinchar se Deus a deixa. Mas, enfim, eles fazem o barulho e eu é que levo com a ordem de despejo. Acho que deve ser isso porque chegou uma carta da Cambra a mandar despejar as bostas dos animais no contentor mais próximo. 

E prontus, agora tenho de ir porque as cabrinhas estão a chamar por mim. Deve ser para as ir deitar, coitadinhas…

jpv

Material Incriminatório


Ó pró ar criminoso dele, até estou a pensar colocar um catrimpázio na porta a dizer:

“Cuidado com o Cão! Não o Pise!
Não sei se sabem quem é a Drª Mónica? É a vetrinária desta fera. Cada vez que o vê entrar pela porta adentro, foge a sete pés, a Drª e o cetafe todo!
Eu sei que não parece, mas ele nesta foto está com pensamentos malévolos, assim coisas do tipo, estou a aqui, estou-ma ir a ti!


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Sermão de São Paulo às Acácias


Sermão de São Paulo às Acácias

Exórdio

Sabei, Acácias minhas vizinhas, que muito do mal que vem ao mundo vem por vós. Os homens pretendem pouco da vida e veio isto a ser assim por mister do Criador e duas outras ordens de razões. Uma é que sendo ignorantes, não sabem para mais e a outra, mais rebuscada razão, é que não sabem querer o que desejam. Iludem-se os ramos de vossos troncos e as folhas de vossos ramos e as flores de vossas folhas pensando que os homens são ambiciosos e lutam por ambição. Ambição seria querer estender esta vida para a outra, ambição seria querer conquistar o tempo eterno no pouco que lhes é dado nesta passagem. O que os homens são tem um nome desde os tempos mais antigos: gananciosos. A ganância de reter o tempo no aspeto do corpo que forçosamente irá a apodrecer, a ganância de conquistar a matéria que dentro de poucos sóis deixarão para trás, a ganância de se mostrarem superiores uns aos outros quando a mais crua das verdades é que nascem todos, independentemente de origens, etnias, credos ou posições, da mesma forma, vivem padecendo das mesmas enfermidades e morrem apodrecendo das mesmas maleitas. E nada levam consigo para o Além. Ou melhor, levam uma única e singular coisa: as ações que praticaram nesta passagem. 

Argumentação

E perguntais, de frente para a minha janela, que tendes vós a ver com isto, genericamente e, mais grave, como podeis ser causadoras de tal enfermidade? É simples e, contudo, não o vedes. Não o vedes porque almejais o Céu, cresceis bordejando os andares dos edifícios e olhais unicamente para cima e para cima projetais vossa florida copa. E o que deixais para baixo, Acácias minhas vizinhas? Deixais a sombra. A doce sombra, proteção dos calores e das ardências que emanam do grande astro amarelo. Cresceis para o Céu e deixais para trás a semente do ócio, a raiz do conforto, o bálsamo para o sofrimento, quando é consabido que, o que o Homem mais precisa é de sofrer. Sofrer para aprender, sofrer para macerar o ânimo intempestivo e belicista, sofrer para aprender a resistir. O Homem precisa de Sol no lombo. Para sentir a agressividade e perceber que o seu semelhante a sofre também. Para que se não contente com a vossa sombra e a ofereça a um irmão, para que, quem sabe, venha a acolhê-lo na sua sombra ou a lutar por ele e com ele no direito por uma sombra igual. Escolhamos uma profissão ao acaso. Um homem anónimo. Desempenha-a o melhor que pode e sabe e tem a ambição de servir bem ou a ganância de prosperar sozinho e secar, à sua volta, todo o crescimento para sobressair, não entre árvores crescidas e frondosas, como é o vosso caso, mas entre um mato seco e rasteiro? É fácil perceber se o orienta a saudável ambição ou a nefasta ganância. Ponde a seu lado um outro homem. Um que ele não conhecesse, com quem não privasse e observai como o recebe, como reage à presença de um seu semelhante. É acolhedor ou hostil? Apoia-o ou mina-lhe o caminho? Saúda-o ou ignora-o? Auxilia-o ou larga-o à sua sorte? Incorpora-o ou expurga-o? E aqui entrais vós, Acácias minhas vizinhas, e vossa nefasta sombra. Se não tivessem o fresco da vossa sombra e da brisa que circula sob as vossas copas, estes homens estariam procurando abrigo juntos, uniriam forças, ver-se-iam forçados a um sofrimento comum em prol de um bem comungável. Acontece que a existência de sombra, por si só, sempre fará com que um deles a queira só para si com medo de perder o conforto e o outro venha procurar abrigar-se nela em busca do mesmo. O problema não é haver sombra, Acácias minhas vizinhas, o problema é a sombra pré-existir aos homens. O problema é ter de partilhar e gerir algo que já existia sem ser forçado a criá-lo desde a sua radicular fundação. O problema é agarrarem-se os homens às sombras como se as fossem levar consigo para o Além sendo irónico, Acácias minhas vizinhas, que os seus corpos partirão para uma sombra eterna e as suas almas, a merecerem-no, estarão em jardins onde delas não haverá falta.

   


Peroração

Abri os braços, Acácias minhas vizinhas, e deixai passar lancinantes e incomodativos raios dessa luz que nos alimenta e consome e tereis homens provando a insuficiente sombra e, na incapacidade de alargá-la sozinho, cada um por si, esforços hão de unir por abrigo comum. Não deis tudo, tão só mostrai. E aqueles que em conjunto sofrerem, será em conjunto que hão de conquistar e superar e encontrar a sombra que os proteja e a brisa que os acaricie. Vede quão fácil se assemelha a tarefa que tendes pela frente. Deixar passar a luz. A que permite ver e a que incomoda. Dizei a vossos troncos que subam, as vossas folhas que se dispersem, a vossas flores que sigam as folhas e não olheis para cima, antes para baixo, orientando a luz e a sombra de modo a que sempre haja desta mas nunca seja suficiente. É inquieto, o espírito dos homens, Acácias minhas vizinhas, porquanto não tendes outra solução que deixá-lo ocupar-se das suas buscas. Pois que busquem onde não há porque, em havendo, deixarão de buscar e concentrarão iníquos esforços na preservação do que lhes não pertence e do que não poderão conservar além de sua efémera existência. E fazei isto para todo o sempre pois que a humana natureza não é permeável à mudança.


In “Livro dos Homens Podres”
jpv