Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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Conversas Vadias – O Amigo

Conversas Vadias – O Amigo

– Eh pá, se não fosse cá por coisas, diria que a minha mulher me anda a trair…
– Então porquê?
– Sei lá, pequenas coisas do quotidiano, pormenores…
– Como assim?
– Coisas que faz e não fazia, coisas que fazia e deixou de fazer, aquele ar satisfeito e irónico… sei lá, sinais…
– Olhá lá, não estás para aí a imaginar coisas?
– Naaa… e tenho quase a certeza que sei com quem é…
– Então?
– Acho que é com o meu melhor amigo.
– Eh pá, eu julgava que o teu melhor amigo era eu…
– E és!

jpv


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Crónicas de África – Onomástica


Onomástica

Maputo, 6 de novembro de 2012
À medida que o tempo vai passando, ficam mais coisas na retina do que a simpatia e a alegria moçambicanas. Uma delas é a criatividade. Ela está presente na arte com que esculpem a madeira, trabalham o arame, a chapa, pintam o pano, desenham, cantam, dançam e… põem nomes uns aos outros!


A onomástica moçambicana está cheia de surpresas e pormenores deliciosos. Não conheço todas as pessoas cujos nomes aqui revelo hoje, mas só revelo nomes que sei que existem seja porque conheço as pessoas, seja porque conheço quem as conheça. Ou seja, se não comi, vi comer!

Um dia destes num restaurante uns amigos estavam a gostar da simpatia do serviço e perguntaram o nome ao empregado. O breve diálogo que se segue foi mesmo ao nosso lado e perfeitamente audível:
– Como se chama?
Caranguejo.
– Não, não queremos o caranguejo. Queremos saber o seu nome.
– O meu nome é Caranguejo!

De seu nome completo, Maria da Segunda Distração, parece não ter vindo ao mundo de forma muito planeada. Coisas que acontecem!

O dia estava cinzento e àquela hora em que rebentaram as águas à grávida não se via um palmo à frente do nariz. Ficou Escuridão.
– Estou grávida!
– Não estás nada!
– Estou grávida!
– Já te disse que não estás nada grávida!
A senhora estava mesmo grávida. Nasceu uma menina e chamou-se-lhe Razão. Ela tinha razão. Ah tinha, tinha…

Um dia destes fui ter com o vizinho que é agora o responsável pelos assuntos da Comissão de Moradores:
– Bom dia. Chamo-me João Paulo e moro ali no 1.º Esq.
– Bom dia, senhor Paulo. Eu sou Pacífico.
– Eu também.
Pacífico é o meu nome…
– Ah… interessante nome. Prazer em conhecê-lo senhor Pacífico.

Ela esperou que ele nascesse. Eram seis horas quando ele nasceu e Seis Hora ficou. Para quê inventar mais. O nome diz tudo!

Fui comprar uma T-shirt e umas calças africanas, todas brancas com uns desenhos pretos, assim umas girafas e uns potes e coiso e tal:

– Boa tarde, como te chamas?
Piriquito.
– Boa! Eu sou Videira para tu poisares.
Gargalhada geral e o negócio fez-se. Como a imagem comprova!

Há muitos homens que se chamam Castigo, eu já conheci dois, e ouvi uma história de uma senhora muito alegre e bem disposta, como é normal por estas paragens, a quem puseram o nome de Tristeza… é que não está com nada. Carrega a tristeza no nome mas vai de cara alegre.

Depois, há uma série de pessoas que carregam consigo o pragmatismo do quotidiano. Uma coisa que tenho notado é que alguns nomes refletem objetos e realidades muito práticas do dia a dia. Assim, se algum dos amigos e leitores vier a Moçambique e alguém disser que se chama Alface, Colher ou Cadeado, não se ponha logo a rir. Olhe que é mesmo o nome da pessoa. E porque não?

Às vezes fico com a sensação de que a sonoridade das palavras se perde com a travessia do oceano. Diz-se láááááá de uma maneira e ouve-se cááááá de outra, o que não é de estranhar, dada a distância. A dos quilómetros e a outra, mais importante, a que viaja na cabeça das pessoas. Quando fomos à Macaneta, parei numa loja para comprar umas bebidas e vi uns bolos num alguidar:
– O que é isto?
– Fiôsse.
A palavra não me disse nada, mas à primeira trincadela percebi que eram filhoses, ainda que com outro aspeto. O ventou soprou a palavra e ela desgastou-se no caminho. Gosto bem de fiôsse.

E há um amigo português que trabalha aqui em Maputo que diz que estão a trabalhar na empresa dele, entre outras pessoas, o Boaventura Prego Parafuso e a Última Delícia do Casal Carvalho.
Os meus sogros chamam-se Carvalho, pensei que a minha mulher e a minha cunhada eram as últimas delícias do casal Carvalho, mas afinal parece que não! Mai nada!

jpv


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Citação d’Aqui


Vim de qualquer parte
de uma Nação que ainda não existe.
Vim e estou aqui!


José Craveirinha


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Crónicas de África – Apontamento Matinal

Apontamento Matinal

Maputo, 4 de novembro de 2012

Não se trata de uma crónica. Tão só um apontamento. Estou sempre a referir a alegria moçambicana e dos moçambicanos, estou sempre a dizer que são afáveis e isto é algo que se sente e intui mas não muito palpável. Pois hoje tenho um exemplo bem interessante desse espírito. Dois.

Eram oito e meia da manhã e eu atravessava a avenida 24 de julho com a Paula, de carro. Parei num semáforo e ao meu lado parou um carro ligeiro com dois homens lá dentro. O condutor, um pouco mais velho que o outro, estendeu-me o polegar em sinal de ok. Eu abri a janela e comecei o seguinte diálogo:
– Bom dia!
– Bom dia! Como estão vocês?
– Estamos bem, obrigado. E vocês?
– Tudo em cima, tudo bom e já agora permita-me desejar-lhes um bom fim de semana com muitas felicidades.
– Muito obrigado, igualmente.
– E já sabes, poucas bebedeiras… só um copo de vinho ao almoço…
E largou-se a rir enquanto me dizia adeus… E em vez da indiferença matinal, houve um estranho que foi muitíssimo simpático e afável porque… só porque sim…

Já antes de sair de casa, por volta das oito, tinha tido um contacto estranho com a felicidade moçambicana. Quando a empregada, que se chama A, chegou, eu estava de volta da máquina de lavar roupa a tentar colocá-la no sítio. Ela chegou, olhou e começou-se a rir.
– Estás a rir-te de quê?
– De nada.
– De nada? Ninguém se ri de nada. Toda a gente tem uma razão.
– Ora, estou feliiiz!

Eu a Paula olhámos um para o outro e começámos a rir também até que eu lhe disse, Se não estivesses feliz, devias ser a única moçambicana nesse estado. Ela riu-se ainda mais.

Este estado de alegria, felicidade e conformação constante não nasce de nada externo ao comportamento dos moçambicanos porque lhes é intrínseco. É uma marca cultural, um traço do seu código genético coletivo… Sejam quais forem as dificuldades e as agruras, eles sabem encontrar a luz, sabem ver o caminho da boa disposição e percorrem-no com alegria!
jpv


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Crónicas de África – O Boss Africano Reencontra o D

O Boss Africano Reencontra o D

Maputo, 3 de novembro de 2012

Alguns dias depois do primeiro encontro, o então batizado de Boss Africano reencontrou o Grande D. E o negócio fez-se. O namoro via sms continuou com propostas e contra-propostas, avanços, recuos e cedências. A determinada altura marcou-se novo encontro, apuraram-se os valores e a qualidade da mercadoria. O D recebeu o Boss Africano e sua dama e levou-os a conhecer os carpinteiros artesãos que produzem as peças, camas, cadeiras, cómodas, cristaleiras, oferta para todos os gostos. Atravessámos o mercado de Malanga, enveredámos por ruas estreitas de terra batida, casas de bloco sobre bloco, construções em chapa de zinco, crianças brincando no emaranhado de ruas estreitinhas, uma casa bem acabada no meio do caos. Até tinha um breve relvado, mais ruas, até chegarmos a um largo de dimensões generosas no meio do casario. E aí estavam madeiras por todo o lado, ferramentas e homens trabalhando a matéria prima. 

Conhecemos um dos carpinteiros, amigo do D, que se comprometeu com uma data para entrega. Acertou-se um valor de sinal e em meio disto tudo, o D e o Boss Africano foram conversando. Da arte de trabalhar a madeira, do preço das coisas, de como o boss veio a ser africano e, a certa altura, o D disse:
-Boss, devíamos ser amigos…
Fui prudente. Muito prudente, mas percebi a sinceridade da proposta. E estava a pensar nela quando ele acrescentou:
-Quem sabe se vieste ao mundo para me salvar…
Depois pediu desculpa por não tirar os óculos escuros, mas a noite tinha sido severa nos vapores etílicos e na farra e ele estava com vergonha de mostrar a vista encarnada.

Mais tarde veio entregar a mercadoria. Atrasou-se. Nem seria moçambicano… mas vinha tudo certinho. Enquanto os outros montavam a cama, ele viu uma bíblia no quarto e perguntou, Boss, posso rezar em tua casa? Podes. E começou a rezar o que sabia e como sabia enquanto os colegas trabalhavam.

No fim, repetiram-se palavras de entusiasmo, acertaram-se contas e o D foi à sua vida. Cruzar-se-á com a minha em breve. Tenho a certeza. Por uma razão ou por outra. 
jpv


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Crónicas de África – O Boss Africano

O Boss Africano

Maputo, 2 de novembro de 2012

Eu gosto desta terra e gosto destas gentes. Mesmo levando em consideração que ainda vivo dias abençoados pela aura da novidade e da descoberta, mesmo sabendo que dias virão em que as coisas correrão menos bem, a essência destas pessoas, as linhas com que se urde o quotidiano desta terra, agradam-me imenso. É por isso que a história que hoje vos trago se reporta a acontecimentos que comportaram riscos, mas que, só os vivendo, saberiam que não havia risco nenhum. Só pessoas. Só negócio. É a história do Boss Africano.


Como sempre, tudo começa com uma necessidade. Neste caso, uma necessidade de relativa importância. Ainda assim, como a estética e o conforto são alimentos da alma e do corpo como se de pão e água se tratasse, lá tentámos satisfazer a necessidade. Era preciso comprar uma cabeceira de uma cama. Sim, só a cabeceira. Metemo-nos no carro e fomos pela avenida 24 de julho abaixo e lá ao fundo, mesmo quase a terminar a avenida, tem-se à direita o mercado Malanga e à esquerda uma série de vendedores de mobílias em madeira maciça de diversas qualidades. A Paula ficou no carro e, assim que saí, abordaram-me dois tipos altos e espadaúdos:
-Como é que é boss?
-‘Tá-se bem. Dá cá mais cinco.
E estendi-lhe a mão na posição “braço de ferro” para um cumprimento bem à macho. Ele, primeiro estranhou, mas de imediato mandou às malvas a cara séria, abriu um sorriso, apertou-me a mão e disse, Este boss é nice! O que é que precisas boss?
Resolvi aproveitar a simpatia, a boa onda, e abrir o jogo. Assim, em vez de fingir que queria armários para só depois avançar para as camas, ataquei logo:
-Como te chamas?
-D.
-Ok, D, preciso de uma cabeceira de cama para oferecer à minha dama.
-O boss é romântico.
-Sempre.
-Ó boss, e qual é a cama que te agrada mais?
-Não quero uma cama, quero só a cabeceira.
-Eh boss, então como é isso? Vais estragar uma cama para aproveitar só a cabeceira?
-Não. Vais-me fazer só a cabeceira.
E vai daí começou a mostrar-me cabeceiras e mais cabeceiras e às tantas perguntei-lhe o preço e ele disse uma exorbitância de preço que dava para comprar dez cabeceiras de cama e foi então que decidi testá-lo:
-Olha lá, então mas tu achas que eu não sei quanto custa a madeira e quantas horas de trabalho aí tens? Para negociarmos, não podes falar nem em metade, senão vou-me já embora, olha, dou-te…
E disse-lhe um quinto do valor que ele tinha pedido.
-Eh boss, é duro negociar contigo!
E eu voltei à carga:
-Olha, estás a ver o meu braço? É branco por fora mas por dentro é tão preto como o teu… Tu não vês que eu sou africano. Quando olhas para mim, em vez de veres uma carteira com notas, tens de ver um irmão africano..
-Eh Zacarias, anda cá que este boss é africano… e largou-se a rir. Depois deu-me outro aperto de mão e disse que me ia mostrar mais coisas e começou a entrar por casas e casinhas e casotas e casebres e já ia ele e eu e mais uns oito ou nove atrás de mim. Vi dúzias de camas, armários, cadeiras trabalhadas lindíssimas sempre tu cá tu lá com o meu amigo D e sem nunca ver a luz do dia de casa em casa. Quando reparei, estava de tal forma embrenhado no bairro que não sabia bem onde estava ainda que soubesse o caminho de volta. Parei, olhei para o cortejo que nos seguia e disse-lhe:
-Ouve lá, o que é que querem estes tipos todos? Não me digas que cada um deles me vai pagar uma 2M?
Desta vez a gargalhada foi geral. Lá vim com ele até à rua.
-Então boss, vais levar?
-Vou buscar a dama. Sabes, a minha dama é como a tua.
-Como assim?
-É ela que manda lá em casa!
Ele não se riu ao princípio mas os outros desataram a rir na cara dele e começaram todos a falar em changana.
-Eh boss, tu és duro. Traz lá a tua dama.
-E posso deixar ali o carro? Não mo desmontam todo?
-Eh boss aqui é tudo gente boa. O carro está controlado.
-Fixe!
E lá fomos os três com a romaria toda atrás. Demos uma voltinha mais pequena, mas suficiente para a Paula perceber por onde eu tinha andado. Foram sempre muito simpáticos e afáveis e tivemos sempre uma conversa muito aberta, muito nivelada e, sobretudo, muito bem disposta. Às tantas o D disse:
-Hei boss vou-te reiterar…
-Alto e para o baile, assim é que é falar. Olha que eu sou professor e tenho alunos que não demonstram essa propriedade vocabular…
-Sabes como é que é, boss, quem está no negócio tem de ter nível.
No fim, acabámos por não fazer negócio, mas isso não azedou a conversa nem um bocadinho. Terminámos por ali as conversações mas resolvemos trocar números de telefone e quando lhe dei o meu número, o D, enquanto o gravava disse com um sorriso a iluminar-lhe a cara, Vou escrever aqui boss africano!

À hora a que vos escrevo, ainda não fechámos negócio, mas também ainda não terminou o namoro. Temos andado a medir forças via sms e o preço está neste momento num plano em que, penso, as duas partes podem aceitar… a ver vamos se se encontra o ponto de equilíbrio entre o D e o boss africano. A visita pelos armazéns e oficinas e casas foi interessante. Para já, porque, claramente notei que os “boss” não costumam ir tão longe, depois, porque admirei o facto de isso lhes ter agradado. Eu não fui um intruso, fui uma pessoa que se interessou pelas coisas deles. E, claro, fui sempre um potencial comprador. Riscos? Talvez. Admito que sim. Mas nunca os senti. Pelo contrário, estive sempre muito tranquilo e à vontade. Acho mesmo que esse é o segredo que abre as portas… da alegria e da simpatia intrinsecamente moçambicana.

jpv


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Pescaria

Pescaria

Empurravas esses paus
Unidos de vontade,
E tinhas por bons,
Os ventos maus
Da tua liberdade.
Eras franzino.
Um fraco rapazinho
Com um homem no peito,
Enfrentado o Índico sozinho
Numa barca sem jeito.
Ganha onda,
Perde ondas,
Ganha metro,
Perde metros.
Acometes o mar pujante,
Saltas-lhe às cavalitas,
E num instante
O teu olhar se ergue
E és pescador!
Há em ti uma força maior
E um desejo sem medida.
O mar luta só pelo mar,
Tu,
Lutas pela vida.
E quando sais
E trazes o fruto fresco
Da tua labuta,
Desenhas um sorriso
E já não é diminuta
A embarcação.
É um palco de sonhos
Onde se mostra teu coração.
E vê-se nos teus olhos
O orgulho do homem.
E, olhando com jeitinho,
Ainda se vislumbra,
O medo do menino!

jpv