Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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Crónicas de Maledicência – Birra

Crónicas de Maledicência – Birra

Esta crónica pode parecer sobre o Acordo Ortográfico. Pura ilusão. Não é sobre isso e a razão é simples. Sobre o dito acordo já se escreveu demasiado e, em geral, mal! Aquilo que me traz aqui é certa atitude de novorriquismo bacôco de traço pseudo-intelectual a que, normalmente e com rigor popular, chamamos de BIRRA.

O Acordo Ortográfico é mau. É mau para Portugal, é mau para a Cultura Portuguesa e é mau para a Língua Portuguesa. Descarateriza-nos e desbarata, por via da estupidez que é ignorar a etimologia e a História da Língua, um capital de séculos de evolução linguística sólida. A minha opinião fundamenta-se no seguinte. Normalmente, os falantes alteram a Língua pelo uso e depois os cientistas fixam essas alterações nas regras. Chama-se evolução natural. O atual acordo estabelece o contrário. Há um conjunto de alterações à regra que não nasceram no uso feito pelos falantes, mas foi ditado por razões externas a ele. Ou seja, vai correr mal! E pronto. Sobre isto não digo mais nada.

Ora, mesmo sabendo desta falha estrutural, mesmo sabendo que o atual acordo tem o negócio livreiro por trás, mesmo sabendo que há nações lusófonas que não estão a aderir a ele, a verdade é que o nosso país aderiu e produziu dois textos legais. Uma resolução da Assembleia da República e uma resolução do Conselho de Ministros. Gostemos ou não, concordemos ou não, votámos nesta malta e esta malta decidiu assim. Resta-nos, pois, cumprir a lei e escrever segundo o acordo. O que não nos impede de protestar. Acho mesmo que devemos, mas na minha opinião protestar não passa por não cumprir a lei.

Mas há quem pense que sim. Nasceu em Portugal uma nova classe social. São os novorricos bacôcos de traço pseudo-intelectual. Conhecem-se bem. Escrevem em revistas e jornais, de acordo com a norma antiga e no final dos textos colocam uma notazinha a dizer uma coisa do tipo, Fulano de Tal escreve de acordo com a antiga norma da Língua Portuguesa. São uns tipos que acham a democracia um sistema porreiro porque permite desrespeitar a lei e ainda fazer alarde disso. Mais ou menos como se um cidadão passasse no encarnado de um semáforo por não concordar que ele estivesse naquele lugar e depois parasse o carro para ir dizer ao polícia da esquina, ‘Tá a ver shôr guarda, eu passei no vermelho porque não concordo que aquele sinal esteja ali. Há ali um bocadinho de arrogância intelectual. Uma coisa do género, Mas afinal quem são os políticos e o que percebem eles da Língua Portuguesa? O escritor sou eu! Como se não tivesse havido comissões às resmas e estudos às carradas sobre o que veio a produzir-se. Se eu acho que as pessoas não têm direito a reclamar? Claro que têm. Mas também têm o dever de cumprir a lei.

Já agora, senhores decisores, esta coisa que nos estão a obrigar a fazer, prejudica a estruturação ortográfica, sintática e semântica das nossas crianças no âmbito da apropriação da Língua Materna e, por meta-consequência, de todos os outros saberes. Está na hora de pôr um ponto final a ambos. Ao Acordo Ortográfico e à praga de novorriquenhos e sua pífia revolução de sofá.

Tenho dito.
jpv


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Pequenos Milagres – A Mão de Amália

A Mão de Amália

O rapaz vai chamar-se Quim. E mais nomes não serão necessários para o nomear nesta história. Para que chame por ele quem tiver de o chamar, para que se lembre dele quem tiver de lembrar-se.

A rapariga vai chamar-se Amália. E de apelidos não precisará, também. Apresentar-se-á com esse nome e é com ele que se cruzará com Quim.

A cidade chamar-se-á Lisboa. Tem o mesmo nome da cidade que conhecemos e é capital do nosso país, mas já não existe esta cidade de que vos falarei. Será ela, o palco da vida onde o milagre vai dar-se.

É uma Lisboa de casario branco, escadinhado colina acima, ruas estreitas e sombrias e chão coberto de seixos do rio. É uma Lisboa de portas escancaradas e janelas abertas de par em par donde saem os ralhetes, as discussões e o trinado de uma guitarra antes de uma voz chorar um fado. É uma Lisboa de varinas e pregões ecoando na manhã. E tem ardinas vendendo esperança e notícias e é a Lisboa do tempo em que amarelo ainda não tinha sido pintado de encarnado e percorria as ruas com a sineta a avisar e a garotada pendurada na porta traseira arreliando o motorista da Carris. É a Lisboa dos banhos públicos, das fontes onde se vai à água de bilha na cabeça e dos lavadouros onde as mulheres acorrem a lavar a roupa e a perfumar o ar de sabão azul e lixívia. Corre água avonde e os miúdos chapinham com os pés descalços nas poças e nas regateiras por onde corre o líquido ensaboado. Há roupas de corpo e enormes lençóis brancos nas cordas das ruas e nas janelas. No largo do lavadouro, a garotada improvisa um jogo de bola, o mais importante jogo da época. É um Benfica-Sportengue. Duas pedras marcam uma baliza e outras duas delimitam uma segunda baliza, um pouco mais pequena porque o guarda-redes é mais pequeno e A gente joga com menos um. Quim quer ser o Ósébio. Mas tu não és preto! Ora, isso não é razão, aqui ninguém é preto. Mas se queres ser o Ósébio, tens de ficar mais preto. Quim baixa-se, raspa as mãos no empedrado da calçada e na terra, olha para elas, estão bem sujas, leva-as à cara, esfrega bem, esforça-se por ser o mais preto possível, já sonha com um golo à Ósébio, e pergunta, Está bom? Eh, ainda não estás bem preto, mas já serve, jogas pelo Benfas. E já todos sabem quem são as equipas. Só os sportinguistas comprovados podem jogar pelo Sportengue. Só os benfiquistas atestados podem jogar pelo Benfas e é por isso que cada um anuncia o seu nome de jogo. Eu sou o Hilário, Eu sou o Costa Pereira, aquilo é que é um quiper, tem cá umas mãozinhas, como estas, olha, olha! Eu sou o Carvalho, Eu sou o Zé Ógusto, Eu sou o Fernando Mendes, Eu sou o Torres! Tu? O Torres sou eu! Mas eu queria ser o Torres e disse primeiro. ‘Tá bem, mas eu sou mais alto. E continuam por aí adiante, brincando de viver, fazendo da brincadeira vida séria. As mulheres estão por ali, com um olho no burro e outro no cigano, ora lavam, ora vigiam a bola e, às tantas, gritam frases de incentivo, Vai Quinzinho, remata à baliza, faz um golo para a mamã ver. Ele aqui não é Quinzinho, é o Ósébio! E as mulheres desabam numa gargalhada e retomam o lavar de roupas e começam a cantar e de entre elas uma se destaca pelo timbre da voz, pelo milagre da harmonia, pela forma como as faz sorrir ou chorar consoante o que canta. Chama-se Amália. As outras começam a cantoria, mas, a pouco e pouco, vão-se calando e deixam o Senhor cantar pela boca de Amália. Ela reclama, Vá lá, acompanhem-me, vocês sabem esta. Elas sabem, mas preferem ouvi-la a ela. Só assim os seus corações se enchem, as suas almas se guindam aos céus. Ó Amália, canta aquela que eu gosto. E ela faz-lhe a vontade e toda a cidade parece calar-se, até mesmo os pardais de telhado, para que a sua voz atravesse as ruas e suba aos céus para donde veio. O Sportengue chegou ao intervalo a ganhar 5-4, é um clássico muda aos 5, acaba aos 10. Muda-se de campo, reajustam-se as pedras a marcar as balizas, o Benfas dá réplica na segunda parte. Há 9-9, a emoção está ao rubro, Torres faz uma finta exímia recorrendo a uma tabelinha com a parede caiada, uma mulher ralha com ele, Ah malvado que sujas a parede toda! Mas ele não quer saber, coloca o pé direito na bola de trapos e faz um passe de morte para o Ósébio que recebe no peito, cola na calçada, encara com Hilário, pergunta-lhe, Para que lado queres? E atira para o fundo das redes. É o júbilo, a loucura total. Findo o jogo, à medida que se aproxima do lavadouro, Ósébio vai voltando a ser Quim e Quim está entusiasmado e cansado, sua em bica. Quando aí chega, deixa-se invadir pelas vozes das mulheres conversando, pelo som das roupas mergulhando na água e fazendo chape na pedra e pelo perfume a limpeza e felicidade. Está uma garrafa na beira da pedra do lavadouro, distraído com a emoção do jogo e do ambiente, o miúdo de calções e pés descalços pega na garrafa e leva-a à boca. E é nesse momento que o mundo para. Que a sua vida muda para sempre porque não chegou a mudar. Uma voz cristalina corta o ar da manhã, suspende a vida toda porque traz um tom inequívoco de alarme: Quiiiim! O miúdo suspende por momentos o gesto numa breve hesitação, o suficiente para que Amália lhe segure a mão e lhe roube dela a garrafa, Cuidado menino, se bebes isso, matas o Eusébio!

Cansado, suado da refrega do jogo, ávido de matar a sede que o atormentava, Quim esteve quase a sorver dois generosos golos de líxivia. o bastante para o queimar todo por dentro, talvez mesmo para lhe roubar a vida ou, caso a sorte o protegesse desse destino, para o tornar dependente de medicamentos e cuidados durante todo o tempo que lhe restasse viver. A atenção e a mão célere de Amália salvaram-no desse caminho. Fez outro. Nunca saberá se foi melhor ou pior. Saberá, só, que naquele dia Lisboa continuou feliz. Um pequeno milagre do quotidiano mudou para sempre a sua vida e a vida daqueles que com ele se vieram a cruzar.

Amália cantou e encantou. Fez o milagre da comoção. Fez o milagre de levar as pessoas a sentirem-se tocadas pela voz do Senhor, envoltas em emoção e reconhecimento. Amália viajou, encheu plateias, escreveu e, sobretudo, cantou. Cantou e elevou a condição dos homens e das mulheres que a ouviram a seres abençoados. Amália não soube, nunca, contudo, que o verdadeiro milagre que operou na sua vida, acontecera naquela manhã junto ao lavadouro. No dia em que salvou a vida de uma criança que coisa mais preciosa no mundo não há.

jpv