Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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O Clã do Comboio – Fuso Horário

Fuso Horário

Semana de Aniversários

Segunda-feira. Frio de rachar. Olhos brilhando antecipação. O rapaz do Fato Cinzento trouxe uma torta de claras de ovos, o Escritor trouxe um espumante, a Senhora da Revista de Culinária trouxe copos, pratos e guardanapos. Quando o interregional das 7:18 parou em Santarém, a trupe escalabitana entrou, há duas velas em forma de algarismo a arder, um 5 e um 0, há outras duas, daquelas faiscantes, a emanar brilho e luz e faisquinhas de lume, todo o Clã, sem prudências em relação ao ruído, entoa alto e bom som o “Parabéns a Você”. O nosso amigo merece. O VM fez anos! Boa disposição, humor, vozes destilando alegria e companheirismo. O Clã é irrepetível. Parabéns VM!

Sexta-feira. Frio de rachar. Olhos brilhando antecipação. A Senhora das Caralhotas trouxe um bolo de chocolate propositadamente confecionado na Bimby, a Rapariga do Riso Fácil trouxe abafadinho. Quando o interregional das 7:18 parou em Santarém, a trupe escalabitana entrou, a malta entoa, pela segunda vez na mesma semana, o “Parabéns a Você” alto e bom som. Risos, abraços e felicitações. O nosso amigo merece. O JJ fez anos. Parabéns JJ.

Estes momentos vão acentuando a camaradagem e, ou me engano muito, ou aquilo que começou por ser um conhecimento espontâneo e vulnerável, começa a fundear entre alguns elementos do Clã uma amizade bonita que se vai solidificando a cada viagem, a cada evento, a cada partilha.

Chocolates

O VM tem esta caraterística: sempre que nos deixa para ir em trabalho ao estrangeiro, em vez de nos trazer qualquer outro tipo de recordação, tem o bom senso de perceber que a malta gosta é dos morfes e, vai daí, presenteia-nos com chocolates! Desta vez trouxe uma caixa inteirinha, e grande, de bom-bons de Liège. É claro que voaram em minutos e eu só escrevi este parágrafo para registar dois pormenores. A simpatia do VM. E, Rapariga com Brinco de Pérola, nós reparámos que tu comeste metade da caixa! Gulosa!

Tangerinas

Ao que parece, a Senhora da Revista de Culinária tem tangerineiras, ou dão-lhe tangerinas, ou rouba tangerinas no caminho para a estação. A nós, não nos interessa nada como é que ela arranja as tangerinas. O que interessa é a simpatia dela que todos os dias se lembra do seu Clã de Amigos de viagem e traz uma sacada de tangerinas. E depois é ver o Clã no ritual de as distribuir, de as descascar, de as saborear, de cuspir caroços, de juntar as cascas num papelinho dobrado em forma de caixa como fazíamos na Escola Primária, de as ir colocar no lixo e de fazer fila indiana para a casa-de-banho a lavar as mãos. Como se aquele perfume saísse assim às primeiras! São manhãs frutadas, as do Clã do Comboio!

Três no WC

Um dia destes, na sequência do ritual das tangerinas, o Rapaz do Fato Cinzento, o Escritor e a Senhora das Caralhotas, foram lavar as mãos. Entraram na casa-de-banho e deixaram a porta aberta. Um malandreco qualquer carregou no botão e fechou-a. Claro que eles não se inibiram e, enquanto lavavam as mãos, começaram a dizer frases do tipo, Passa aí a coisa, Põe a mão naquilo, Tira daí a mão que é a minha vez, Chega-te para lá que agora sou eu. É evidente que se referiam ao sabonete líquido e ao lavatório! Mas, ouvido cá fora, o efeito era um tudo-nada mais comprometedor. Saíram com um ar muito sério esperando não ser expulsos do comboio, em movimento! o Clã desabou numa gargalhada!

Fuso Horário

A CP mudou o fuso horário do Clã. Do Clã e dos outros passageiros todos! Durante 99 histórias, os leitores de Mails para a minha Irmã leram inúmeras vezes episódios passados a bordo do já mítico interregional das 7:18. Pois, já não existe! Este comboio costumava chegar a Santa Apolónia por volta das 8:35. Depois começou a esperar pelo Alfa, depois começou a esperar pelo Intercidades, depois começou a parar no Setil, depois deixou de parar no Setil e começou a parar no Reguengo, depois começou a ficar parado no Oriente e, quando demos por ela, o interregional das 7:18 estava a chegar a santa Apolónia entre as 8:45 e as 8:55. Como é natural, e porque as pessoas precisam de chegar a horas ao trabalho, houve reclamações. E o que fez a empresa? Resolveu os problemas técnicos e pôs o comboio a chegar à hora a que chegou durante anos? Não! Mudou-lhe o horário! Agora sai mais cedo. Já não é o interregional das 7:18. É o interregional das 7:05. Claro que os incómodos causados aos utentes e às respetivas famílias não são para aqui chamados! É uma empresa portuguesa, com certeza!

Precisamente para tentar escapar à violência de ter de me levantar às 5:30 com temperaturas negativas, um dia destes experimentei o regional das 7:40. Achei muito interessante como 35 minutos num dia alteram por completo os comportamentos das pessoas. O comboio é mais demorado porque é regional, é incrivelmente mais concorrido porque para em mais estações e porque é a uma hora mais cristã. A partir de Santarém, já vai muita gente em pé por não haver lugares sentados, a população parece-me substancialmente mais envelhecida e, diferença das diferenças, as pessoas vão muito mais acordadas. Conversam umas com as outras, falam alto, poucas leem e muito poucas dormem. A viagem foi agradável. Foi nela que escrevi estas linhas. Mas… mas… senti-me órfão do Clã do Comboio. Fez-me falta o humor, a amizade, as partilhas múltiplas, as conversas, as brincadeiras. O Clã do Comboio é um tesouro. Um tesouro sobre o qual se contaram, com esta, 100 histórias! E a próxima já está na calha…

jpv


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Anúncio – Senhoras, ajudem este homem!

(Clique na imagem para aumentar)


Caro anunciante, apesar de perceber a sua situação, não resisto a comentar:

a) Ó amigo, então e se foçe uma prefeçora de purtugês, não éra melhore?!

b) Tem a certesa que preciza? Então, ainda agora se viu livre de uma e já quer outra? 

c) Costuma pedir sempre impossíveis?

d) É só pra dizer que a mulher que há em mim não está entreçada!

Obrigadus


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A DÚVIDA – CAPÍTULO III

Caros leitores,

Dulce Morais acabou de publicar o Capítulo III de “A Dúvida” no Crazy 40 Blog.

Cabe-nos agora continuar a história, o que faremos em breve.


Boas leituras!


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Como é que diz que disse?


“Ainda te dava um molho de murros na tromba!”

SC


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A DÚVIDA – CAPÍTULO II

A DÚVIDA
CAPÍTULO II

O meu carro é a casa dos meus pensamentos, uma espécie de incubadora onde eles nascem antes mesmo de eu perceber as consequências do que pensei. É ótimo rolar na estrada e pensar sem ninguém por perto, sem uma voz a incomodar-me, sem uma voz a interromper-me. O meu carro é uma ilha. A minha ilha de pensar.

A minha mulher anda diferente. Não sei o que é que se passa com aquela gaja, mas não é coisa boa. Anda triste. Ignoro o que possa ser, mas uma coisa eu sei, não é a mesma mulher de há oito anos. Falta-lhe alegria, o brilho no olhar. É normal que se instale alguma rotina num casamento e que daí advenha certa tristeza, mas isto é diferente. Parece-me preocupada, alheada deste mundo. Pressinto que tem algo para dizer-me, mas não sei se quero perguntar-lhe. Na volta quer-se ir embora e isso não quero eu que aconteça… Acho!

O problema é que não sei mais o que fazer. Já trabalho tanto! Ganho bem. Providencio-lhe tudo o que precisa… Acho que tínhamos todas as condições para ser felizes, mas há sempre aquela insatisfação, aquele querer mais… que me obriga a trabalhar mais, o que a leva a queixar-se de que não estou presente.

Mas não sei se será disso que se trata. A verdade é que,  sendo honesto comigo mesmo, aquilo de que não tenho gostado nada é da proximidade do meu cunhado. O tipo não descola. Sempre a compreendê-la, sempre a dar-lhe razão em tudo, a pôr-se do lado dela. Será possível que ela esteja interessada nele? Huumm… Acho que não, quer dizer, nem sei, já não sei o que pensar. A verdade é que ela prefere conversar com o cunhado do que a própria irmã. Ainda bem que tive aquela conversa com a minha cunhada. Fiquei a saber coisas interessantes sobre a minha mulher. Deu-me um diário dela, enfim, é mais um livro de pensamentos, quando era adolescente. É um miminho. Tenho de o ler com atenção. Bem, quase a chegar ao trabalho, a minha secretaria à espera. Bem simpática! Bem gira! Gira é pouco. Ela é boa! Também, o que é que eu ia fazer? Não a contratava por ser bonita? Isso era discriminação ao contrário. A minha mulher é que não gostou da ideia… Enfim, deixa-me concentrar no trabalho…

jpv


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ErotiKa – Eduardo

AVISO
Esta publicação contém um texto de teor erótico. Se se sente ofendido com textos, imagens ou quaisquer conteúdos sobre erotismo e sexualidade por favor não prossiga.
Do mesmo modo, o conteúdo desta publicação só pode ser acedido por pessoas maiores de 18 anos.
Assim, caso prossiga com a leitura, o utilizador fá-lo por vontade própria e assume ter idade para aceder aos conteúdos.
Obrigado
jpv
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Eduardo

Há quem defenda, e eu aceito, pelo menos em parte, a teoria de que o erotismo e o sexo estão, antes de mais, na cabeça.

A história que vai contar-se não pretende provar a teoria, será tão-só um reflexo dela. Quanto ao resto, caberá a cada um de vós fazer as projeções, regressivas ou progressivas, consoante os casos.

O casal é jovem. Sendo jovem, não é recém-casado. São pessoas nos seus trinta e poucos anos que levam sete de casamento. Eu não acredito na teoria da crise dos sete anos pelo que, infiro, será coincidência o facto de viver este casal uma profunda crise de cansaço matrimonial. Deixaram de sair juntos, deixaram de tolerar-se as pequenas falhas, discutem exaltados com frequência desaconselhável e, não menos importante que tudo isto, não fazem amor. E quando fazem, é maquinal, como quem cumpre um ritual que outrora foi um jogo de sedução e desejo.

Quando o dia nasceu, ele jamais imaginara o que iria passar-se num período tão curto de tempo. Um simples dia. Tinha agendada uma reunião que duraria exatamente um dia de trabalho. E durou. E foi cansativa. E houve momentos que lhe correram bem e outros houve de que não gostou tanto. Trocou palavras de circunstância ao almoço, apresentou projetos, debateu, discutiu, concluiu e, quando tudo terminou, quando já só se ouviam as vozes espaçadas dos últimos a abandonar a sala, ela aproximou-se. Era uma mulher baixa, de olhar azul e brilhante a enfeitar a face redonda. Tinha o cabelo farto e encaracolado e a passada pequena, mas determinada. Estava habituado ao caráter resoluto dela, mas também à distância que, até então, tinham mantido sem saberem porquê. E, talvez por isso, as palavras dela surpreenderam-no:
– Ouve lá, tu não achas que um tipo inteligente como tu merece ir para a cama com uma mulher bem resolvida como eu?
– Não sei… não te estarás a precipitar?
– Porquê? Vais terminar o dia voltando para a tua mulherzinha?
– É uma opção. Tu não vais voltar para o teu maridinho?
– Depende de ti!

Irrompem pelo quarto do hotel com gestos sôfregos e apressados. Mais tarde nem sequer saberão como é que o sutiã dela ficou pendurado no candeeiro e as cuecas dele foram parar acima da televisão. É como uma batalha. Os corpos entregam-se e exigem-se. Ele abre-lhe a blusa e mergulha nos seios dela. Ela desaperta-lhe o cinto das calças. Ele enfia-lhe uma mão por baixo da saia, percebe que ela usa uma lingerie diminuta, dá-lhe um puxão, mas as cuecas não cedem, ela diz, És um maricas!, ele puxa de novo e fica com elas na mão, projeta-a para cima da cama e invade-lhe o sexo com a boca ávida, ela empurra-lhe a cabeça como se quisesse devorá-lo por ali, ele percorre-lhe o corpo com a língua até lhe beijar a boca ansiosa e nesse momento penetra-a com vigor, ela crava-lhe as unhas nas nádegas e arranha-o, ele grita num misto de dor e prazer. A batalha das carícias sensuais continua até tombarem exaustos para o lado:
-Gostaste?
– Estás louca? Foi a foda do século!

José Carlos entra em casa e tenta fazê-lo com a maior naturalidade possível. Ao sair do hotel, tentou desligar da mente aquele fim de tarde tórrido e estonteante para assumir de novo o papel do marido tranquilo e previsível. Entrou. Beijou a esposa, como sempre, de forma fria e rotineira, dirigiu-se à casa-de-banho, lavou-se e preparou-se para o jantar. Quando chegou à sala, as luzes estavam apagadas, havia velas espalhadas pelos móveis projetando sombras trémulas, a mesa tinha dois pratos, dois copos de champanhe e uma garrafa num balde de gelo. A sua mulher tinha um avental de empregada que mal escondia a lingerie sexy:
– Hoje quero dar ao meu maridinho tudo o que ele merece… tudinho…

Vários pensamentos lhe ocorreram, várias hipóteses de atuação, uma delas, a mais viável, seria mostrar-se surpreendido, dizer que estava cansado e recusar o que lhe parecia ser um convite. Não é que estivesse descansado, pelo contrário, tinha o corpo exausto do trabalho e do sexo ardente com a colega, mas naquele momento dois pensamentos lhe assaltaram a mente. Em primeiro lugar, sabia que sentiria a consciência pesada se negasse à sua própria mulher o que acabara de dar a uma colega de trabalho para com quem não tinha qualquer obrigação. O que quer que fizesse fora de casa, fossem quais fossem os seus pecados e as suas sacanices, eles não podiam refletir-se em casa. Era uma regra que tinha para si e há muito respeitava. Em segundo lugar, acabara de fazer com a colega umas coisas inusitadas que não se importaria de repetir com a mulher, quem sabe se ela até alinharia nos jogos. Afinal de contas, toda esta encenação do jantar romântico era tão improvável e inesperada, porque não tentar ir um pouco mais longe?

Coloca-lhe as mãos sob o avental, segura-lhe as nádegas, senta-a na mesa, derrubam os copos, mas essa loiça, hoje, era mesmo para partir!

Os dias e as semanas têm corrido bem a José Carlos. São um caos total, mas entusiasmante. Divide as forças entre o trabalho, os encontros fortuitos com a amante e o surpreendente e efusivo sexo com a sua mulher. Nem parece a mesma. Ele começa a acreditar naquela teoria marialva de que um caso extra-conjugal pode apimentar ou mesmo ressuscitar um casamento desinteressante e condenado. Está convencido de que as suas escapadelas trazem outra vida à cama conjugal e isso, por sua vez, se reflete no quotidiano. Ele anda mais meigo com a mulher e ela com ele, retomaram certas carícias e atenciosidades, há um novo carinho e uma harmonia reconquistada.

José Carlos está certo no seu raciocínio. Só ainda não viu o quadro todo, mas vai vê-lo em breve.

Chega a casa. A mulher espera-o no quarto com uma túnica branca semi-transparente e roupa interior rendada e da mesma cor. Põe-lhe as mãos no peito e beija-o demoradamente enquanto lhe desaperta as calças. Quando elas caem, também ela desce para o acariciar com os lábios humedecidos, depois volta a pôr-se de pé e beija-o de novo. Pouco depois estão em perfeito frenesim entregando-se com sensualidade um ao outro. Satisfazem os corpos e ficam deitados e enroscados por longos minutos. Ele levanta-se, nu, para ir à casa-de-banho, dá dois passos e ouve a voz dela em tom admirado:
– Que arranhões são esses no rabo, José Carlos?
Ele gelou. Agora que as coisas estavam a correr tão bem, um pormenor iria deitar tudo a perder. Sabia que não havia resposta que a satisfizesse, não havia mentira credível para aquela situação, ela iria sentir-se enganada, zangar-se, gritar, iniciar uma discussão violenta e tudo voltaria ao inferno de uns meses atrás. Virou-se lentamente para ela e foi surpreendido porque ela já não estava na cama. Estava mesmo junto a ele. Quando o apanhou virado para si, segurou-lhe o sexo com a mão esquerda e começou a massajar-lho enquanto, com a direita, lhe percorria os arranhões nas nádegas:
– Com que então o meu maridinho gosta de ser arranhado?! Sussurrou-lhe ao ouvido. Segura-lhe o pénis com mais firmeza, puxa-o para si, dá dois passos para trás na direção da cama enquanto o beija e o deixa tombar sobre si. As mãos dele procuram-lhe os seios e acariciam-lhos, cai sobre ela e beija-lhe os mamilos, ela coloca-lhe as mãos na nuca e pede, Vem! Faz-me tua! ele penetra-a com ternura e inicia um movimento ritmado e certo, beija-a no pescoço, ficam entregando-se mutuamente, a excitação cresce e quando estão perto do êxtase, ela crava-lhe as unhas no rabo, arranha-o e diz com excitação, perdendo o controlo dos gestos e das palavras na loucura do momento:
– Vem, meu amor, faz-me tua! Vem, Eduardo, vem! Possui-me, meu amor, sim… sim… sim…
Ele espeta os olhos arregalados na parede e pensa:
– Eu não me chamo Eduardo, porra!

jpv


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A DÚVIDA – CAPÍTULO I



Caros leitores,

Dulce Morais acabou de publicar o Capítulo I de “A Dúvida” no Crazy 40 Blog.

Cabe-nos agora continuar a história, o que faremos em breve.


Boas leituras!
jpv


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ESCRITA A DUAS MÃOS

ESCRITA A DUAS MÃOS
APRESENTAÇÃO

Numa parceria pouco usual, os blogues Mails Para a Minha Irmã e Crazy 40 Blog vão publicar uma história partilhada.

Dulce Morais e João Paulo Videira vão escrever “A Dúvida” e publicar alternadamente os 12 capítulos da história nos seus blogues.

A ideia é contarmos uma história com a perspetiva masculina e feminina não só das relações humanas, mas também do próprio ato criativo.

Sempre que um capítulo for publicado num dos blogues, o outro blogue apresentará um link para o mesmo. Desta forma, os leitores não perderão pitadinha da história independentemente de qual seja o blogue que sigam com mais regularidade.

Dulce Morais publicará o primeiro dos 12 capítulos e João Paulo Videira fará o encerramento daqui a algumas semanas.

Desejamos-vos boas leituras.
Divirtam-se!

Dulce Morais
João Paulo Videira


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Pequenos Milagres – O Anjo

O Anjo

Fazendo fé nos contadores de histórias, menosprezados ao longo dos milénios, mas também amados, mormente por serem sopro de muita vida, inspiração de muitas, grandes e nobres ações, e fazendo fé, também, no livro dos livros, entre nós ocidentais, de Bíblia chamado, esteve Jesus 40 dias no deserto. Aí sofreu, contam, e aí defrontou os demónios que o apoquentavam, os exteriores e os interiores, e daí saiu fortalecido.

Esta história é também sobre 40 desses dias milagreiros que mudam a perspetiva das pessoas, lhes iluminam os caminhos a seguir e as fortalecem para todas as provas.

Já parece não ser tão consensual entre a tão digna classe de conta as histórias e, sobretudo, entre seus ilustres ouvidores, a data em que terá nascido o menino, Jesus chamado, esse menino que haveria de andar perdido pelo calor das desérticas areias durante os 40 dias já aqui mencionados. Por isso mesmo divergem as teorias sobre a localização cronológica do Natal. Como se fosse necessário posicionar o que pela sua própria natureza posicionado está. É Natal porque nasceu o menino e, celebre-se quando se celebrar, sempre que o nascimento de Jesus se celebre, Natal há de ser.

O povo, em seu salomónico juízo, remata a querela com um “Natal é quando um homem quiser” e o facto é que não é por ser popular  empírica que a teoria está menos certa. Isto para dizer que, quando Lucy entrou em coma, era Natal. Fosse porque os supermercados assim o anunciassem, fosse porque os Cristãos estavam em véspera de festejar a data, fosse porque para Lucy chegara o tempo de celebrar as coisas boas, a alegria, os sorrisos e a esperança, a árvore enfeitada e os presentes debaixo dela. Ora, para enfeitar-se a árvore, necessário será, antes de tudo o resto, que haja árvore. E esta manhã, ainda com a luz a despontar fraca ao longe, Lucy saiu de casa com o pai para ir buscá-la, a árvore a enfeitar. Gorros na cabeça, luvas nas mãos, casacos quentes por cima de camadas sucessivas de roupa e aí vão eles armados de sorrisos, esperança, um machado e uma motosserra. A carrinha desliza entusiasmada e célere enquanto no auto-rádio nasce uma voz melodiosa entoando “Rudolph Red Nose”. Pai e filha perseguem a canção enquanto o espectro amarelecido dos faróis se projeta no chão que desaparece das suas vistas sob a carrinha.

E, seja Natal ou não, a vida continua a realizar-se e a acontecer e o cãozito vadio, enregelado e famélico que agora se atravessa à frente de Lucy e do pai poderia ter continuado pela berma da estrada, poderia ter mergulhado na floresta circundante, mas não o fez. Sentiu o apelo do outro lado da sua vida e atravessou a estrada indiferente ao movimento dos veículos. O pai, num impulso de vida e proteção, desviou-se, tentou retornar à sua faixa de rodagem, a carrinha não obedeceu e, no contra-movimento, capotou e rodou sobre si mesma até estacar na faixa contrária com as quatro rodas olhando o céu.

Gabriel Saint está de folga e dorme profundamente. Na empresa onde trabalha e na comunidade de camionistas de longo curso, Gabriel tem uma alcunha como todos os outros. A sua é “The Angel”. A combinação do nome próprio com o apelido era, como diziam os colegas, demasiada santidade num tipo só. Claro que a alcunha lhe custou algumas brincadeiras de mau gosto em torno da sua orientação sexual, que é como quem diz, chamavam-lhe amaricado. Gabriel Saint superou tudo isso e um dia, como todos os outros camionistas, mandou fazer uma chapa de matrícula com a sua alcunha, “The Angel”, e colou-a no interior do parabrisas. Então, as brincadeiras mudaram e começou a ouvir-se, quando ele se aproximava com o enorme veículo, Deixem passar o anjo…

O telefone tocou. Gabriel Saint não queria acreditar que alguém se atrevera a ligar-lhe a meio da noite. Viu que era da central:
– Sim?
– Olha lá pá, hoje vais mesmo ser um anjo e vais desenrascar a malta…
– Foda-se, pá, ligas-me à uma da manhã para me cravares? O que é que foi?
– Estávamos a carregar “A Besta” e partiu-se um eixo. Preciso de transferir a mercadoria que já lá estava para o teu carro e acabar de carregar e preciso que me faças este serviço.
– E porquê eu?
– Eras o próximo na lista, pá!

O anjo desliza na estrada perigosamente gelada e vê ao longe os faróis de um veículo de pequeno porte. Seria só mais um. E volta à nossa história o cãozito vadio, enregelado e famélico. Gabriel Saint vê-o atravessar-se na estrada e fala alto na cabina do camião como se o pai de Lucy o pudesse ouvir, Não te desvies, pá, não com este gelo, passa-lhe por cima, pá! Ainda não tinha acabado de dizer isto e assiste ao bailado da carrinha no gelo até virar-se e ficar imóvel uns metros à sua frente. Conduzindo um veículo de grandes dimensões e dezenas de toneladas de peso, Gabriel não se atreveu a projetar-se para a berma. Seria o fim. O instinto levou-o a travar a fundo. O camião deslizou bloqueado, a caixa de carga atravessou-se na estrada, por fim, o embate inevitável e a carrinha onde estavam Lucy e o pai foi projetada para uma distância superior a cinquenta metros. Gabriel Saint está bem. Liga para as urgências. Fosse quem fosse que estivesse na carrinha, fossem muitas ou poucas pessoas, não poderiam estar bem. Corre para lá. Um homem geme de medo e dor. Uma menina jaz inanimada.

Lucy entrou em coma. O pai, com um braço fraturado, conseguiu explicar o que se passara. O acidente fora grave. Estarem vivos era um milagre. A questão residia, agora, em saber se Lucy acordaria. Foi nisso que a família se concentrou quando se abateu a consternação e a tristeza. E voltamos nós, contadores de histórias, ruminantes de pormenores, aos 40 dias. Foi esse o tempo que Lucy esteve adormecida. Foi esse o tempo do desatino. O pai hesitou entre a vida e a morte. Sentiu a culpa roer-lhe a existência. A mulher oscilou entre a tentação de o culpar e a contenção das palavras por saber que poderia acontecer a qualquer um. Mas as discussões surgiram e foram ferozes e a palavra divórcio andou ali a espreitar a oportunidade. A família uniu-se e houve conversas tensas e magoadas e outras de saudade pura. Caminharam todos os dias para o hospital, fizeram turnos às visitas, mandaram dizer missas, consultaram pessoas com poderes paranormais, rezaram a todas as divindades, fizeram oferendas, consultaram médicos para falarem com os médicos do hospital. Choraram, recordaram, choraram, recordaram. E, sobretudo, repetiram entre si palavras de esperança. E prometeram peregrinações e doações e cuidar de crianças desamparadas. Podiam tudo. Só não podiam acordar Lucy do seu sono letal. Essa era uma impotência que só um milagre poderia superar.

E o milagre aconteceu.
Ao 40º dia Lucy acordou. Estava fraca e não falou. Só veio a falar dois dias mais tarde. A família mergulhou em lágrimas de alegria e preces de agradecimento. Fizeram-se conjeturas sobre o que teria resultado para que o milagre se tivesse operado, mas foi Lucy quem o revelou, foi ela que disse porque voltara das profundezas do sono, foi ela que revelou por que razão se mantivera ligada a este mundo de sofrimento e alegria:
– Ouvi um anjo! Esteve sempre comigo um anjinho bom que, dia e noite, não parou de dizer-me baixinho, Fica, Lucy, fica. Tu vais conseguir. Ainda tens muitas coisas boas para viver. Fica, Lucy, fica. Tu vais conseguir.

A família soube de imediato do que se tratara, mas não o revelou à pequena. Afinal de contas, era importante preservar aquela fé e aquele anjo que, de facto, existia, que, de facto, estivera à cabeceira dela dizendo aquelas palavras. Nesse momento, um homem alto e bem constituído abandona o hospital mergulhado em lágrimas. À medida que caminha, vai pronunciando baixinho como se se tratasse de uma canção de embalar, Fica, Lucy, fica. Tu vais conseguir. Ainda tens muitas coisas boas para viver. Fica, Lucy, fica. Tu vais conseguir. E foi dizendo estas palavras que subiu para o camião e abandonou o local. No interior do parabrisas tinha uma chapa de matrícula colada onde podia ler-se “The Angel”.

jpv