Mails para a minha Irmã

"Era uma vez um jovem vigoroso, com a alma espantada todos os dias com cada dia."


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Histórias do Autocarro 28 – Civismo

Civismo

Há muito tempo que não presenciava uma história no autocarro 28. Sobretudo, uma suculenta, com muitos pormenores e que valesse a pena ser contada detalhadamente.

Hoje foi o dia. A coisa tem requintes de peripécia urbana do quotidiano agitado da grande urbe, com traços de discussão cívica, pinceladas de multiculturalidade e disputa de interesses democraticamente reclamados.

Apanhei o 28 na Infante Santo pouco depois das 18h. Duas paragens depois, na Conde Barão, o motorista abriu as portas da frente para as pessoas entrarem e as portas de trás para as pessoas saírem. Importa referir que as portas estão bem assinaladas e têm funções exclusivas. As da frente só servem para entrar. As de trás só servem para sair.
Quando o 28 parou na Conde Barão e enquanto a fila de pessoas que havia esperado entrava calmamente, seis homens entraram pela porta de trás. Dois brancos de fato, um branco de roupas práticas e três negros de roupas práticas. Quem viajava naquela zona da viatura reparou na infracção, mas é daquelas coisas que depende do civismo de cada um e já ninguém está para se incomodar com isso. As pessoas podem não concordar, podem achar condenável, mas deixam passar em branco, na impunidade dos dias cansados.

Ora, desta vez, quiseram o Destino e o motorista do autocarro 28 que a nossa tarde saísse do anonimato cinzento de todas as outras. Uma coisa qualquer aconteceu na cabeça dele e ele resolveu não deixar passar em branco:
– Os senhores que entraram pela porta de trás, é favor saírem.
Como ninguém se mexeu, ele esclareceu:
– Enquanto os senhores que entraram pela porta de trás não saírem, o autocarro não avança.
E aqui, eu pensei que, ou eles saíam, ou não estava bem a ver como é que o motorista ia cumprir a promessa. Os dois brancos de fato e um dos negros de roupa prática saíram. Só já faltavam três. Nesta fase, as pessoas começaram a reclamar em coro para eles saírem porque se estavam a atrasar para outros transportes, mas eles nada. Até este momento a coisa já estava suficientemente complicada e a ficar quentinha. Não precisava de mais ninguém a intervir. Acontece que a vida é como é e não como a queremos e, por isso mesmo, contra todas as expectativas, um rapaz negro que ia sentado levantou a sua voz em tom bem audível e sonoroso enchendo todo o autocarro com a sua opinião:
– Você não tem nada que se meter nisto. Você é motorista é para conduzir o autocarro, não é para vigiar as pessoas.
– Tenho sim senhor e a responsabilidade é minha e o senhor cale-se.
– Não calo nada. Isto é um país livre e democrático.
– Livre mas não libertino.
E pronto. O 28 explodiu em conversas, opiniões, contra opiniões, argumentos, a favor e contra. Havia quem defendesse que o rapaz tinha razão e havia quem o mandasse calar e havia quem pedisse aos três teimosos para saírem e havia quem pedisse ao motorista para avançar e outros não lhe pediam, gritavam-lhe essa vontade e havia pessoas que gritavam com o rapaz atacando-o por estar a defender os desordeiros ele dizia que só não queria estar parado porque se estava a atrasar e não podia ser prejudicado pela irresponsabilidade dos outros, mas também havia quem dissesse que o motorista, não sendo responsável pelos bilhetes, era responsável pela manipulação da viatura e que as pessoas que tinham esperado para entrar pela frente deviam ter o direito de ser respeitadas e poderem entrar. E houve quem citasse leis, eu próprio dei uma opinião em pleno 28. E, às tantas, alguém, fugindo a quem tinha razão ou não e fugindo às leis, invocou que era tudo uma questão de civismo. E foi aqui que o ruído, já ensurdecedor, aumentou ainda mais. Uns riram-se, outros comentaram, mas ninguém acreditava que a coisa se resolvesse só com recurso ao civismo. As reclamações eram tantas que o motorista arrancou. E houve quem reclamasse por tê-lo feito. Afinal de contas, três dos prevaricadores ainda lá iam. O rapaz continuou a defender bem alto o seu ponto de vista só com o apoio de uma ou duas pessoas. E aqui aconteceu mais um inesperado. O motorista parou o autocarro de novo e veio até meio do corredor para dizer ao outro:
– Isto é uma falta de respeito. Se diz mais uma palavra, chamo a polícia.
Então, o outro usou um trunfo, mas a jogada correu-lhe mal:
– Pronto, eu calo-me. Já percebi que não posso dizer nada porque sou negro.
O 28 voltou a explodir. Desta vez contra o rapaz e a sua argumentação. De facto, ele tinha estado a expressar livremente a sua opinião, em termos até um pouco exagerados, e ninguém o discriminou ou impediu ou cerceou na sua liberdade por razão nenhuma incluindo a rácica. Alguém disse ao motorista para se acalmar e prosseguir e ele lá foi resmungando entre dentes a palavra respeito enquanto o rapaz ia dizendo, Eu calo-me, eu calo-me.

Entretanto fui conversando com uma simpática passageira e concluímos aspectos diversos. Um, foi que nos atrasámos. Eu devo ter perdido dois comboios à custa do incidente. Outro, foi que o civismo é algo de muito escorregadio, difícil de medir e implementar. O último e o mais irónico dos aspectos que concluímos, foi que os três tipos que entraram à socapa pela porta de trás e não saíram se calaram muito caladinhos, deixaram o resto da malta em polvorosa e seguiram viagem sem nunca saírem, nem se envolverem, nem nada… é o tal civismo!

jpv


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Momento Divino

Un bel di vedremo – Madame Butterfly, Giacomo Puccini
Se esta música não te fizer sentir nada, então não és humano!


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"Com Amor," – Documento 31

Meu Homem Rui,

Trago ainda o teu cheiro de homem no meu corpo, o teu perfume na minha pele, e trago o teu toque em mim, como se a cada momento do dia me segurasses com doçura e firmeza, me estreitasses nos teus braços.
E foi enlevada por este amor na memória ainda fresca das carícias no corpo e na alma que fui reler-nos. Reli todas as tuas palavras, Rui, e soaram-me a actos. Reli todas as minhas palavras. Voaram para ti ao ritmo do compasso apaixonado do meu peito. Reli as minhas palavras e não eram já minhas… saíam aladas do meu controlo e procuravam-te na tua existência digital e humana.

Soas-me tão homem, Rui. A tua virilidade emerge das palavras como dos gestos quando amas com firmeza e ternura.

REVELAÇÃO: Reconheço-te, Rui. Reconheço a tua presença em mim. Na minha vida. E surpreendi-me reconhecendo de novo os homens na minha dimensão! Andas a reconciliar-me com o Universo. Em particular, o universo da masculinidade.

Com Amor,
Verónica.


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"Com Amor," – Documento 30

Minha Menina Verónica,

Quando li o teu e-mail fiquei preocupado.
Será que tanta pergunta é sinal de tanta dúvida? Depois de tudo o que nos amámos? Parece-te incerto este amor?

É preciso acreditar. Acreditar nas pessoas, acreditar no amor. Acreditar no azul do céu e no brilho intenso do sol. É preciso acreditar que estamos vivos e que cada dia, cada pulsação, cada temor, cada realização e cada alegria são verdadeiros porque são os nossos barómetros de vida.

Amar é a solução, minha menina Verónica, amar é a solução. Quando duvidares, ama. Quando temeres, ama. Se negares o amor, negas a vida. E isso não é opção… a menos que queiras ser, como disse o poeta, “cadáver adiado que procria”. Ama, Verónica, ama! Nem me refiro em particular a mim. Refiro-me ao mundo, às coisas boas da vida e às más também. Ama-as todas, Verónica. E, claro, ama os homens. Os homens não são bons nem maus, são homens. E é como homens que devem entrar na tua vida. Só isso.

Eu percebo porque falas em culpa. Claro. E posso até dizer que, sendo essa culpa nossa, a sinto mais minha do que tua. E, sendo claro com as palavras, porque eu tenho limitações que tu não tens. Carrego uma responsabilidade de que estás livre. Há, contudo, algo que me perturba. Talvez porque não perceba as razões, ou percebendo-as, as não valide intrinsecamente. Se o que sentimos é tão puro, tão verdadeiro e tão belo como se tem manifestado, onde está a culpa? Pode um amor assim ser culpado? Eu percebo as limitações e os constrangimentos. Logo à partida, de ordem moral. Mas é isso que me assusta: numa análise aos meus pensamentos, aos meus actos e aos meus sentimentos dos últimos meses, não encontro nada senão a pureza inocente de quem se descobre e entrega.

Eu também tenho culpa em mim, Verónica, e, contudo, sinto-me inocente ou, se quiseres, não sou capaz de sentir-me culpado.

Anseio ver-te. Ter-te nos meus braços e fazer-te minha sendo teu. A tua ausência magoa-me. A tua presença pacifica-me. Uma paz de entrega e resiliência.

Não consigo pensar senão em ti. Não te prenderei, meu amor, mas jamais te soltarei do meu coração.

Com Amor,
Rui


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A Escola de Amar

A Escola de Amar

Tempos houve
Em que a minha pele era lisa.
Tempos houve
Em que a minha voz era cristalina.
E foi nesses tempos
Que meu corpo parecia
Tocado pela graça divina.
Tempos houve
Em que era perfeita a visão
E me não falhava o olfacto.
Tempos houve
Em que tinha a exacta dimensão
Traçada do mundo pelo meu tacto.

E houve tempos
Em que fui pleno.
Em que possuí
O momento sereno
De ter-te entre
Os meus braços.
Foi no tempo
Dos dias escassos
Para tanta vida,
Para tanto amor.
Foi no tempo
Da insensibilidade
Ao frio e ao calor.

Eu sei que passaram os dias
E os meses
E os anos com eles.
Eu sei que me nasceram estrias
E se me enrugaram as peles.
E sei também,
Com essa natural
E empírica ciência,
Que não há no mundo equivalência
Para o que sou capaz de amar,
Para a minha inesgotável experiência
Deste caminho
A que chamam vida.
Deste amor e deste carinho,
Desta entrega,
Deste sal e deste vinho,
Desta tentativa de não acabar sozinho…
De não morrer…

E sei que,
Para o tempo que me resta,
A solução
E o segredo
É aprender!
É limar a aresta da vida,
A linha incerta e indefinida
Da minha existência.
Para tão grandiosa vida,
É tão pouca a ciência
Que me diz
E me vem sussurrar:
A longevidade,
E o segredo da vida
Resumem-se a AMAR.

jpv


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Maphee

Maphee…

é o novo membro da família. Mais um! Isto aqui para estas bandas começa a parecer um canil municipal!!
Em todo o caso, com estes olhinhos, resta desejar muitas felicidades ao Maphee, aos papás babados e que dê um bocadinho de luta ao Torrão que não pára de destruir propriedade móvel e imóvel!!!
Natacha, estás feita! Agora são dois para de dar cabo da paciência. E este, a avaliar pelos olhinhos, também vai ser mexedito… nunca mais descansas rapariga!
Para quem está de fora, os primos caninos da família são (por ordem alfabética):
Alperce
Dandy
Maphee
Natacha
Nuca
Torrão
Ui, que tropa!


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Hoje é dia de…


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O Poder do Beijo

Já todos ouvimos falar do poder do beijo. Nomeadamente das suas propriedades analgésicas. Já todos ouvimos falar de beijos famosos e dados em locais e/ou circunstâncias pouco comuns.

O beijo de Alexandra Thomas e Scott Jones ficará para sempre na galeria dos mais extraordinários porque foi dado mesmo no meio de… violentos confrontos entre a população e a polícia de choque! Mai nada!

O motivo dos confrontos que ocorreram na cidade de Vancouver é absurdo e absolutamente desnecessário. Uma final de Hóquei no Gelo. Os adeptos incediaram carros, viraram carros, partiram montras, vandalizaram e a polícia de choque foi chamada ao local. O pacato casal estava no local errado, à hora errada e foi apanhado na onda de repressão da polícia. Quando Alexandra caiu, o seu namorado precipitou-se sobre ela e beijiou-a apaixonadamente. E, pasme-se, a polícia afastou-se. O casal foi deixado em tranquilidade.

Haverá sempre beijos inusitados, mas o de Alexandra Thomas e Scott Jones será sempre o beijo que resistiu à violência, o beijo que parou um motim! E depois venham-me cá acusar de ser um romântico sem cura… O Amor cresce, mesmo nas condições mais adversas!


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O Meu País

À J. e aos outros Amigos

Pegando na elegia do poema de Sophia,
E nas silvas cantadas ao acordar
Sinto a alegria da palavra de esperança
Da poesia cujos dias carecem do seu encantamento.
Agradeço a lembrança de mim.

Desejo que o calor do sol dos dias que ficam além dos vidros das nossas janelas
Nos faça aconchegar ao país que desejamos
E nos reste sempre
Sorrir.

SCL
————————————————

No dia em que começou o Verão, a J. lembrou-nos as palavras de Sophia:

“O meu país sabe às amoras bravas no Verão.
Ninguém ignora que não é grande,
Nem inteligente, nem elegante o meu país,
Mas tem esta voz doce
De quem acorda cedo para cantar nas silvas.”

E a SCL respondeu-lhe com as linhas que aqui se transcreveram.


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A Resiliência do Terremoto

A Resiliência do Terremoto

Às vezes, por entre os poemas e as histórias de viagem e os capítulos dos romances, surgem-me umas crónicas sociais. Esta é mais do que isso. É uma crónica social, mas é também uma reflexão libertina e pouco rigorosa. Não se apressem a criticá-la. Seria tarefa demasiado fácil. Ora, conhecendo o seu autor as fraquezas dos fundamentos do texto, porque o publica? Porque quer. E razão mais genuína não há.
Tanto quanto me apercebi, na altura e nos anos subsequentes, a União Europeia foi criada por questões de segurança, coesão financeira e comunhão cultural. Ando com a sensação de que, nos últimos tempos, a comunhão cultural anda muito afastada do quotidiano da União Europeia. Os países membros respeitam as suas diversas culturas, mas não me parece que possa falar-se de comunhão. Visitarmos livremente os museus uns dos outros ao Domingo não é comunhão cultural, é turismo barato. Transitarmos livremente entre os países não é comunhão cultural, é livre circulação e termos países asiáticos no Euro Festival da Canção não é comunhão cultural, é só parvoíce sem sentido. A comunhão cultural pressupõe um pensamento identitário de base que não existe. Um francês é um francês, não é um europeu. Como é que eu sei? É simples. Nenhum francês se põe debaixo da Torre Eiffeil a dizer “Esta torre é da autoria de um europeu e está na Europa.” Se bem conheço os franceses, a Torre Eiffel, o croissant, o Molière, os crêpes Suzette e o champagne são franceses e não têm nada a ver com a Europa.
Quanto à coesão financeira, a coisa ainda é mais grave e gritante. Senão vejamos: a principal bandeira, o principal sinal e o elemento mais estruturante da tal coesão financeira é a moeda única. Ora, a União Europeia deve ser dos poucos casos de moeda única em que a moeda única não é única, ou melhor, não é para todos! E o mais engraçado é a razão que levou os ingleses a não aderirem à moeda única. Defendam as teorias que quiserem, mas a verdade, a verdadeira verdade, é que Sua Majestade, a Rainha, não pode ser súbdita do… Parlamento Europeu! E pronto. Aí está a coesão financeira refém de um capricho. Mas há mais. Eu posso estar enganado, mas a coesão financeira era suposto fazer com que as pessoas vivessem melhor. Pois bem, exceptuando a malta dos fiordes e dos Mercedes, o resto dos irmãos europeus, que é a maioria, não está nada bem. A França ardeu em protestos sociais, a Grécia está famélica e desempregada, a Itália a um passo da bancarrota e no caos financeiro, a Bélgica arruinada, a Espanha na falência, A Irlanda falida e Portugal… bem, Portugal, ao que parece, vai cumprir. Eu, pelo menos, ando a fazer a minha parte todos os meses. O engraçado é que esta ideia da coesão financeira até funciona, mas só funciona para alguns. É o caso daquele país que teve a genial ideia de vender fragatas e submarinos e armamento à Grécia com base no pressuposto da ameaça dos cipriotas que não têm onde cair mortos. E vai daí, vendeu o armamento e emprestou o dinheiro para a compra a juros elevadíssimos. Esse mesmo país faz parte dos países que participaram na “ajuda externa” e agora exige milhares de despedimentos, caso contrário não segue a próxima tranche. Esse mesmo país deve à Grécia, desde a Segunda Guerra Mundial, uma soma superior à dívida da Grécia que agora tão rigorosamente está a ser cobrada! Sobre coesão financeira estamos conversados! De resto, no âmbito da coesão financeira, o conceito de “ajuda” é o que mais me tem fascinado. Eu não sei bem se é ajuda ou extorsão! Quando uma ajuda leva o ajudado à fome, ao desemprego, à crise social e à bancarrota, então, meus amigos, com franqueza vos digo, não se trata de ajuda. Ainda assim, e no nosso caso, como somos gente cumpridora e de palavra, espero que a ajuda nunca venha a ser mais do que isso mesmo!
E falta uma breve referência à segurança. Efectivamente, na Europa vive-se com assinalável segurança. Não há inimigos nem ameaças externos. O problema é que cresce internamente a insegurança. Não é a insegurança de quem vai ser invadido, mas é a insegurança decorrente dos preocupantes e crescentes níveis de marginalidade e criminalidade. A fome e a insuficiência levam os seres humanos, europeus neste caso, à prática dos mais condenáveis e sancionáveis actos. E aí temos dois problemas. As nossas polícias estão desautorizadas e têm pouca capacidade de acção neste combate e a causa do mal não está a ser atacada, pelo contrário, está a ser agravada e nos próximos tempos tudo indica se irá agravar ainda mais por essa União Europeia dentro.
Chegado aqui, só falta explicar a escolha do título desta crónica. Todos nós conhecemos e nos deparamos frequentemente com chavões. Frases feitas que ficam sempre bem num discurso ou numa conversa de café, que não querem dizer grande coisa, mas que toda a gente aceita sem questionar, talvez porque, afinal, queiram dizer alguma coisa. Alguma coisa universal. Uma delas é “A História repete-se.”
Sobre a repetição da História o raciocínio é simples. A História ensina-nos que o advento destes factores conjugados em clima de insatisfação e crispação social rapidamente se estende à esfera política e com facilidade desemboca em conflitos bélicos. Ou seja, as pessoas aguentam, mas não aguentam tudo. A destruição dessa tecitura social a que chamamos Classe Média é catastrófica. O aumento de impostos, a redução do poder de compra, a ausência de crescimento económico, o desemprego, a fome, a marginalidade acabam por estoirar na mão de quem pede sacrifícios quando os sacrifícios são incomportáveis. O interessante, ensina também a História, é que os momentos de pós-guerra são momentos de grande renascimento económico, de grandes forças laborais, de reestruturação política e de resiliência social. No fundo, em raciocínio arriscado, aquilo de que estamos a precisar é de uma guerra. Ora, aqui temos outro problema. A Europa está farta de guerras e Portugal está povoado de gente pacata e pouco dada a guerras. Já nos chegam as do passado. E isto, sendo bom, é muito mau porque funciona como bloqueio à tão ansiada resiliência social. Precisamos unir-nos em torno de uma motivação colectiva forte, em torno de um calamitoso motivo de união e regeneração social. Algo que nos faça reequacionar as prioridades e nos permita reerguer. Claro que, para tão ambicioso propósito, um campeonato europeu de futebol, mesmo com bandeirinhas nas janelas, já não é suficiente. Resta-nos, assim, outro grande impulsionador de regeneração político-financeiro-social: uma grande catástrofe natural. E quem pensa em Portugal e em catástrofe natural, pensa em quê? Pensa no terremoto que em 1755 assolou e devastou Lisboa e que, de resto, os cientistas prometeram se iria repetir…
Isto pode parecer-vos insensível, mas não é. E contra mim falo que trabalho ali à beirinha do Tejo e seria dos primeiros a ser engolido pelas águas furiosas do mar e do rio galgando cidade dentro. Como nos filmes de ficção, a ponte sobre o Tejo colapsaria, a água inundaria a cidade até ao Marquês de Pombal arrastando tudo consigo, o tremor derrubaria edifícios, ficaríamos sem transportes, sem luz eléctrica e sem abastecimento de água. Adeus computadores e redes sociais, adeus títulos e importâncias, adeus tudo. Olá vida nova! Três terríveis minutos depois, Portugal seria um país novo, uma nação em franca regeneração. Choravam-se as vítimas, “Coitado do Videira, era bom homem, isto é uma desgraça, uma grande desgraça!”, e depois seria precisa mão-de-obra, materiais, apoios civis e militares e… desde a indústria da habitação à banca, passando pelos serviços e pela organização política, teríamos de reinventar um país que é exactamente o que estamos a precisar de fazer agora.
É por isso, meus amigos, que Portugal vive uma encruzilhada, um duplo e ciclópico desafio: pagar ao FMI ou enfrentar a resiliência do terremoto. O único problema é que nenhum dos dois parece depender da nossa vontade!
jpv